A Black Rose Anarchist Federation (BRRN) [Federação Anarquista Rosa Negra] enviou uma delegação para participar da AFem2014, uma conferência anarquista feminista internacional promovida por um comitê de anarquistas que se organizam no Reino Unido. Os objetivos da AFem2014 eram combater o sexismo e outras formas de opressão dentro do movimento anarquista e criar um “espaço mais seguro” para iniciar conversas sobre experiências individuais e coletivas que pudessem ser traduzidas num trabalho organizativo. O comitê dessa conferência esperava que a energia gerada por esse evento revigorasse o feminismo anarquista como um todo, e fosse reproduzida como uma série contínua de conferências com impacto global. Quando vista por essa perspectiva, a AFem2014 foi um importante avanço político, que evidencia o crescimento do anarquismo e a necessidade de avançar em termos de teoria e prática do feminismo anarquista. Entretanto, a delegação da Black Rose deixou a AFem2014 com mais perguntas do que respostas, sendo a principal delas: “O que é o feminismo anarquista?”.

A AFem2014 não possuía uma aspiração capaz de realizar seu potencial. Implicitamente, ela considerava que o simples fato de existir sob o patriarcado era, por si só, um ato radical, e que essa experiência compartilhada de opressão poderia servir para substituir uma herança e uma perspectiva política compartilhada. Embora celebremos nossa própria sobrevivência e a de nossas companheiras, não estamos dispostas a nos contentar com isso. Na verdade, se permitirmos que o feminismo anarquista permaneça ancorado em nossas identidades e não em nossas práticas, corremos o risco de sermos pegas despreparadas quando surgirem desafios que exijam mais do que melhorias superficiais. Por exemplo, houve várias ocasiões na conferência em que a política de espaços seguros poderia ter sido reforçada com análises específicas sobre raça e imperialismo; o resultado foi que um participante branco que usava dreadlocks recebeu uma rápida advertência por apropriação cultural, mas um incidente complicado e doloroso sobre o silenciamento de um palestrante que relatava experiências de violência de gênero no Oriente Médio não foi abordado. Como membros dessa delegação, esperávamos que a natureza internacional da conferência permitisse às participantes uma oportunidade única de comparar estratégias de organização de diferentes partes do mundo e voltar para casa com novas relações políticas que lançassem as bases para uma futura coordenação. Infelizmente, a conferência foi mal desenvolvida em vários aspectos, que acabaram limitando esse potencial. O principal exemplo foi a prioridade dada pelo comitê da conferência ao desenvolvimento de políticas rigorosas de participação e de espaços mais seguros e, ao mesmo tempo, a falha em aplicar esse mesmo rigor às demandas e ao desenvolvimento do conteúdo da conferência. Foi dada muita importância à participação das pessoas “certas” (aquelas diretamente afetadas pela opressão de gênero) e à criação do ambiente “certo”, no qual elas poderiam se reunir (um ambiente regido por uma política de espaços mais seguros criada para excluir comportamentos opressivos). Essas coisas não são negativas em si mesmas, mas descobrimos que o foco excessivo colocado nelas, em detrimento da seleção deliberada de seu conteúdo político, resultou em uma representação do feminismo anarquista que incluía simultaneamente toda a política e nenhuma política.

Para responder às crises políticas dos nossos dias, o feminismo anarquista deve ser capaz de se comunicar com conhecimento e convicção. Aqueles de nós que desejam desenvolver esta tendência política devem se situar na história, e aproveitar as lições do passado. Devemos desenvolver novas teorias e testá-las na luta. Devemos construir movimentos de massas e defender o anarquismo a partir deles. Devemos fazer exigências e, nas palavras do anarquista italiano Errico Malatesta, “tomar ou conquistar as eventuais reformas no mesmo espírito daquele que arranca pouco a pouco do inimigo o terreno que ele ocupa, para avançar cada vez mais”.[1] Devemos nos orientar internacionalmente e nos empenhar na solidariedade com os nossos camaradas globais. Através dessas práticas, o feminismo anarquista pode se tornar uma força política específica, capaz de enfrentar os desafios formidáveis que nos são apresentados pelo capitalismo e pelo Estado.

Por definição, um movimento feminista amplo não representa totalmente nossa posição política. Em vez disso, ele serve como uma avenida para questionar e fazer avançar o feminismo onde ele está atuando: nas ruas, em nossas casas, em nossos empregos, na mídia e por meio de nossas redes sociais complexas e sobrepostas. Tirar o feminismo anarquista de nossos pequenos espaços coletivos e colocá-lo na arena social significa que estamos dispostas a lutar pela sua relevância dentro dos movimentos da classe trabalhadora. Nossas políticas são mais do que ferramentas úteis para administrar nossas vidas pessoais; elas representam os projetos de um mundo pelo qual vale a pena lutar e morrer. “Quebrando as Ondas” é uma convocação ao rompimento com o feminismo liberal e ao reconhecimento da necessidade de reconstruir nossa própria tradição histórica de feminismo anarquista. Ao mesmo tempo, estamos declarando a necessidade de anarquistas que são feministas e feministas que são anarquistas discutirem e debaterem o que o feminismo anarquista significa na prática, e aprofundarem essa definição por meio de uma luta renovada. Nosso objetivo não é fornecer um guia completo para um novo feminismo anarquista, mas avançar alguns passos para além da vaga política que caracteriza esse momento. Prevemos que muitas leitoras e leitores compartilharão as frustrações e ambições deste artigo. Afirmamos isso com base em nossas próprias experiências e nas conversas que tivemos com companheiras e companheiros que se sentiram igualmente limitados por um movimento anarquista que carece de uma prática feminista relevante e um movimento feminista que declara que a luta coletiva só pode começar quando tivermos purificado a nós mesmas e a todos aqueles com quem nos organizamos. No primeiro caso, nossa política é marginalizada junto com nossas vozes. No segundo, não há espaço para que a educação ocorra na luta. As pressões da dupla militância são exacerbadas quando nossos dois espaços políticos competem por nosso tempo e nosso trabalho. Quando conversamos com os companheiros em nossas próprias organizações, na AFem2014 e em todos os outros inúmeros espaços em que nos encontramos, houve um tema comum: merecemos algo melhor e estamos prontos para lutar por isso. Esperamos que este artigo possa estimular uma conversa produtiva e questionadora sobre as questões que levantamos, e estamos ansiosas para discutir as contribuições teóricas e as críticas que surgirem.

FEMINISMO ANARQUISTA

O feminismo anarquista é um termo que carece de uma definição clara. No movimento anarquista dos Estados Unidos, ele é empregado de forma tão inconsistente que é difícil compreender seu significado para algo mais do que “trabalho antipatriarcal feito por anarquistas, geralmente mulheres”. Num mundo em que nossos movimentos revolucionários têm ricas histórias em termos de teoria e de luta, não acreditamos que essa definição seja suficiente. Como o feminismo anarquista carece de uma narrativa de luta coletiva ininterrupta, ele funciona como uma forma “mais ousada” de feminismo, que é mais visível ao confrontar o patriarcado no âmbito da interação interpessoal e pode ser avaliado pela experiência do indivíduo e sua capacidade de se adaptar a comportamentos sociais específicos e estilos de vida restritos. Entretanto, essa falta de história e de especificidade não impediu que indivíduos ou organizações fizessem contribuições políticas significativas em nome do feminismo anarquista.

A publicação de Quiet Rumors: An Anarcha-Feminist Reader (1978) foi um passo importante na elucidação da tradição feminista anarquista. Ao reunir uma seleção diversificada de autoras e continuar a atualizar o conteúdo nas edições subsequentes, as editoras capturaram a política fragmentada, muitas vezes contraditória e em evolução, que se enquadra no feminismo anarquista. Uma resenha de Red Sonja, membro da Northeastern Federation of Anarchist Communists (NEFAC), observa: “Se o anarquismo ‘indefinido’ é o corpo de pensamento em expansão que é, abrangendo dimensões filosóficas opostas, como o individualismo robusto de um lado, e o comunismo libertário de outro, então o ‘anarcofeminismo’ também abarca um terreno político vasto e com limites imprecisos”.[2] Infelizmente, muitos dos ensaios contidos em Quiet Rumors estão isolados, sem um fio coerente para seguir de uma ideia para outra. No prefácio da terceira edição, a autora Roxanne Dunbar-Ortiz celebra o retorno das heroínas anarquistas femininas e afirma: “Nossa tarefa como anarcofeministas não pode ser nada menos do que mudar o mundo e, para isso, precisamos consultar nossas heroicas predecessoras”.[3] No entanto, é comum que o feminismo anarquista seja definido exclusivamente por essas revolucionárias, em vez de entendê-las no contexto das organizações e movimentos em que atuaram.

Por ser uma anarquista que discutiu e escreveu longamente sobre a opressão das mulheres, Emma Goldman é o primeiro (e muitas vezes o último) nome que vem à mente quando se pensa em feminismo anarquista. Ela era tudo, menos individualista, e enfatizá-la excessivamente como tal a coloca em um lugar equivocado do ponto de vista histórico. Nos EUA, ela foi politicamente ativa no Industrial Workers of the World (IWW), participou da luta pela legalização do controle de natalidade e do movimento antiguerra durante a Primeira Guerra Mundial. Goldman continua a ser influente no anarquismo por causa de seu impacto notável em movimentos e eventos históricos maiores, e é um erro vê-la exclusivamente como uma figura romântica comum e erroneamente citada como tendo declarado: “Se não posso dançar, não quero fazer parte da sua revolução”. Há várias anarquistas contemporâneas de Goldman, que estão ao lado dela em termos de destaque, como Lucy Parsons e Voltairine De Cleyre. É raro que as organizações atinjam o nível de celebridade feminista alcançado por essas mulheres, mas até mesmo anarquistas desinteressadas na luta histórica das mulheres podem conhecer Mujeres Libres, uma organização de mulheres que lutou pela igualdade de gênero durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). A tendência de ver nossa política exemplificada por indivíduos reconhecidos nos deixa vulneráveis a muitas armadilhas. Em primeiro lugar, somos incentivadas a imaginar a política dessas pessoas como algo congelado no tempo, e não como o produto de uma vida inteira de aprendizado experimental. Em segundo lugar, ao nos vincularmos a indivíduos em vez de teorias e práticas políticas específicas, somos forçadas a encontrar uma maneira de ignorar suas falhas inevitáveis ou a descartá-las completamente como modelos imperfeitos de prefiguração. A verdade é que, na maioria dos casos, o gênero de nossos antecessores é o que há de menos interessante neles. Nós os serviríamos melhor (e, ao fazê-lo, beneficiaríamos melhor a nós mesmos) colocando-os em seu devido contexto histórico e estudando como eles lidaram com os desafios políticos de sua época.

O feminismo anarquista não conseguiu desenvolver uma política distinta do feminismo liberal, do feminismo socialista/marxista ou do feminismo radical. Em vez disso, ele expressa uma rejeição à cultura sexista presente nas gerações anteriores da militância política, sem nunca elucidar uma visão positiva de como devemos moldar nossos movimentos ou quais teorias e táticas são mais adequadas aos nossos objetivos. Sem uma ideologia revolucionária para iluminar o caminho em direção a desafios cada vez maiores frente ao Estado e ao capitalismo, as pessoas nesses espaços ficam com poucas opções a não ser se voltarem para dentro de si mesmas, elevando sua consciência, mas sem um objetivo maior. Ainda assim, há um desejo coletivo no anarquismo de lutar contra o patriarcado. A todo momento nos dizem que a solução é individual. Mas aqui, nós, anarquistas e aspirantes a feministas anarquistas, concordamos com Carol Hanisch em seu artigo seminal, “The Personal is Political”: “Não há soluções pessoais neste momento. Só existe ação coletiva para uma solução coletiva.”[4]

OS LIMITES DA TEORIA DAS ONDAS E DO FEMINISMO ACADÊMICO: QUAL É A NOSSA TRADIÇÃO HISTÓRICA E POLÍTICA?

As feministas acadêmicas catalogaram a história dos movimentos feministas nos EUA em três ondas progressivas. A primeira onda centrou-se na luta pelo sufrágio no início do século XX. A segunda onda, conhecida como movimento de libertação das mulheres, desenvolveu-se nas décadas de 1960 e 1970 em torno da luta pela legalização do aborto e da reivindicação fracassada de uma Emenda de Direitos Iguais (ERA). Por fim, a terceira onda continua a existir como uma crítica à política branca e heteronormativa do discurso da segunda onda, e representa a mudança de uma política baseada em movimentos para uma abordagem mais individual. Como não se fundamenta numa luta específica, as ideias e práticas dessa onda persistem sem uma conclusão clara. Essa concepção ocidental da história feminista moderna é amplamente compreendida e aceita, mas ainda há muito debate sobre o caráter preciso de cada onda e como elas afetam os feminismos de hoje. Mesmo agora, há uma disputa para definir uma quarta onda em relação à participação das mulheres nas tecnologias emergentes. Entretanto, como anarquistas e feministas que trabalham dentro de uma tradição revolucionária, não podemos traçar nossa linhagem por meio de formações individualistas, liberais ou acadêmicas do feminismo.

Muitas mulheres anticapitalistas e revolucionárias foram convenientemente deixadas de fora dos textos acadêmicos e de suas histórias. No final do século XIX e início do século XX, as mulheres socialistas tinham pouca relação com o feminismo da primeira onda devido ao seu componente burguês e à sua perspectiva reformista. No Reino Unido, onde o movimento sufragista tinha uma base maior na classe trabalhadora e utilizava táticas mais combativas, houve mais interação política.[5] Os cursos universitários sobre a teoria feminista raramente fazem críticas ao movimento sufragista, o que de fato apaga as atividades dessas mulheres revolucionárias. Em vez disso, comemoram as conquistas da primeira onda e a colocam dentro de uma narrativa de progresso histórico. Mas será que houve progresso quando as organizadoras brancas pelo sufrágio se recusaram a incluir lutadoras negras pelo sufrágio, como Ida B. Wells? A história do feminismo está repleta dessas contradições que são importantes experiências de aprendizado. Ao buscarmos as palavras e ações a partir das quais construiremos nossa tradição, encontraremos afinidade em locais familiares e improváveis, incluindo as tradições do feminismo marxista e liberal. A construção de uma tradição histórica feminista anarquista nos fornecerá uma plataforma para avançarmos em nossa própria política, para entendermos nosso trabalho no contexto do que já foi produzido e, então, seguirmos em frente. As feministas anarquistas que buscam reconstruir sua tradição política devem navegar com cuidado e mesmo corajosamente por águas estrangeiras. Nós sempre existimos, mas nem sempre fomos vistas.

Em Black Flame: the revolutionary class politics of anarchism and syndicalism, os autores afirmam: “Admitimos um certo desconforto com a tendência de muitos escritores de rotular as mulheres anarquistas, anarcossindicalistas e sindicalistas revolucionárias como ‘feministas anarquistas’ ou ‘anarcofeministas’”.[6] Compartilhamos desse desconforto. Essa prática reflete uma tendência que surgiu entre os historiadores e ativistas da segunda onda, que começaram a procurar mulheres na história. Alguns passaram a rotular retroativamente mulheres fortes e independentes do passado histórico como feministas, reforçando um entendimento ahistórico do feminismo. Além disso, esses escritores e teóricos falharam em apresentar uma análise dialética do feminismo, cujo significado mudou nos últimos 100 anos ou mais. Durante o movimento feminista da segunda onda nos EUA, houve uma mudança política, pois muitas mulheres socialistas introduziram a ideologia feminista da época em suas visões anticapitalistas e revolucionárias. Embora algumas mulheres socialistas e anarquistas tenham usado o rótulo de feminista no final do século XIX e início do século XX, a grande maioria não o fez. Isso se deveu ao fato de o feminismo ter surgido como um movimento que representava as necessidades das mulheres burguesas e de classe média alta, que queriam ter o mesmo acesso aos direitos de cidadania e às oportunidades profissionais que seus colegas homens.

O debate sobre o uso retroativo e o mau uso do feminismo não é uma disputa mesquinha sobre termos e definições, mas uma questão política importante. Primeiro, ao não fazer esse debate, colocamos todos os feminismos como parte da mesma família e reforçamos o gênero acima da classe e da filiação política. Em segundo lugar, isso apaga patrimônios políticos por inteiro, especialmente tradições revolucionárias que funcionaram fora das ondas, e às vezes contra elas. A maioria das mulheres socialistas e anarquistas não consegue escapar da classificação feminista que relembra a todos o seu gênero. Além disso, essa prática de encontrar “feministas” na história cria uma falsa consciência feminista, que reforça a noção de que algumas mulheres “não têm consciência” de seu feminismo, enquanto as mulheres que não se enquadram nos comportamentos feministas esperados são rotuladas de “não irmãs” ou de “mulheres patriarcais”.[7] Há algumas mulheres que apoiam o patriarcado, mas a grande maioria precisa negociar e fazer concessões para sobreviver nessa sociedade patriarcal e capitalista. Por fim, ao não colocar os vários feminismos no seu contexto histórico, o núcleo ideológico do feminismo é suavizado e dispersado, a ponto de deixar de ser uma coleção de teorias e práticas e ser substituído por um sentimento atemporal e transcendente, que até mesmo pessoas como Hillary Clinton podem manifestar. Há uma necessidade urgente de reafirmar o feminismo como uma ideologia política, a fim de reconstruir um movimento no qual as ideias possam ser debatidas e a teoria radical possa florescer como práxis.

LA ALZADA: AÇÃO FEMINISTA LIBERTÁRIA (CHILE)

A palavra “alzada” é a forma feminina do substantivo espanhol que significa rebelde, instigadora ou impulsionadora. O termo “trabalho territorial” refere-se ao trabalho comunitário e de moradia, enfatizando uma localização geográfica. O termo “libertário” é usado de forma intercambiável com “anarquista” na América Latina e na Espanha. O uso da palavra “militante” refere-se a um membro de uma organização revolucionária que cumpre um nível esperado de atividade política. As organizações anarquistas especifistas, como a Federação Anarquista Uruguaia (FAU), promovem a criação de organizações anarquistas específicas (especifistas) para o trabalho político e usam a estratégia de inserção social para a participação em movimentos sociais. “Inserção social” significa construir uma base para as ideias anarquistas dentro de sindicatos e outras organizações sociais, enfatizando a participação política horizontal. O termo “multissetorialismo” é um termo usado pela esquerda chilena, conforme definido na nota 20.

Em 9 de março de 2013, um grupo de feministas anarquistas em Santiago, Chile, anunciou a formação de La Alzada. La Alzada não é a única organização feminista libertária no Chile; outras foram fundadas antes e depois dela. No entanto, optamos por destacar La Alzada porque seu objetivo organizativo de construção do feminismo libertário está alinhado com nossa própria visão política. É importante observar que o pano de fundo da fundação de La Alzada foi o crescimento e o surgimento do movimento anarquista ao longo de duas décadas. Ao mesmo tempo, o impacto da política feminista e queer também estava se fazendo presente na esquerda revolucionária. Organizações como a Coordenadoria Universitária pela Dissidência Sexual (CUDS) e La Champurria (que significa “mistura” em mapudungun) refletem a emergência de um movimento social queer e de novos diálogos sobre feminismo e homossexualidade.[8] As práticas de La Alzada refletem três elementos importantes que queremos destacar: realizar um trabalho voltado para o movimento social e a inserção social; fazer com que sua política esteja presente e seja influente dentro da esquerda; criar uma nova teoria.

Para contextualizar o trabalho de La Alzada é preciso explicar o significado político e a importância do que é chamado de dissidência sexual. O termo dissidência sexual tem um significado e uma genealogia específicos no feminismo chileno, nos movimentos sociais e queer. “Dissidência sexual” implica uma crítica ao patriarcado, à heteronormatividade e ao movimento LGBTQ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queers) em sua aliança com o Estado. Alguns membros desse movimento deixaram de questionar a socialização da violência e, em vez disso, têm buscado reformas como a igualdade no casamento e as leis antidiscriminação.[9] O termo também funciona como um contraponto ao conceito de diversidade sexual, que enfatiza a luta pelos direitos civis e a inclusão dentro do Estado capitalista, e não um combate à existência do patriarcado. O coletivo de dissidência sexual mais conhecido é a CUDS, que define seu trabalho da seguinte forma: “Não há mulheres, homens ou gays aqui. Nós somos aqueles que a onda feminista em Santiago do Chile jogou fora. Oficialmente, somos um coletivo universitário pós-feminista de dissidentes sexuais que organiza nossos corpos para realizar ações de terror sexual em espaços de autoritarismo sexual”.[10] A CUDS organiza intervenções políticas para provocar conversas, instigar polêmicas e questionar os padrões sociais que o patriarcado normalizou. Em novembro de 2012, ele organizou um protesto no Encontro Nacional de Feministas Diversas depois que um membro do CUDS foi impedido de participar por ser um “bio-homem”.[11] A CUDS foi ao congresso e colocou uma faixa do lado de fora que dizia “Feminismo en toma” [Feminismo ocupado] para chamar a atenção para um movimento feminista em expansão, que buscava questionar tanto a masculinidade quanto a transfobia, e que reivindicava um “feminismo sem mulheres”.[12] Na marcha feminista de 25 de julho de 2013 que exigia a legalização do aborto, a CUDS marchou com uma faixa que dizia: “El derecho a no nacer” [O direito de não nascer], desempenhando um papel de destaque durante a ocupação da catedral nacional no centro de Santiago. Outras faixas incluíam: “Sodomize o heteropatriarcado com seu clitóris” e “Abortem como animais”. O movimento de dissidência sexual também levou ao crescimento do transfeminismo no Chile, assumindo um papel semelhante ao politizar o compromisso trans de construir e intervir no movimento feminista e contra o patriarcado.

A divergência que distingue La Alzada de outros grupos feministas é o fato de ser uma organização político-social na qual a filiação exige um nível predeterminado de atividade política.[13] Uma militante de La Alzada participa do trabalho de inserção com mulheres da classe trabalhadora e dentro do movimento estudantil, além de promover suas próprias intervenções políticas dentro dos movimentos anarquista e feminista. A filiação é aberta a todas as pessoas e elas incentivam a inclusão de militantes identificados como homens. Trabalham em estreita colaboração com os sindicatos de trabalhadoras domésticas SINTRACAP e SINAICAP, que são divididos entre integrantes nascidas no Chile (o primeiro) e estrangeiras (o segundo), em sua maioria oriundas do Peru e da Bolívia. Elas organizam oficinas sindicais, como aprender a falar em público e oficinas de expressões corporais para aumentar a confiança e o crescimento político de integrantes de sua base.[14] Elas têm usado o Teatro do Oprimido – uma técnica interativa utilizada para promover a transformação e a crítica social – como ferramenta para analisar experiências de opressão e desenvolver ideias combativas.[15] Também participaram da greve de trabalhadores portuários em janeiro de 2014, que teve uma base majoritariamente masculina. Foram criticadas por algumas feministas pela sua participação, mas a resposta de La Alzada foi que era importante estar presente naquela destacada luta sindical. Elas consideram esse tipo de trabalho como parte de uma construção do sindicalismo feminista, que questiona simultaneamente os movimentos feminista, sindicalista e anarquista.

O movimento estudantil é outro local importante de atividade política. Antes da cisão da Frente de Estudantes Libertários (FEL), uma federação estudantil anarquista, muitas das integrantes de La Alzada também eram militantes da FEL. Em 2013, a FEL decidiu participar de uma coalizão com outras federações estudantis de esquerda para a presidência da federação de estudantes universitários, a CONFECH (Confederación de Estudiantes de Chile). Melissa Sepulveda, que é integrante de La Alzada e que foi integrante da FEL (agora ela participa da Acción Libertaria), ganhou a presidência com uma campanha libertária e feminista. O material de propaganda incluía o slogan “Democratize a universidade... Desmasculinize a política!” Sepulveda usou sua posição como diretora da CONFECH para aprofundar uma perspectiva multissetorial.[17] A política multissetorial cria laços de solidariedade e trabalho nos vários setores da atividade política (sindical, comunitário e educacional). Sepulveda também impulsionou a reivindicação de uma “Universidad no sexista” [Universidade não sexista]. Essa convocação foi lançada originalmente na reunião de 1981 pela Rede de Educação Popular entre Mulheres (REPM).[18] Com o apoio de várias organizações feministas e de esquerda, o Primeiro Congresso por uma Educação Não Sexista foi realizado em setembro de 2014. A organização do congresso buscou iniciar um diálogo e desenvolver propostas concretas para confrontar a institucionalização da discriminação sexual e de gênero e a política patriarcal dentro do sistema educacional.[19] O documento do congresso, que sintetiza as linhas gerais da discussão, identificou os temas e as reivindicações. Uma delas era a construção de um projeto educativo que questionasse a lógica sexista e heteronormativa inerente ao sistema educacional. A reivindicação final ilustra sua estrutura política mais ampla: “Fortalecer as redes dentro do feminismo e coordená-las com outros atores sociais (trabalhadores, favelados[20], povos indígenas etc.) e apresentar em todas essas esferas um projeto de educação gratuita de alta qualidade, não sexista, não religiosa, intercultural e a serviço do povo”.[21]

Por fim, o trabalho de La Alzada é caracterizado por seu compromisso de intervir politicamente nos movimentos anarquistas e revolucionários de esquerda no Chile. Em uma entrevista de 2013, La Alzada explica:

Muitas organizações anarquistas e de esquerda com intenção revolucionária tentam revalorizar as mulheres, especialmente as mulheres da classe trabalhadora, como duplamente exploradas. Na maioria das vezes, isso não vai além de um panfleto, que não cria uma práxis concreta. Da subordinação das mulheres ao controle sobre nosso corpo à crítica da família – essas questões fazem parte da propaganda de vários boletins informativos, artigos e boletins dentro das lutas mais amplas do anarquismo. No entanto, elas terão pouca importância se não aprofundarmos nossas posições [políticas]. A ideia de “emancipação das mulheres” torna-se obsoleta sem a inclusão de uma estrutura feminista dentro dessas mesmas organizações. A criação de La Alzada delineia a necessidade de dois trabalhos: por um lado, temos uma responsabilidade dentro dos espaços libertários e, por outro lado, a necessidade de atingir e fazer um trabalho territorial a partir de uma perspectiva de gênero dentro desses espaços sociais e públicos. [22]

Essa estrutura questiona simultaneamente o separatismo feminista e aqueles que criticam as feministas revolucionárias por investirem seu tempo e energia na construção de organizações políticas. La Alzada enquadra suas intervenções e o desenvolvimento da práxis feminista e anarquista em outros movimentos, como algo necessário para seu compromisso revolucionário. Se considerarmos que os espaços anarquistas ou o movimento de trabalhadores “não valem a pena”, então por que nos preocuparmos em nos chamar de feministas anarquistas?

O CENÁRIO DA POLÍTICA FEMINISTA CONTEMPORÂNEA

A década de 1990 assinalou uma mudança política no âmbito da política global, bem como nas organizações anarquistas e feministas. A queda da União Soviética levou à desilusão em massa com a política leninista, mas também foi um momento de reorganização política para o capitalismo global. A falta de um adversário permitiu a expansão das políticas neoliberais propostas pelo Consenso de Washington.[23] O Consenso de Washington foi um termo cunhado em 1989 em um artigo escrito por John Williamson. Ele descreveu as noções políticas e econômicas que estavam sendo debatidas em Washington para dar início a uma nova era pós-Guerra Fria e a eventual expansão das políticas econômicas, que mais tarde ficaram conhecidas como neoliberalismo. A arena econômica encontrou a arena social quando os ataques às reformas sociais se tornaram necessários para a racionalização dessas políticas. Nos EUA, houve uma consolidação da ordem econômica neoliberal com a ideologia cristã e evangélica que, por sua vez, produziu as chamadas guerras culturais. Entre outros, Rush Limbaugh, que se tornou uma figura central na década de 1990, usou a teoria da guerra cultural do marxista italiano Antonio Gramsci para reverter os ganhos sociais dos 30 anos anteriores. As feministas não estavam preparadas para esse desafio.[24]

Movimentos sociais de direita, como a Operation Rescue, surgiram nesse período e fizeram da criminalização do aborto sua principal reivindicação.[25] Organizações feministas liberais, como a National Organization for Women (NOW), ofereceram uma resposta mínima e, em vez disso, insistiram na eliminação do uso da palavra “aborto” em sua propaganda. Os elevados custos e a consolidação dos serviços sociais em áreas urbanas significavam que o modelo de clínica privada limitava a disponibilidade dos serviços reprodutivos.

Na década de 1990, as mulheres tiveram pouca escolha, a não ser defender conquistas limitadas.[26] Isso marcou o final de uma etapa ofensiva do movimento das mulheres, que buscava expandir seus direitos e fazia a transição para uma etapa defensiva, que lutava desesperadamente para manter as conquistas da década anterior. É útil observar que a cena punk feminista da Riot Grrrl surgiu na mesma época em que a Operation Rescue estava fechando clínicas de aborto e Bill Clinton revertia o “Estado de bem-estar como o conhecemos”. A Riot Grrrl foi uma resposta política às frustrações de uma nova geração que se deparava com um momento de fragilidade e decepção política. Um movimento cultural como Riot Grrrl ofereceu uma crítica muito importante aos espaços dominados por homens, mas ficou restrito a um público limitado. Essa época também contou com organizações como a INCITE! (fundada em 2000), cujo trabalho se concentrava na responsabilidade da comunidade e na justiça restaurativa como resposta à expansão massiva do complexo industrial penitenciário (PIC) durante a década de 1990. Muitos dos fundadores da INCITE! vieram da Critical Resistance, uma organização com sede na Califórnia que defendia a abolição de prisões. No entanto, o declínio dos movimentos sociais capazes de resistir ao neoliberalismo gerou uma tendência à autorreflexão e à criação de projetos com alcance e base social limitada.[27]

Desde a década de 1990, houve uma expansão da teoria feminista e queer nas universidades. Obras como Problemas de Gênero: feminismo e a subversão da identidade (1990), de Judith Butler, e O Feminismo é para Todo Mundo: políticas arrebatadoras (2000), de bell hooks, tiveram forte influência na política feminista e proporcionaram o reconhecimento da política queer. A academia tornou-se um lugar onde o feminismo poderia florescer, mas este também ficou cada vez mais desconectado das lutas da classe trabalhadora devido ao seu isolamento nas salas de aula. Nos últimos anos, surgiram movimentos como o Occupy Wall Street e o Black Lives Matter. Embora elementos do feminismo universitário sejam visíveis nas práticas desses movimentos, o efeito foi mínimo. Esse tipo de feminismo não foi projetado para prosperar fora dos muros da universidade. Pode-se atribuir ao feminismo universitário a introdução de algumas ideias feministas na sua corrente principal. Por exemplo, a questão do estupro nos campi universitários foi recentemente reconhecida pelo governo Obama e está sendo discutida em muitos dos principais meios de comunicação, proporcionando oportunidades para narrativas radicais, como a conscientização sobre a cultura do estupro e a rejeição da estigmatização sexual de mulheres e das “cantadas”. As novas feministas têm analisado o impacto sistêmico do patriarcado em suas próprias vidas, mas seu enfoque muitas vezes reflete as experiências e demandas de um ator político específico: o estudante universitário. O resultado desse limite é uma cultura que prioriza a ação simbólica e o debate on-line em detrimento da luta coletiva.[28] A ênfase na experiência individual do patriarcado e nas respostas individuais reflete a profundidade com que a política liberal afetou o ativismo feminista dos EUA. Mas esse foco no indivíduo não leva em consideração as dificuldades mais amplas que as mulheres, os queer, os genderqueer e os transgêneros enfrentam no trabalho e nas comunidades da classe trabalhadora.

Nossa busca por uma prefiguração pura se transformou em uma prática coletiva de hipervigilância, na qual a cultura do escracho surgiu como uma nova estrutura de poder. Ela é mais visível nas comunidades feministas e queer on-line, localizadas em sites de mídia social como o Tumblr. Os chamados “guerreiros da justiça social” geralmente usam a desaprovação pública e a divulgação individual para aumentar sua influência política. Isso reforçou uma abordagem ativista purista, na qual não há diferenciação entre alguém que está tentando entender a terminologia política e os trolls chauvinistas e transfóbicos. A diferença entre nós não está na importância da prefiguração, mas na interpretação da prefiguração como um estado de pureza fixa em vez de um ideal que estamos sempre em processo de realização. Nesse meio tempo, o movimento feminista oferece pouca ameaça ao status quo e continua inerte nas águas estagnadas da política liberal.

ANTES DE TOMARMOS TUDO, EXIGIMOS O SEGUINTE

Como comunistas anarquistas comprometidas com a luta de classes interseccional (o que significa que nossa organização deve estimular uma análise de como as diferentes formas de opressão e exploração interagem), nossa práxis feminista é baseada numa tradição política que nos fornece ferramentas para entender e avançar nossas lutas contra o patriarcado capitalista. Podemos nos inspirar nas lições da Comuna de Paris, da Revolução Russa e da Guerra Civil Espanhola. Ao mesmo tempo, podemos nos associar às teorias e práticas emergentes do Sul Global. Anarquistas dos EUA, em particular, não precisam restringir sua educação revolucionária à sala de aula, pois há oportunidades de aprender com camaradas que experimentam ativamente novos e empolgantes métodos de enfrentamento nas Américas. Ao usar a tática especifista da inserção social, podemos implantar nossa política de uma maneira autêntica que tenha a capacidade de se expandir e aumentar à medida que as lutas se cruzem. Embora fazer reivindicações sociais ao Estado seja frequentemente denunciado como uma tática reformista, certas reformas podem melhorar e salvar a vida dos trabalhadores e desenvolver estrategicamente nossa capacidade revolucionária. A luta para alcançar esses tipos de vitórias imediatas pode gerar uma prática de solidariedade entre movimentos e, por fim, contestar a arena política do Estado, na qual podemos influenciar o ritmo da política, em vez de simplesmente perseguir ou reagir à política burguesa. Para agir de forma eficaz nessas amplas coalizões, precisamos ter uma compreensão clara e um comprometimento com nossa própria política. Devemos estar preparadas para considerar quais reivindicações são passíveis de concessões e quais devem conservar seu aspecto explicitamente radical.

Ao resumir as informações sobre La Alzada e os antecedentes históricos mais recentes, há vários pontos que queremos destacar. O panorama do movimento feminista dos EUA desde a década de 1990 tem o objetivo de situar historicamente onde estamos hoje. Em se tratando de feminismo nos EUA, a postura geral é que nós devemos pagar os tributos para “quem os sinos dobram”. Artigos como “The War on Women Is Over-and Women Lost” [A guerra contra as mulheres acabou – e as mulheres perderam] na Mother Jones relembram a derrota dos direitos reprodutivos nas últimas décadas.[29] Esses artigos geralmente deixam de fora os movimentos sociais atuais nos EUA que podem ser a base para a articulação de uma nova política feminista que está se formando nas margens.[30] La Alzada oferece um exemplo de uma organização feminista anarquista que está comprometida com o trabalho interno e externo, incluindo novas teorias de gênero (como a dissidência sexual) dentro de uma perspectiva de luta de classes. Em muitas organizações anarquistas e de esquerda tenta-se expressar solidariedade com a luta contra o patriarcado, demonstrando forte apoio às preocupações e propostas feministas. No entanto, a tática de “votar no feminismo” muitas vezes não tem resultado, devido ao apoio mínimo e/ou à falta de propostas para a implementação de um trabalho interno contínuo, incluindo o fracasso em construir a força social das companheiras mulheres, transgêneros e queer. Precisamos de mais do que um feminismo no papel; precisamos de um compromisso antipatriarcal em nossas atividades internas e externas. As áreas de trabalho de La Alzada refletem as reivindicações pela legalização do aborto, pelos direitos sexuais reprodutivos e não reprodutivos e pela educação não sexista. Elas também contestam as pressuposições sobre a organização estratégica do setor, oferecendo uma intervenção para romper com o sistema capitalista patriarcal.[31] [32]

“Quebrando as Ondas” conclama a um rompimento com o feminismo liberal, ressaltando a tendência de que o domínio político do feminismo liberal paralise o desenvolvimento da teoria e da prática feminista revolucionária. Queremos ir além das reivindicações defensivas e do autocriticismo que refletem uma luta por migalhas oferecidas pelo sistema. Ao invés disso, queremos redirecionar o fluxo de nossa energia política para a construção de movimentos que partam para a ofensiva. Que, simultaneamente, melhorem nossas vidas diárias por meio de reivindicações sociais, ao mesmo tempo em que prefigurem o tipo de sociedade que desejamos construir. Isso também significa tratar nossas campanhas mais modestas como oportunidades de aprendizado e treinamento para a longa guerra contra o capitalismo patriarcal. Temos a energia política e o desejo de lutar, mas ainda não aprendemos a maximizar esse fluxo de energia de forma revolucionária.

Um movimento precisa de objetivos alcançáveis e de um motivo para que uma pessoa invista tempo, energia e, possivelmente, sua vida. Algumas pessoas são movidas por fortes comprometimentos ideológicos, enquanto outras participam com base nas questões que afetam diretamente sua vida pessoal e familiar. O processo de identificação desses pontos em comum será a linha de transmissão de um movimento mais amplo que seja tanto interseccional quanto intersetorial.[33] A reconstrução de um movimento feminista comprometido com a luta contra o colonialismo e o capitalismo patriarcal precisa se envolver com questões sociais mais amplas. Queremos ir além do ciclo do que somos contra, porque há muito que gostaríamos de criar. Consideramos essa lista de reivindicações como um trabalho em andamento: sementes que precisam dos nutrientes de um movimento coletivo para lhes dar vida e significado. A seguir, apresentamos uma lista de nossas demandas iniciais:

  • Saúde universal.

  • Apoio aos direitos reprodutivos e não reprodutivos por meio da criação de clínicas de serviços reprodutivos, sexuais e baseados em gênero, incluindo aborto gratuito sob demanda, em todos os hospitais públicos e em locais geograficamente isolados.

  • Apoio a serviços reprodutivos para indivíduos que desejam ter ou adotar filhos. Isso inclui creches comunitárias gratuitas, programas de alimentação disponíveis na vizinhança e na escola. Esses programas também incentivam a quebra de papéis masculinos de gênero em relação à família e aos cuidados comunitários.

  • Serviços para as sobreviventes da violência de gênero, incluindo moradia, terapia e acesso a serviços de saúde mental.

  • Serviços de reabilitação para agressores sexuais, incluindo terapia individual e em grupo.

  • Que todos os serviços de saúde e serviços relacionados sejam fornecidos com respeito, conhecimento e compaixão àqueles que os procuram, independentemente de gênero, práticas sexuais, tipo de relacionamento ou modelo familiar.

  • Licença parental, licença de emergência familiar, direitos e recursos para cuidados domésticos, serviços totalmente acessíveis em casa e em público para pessoas com deficiência.

  • Expansão de moradias financiadas pelo governo; acesso a moradias de qualidade que aumentem a capacidade de interações comunitárias por meio de projetos e recursos provisórios que atendam às diversas necessidades e à segurança das pessoas que viverão nelas.

  • Controle comunitário de espaços e recursos para melhor atingir as metas da comunidade. É importante que essa organização se origine da organização e das assembleias comunitárias, diferenciadas dos espaços comunitários que fazem trabalhos de caridade que limitam a capacidade autônoma e de auto-organização das comunidades da classe trabalhadora.

  • Autonomia total para os povos indígenas e fornecimento de recursos sem custo; após centenas de anos de opressão colonial e exploração de recursos, as comunidades indígenas devem ter controle total sobre suas terras e meios de subsistência. Os recursos necessários para reconstruir suas comunidades da forma que considerarem adequada devem ser fornecidos como compensação mínima. Isso inclui a limpeza dos resíduos de mineração e a devolução das terras roubadas. Há muitas outras demandas apresentadas pelas comunidades indígenas em resistência e todas elas devem ser atendidas.

  • A socialização da educação; a expansão da educação para todos e todas (independentemente da idade) como um direito social, em vez de ser tratada como um privilégio.

  • Educação sexual, antissexista e interpessoal; abordar a necessidade de um método interdisciplinar de educação que ensine crianças e adolescentes sobre educação sexual e questione as normas patriarcais de gênero; as campanhas de Educação Não Sexista na América Latina e na Espanha oferecem exemplos de como promover e pressionar por um sistema educacional antipatriarcal, anticapitalista e anticolonial.

  • Revogação da Lei Taft-Hartley e da Lei Smith-Connally; essas duas leis foram aprovadas na década de 1940 para impedir os avanços e o peso político do movimento de trabalhadores após as campanhas de organização da CIO na década de 1930 e as ondas de greve após a Segunda Guerra Mundial (quando 25% da força de trabalho era sindicalizada). Embora acreditemos que devamos nos organizar independentemente da legalidade que nos é dada pelo Estado, a revogação dessas leis dará à classe trabalhadora espaço para se auto-organizar e fazer greves. Atualmente, essas leis proíbem greves selvagens, boicotes secundários, greves de solidariedade e greves de servidores federais. Além disso, elas permitem que, em tempos de guerra, o governo federal se apodere e controle um setor no qual os trabalhadores ameaçaram uma paralisação ou estejam paralisados.

  • Descriminalização do trabalho sexual e apoio à auto-organização horizontal das trabalhadoras e trabalhadores do sexo.

  • Que os trabalhadores em situação irregular sejam totalmente protegidos pelas leis trabalhistas americanas e que a promulgação desses direitos não seja punida com deportação; além disso, que as leis sejam ampliadas e que recursos adicionais sejam disponibilizados para lidar com as desigualdades e o assédio no local de trabalho com base no gênero.

  • Abolição do casamento sancionado pelo Estado, que busca definir relacionamentos e famílias por meio da concessão de benefícios e da aprovação social.

  • Liberdade para todas as pessoas contra a intimidação por meio de ameaça ou uso de violência de gênero; fim das leis, presunções e instituições que perpetuam a dominação e a agressão patriarcal; intervenção imediata para defender as vidas das pessoas que vivem nas interseções de múltiplas opressões, que correm risco desproporcional de sofrer violência ou morte.

CONCLUSÃO

Esboçamos a necessidade de um retorno à construção de movimentos feministas de massa e a incitação de novas ideias e táticas anarquistas nas lutas que estão surgindo. Mas, ao formularmos nosso papel e nossas demandas, também precisamos considerar como e onde o feminismo anarquista tem algo a oferecer a esses movimentos. Por meio de uma reinvestigação de nossa herança revolucionária e de um engajamento de princípios com as novas e empolgantes teorias e práticas de nossos companheiros globais, podemos continuar a fazer a transição de nossos pequenos coletivos e comunidades on-line para uma posição de força política consolidada. Esse processo nos permitirá combater as experiências de dificuldades individuais com a luta coletiva e, por fim, contestar o poder hegemônico do capitalismo e do Estado. Se o feminismo anarquista não conseguir se adaptar aos desafios de nosso momento político, teremos de nos resignar a uma década de artigos que documentam o retrocesso dos poucos direitos remanescentes duramente conquistados pelos movimentos sociais de nossos antecessores. Nós merecemos algo melhor e estamos prontos para lutar por isso.

Romina Akemi é integrante da Black Rose Anarchist Federation (EUA) e da Solidaridad – Federación Comunista Libertaria (Chile). Ela foi costureira de uma indústria de vestuário por muitos anos, participando de organizações sindicais e políticas. Ao longo dos anos, ela também participou de muitos encontros internacionais socialistas e anarquistas que fundamentaram sua perspectiva internacionalista.

Bree Busk é uma anarquista americana que vive e trabalha em Santiago, Chile. Como integrante da Black Rose Anarchist Federation (EUA) e da Solidaridad – Federación Comunista Libertaria (Chile), ela se dedica a construir uma coordenação internacional nas Américas. Atualmente, ela contribui para os movimentos em ambos os países por meio da arte, da organização e do trabalho invisível e reprodutivo que as organizações precisam para sobreviver e prosperar.

[1] Errico Malatesta, “Reformism”, Life and Ideas: The Anarchist Writings of Errico Malatesta (Oakland: PM Press, 2015).

[2] “Resenha de livro: Quiet Rumors: An Anarcha-Feminist Reader”, Common Struggle/Lucha Común, 20 de abril de 2003.

[3] Dark Star Collective, Quiet Rumors: An Anarcha-Feminist Reader (Oakland: AK Press, 2008), p. 11.

[4] Carol Hanisch, “The Personal is Political”, Notes from the Second Year: Women's Liberation (Nova York: Radical Feminism, 1970).

[5] Nym Mayhall, Laura E. The Militant Suffrage Movement: Citizenship and Resistance in Britain, 1860-1930. (Oxford: Oxford University Press, 2003).

[6] Michael Schmidt e Lucien van der Walt, Black Flame: The Revolutionary Class Politics of Anarchism and Syndicalism (Oakland: AK Press, 2009), p. 23.

[7] Susan Faludi, “The Death of a Revolutionary”, The New Yorker, 15 de abril de 2013.

[8] Para obter informações sobre o CUDS: http:// disidenciasexual.tumblr.com/.

[9] A parte em itálico é uma citação direta de um dos autores deste artigo que traduziu uma entrevista com La Alzada. Veja: Gutiérrez D., José Antonio. “La Alzada: ‘The revolution must include the feminist struggle, with and inside the libertarian’”, Ideas and Action, 25 de outubro de 2013.

[10] disidenciasexual.tumblr.com/.

[11] revistacortela.com.

[12] www.pueg.unam.mx seminarios2015_2/otras_rutas/sesion2/por_un_feminismo_ sin_mujeres_cuds.pdf.

[13] Para uma definição sobre a organização político-social, consulte: Gutiérrez D., José Antonio. “The Problems Posed by the Concrete Class Struggle & Popular Organization: Reflections from the Anarchist Communist Perspective”. Anarkismo.net. 14 de novembro de 2005.

[14] La Alzada-AFL, “Construyendo feminismo sindical: taller de oratoria y expresión corporal con el Sintracap”. Solidaridad: Periódico Comunista Libertario, 16 de novembro de 2013.

[15] O dramaturgo brasileiro Augusto Boal desenvolveu o Teatro do Oprimido na década de 1950.

[17] Multissetorialismo é um termo usado na esquerda chilena. Os três principais setores são o movimento sindical, territorial e estudantil. Multissetorialismo significa ter uma análise transversal ao oferecer apoio solidário às demandas e ações de outros setores. A luta mapuche também é considerada outro setor, mas autônomo. O meio ambiente, o feminismo e o colonialismo não são considerados setores separados, mas questões transversais que devem ser incluídas nos outros setores.

[18] www.cladem.org/campanas/educacion-no-sexista/ prensa/69-ens-otros-medios/443-dia-inter- nacional-de-la-educacion-no-sexista.

[19] eldesconcierto.cl- necesaria-una-educacion-sexista-en-chile/.

[20] A palavra “población” é melhor definida como favela ou bairro pobre da classe trabalhadora. Mas as “poblaciones” ao redor de Santiago têm sua própria história política, pois evoluíram como ocupações de terras por pessoas que migraram do campo para a cidade. Algumas comunidades têm fortes tradições políticas e de esquerda, como La Legua, Villa Francia e Nueva Amanecer. Um indivíduo que vive em uma “población” é chamado de “poblador/a”.

[21] Essa demanda não apenas sintetiza posições apresentadas pelos movimentos feminista, indígena e queer, mas também reflete a demanda radical pela socialização da educação apresentada por setores do movimento estudantil.

[22] Gutiérrez D., José Antonio. “La Alzada: ‘The revolution must include the feminist struggle, with and inside the libertarian’”, Ideas and Action, 25 de outubro de 2013.

[23] Veja John Williamson, “A Short History of the Washington Consensus”.

[24] Charlie Bertsch, “Gramsci Rush: Limbaugh on the Culture War”, Bad Subjects, 1994.

[25] Isabel Wilkerson, “Drive Against Abortion Finds a Symbol: Wichita”, New York Times, 4 de agosto de 1991.

[26] Molly Redden, “The War on Women is Over-And Women Lost”, Mother Jones, setembro/outubro de 2015.

[27] Durante a metade e o final da década de 1990, a Califórnia foi palco de vários movimentos sociais, incluindo manifestações pelos direitos dos imigrantes, oposição à expansão do sistema prisional e grandes manifestações em apoio a Mumia Abu Jamal. No entanto, esses movimentos ficaram menores após o protesto da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle em 1999 e, em 2002, o foco passou a ser o movimento antiguerra.

[28] Um dos principais debates que ocorrem nos campi universitários é sobre o uso de avisos de gatilho. Veja: Rani Neutill. “My trigger-warning disaster: 9 1/2 Weeks”, “The Wire and how coddled young radicals got discomfort all wrong”, Salon, 28 de outubro de 2015.

[29] Redden, “The War on Women Is Over-and Women Lost”, Mother Jones.

[30] Chris Dixon, Another Politics: Talking Across Today's Transformative Movements (Berkeley: University of California Press Books, 2014).

[31] Setores estratégicos são setores que têm prioridade.

[32] Capitalismo patriarcal é um termo específico usado pelos militantes de La Alzada para forçar um diálogo de construção estratégica que analisa o capitalismo e o patriarcado como sistemas entrelaçados e não em etapas.

[33] Estamos colocando dois termos políticos usados em lugares diferentes. Interseccional é usado nos EUA e no Reino Unido. Intersetorial (ou multissetorial) é usado no Chile. A interseccionalidade exige uma análise que inclua identidade, raça e classe. O multissetorialismo inclui esses aspectos, mas enfatiza os setores (trabalho, território, movimento estudantil) como base para a ação política, reforçando a formação de movimentos sociais.