Abdullah Öcalan

Nação Democrática

2016

    PREFÁCIO

    1. INTRODUÇÃO

    2. MODERNIDADE CAPITALISTA E A NAÇÃO

    3. MODERNIDADE DEMOCRÁTICA

    4. SOLUÇÃO DEMOCRÁTICA

    5. O MODELO DA NAÇÃO DEMOCRÁTICA

      5.1 As e os Curdos Tornarem-se Uma Nação

      5.2 A Solução da Autonomia Democrática e a sua Implementação

      5.3 A KCK e a Dimensão de se tornar uma Nação Democrática

        1 - O Individuo-Cidadão Livre e a Vida Comunal Democrática

        2 - A Vida Política e a Autonomia Democrática

        3 - Vida Social

        4 - Vida do Livre Parceiro

        5 - Autonomia Económica

        6 - Estrutura Legal

        7 - Cultura

        8 - Sistema de Autodefesa

        9 - Diplomacia

    6. BUSCAR A SOLUÇÃO DA NAÇÃO DEMOCRÁTICA

    7. CONCLUSÃO

    SOBRE O AUTOR

    SOBRE A INICIATIVA INTERNACIONAL

PREFÁCIO

A International Initiative “Liberdade para Abdullah Öcalan — Paz no Curdistão” esforça-se não só para publicar as obras de Abdullah Öcalan em diferentes idiomas, mas também para preparar brochuras compiladas a partir de diferentes livros dele sobre temas específicos. Isto é útil e necessário não só porque reúne a cadeia de argumentos sobre um tópico específico espalhado por vários livros, mas também porque algumas das suas obras ainda não estão traduzidas. Por conseguinte, esta brochura deve ser considerada apenas como um enquadramento e não pode substituir a leitura dos próprios livros.

Öcalan tem sido altamente crítico não só do capitalismo, mas também das práticas do «socialismo real» desde cedo, na década de 1980. Examinou a questão da liberdade das mulheres, os fenómenos do poder e do Estado e a sua interligação. Isto levou-o repetidamente a voltar a uma análise da história para tentar entender como é que tudo aconteceu. Ao fazê-lo, tropeçou sobre a nação, o estado e o estado-nação e como estes são prejudiciais para qualquer movimento; transformando até mesmo os indivíduos mais revolucionários em meros exercitantes do capitalismo.

Para Abdullah Öcalan não basta produzir crítica e autocrítica. Ele sente-se compelido a expor o que poderia constituir uma alternativa ao modo de vida que está a ser imposto à sociedade. Desta forma, esforça-se por sistematizar as vidas e as lutas de todas e todos os oprimidos e explorados ao longo da história, bem como propor um modelo alternativo e um modo de vida exterior à modernidade capitalista e, portanto, exterior à civilização clássica.

Estas brochuras tornam-se cada vez mais importantes à luz dos desenvolvimentos na região assim como no Curdistão. Com o reavivamento do conflito sectário e nacionalista em muitas regiões do mundo e com as consequências de um capitalismo agressivo enfrentando o mundo, as propostas de Öcalan e um esforço evidente para implementá-las em Rojava e Bakur podem ser justamente a solução certa para a região atingida pela guerra. Ele apela para que todos os organismos construam e defendam a vida livre e a humanidade.

A voz de Öcalan é extremamente importante como voz de paz e razão, mas é muitas vezes silenciada pelo seu confinamento na ilha isolada de Imrali, onde está preso. A sua liberdade é do interesse de todos os povos do Médio Oriente — não só dos curdos. International Initiative

Liberdade para Abdullah Öcalan — Paz no Curdistão”

1. INTRODUÇÃO

A luta do PKK até agora visava essencialmente tornar visível a questão curda. A negação da realidade curda durante o tempo da sua formação trouxe naturalmente a questão da existência para a agenda . Assim, o PKK tentou primeiro provar a existência da questão, por meio de argumentos ideológicos. A continuação desta negação pela esquerda através de métodos mais refinados colocou na agenda organizarmo-nos com base em identidades e ações distintas.

O estado-nação turco — que insistiu em políticas tradicionais de negação e aniquilação — recusou-se a considerar a possibilidade de uma solução política durante este período. Pelo contrário, optou por combater as iniciativas do PKK com uma campanha de terror fascista que levou ao golpe de estado de 12 de setembro. A declaração do PKK de uma guerra popular revolucionária surgiu como a única opção viável. Nestas condições, o PKK iria ou desaparecer aos poucos, como os outros grupos de esquerda democrática na Turquia, ou escolher a resistência. O fator decisivo para a transformação da questão curda de uma questão de identidade ideológica para uma questão de guerra é a insistência do Estado em manter políticas anteriormente dissimuladas de negação e aniquilação através do terror exposto do 12 de Setembro. Seria mais realista analisar a ofensiva de 15 de Agosto de 1984 no contexto desta abordagem. Tal jogada está muito mais próxima do objetivo de provar a existência do povo curdo e proteger a sua existência do que de ser um movimento de libertação. Convém salientar que, neste respeito, alcançou um êxito significativo.

O PKK, embora provasse a existência curda sem margem para dúvidas, permaneceu enraizado na ideologia do estado-nação. O período de autocrítica que se seguiu revelou a essência anti-socialista e anti-democrática da ideologia do estado-nação. A rápida dissolução do «socialismo real» na década de 1990 contribuiu para uma compreensão mais profunda dos fatores subjacentes à depressão. A dissolução do «socialismo real» foi causada pelas problemáticas do poder e do estado-nação «socialista real». Para ser mais preciso, a crise do socialismo foi o resultado de uma compreensão inadequada do problema do poder e do Estado. Quando as contradições de Estado e do poder, tão marcadas pela questão curda, se uniram à crise global mais ampla do socialismo real, tornou-se inevitável uma análise abrangente da questão do Estado e do poder.

Com este fim, numa parte significativa da minha defesa, tento analisar o Estado e o poder ao longo da história civilizacional. Concentrei-me em apresentar a transformação do fenómeno do Estado e do poder no contexto da modernidade capitalista — a civilização hegemónica atual. Eu afirmei especificamente que a transformação do poder no estado-nação era a base do capitalismo. Esta foi uma tese importante. Tentei demonstrar que, na ausência da organização do poder através do modelo do estado-nação, o capitalismo não se poderia ter tornado no novo sistema hegemónico. O estado-nação foi a ferramenta fundamental que tornou possível a hegemonia capitalista. Por isso, procurei provar que o socialismo, enquanto anti-capitalismo, apresentando-se como aquilo a que chamo de “sociedade-histórica”, não se podia estabelecer com base no mesmo modelo de Estado, ou seja, como um estado-nação «socialista real». Tentei mostrar que a ideia de que o socialismo, tal como proposto por Marx e Engels, só poderia ser construído através de estados-nação centrais, era, de facto, um defeito fundamental do socialismo científico. Prossegui a apresentar a tese de que o socialismo não poderia ser construído através do Estado, especialmente o estado-nação, e que uma insistência nisso só poderia resultar nas versões mais degeneradas do capitalismo, como experimentado em muitos casos, mas especialmente no socialismo real da Rússia e China. Como um precursor necessário desta tese, analisei o sistema de civilização centralizada ao longo da história, o conceito de poder e a estrutura do estado e do poder da modernidade capitalista, que é a estrutura predominante única à nossa era. A minha principal conclusão foi que as e os socialistas não podiam ter um princípio de estado-nação. Pelo contrário, a solução para a questão nacional deveria basear-se no princípio da nação democrática. A expressão prática disto, como tentarei demonstrar, é a experiência da KCK — União das Comunidades Democráticas no Curdistão.

O Curdistão, de certa forma, já se tornou o foco da revolução e da contra-revolução no século XXI. É o elo mais fraco da modernidade capitalista. Os problemas nacionais e sociais do povo do Curdistão tornaram-se tão agravados que não podem ser escondidos através de prescrições liberais ou da demagogia dos direitos individuais ou culturais. Quando se trata da questão curda, a ideologia do estado-nação — que levou a diferentes práticas, incluindo o genocídio cultural — não é mais um solucionador de problemas; pelo contrário, tem sido a fonte do problema, tanto para o opressor como para os e as oprimidas. A ideologia do estado-nação está em dissolução e chegou mesmo a tornar-se um problema para a modernidade capitalista. Desenvolvimentos nacionais mais flexíveis e democráticos liderarão os avanços da nossa era. A modernidade democrática significa a expressão teórica e os passos práticos destes avanços. A KCK, enquanto expressão concreta das transformações nacionais democráticas no Curdistão, lança luz sobre o caminho da solução de modernidade democrática no Médio Oriente.

2. MODERNIDADE CAPITALISTA E A NAÇÃO

A nação, enquanto conceito, tem origem em entidades como o clã e a tribo com afinidade na forma de povo e nacionalidade, e é uma forma social que é geralmente caracterizada por semelhanças linguísticas ou culturais. As comunidades nacionais são mais inclusivas e possuem capacidades maiores do que as comunidades de clã e de povo; por isso, são comunidades humanas com laços mais soltos entre si. A sociedade nacional é mais um fenómeno do nosso tempo. Se uma definição geral pode ser fornecida, é uma comunidade daqueles e daquelas que compartilham uma mentalidade comum. Por outras palavras, é um fenómeno que existe mentalmente, o que significa que é um fenómeno abstrato e imaginado. Podemos também chamar isto uma nação definida culturalmente. Sociologicamente falando, esta seria a definição correta. Apesar das diferenças de classe, género, cor, etnia e até mesmo de origem nacional, no sentido mais geral, a formação de uma mentalidade e cultura partilhadas é suficiente para ser classificada como uma nação.

A fim de refinar esta definição geral de nação, conceitos gerados como nação estatal, nação legal, nação económica e nação militar são diferentes categorias de nacionalismo que são usados para sustentar a compreensão desta definição geral de nação. Também poderia ser chamada de “nação de poder”. É uma aspiração fundamental da modernidade capitalista tornar-se uma nação forte; porque uma nação forte produz privilégio capital, um mercado abrangente, oportunidades coloniais e imperialismo. É, portanto, importante não aceitar estas versões robustas da nação como o único modelo possível de uma nação. Na verdade, é importante ver estas nações de poder como nações ao serviço do capital. Estas são as qualidades que o tornam a fonte do problema.

O principal problema na era da modernidade deriva do acoplamento do poder e do Estado com a nação. Quando comparamos os problemas desta época com os problemas das ditaduras e dos Estados dinásticos, vemos que os problemas da era da modernidade derivam da nação estatal; esta nação estatal é a maior diferença entre as épocas. O estado-nação é um dos sujeitos mais complicados dentro das ciências sociais, mas é apresentado como a ferramenta para resolver todos os problemas que enfrentam a modernidade, como uma varinha mágica. Essencialmente, este só multiplica os problemas sociais. A razão por trás disto é que ele espalha o aparelho de poder para os capilares das sociedades. O próprio poder cria problemas — gera problemas sociais devido ao carácter potencial do capital organizado sob a forma de força, que se resulta na supressão e na exploração. A sociedade-nação homogénea à qual o estado-nação aspira pode apenas construir cidadãos artificialmente iguais, cobrados com violência como resultado de serem amputados pelo poder. Este cidadão pode ser igual aos olhos da lei, mas vivencia a máxima desigualdade em todos os aspectos da vida enquanto entidade individual e coletiva.

Ao analisar a teoria da nação, outro aspecto que precisa ser avaliado criticamente é a sacralização e a deificação da nação. A modernidade capitalista substituiu a religião tradicional e deus e construiu o estado-nação deificado. Se interpretarmos o nacionalismo como a religião do estado-nação, podemos perceber que o próprio estado-nação é o deus desta religião. O próprio Estado foi construído na era da modernidade para incorporar a essência das conceptualizações medievais e até antigas da divindade. O fenómeno chamado “estado secular” é a construção das divindades medievais e antigas enquanto estado ou como todo ou na essência. Não deve haver engano aqui. Uma vez que se raspa a fachada secular ou moderna do estado-nação, encontra-se o estado divino da antiguidade e da idade medieval. Há uma forte correlação entre o estado e a divindade. Da mesma maneira, há uma relação muito forte entre o monarca ascendente da antiguidade e da idade medieval e o conceito de Deus. Após a idade medieval, quando o monarca perdeu a sua significância, tanto como indivíduo quanto em termos da monarquia, e começou a institucionalizar e transmutar para o estado nacional, o deus-monarca foi substituído pelo deus estado-nação. Portanto, a hegemonia ideológica da modernidade capitalista, que torna possível a obtenção do máximo lucro possível, é o que está subjacente à sacralização de conceitos como a pátria, a nação e o mercado, juntamente com uma sacralização semelhante das instituições do estado-nação. A lei do lucro máximo torna-se mais legítima à medida que os conceitos relacionados com a nação são «religionizados» pela hegemonia ideológica e assim validados.

Na nossa era, o uso de símbolos e slogans fundamentais do estado-nação como “uma bandeira”, “uma língua”, “uma pátria”, “um estado”, “estado unitário” e a expressão do chauvinismo nacional são aumentados e transformados num ritual em todas as oportunidades, especialmente em eventos desportivos ou atividades artísticas, isto deve ser interpretado como um meio de venerar a religião do nacionalismo. Na verdade, a prática da veneração em épocas anteriores serviu o mesmo propósito. O principal objetivo aqui é validar os interesses dos monopólios de poder e exploração, seja através da ocultação ou legitimização dos mesmos. Poderemos compreender melhor a verdade da realidade da sociedade quando interpretarmos todas as práticas e abordagens que servem para esconder ou exagerar todas as coisas relacionadas ao estado-nação sob este paradigma fundamental.

A organização da modernidade capitalista enquanto estado-nação desempenha um papel muito mais supressor e explorador do que a sua organização enquanto monopólio económico. A incapacidade do marxismo e da sociologia em geral de ver a relação do estado-nação com a supressão e a exploração, ou a sua apresentação do estado-nação como uma simples instituição da superestrutura, é uma falha e distorção fundamental. Quando uma análise de classe e de capital material é feita sem ter em conta o estado-nação, o que está a ser produzido é a generalização mais obsoleta e abstrata que não pode gerar um resultado social útil. O papel desempenhado pelas consequências relacionadas com tais abstrações está subjacente ao fracasso do socialismo real.

O facto de a solução para todos os problemas nacionais e sociais estar relacionado com o estado-nação representa o aspeto mais tirânico da modernidade. Esperar uma solução do instrumento que é ele próprio a fonte dos problemas só pode levar ao crescimento dos problemas e do caos social. O capitalismo em si é a fase da civilização com mais crises. O estado-nação, enquanto instrumento implementado nesta fase de crise, é a organização de violência mais desenvolvida na história social. É a sociedade cercada pela violência do poder; é a ferramenta forçosamente empregada para manter unida a sociedade e o meio ambiente depois de terem sido desintegradas através do industrialismo e da lei capitalista do lucro máximo. A razão por trás deste ser excessivamente carregado de violência deve-se à tendência do sistema capitalista para o lucro máximo e para a acumulação ininterrupta. Sem uma organização de violência como o estado-nação, as leis de acumulação capitalista não poderiam funcionar e o industrialismo não poderia ser mantido. A sociedade e o meio ambiente estão à beira da desintegração total nesta era atual do capitalismo financeiro global. As crises, que eram inicialmente cíclicas, atingiram agora um caráter estrutural e permanente. Nestas circunstâncias, o próprio estado-nação transformou-se num obstáculo que bloqueia o sistema completamente. Até mesmo o capitalismo, que é em si um sistema cheio de crises, fez da eliminação do obstáculo do estado-nação uma prioridade. A soberania do estado-nação é não apenas a causa dos problemas sociais, mas também o principal obstáculo no caminho das soluções.

A teoria da modernidade democrática, por outro lado, é não apenas crítica à economia política do capitalismo, mas de toda a sua sistemática. Critica a sua relação com a história civilizacional enquanto sistema hegemónico; as mudanças que tem causado na cidade, na classe e no estado; e os elementos sobre os quais constrói a sua modernidade de modo a desvendar a sua realidade. A modernidade capitalista legitima-se continuamente através da hegemonia ideológica que estabelece sobre a ciência, a filosofia e as artes. Ao instrumentalizar estes campos fundamentais do pensamento e escoá-los do seu conteúdo, aprofunda a sua destruição da sociedade.

3. MODERNIDADE DEMOCRÁTICA

A modernidade alternativa pela nação democrática é a modernidade democrática. Uma economia livre do monopolismo, uma ecologia que implique harmonia com o meio ambiente e uma tecnologia amiga da natureza e da humanidade são as bases institucionais da modernidade democrática e, portanto, da nação democrática. Não estou nem a descobrir nem a inventar a modernidade democrática. A modernidade democrática, desde a formação da civilização oficial, sempre existiu como sua contraparte numa dicotomia. Existiu onde e sempre que a civilização oficial existiu. O que estou a tentar fazer, embora como um vago esboço, é dar a esta outra forma de modernidade, que existe em cada localidade e época da civilização oficial, o reconhecimento que merece e oferecer explicações em termos das suas principais dimensões. Estou também a tentar compreender as suas formas de mentalidade fundamentais, as suas estruturas e a sua sociedade existente e defini-las. Não há nada de desconcertante na ideia de que, segundo a dialética, existe uma contraparte à civilização, embora supostamente singular, em todos os lugares e períodos em que existiu. Pelo contrário, o desconcertante é porque é que este equivalente mais natural do método dialético não foi sistematicamente articulado.

A modernidade democrática, embora tenha mudado de forma de acordo com as diferentes épocas, sempre existiu e é uma realidade que sempre teve a sua própria contra-história ao longo da história civilizacional. Simboliza o sistema da história universal externo às forças da tirania e da exploração. A realidade curda representa uma cultura que recebeu os mais severos golpes das forças civilizacionais e é uma cultura que tem sido atacada por forças que pretendem exterminá-la. Portanto, ela pode apenas concretizar a sua existência através de uma civilização que está fora da civilização de classes tradicional, a civilização socialista democrática. Se se pretende escrever uma história curda significativa, isso apenas pode ser feito dentro deste enquadramento. A atual expressão disto é a modernidade democrática.

A modernidade democrática responde à metodologia universalista, linear, progressista e determinista (a abordagem metodológica que está fechada a probabilidades e alternativas) implantada pelo estado-nação moderno para alcançar a homogeneização e «rebanhização» da sociedade com métodos pluralistas, probabilísticos, abertos a alternativas e que podem tornar visível a sociedade democrática. Desenvolve a sua alternativa através das suas propriedades de ser aberta a diferentes formações políticas, multicultural, fechada ao monopolismo, ecológica e feminista, criando uma estrutura económica que se fundamenta na satisfação das necessidades fundamentais da sociedade e que está à disposição da comunidade. Ao contrário do estado-nação da modernidade capitalista, o confederalismo democrático é a alternativa política da modernidade democrática.

O confederalismo democrático é o formato político básico da modernidade democrática representando um papel vital no trabalho de reconstrução e é o instrumento mais apropriado para a política democrática na geração de uma solução. O confederalismo democrático apresenta a opção de uma nação democrática como a ferramenta fundamental para resolver os problemas étnicos, religiosos, urbanos, locais, regionais e nacionais causados pelo modelo social monolítico, homogêneo, monocromático e fascista implementado pelo estado-nação da modernidade. Dentro da nação democrática, cada etnia, percepção religiosa, entidade citadina, local, regional e nacional tem o direito de participar com a sua própria identidade e estrutura democrática federada.

4. SOLUÇÃO DEMOCRÁTICA

Sempre houve tentativas de resolver os problemas nacionais causados pela modernidade capitalista por mentalidades e paradigmas do estado-nação e nacionalistas. O próprio estado-nação foi apresentado como o principal ator da solução. Para obter uma verdadeira compreensão do estado-nação, é preciso compreender o seu lugar no sistema hegemónico e os seus vínculos com o capitalismo e o industrialismo. A análise inadequada da questão do Estado pela ideologia socialista apenas obscureceu ainda mais o problema. No entanto, no “direito das nações à autodeterminação”, a visão de um Estado para cada nação foi fundamental para agravar ainda mais a questão.

A essência da minha defesa é investigar a realidade curda e a existência do povo curdo em relação à civilização e à modernidade. O objetivo é explicar que o capitalismo foi o principal responsável pela ascensão da questão curda e por separar pela primeira vez a ideologia do estado-nação da essência democrática da solução. Esta abordagem constitui a essência da transformação dentro do PKK. Esta defesa explica a diferença entre as formas de soluções estatistas e democráticas que não foram esclarecidas desde a fase de grupos do PKK. É aqui que difere do «socialismo real» e da doutrina doutrina marxista-leninista clássica por trás deste. Pega no direito das nações à autodeterminação do seu cerco enquanto direito burguês, e inclui-o no âmbito da sociedade democrática. Por outras palavras, a questão curda pode ser resolvida sem ser contaminada pelo estatismo, sem gravitar para uma busca por um estado-nação e, sem ser forçada a soluções sob estas categorias, poderia ser resolvida dentro de modelos democráticos de governança da sociedade. Esta é a essência da transformação do PKK.

O modelo de solução democrática não é apenas uma opção, é o método fundamental para alcançar uma solução. A solução democrática significa a busca da democratização da sociedade fora do estado-nação. Enquanto conceito, vê o estado-nação, juntamente com o capitalismo, como fonte de problemas cada vez maiores e não a solução para problemas sociais. Não se deve pensar no modelo de solução democrática como um estado-nação unitário transformado numa forma federal ou confederal. O estado federal ou confederal do estado-nação não é a solução democrática. Estas são soluções que dependem de diferentes formas do estado e, no entanto, apenas agravam o problema. Talvez a transformação de um estado-nação rigidamente centralizado em formas federais ou confederais dentro da mentalidade do sistema capitalista possa melhorar os problemas e oferecer soluções parciais, mas não pode levar a soluções completas. Formas federais e confederais podem ser implantadas como soluções possíveis entre as forças do estado-nação e as forças para uma solução democrática. No entanto, esperar uma solução profunda e enraizada como resultado, só levará mais uma vez ao auto-engano. Na verdade, sabemos que os Estados descritos como Estados de libertação nacional ou estados de «socialismo real» são apenas estados-nação com uma máscara de esquerda.

É importante notar que o método da solução democrática não é completamente independente do estado-nação. A democracia e o estado-nação podem desempenhar um papel sob o mesmo teto político enquanto duas autoridades. Uma constituição democrática pode determinar o domínio de cada uma delas. Uma transformação positiva do Estado-nação está intimamente ligada ao desenvolvimento da democratização, da governação democrática autónoma, da construção da nação democrática, da democracia local e da cultura democrática em todas as esferas sociais.

A KCK deve ser considerada como uma transformação radical na solução da questão nacional, uma vez que representa a interpretação democrática não estatista do direito das nações à autodeterminação para a questão curda. A KCK é a expressão concreta da solução democrática para a questão curda e difere das abordagens tradicionais. A solução não é encarada como tomar uma parte do Estado. Não está na busca do Estado, nem mesmo em termos de autonomia para @s curd@s. Não só não visa um Estado federal ou confederal, como também não os vê como a solução. A sua principal exigência ao Estado é que reconheça o direito do povo curdo à auto-governação e elimine os obstáculos que impedem o povo curdo de se tornar uma nação democrática. A solução democrática não pode ser desenvolvida por governos ou Estados. As forças sociais são elas próprias as únicas responsáveis pelo desenvolvimento da solução. As forças sociais procuram encontrar um compromisso com o governo ou com o Estado através de uma constituição democrática. A partilha da governação entre as forças democráticas da sociedade e as forças do Estado ou do governo é determinada através de constituições.

Essencialmente, a solução democrática é o estado de ser uma nação democrática e de a sociedade se construir como uma entidade nacional democrática. Não é nem tornar-se numa nação nem deixar de ser uma nação através do Estado; é a capacidade para usar o direito de uma sociedade para construir-se a si mesma enquanto nação democrática. Nesta fase, é necessário criar uma nova definição de nação. Primeiro, vale a pena salientar que o termo nação não tem uma definição única. Mencionei isto anteriormente. A nação democrática, por outro lado, é a sociedade comum formada pela livre vontade de indivíduos e comunidades livres. O fator unificador da nação democrática é a livre vontade das pessoas e daqueles grupos que decidem pertencer a essa nação. O ideia que une a nação a uma língua, uma cultura, um mercado, ou a uma história comum é descritiva dos estados-nação e não pode ser generalizada, isto é, não pode ser reduzida a uma única compreensão da nação. Esta percepção de nação, que também foi aceite pelo «socialismo real», é o oposto da nação democrática. Esta definição, tal como desenvolvida por Stalin na Russia Soviética, é uma das principais razões para a dissolução da União Soviética. Se esta definição de nação, absolutizada pela modernidade capitalista, não for abandonada, então a solução para todos os problemas nacionais continuará a enfrentar um impasse. O facto de que os problemas nacionais têm persistido durante os últimos três séculos está estreitamente associado a esta definição absoluta e inadequada.

5. O MODELO DA NAÇÃO DEMOCRÁTICA

Par as sociedades o modelo do estado-nação não é nada mais do que uma armadilha e uma rede de supressão e exploração. O conceito da nação democrática reverte esta definição A definição de uma nação democrática que não esteja vinculada a contornos políticos rígidos, a uma língua, cultura, religião e interpretação da história, significa pluralidade e a existência conjunta e em solidariedade de comunidades assim como de cidadãos livres e iguais. A nação democrática permite às próprias pessoas tornarem-se uma nação, sem se apoiar no Estado e no poder, tornando-se uma nação através de uma tão necessária politização. Visa provar que não apenas mas também através da politização, na ausência de se tornar um Estado ou de adquirir poder, uma nação pode ser criada com instituições autónomas nas esferas sociais, diplomáticas e culturais assim como na economia, lei e autodefesa e portanto construir-se enquanto nação democrática.

A sociedade democrática só pode ser concretizada através de tal modelo de nação. A sociedade do estado-nação está fechada à democracia pela sua própria natureza. O estado-nação nem representa uma realidade universal nem local, pelo contrário, rejeita a universalidade e a localidade. A cidadania de uma sociedade uniformizada representa a morte do humano. Por outro lado, a nação democrática torna a reconstrução da universalidade e da localidade possível. Permite que a realidade social se exprima. Todas as outras definições de nação encontram-se entre estes dois modelos principais.

Embora haja um grande leque de definições para modelos de construção de nação, uma definição geral também é possível; e esta é a definição de nação em relação à sua mentalidade, consciência e crença. Neste caso, a nação é uma comunidade de pessoas que partilham uma mentalidade comum. Em tal definição de nação, a língua, religião, cultura, mercado, história e fronteiras políticas não têm um papel decisivo mas sim um papel corporal. Definir nação essencialmente como uma determinada mentalidade dá-lhe uma caráter dinâmico. Enquanto que na nação do Estado o nacionalismo assinala a mentalidade comum, numa nação democrática é a consciência de liberdade e solidariedade. Contudo, definir nações apenas através da sua mentalidade seria incompleto. Tal como mentalidades não podem existir sem corpos, nações também não podem funcionar sem um corpo. O corpo das nações com uma mentalidade nacionalista é a instituição do Estado. É por isto que tais nações se chamam estado-nação. Quando instituições legais e económicas se sobrepõem ao resto, estas nações podem ser diferenciadas sendo categorizadas como nações de lei ou de mercado.

Nações com uma mentalidade baseada na liberdade e solidariedade exemplificam a autonomia democrática. A autonomia democrática essencialmente denota a auto-governança de comunidades e indivíduos que partilham uma mentalidade semelhante através da sua própria vontade. Isto também poderia ser denominado de governança ou autoridade democrática. É uma definição aberta à universalidade. Um modelo de nação que pode ser derivado da nação cultural, mas exclui a exploração e a supressão, é um modelo de nação democrática. Uma nação democrática é a nação mais próxima da liberdade e da igualdade. De acordo com esta definição, este é o entendimento ideal de nação para comunidades que aspiram a liberdade e a igualdade.

A modernidade capitalista e a ciência da sociologia que inspirou não lidaram com o conceito de nação democrática devido à sua estrutura e hegemonia ideológica. A nação democrática não se contenta com uma mentalidade e cultura comuns, é uma nação que unifica e governa todos os seus membros em instituições democráticas autónomas. Esta é a qualidade que a define. A via de governança democrática e autónoma é a condição basilar para se tornar uma nação democrática. Neste aspecto, é a alternativa ao estado-nação. A governança democrática contrariamente à governança do Estado é uma oportunidade significativa para a liberdade e igualdade. A sociologia liberal equipara a nação essencialmente ou com um Estado já estabelecido ou a um movimento que deseja estabelecer um Estado. O facto de que até o socialismo real teve tais ambições demonstra a força da ideologia liberal.

Uma terra natal e mercado comuns são geralmente apresentados como condições prévias para as sociedades nacionais; estas são componentes materiais e não podem ser consideradas características determinantes da nação. A compreensão da nação democrática de terra natal e mercado é diferente. A nação democrática valoriza a terra natal porque é uma enorme oportunidade para a mentalidade e cultura da nação; uma mentalidade e cultura que não tem em conta a terra natal não pode pensada. Contudo, não deve ser esquecido que a razão pela qual a modernidade capitalista fetichiza e prioriza o conceito país-terra natal sobre a sociedade é motivada pelo lucro. Também é importante não exagerar a terra natal. «Tudo pelo país» deriva de uma compreensão fascista da nação. É mais significativo devotar tudo a uma sociedade livre e a uma nação democrática, mas isto não deve ser fetichizado. O que realmente importa é tornar a vida valiosa. A terra natal não é um ideal, é meramente uma ferramenta para a vida do indivíduo e da nação. Enquanto a nação do Estado busca uma sociedade homogeneizada, a nação democrática consiste essencialmente em diferentes coletividades. Vê a diversidade como riqueza. A própria vida só é possível através da diversidade. O estado-nação força as e os cidadãos a ser uniformes; neste aspecto, também, é contrário à vida. O objetivo derradeiro é criar um humano robótico. Neste sentido, busca na verdade o vazio. O ou a cidadã ou membro da nação democrática é diferente, esta diferença deve-se às diversas comunidades que incorpora. Comunidades tribais são uma fonte de força para a nação democrática.

Embora a língua seja tão importante quanto a cultura ao criar uma nação, não é um pré-requisito. Línguas diferentes não são um obstáculo ao sentimento de pertencimento à mesma nação. Tal como é desnecessário que toda a nação tenha um Estado, também é desnecessário que toda a nação tenha um único idioma ou dialeto. Embora uma língua nacional seja conveniente, não é uma condição indispensável. É possível considerar línguas e dialetos diferentes como riqueza para uma nação democrática. No entanto, o estado-nação baseia-se numa imposição absoluta de uma única língua. Não oferece facilmente ao multilinguismo, especialmente ao multilinguismo oficial, uma chance de ser praticado. A este respeito, tenta beneficiar dos privilégios de ser a nação dominante.

Quando nações democráticas são incapazes de se desenvolver e a ideologia do estado-nação é incapaz de resolver problemas é possível falar de uma nação de lei enquanto conceito e encontrar um compromisso. O que se quer dizer com «cidadania constitucional» é na verdade uma solução baseada na nação de lei. Uma cidadania legal garantida constitucionalmente não discrimina entre raça, etnia e nacionalidade. Estas características não concedem direitos. Neste aspeto, a «nação de lei» é uma categoria em desenvolvimento. Particularmente as nações europeias estão a transitar de nações de nacionalidade para nações de lei. Em nações democráticas, a governança autónoma é fundamental; numa nação de lei, os direitos são fundamentais. Enquanto que no estado-nação, é o regime do poder que é decisivo. O tipo de nação mais perigosa é a mentalidade da ‘nação-exército’ e a sua institucionalização.

Embora talvez pareça representar uma nação forte, essencialmente é a nação onde é mais difícil viver, contendo uma mentalidade que impõe obrigações e conduz ao fascismo. A nação económica é uma categoria muito similar ao estado-nação. Este entendimento de nação, visto em países como os EUA, o Japão e até a Alemanha, onde é dada à economia um papel proeminente, estava mais prevalente no passado da Europa. Embora uma nação socialista tenha sido tentada, pode-se dizer que não foi muito bem sucedida. Isto é parcialmente o que estamos a assistir em Cuba. Contudo, este exemplo de nação também é a forma do «socialismo real» do estado-nação; em vez de um estado-nação em que predomina o capitalismo privado, é um estado-nação caracterizado principalmente por capitalismo de Estado.

A nação democrática é o modelo de nação que está menos exposto a esta doença de ser uma nação de Estado. Não sacraliza o seu governo. A governança é um simples fenómeno que está ao serviço da vida diária. Toda a gente que cumpra os requisitos pode tornar-se servidora público e governar. A liderança é valiosa, mas não sagrada. A sua compreensão de identidade nacional é aberta, não é fixa como ser-se crente ou membro de uma religião. Pertencer a uma nação não é nem um privilégio nem uma falha. Uma pessoa pode pertencer a mais do que uma religião. Mais precisamente, uma pessoa pode experienciar nacionalidades interligadas e diferentes. Se uma nação de lei e uma nação democrática chegam a um compromisso, elas podem co-existir confortavelmente. Terra natal, bandeira e língua são todas valiosas mas não sagradas. Para experienciar a mistura de terra natal, línguas e bandeiras comuns através da amizade e da partilha e não do confronto é não só possível, mas necessário para a vida da sociedade histórica. Com todas estas características, a nação democrática está novamente a tomar o seu lugar na história enquanto uma alternativa robusta ao enlouquecedor instrumento de guerra da modernidade capitalista; o estado-nação.

O modelo da nação democrática, como modelo de solução construtiva, re-democratiza as relações da sociedade que foram despedaçadas pelo estado-nação; torna identidades diferentes tolerantes, pacíficas e reconciliatórias. A evolução da nação do Estado para uma nação democrática trará melhorias imensas. O modelo de nação democrática ameniza percepções sociais carregadas de violência através de uma consciência social acertada e torna-as humanas (um ser humano que é inteligente, sensível e empático). Talvez não elimine completamente antipatias sociais mas pode minimizar a violência da exploração e ajudar a entender a possibilidade de uma sociedade mais igualitária e livre. Não só promove a paz interna e a tolerância como também transcende abordagens supressoras e exploradoras a outras nações e transforma interesses comuns em sinergia através da qual alcança a sua missão. Uma vez que instituições nacionais e internacionais sejam reconstruídas de acordo com a mentalidade e instituições fundamentais da nação democrática, será compreendido que esta nova modernidade, a modernidade democrática, não só teoricamente mas também a sua implementação tens os atributos de uma renascença. A alternativa à modernidade capitalista é a modernidade democrática, com a nação democrática no seu cerne e a sociedade económica, ecológica e pacífica que construiu dentro e fora da nação democrática.

5.1 As e os Curdos Tornarem-se Uma Nação

É possível pensar no processo através do qual as e os curdos se tornaram uma nação sob o contexto de dois conceitos fundamentais.

O primeiro é a dimensão intelectual. Estamos a falar de dimensões de existência daqueles e daquelas que unem o seu estado de consciência em relação a estas áreas fundamentais através de um sentimento de solidariedade comum e partilha de um mundo intelectual sem negligenciar a sua própria língua, cultura, história, economia e centros populacionais. O principal critério para esta dimensão é partilhar a mentalidade do ideal ou projeto de um mundo livre e igualitário baseado na diversidade. Podemos chamar a este mundo o mundo comunal ou utopia de indivíduos livres. O importante é manter continuamente uma mentalidade de liberdade e igualdade que não rejeita diferenças na esfera pública e na vida moral e política da sociedade.

Visto que a dimensão intelectual diz respeito ao mundo do pensamento e da imaginação assim como à solidariedade de indivíduos e comunidades que se queiram tornar uma nação, esta requer uma reformulação limitada. Com este fim, desenvolver a educação em ciência, filosofia e arte (incluindo a religião) e abrir escolas com este objetivo são passos práticos prioritários; a educação intelectual e emocional em relação a tornar-se uma nação é a tarefa destas escolas. É essencial compreender a cultura social em relação ao agora, à nossa época, tanto quanto em relação à entidade societal-histórica e partilhar os seus aspetos verdadeiros, bons e belos em pensamentos e emoções comuns. Em suma, a principal tarefa intelectual da KCK é perspetivar as e os curdos enquanto nação sob o seu verdadeiro, bom e belo mundo de pensamento e emoções conjuntamente partilhado em relação à sua própria existência. Por outras palavras, a sua tarefa é encorajar o povo curdo a tornar-se uma nação através de uma revolução científica, filosófica e artística e criar as condições fundamentais (intelectuais e emocionais) para se tornar tal nação, partilhando livremente a verdade científica, filosófica (ideológica) e artística da realidade curda, através do auto-pensamento e auto-educação, partilhando o bem e vivendo belamente. A principal reinvindicação em termos da dimensão intelectual para os estados-nação soberanos é que estes adiram totalmente à liberdade de expressão e pensamento. Se os estados-nação querem coexistir com as e os curdos sob normas comuns, devem respeitar os desejos do povo curdo de criar o seu próprio mundo intelectual e emocional e tornar-se numa sociedade nacional sob a base das suas próprias diferenças: a liberdade de expressão e pensamento requerida para isto tem de estar garantida constitucionalmente. A segunda dimensão é a reorganização da existência social de acordo com o seu mundo mental. Como é que se deve organizar a sociedade de acordo com o mundo intelectual de uma nação que é partilhada comumente? A autonomia democrática está no centro da reorganização da existência física. É possível definir a autonomia democrática tanto num sentido amplo como num sentido estrito. No sentido mais amplo, a autonomia democrática é a expressão da nação democrática. A nação democrática tem dimensões divididas num leque mais vasto. Pode ser definida em termos da sua dimensão cultural, económica, social, legal, diplomática e outras. No sentido estrito, a autonomia democrática representa a dimensão política; por outras palavras, significa autoridade ou governação democrática. A dimensão da autonomia democrática no tornar-se uma nação democrática é muito mais problemática em termos de relações com estados-nação soberanos. Estados-nação soberanos geralmente rejeitam a autonomia democrática. Estes não desejam reconhecê-lo enquanto direito a não ser que sejam obrigados a fazê-lo. Em relação às e aos curdos, a aceitação da autonomia democrática está no centro da reconciliação com os estados-nação. A autonomia democrática é a condição mínima para viver sob um teto político comum com um estado-nação que tem uma etnia dominante. Menos do que isto levaria a um aumento do conflito e a um agravamento da situação – não a uma solução. Especialmente ultimamente, há o esforço para implementar o projeto liberal de “direitos individuais e culturais” – originalmente desenvolvido pelo capitalismo Inglês de modo a governar a sua classe trabalhadora e as suas colónias – na República da Turquia via AKP. Este projeto, que é contrário à cultura do Médio Oriente, servirá apenas para expandir o conflito. A autonomia democrática é a solução mais adequada para o estado-nação. Menos do que isto apenas fomentaria mais conflito e guerra.

5.2 A Solução da Autonomia Democrática e a sua Implementação

A solução da autonomia democrática pode ser implementada de duas maneiras:

A primeira é baseada em achar um compromisso com estados-nação. Esta encontra a sua expressão concreta numa solução constitucional democrática. Respeita a herança histórico-societal dos povos e das culturas. Considera a liberdade de expressão e organização destas heranças como um dos irrevogáveis e fundamentais direitos constitucionais. A autonomia democrática é o princípio fundamental destes direitos. As principais condições para este acordo são que o estado-nação soberano renuncie a todas as políticas de negação e aniquilamento e que a nação oprimida abandone a ideia de formar o seu próprio estado-nação. É difícil para um projeto de autonomia democrática ser implementado sem ambas as nações renunciarem às tendências estadistas. Países da UE levaram mais de 300 anos de experiência de estado-nação até conseguirem aceitar a autonomia democrática como a melhor solução para resolver problemas regionais e nacionais dos estados-nação e problemas relacionados com minorias.

Na solução para a questão curda, também, a trajetória que é significativa e consistente é aquele que não se baseia no separatismo e na violência e que aceita a autonomia democrática. Todos os outros caminhos levam a um adiamento dos problemas e, logo, a um aprofundamento do impasse, ou a um conflito violento e à separação. A história dos problemas nacionais está repleta de exemplos disto. A relativa paz, riqueza e prosperidade dos países da UE – a sede dos conflitos nacionais – nos últimos 60 anos foi alcançada pela sua aceitação da autonomia democrática e da sua capacidade de encontrar soluções flexíveis e criativas para problemas regionais, nacionais e de minorias. O oposto tem-se verificado na República da Turquia. O estado-nação que foi desejado concretizar-se através da negação e aniquilação das e dos curdos puxou a república para a iminência da desintegração, para grandes problemas, crises contínuas, golpes militares aos quais se recorre a cada dez anos e a um regime especial de guerra que é conduzido juntamente com a Gladio. Somente quando o estado-nação Turco abandonar estas políticas e aceitar a autonomia democrática de todas as culturas (incluindo a turca e a turcomana) e especialmente a autonomia democrática da entidade cultural curda, atingirá paz e prosperidades duradouras enquanto uma república normal, legítima, secular e democrática.

A segunda via para uma solução de autonomia democrática – uma que não depende de encontrar um compromisso com estados-nação – é implementar o seu próprio projeto unilateralmente. No sentido amplo, reconhece o direito do povo curdo de se tornar uma nação democrática através da implementação da autonomia democrática. É evidente que neste caso os conflitos se intensificarão com aqueles estados-nação soberanos que não aceitem esta implementação unilateral de se tornar uma nação democrática. Se isto acontecer, as e os curdos não terão outra escolha senão adotar uma total mobilização e posição de guerra de modo a proteger a sua existência e a viver livremente contra os ataques individuais ou conjuntos dos estados-nação (Irão, Síria e Turquia). Não se irão conter de se tornar uma nação democrática em todas as suas dimensões e de desenvolver e realizar as suas aspirações através dos seus próprios esforços até que ou atinjam um compromisso ou alcancem a independência por meio da guerra.

5.3 A KCK e a Dimensão de se tornar uma Nação Democrática

À luz destas definições gerais de nação, a KCK rejeita abordagens orientadas para o estado-nação e baseia-se no modelo de nação democrática. reconhecendo o direito do povo curdo de se tornar uma nação ou de alcançar a sua transformação numa sociedade nacional através da autonomia democrática.

Se compararmos sociedades, especialmente as nações democráticas da nossa era, com organismos vivos, podemos dizer que todas as suas partes e dimensões estão interconectadas e coexistem como acontece no todo de um organismo vivo. Portanto, apesar de cada dimensão ser discutida individualmente, estas devem ser sempre consideradas como partes de um todo. Segue-se uma compreensão mais detalhada da maneira como uma nação democrática pode ser criada:

1 - O Individuo-Cidadão Livre e a Vida Comunal Democrática

O indivíduo-cidadão de uma nação democrática tem de ser comunal assim como livre. O indivíduo alegadamente livre do capitalismo individualista, que foi instigado contra a sociedade, vive essencialmente uma vida de abjeta escravidão. Contudo, a ideologia liberal cria uma imagem onde o indivíduo aparentemente possui liberdade ilimitada. Na realidade o indivíduo, escravizado pelo trabalho assalariado, representa a forma mais desenvolvida de escravidão. Este tipo de indivíduo é produzido através da contínua educação e vida no estado-nação. Porque a sua vida está vinculada à soberania do dinheiro, o sistema assalariado, efetivamente como uma trela, assegura que o indivíduo pode ser manipulado como desejado: Ele ou ela não tem outros meios de sobrevivência. Se procura escapar, isto é, optar pelo desemprego, é de facto uma sentença de morte. Aliás, o individualismo capitalista foi formado sob a base da negação da sociedade. Ele ou ela pensa que apenas se pode concretizar na medida em que rejeitar a cultura e as tradições da sociedade histórica. Esta é a maior distorção da ideologia liberal. O seu principal slogan é “não existe sociedade, existe o indivíduo”.

Oposto a isto, o indivíduo da nação democrática vê a sua liberdade na comunalidade da sociedade, sob a forma da vida mais funcional de pequenas comunidades. Uma comuna ou comunidade livre e democrática é a principal escola na qual o indivíduo da nação democrática toma forma. Sem uma comuna ou vida comunal, o indivíduo não se pode realizar inteiramente. As comunas são diversas e válidas em todas as esferas da vida societal. De acordo com a sua diversidade, indivíduos podem existir em mais do que uma comuna ou comunidade. O importante é que o indivíduo saiba como viver numa comunidade comunal de acordo com os seus talentos, trabalho e diversidade. O indivíduo considera a sua responsabilidade para com a comuna ou com as unidades sociais com as quais está ligado como o o princípio moral orientador. A moralidade significa respeito e compromisso para com a vida comunitária e comunal. A comuna ou comunidade por sua vez projeta o indivíduo e melhora a sua vida. Afinal de contas, o princípio fundamental por trás da fundação da sociedade humana é este mesmo princípio da responsabilidade moral. O caráter democrático da comuna ou comunidade é o que concretiza a liberdade coletiva – por outras palavras, a comuna ou comunidade política. Uma comuna ou comunidade que não é democrática não pode ser política. Uma comuna ou comunidade que não é política não pode portanto ser livre. Há uma correlação intima entre o caráter político e democrático da comuna e a sua liberdade.

A definição do indivíduo-cidadão da nação democrática torna-se ligeiramente mais ampla quando ela ou ele vive sob o mesmo teto político com um estado-nação. Neste caso, dentro do enquadramento da “cidadania constitucional”, ela é tanto um indivíduo-cidadão do estado-nação quanto o é da nação democrática. O ponto aqui é o reconhecimento da situação da nação democrática, segundo a qual a autonomia democrática é reconhecida legalmente na constituição nacional. O estatuto nacional democrático tem dois lados. Primeiramente, denota o estatuto, a lei e a constituição da autonomia democrática. Em segundo lugar, a autonomia é incorporada como uma sub-secção do estatuto constitucional nacional.

Apesar da construção unilateral da nação democrática baseada no indivíduo-cidadão livre e na união comunal da KCK ser uma prioridade, também é possível que a KCK chegue a um acordo com aqueles estados-nação que reconheçam o estatuto de autonomia democrática na constituição democrática nacional. A KCK reconhece tanto a vida do indivíduo-cidadão e comunidade livres como a extensão até à qual a sua vida está vinculada a um estatuto legal e constitucional.

O individualismo capitalista requer a servidão absoluta ao deus do estado-nação; enquanto que a cidadania da nação democrática fomenta o desenvolvimento do indivíduo livre no sentido mais verdadeiro. A cidadania da nação democrática das e dos curdos pode ser concretizada sob o estatuto da KCK. Portanto, talvez seja mais apropriado definir a adesão à KCK como cidadania da nação democrática. É um direito e dever irrevogável para o povo curdo ser cidadão da sua própria nação democrática. Ser incapaz de se ser cidadão ou cidadã da própria nação é uma enorme alienação e é indefensável.

2 - A Vida Política e a Autonomia Democrática

É possível definir a escola das ciências sociais que estuda a ontologia e o desenvolvimento da natureza societal sob a base da sociedade moral e política como o sistema da civilização democrática. Identificar a sociedade moral e política como a nossa unidade fundamental também é importante visto que isto comporta as dimensões da historicidade e integralidade. A sociedade moral e política é a narrativa mais histórica e holística da sociedade. A moralidade e a política podem ser vistas como a própria história. Uma sociedade com uma dimensão moral e política é uma sociedade que está em harmonia com a sua existência e desenvolvimento. A sociedade pode existir sem exploração, classes, cidades, poder, nação e o Estado, mas uma sociedade desprovida de moral e política é impensável.

Uma sociedade moral e política é uma sociedade democrática. A democracia apenas pode obter significado sob a base da existência de uma sociedade aberta e livre; isto é, a sociedade política e moral. A sociedade democrática, onde indivíduos e grupos se tornam sujeitos, corresponde a uma forma de governação que mais efetivamente desenvolve a sociedade moral e política. Mais precisamente, a funcionalidade da sociedade política é aquilo a que já chamamos democracia. Política e democracia, no sentido verdadeiro, são conceitos idênticos. Se a liberdade é a arena na qual a política se expressa, então a democracia é o modus operandi da política dentro dessa arena. O trio da liberdade, política e democracia não pode ser destituída de uma base moral. Também podemos definir a moral como a forma institucionalizada ou tradicional da liberdade, política e democracia.

As sociedades morais e políticas estão em contradição dialética com o Estado, que é a expressão oficial de todas as formas de capital, propriedade e poder. O Estado deseja constantemente substituir a moral pela lei e a política pela administração burocrática. Nos dois polos desta contradição histórica, coexistem a civilização oficial do Estado e a civilização democrática não oficial. Duas tipologias separadas de significado emergem. As contradições podem ou intensificar-se e levar à guerra, ou reconciliar-se e levar à paz.

Hoje, em particular a natureza problemática dos estados-nação está a impulsionar as sociedades políticas e as suas forças governantes para se tornarem nações democráticas, forçando-as a tornarem-se nações democráticas ou através da reforma ou através da revolução. Enquanto que os estados-nação eram a tendência dominante durante a ascensão do capitalismo, sob as condições atuais do seu colapso a tendência dominante está a evoluir em direção à nação democrática. A este respeito, é muito importante não equiparar força política com poder estatal. A política não pode ser equiparada com o poder e com a sua forma institucionalizada, o Estado. A liberdade é a natureza da política. Sociedades e nações politizadas são sociedades e nações que se estão a tornar livres.

A política não só liberta mas também regula. A política é uma força regulatória única; é um tipo de arte. Representa o oposto das regulações opressivas dos Estados e dos governantes. Quão mais forte é a política numa sociedade ou nação, mais fracos são os poderes estatais e governamentais. O oposto também é verdade: quão mais forte os poderes estatais e governamentais são numa sociedade ou nação, mais fraca é a política – e portanto a liberdade – nessa sociedade.

Tal como uma sociedade ou nação que obtém poder estatal e governamental não se torna livre mesmo que houvesse alguma característica democrática, também enfrenta a perspectiva de perder quaisquer liberdades que tivesse anteriormente. É por isto que quanto mais afastarmos a sociedade do Estado e do poder, mais a abrimos para a liberdade. E a condição fundamental que é necessária para libertar essa sociedade e nação é manter-se permanentemente numa posição política.

Verifica-se que o sistema da civilização democrática sempre existiu e susteve-se como a outra face da história da civilização oficial, em essência como a unidade moral e política da natureza societal. Apesar da supressão e exploração pelo sistema mundial oficial, a outra face da sociedade não pode ser eliminada. De qualquer das formas, a sua destruição não é possível. Tal como o capitalismo não pode existir sem uma sociedade não capitalista, também a civilização enquanto sistema mundial oficial não pode existir sem a existência do sistema da civilização democrática. Mais concretamente, a civilização com monopólio não poderia existir sem a civilização sem monopólio. O oposto disto não é verdade. Por outras palavras, a civilização democrática, o fluxo histórico da sociedade moral e política, poderia existir comodamente e com menos obstáculos sem a civilização oficial. Eu defino civilização democrática tanto como um sistema de pensamento, uma acumulação de pensamento, como uma totalidade de regras e órgãos políticos morais.

Nós concebemos a dimensão política da construção da nação democrática da KCK enquanto autonomia democrática. Sem auto-governação a nação democrática é impensável. Em geral todas as formas de nação e em particular as nações democráticas são entidades que têm a sua própria auto-governação. Se uma sociedade é privada da auto-governação, deixa de ser uma nação. As e os curdos foram não só impedidos de se tornar uma nação, também deixaram de existir como uma sociedade. A orientação pelo PKK e as políticas da KCK não só interromperam este processo, mas também iniciaram o processo de se tornar uma nação democrática em vez de uma sociedade política. As e os curdos, na fase atual, são não só uma sociedade que se tornou uma sociedade intensamente política, mas uma sociedade que também trabalha para transformar esta realidade política numa nação democrática.

A KCK tem um papel fundamental na construção da nação democrática e pode ser traduzida como o equivalente à autonomia democrática. É indispensável na criação de uma nação democrática que a KCK cumpra o seu papel enquanto órgão para a política democrática. Confundi-la com um estado-nação é uma distorção deliberada. A KCK, por princípio, deixou de empregar o nação-estatismo como uma ferramenta para uma solução. Não é nem a primeira nem a última fase do nação-estatismo. São ambos conceitos de autoridade qualitativamente diferentes. Embora talvez contenha características que são reminiscentes da institucionalização dos estados-nação em termos da sua estrutura organizacional, é genuinamente diferente. A KONGRA-GEL, enquanto órgão de tomada de decisões da KCK, significa Assembleia do Povo. A sua importância deriva das pessoas tomarem as suas próprias decisões sozinhas. A Assembleia do Povo é um órgão democrático. É a alternativa a tornar-se uma nação governada pelas classes altas ou pela burguesia. A KONGRA-GEL significa tornar-se uma nação governada pelas classes populares e pelo estrato de intelectuais. É essencialmente diferente do sistema parlamentar burguês. O Conselho Executivo da KCK expressa a pirâmide condensada e centralizada da administração diária. Garante a coordenação entre as unidades operativas espalhadas entre o povo. Coordena o trabalho diário organizacional e operacional envolvido em tornar-se uma nação democrática assim como em a governar e defender. O Conselho não deve ser confundido com os órgãos governamentais do Estado. Está mais perto do sistema de confederações de sociedades civis democráticas. A Instituição Geral Presidencial da KCK, assentando-se em eleições pelo povo, é o nível de representação mais geral e mais alto. Supervisiona e monitora a compatibilidade entre todas as unidades da KCK e a aplicação de políticas fundamentais.

É claro que durante tal período e sob novas condições haverá competição, discórdia e conflito consideráveis entre as instituições e forças dos estados-nação e as instituições e forças da KCK. Haverão diferentes autoridades e governações nas cidades e nas áreas rurais.

3 - Vida Social

No processo de se tornar uma nação democrática, ocorrem transformações importantes na vida social. A vida tradicional na modernidade capitalista sofre grandes mudanças.

O estilo de vida moderno dominante transformou-se numa completa armadilha baseada no escravo mais antigo, a mulher. No capitalismo, as mulheres foram transformadas nas “rainhas da mercadoria”. São não só trabalhadoras não pagas, enquanto “donas de casa”, são também quem recebe salários mais baixos fora de casa e a principal ferramenta para fazer baixar salários. A mulher é a principal constituinte do emprego flexível. Ela é uma incubadora industrial produzindo as novas gerações necessárias para o sistema capitalista. Ela é a principal ferramenta para a indústria publicitária. A sua servidão perpetua o sexismo. Desde imperador global ao pequeno imperador dentro da família, ela é o instrumento de prazer e poder ilimitado de todos os homens dominantes. Ela é o objeto que dá luz ao poder daqueles que nunca tiveram poder. Em nenhum ponto da história a mulher foi tão explorada como ela tem sido durante a modernidade capitalista. Todas as outras escravaturas – a infantil e a do homem – foram desenvolvidas nas pegadas da escravização das mulheres. É por isto que na vida social imposta pelo capitalismo toda a gente, exceto aqueles que governam, tem sido infantilizada tanto quanto escravizada. A família, que está modelada em torno da mulher e é a instituição mais antiga da sociedade, está-se a desintegrar mais uma vez em torno da mulher. O que desintegra a família é o método de acumulação do capitalismo. Este método só se pode materializar à medida que consome a sociedade e o resultado expectável é que a sociedade possa ser consumida e atomizada desde que seja capaz de destruir a célula fundamental da sociedade; a família.

Independentemente do quão desenvolvida estiver a medicina, é incapaz de parar a rápida propagação de doenças na sociedade. O nacionalismo, o “religionismo”, o “poderismo” e o sexismo são o ADN cognitivo e emocional do capitalismo, gerando constantemente doenças tanto individualmente como institucionalmente. O número crescente de doenças inerentes é um indicador de doença mental e psicológica – o resultado inevitável do efeito destrutivo do capitalismo na sociedade.

Na vida social moderna, o sistema educacional é responsável pela criação do indivíduo anti-social. Tanto a vida individualista liberal e a vida da ou do cidadão do estado-nação são programadas e implementadas de acordo com as necessidades do capitalismo. Com este propósito, uma enorme indústria chamada

setor da educação foi formada. Neste setor, os indivíduos são bombardeados vinte e quatro horas por dia tanto mentalmente como espiritualmente de modo a serem tornadas em seres anti-sociais. Eles são prejudicados por serem seres morais e políticos. São transformados em indivíduos que são compelidos a consumir, correm atrás do dinheiro, são sexistas, chauvinistas e servis. É assim que a natureza social é destruída. A educação não é usada para aumentar o funcionamento saudável da sociedade mas para o destruir.

Uma nação democrática é acima de tudo intransigente em relação a manter-se enquanto sociedade; toma posição contra a modernidade capitalista com o slogan “sociedade ou nada”. Insiste no sustento da sociedade enquanto uma realidade histórico-social, apesar da sociedade estar dissolvida nas mós da modernidade.

Visto que a compreensão da educação por parte da nação democrática aponta à sociabilidade e ao livre indivíduo-cidadão, a dialética do desenvolvimento do indivíduo dentro da sociedade e do desenvolvimento da sociedade com o indivíduo é restabelecida. O papel socializador, libertador e equalizador das ciências é reafirmado. A nação democrática é a nação de uma sociedade que adquiriu uma verdadeira consciência da sua existência.

4 - Vida do Livre Parceiro

Sabemos que há três funções principais para todos os organismos vivos: nutrição, auto-preservação e preservação da espécie. Estas funções fundamentais assumem um novo patamar nos humanos.

Uma vez que a consciência do desejo de viver seja obtida, também deverá ser entendido que não é possível entender o significado da vida apenas através da procriação. Tal como a reprodução não faz a vida ter significado, pode até distorcer e enfraquecer o poder emergente da consciência. Ter consciência da ou do próprio é sem dúvida uma incrível formação no universo. Atribuir a divindade ao ser humano não foi em vão. Continuar a linhagem de sangue do humano consciente não só prejudica o equilíbrio, em detrimento de outros seres vivos, também põe em perigo o poder de consciência da humanidade. Resumidamente, o principal problema do humano consciente não pode ser a continuação da sua linhagem de sangue. Se, tanto quanto sabemos, o universo atingiu o maior nível de poder de se conhecer si mesmo no ser humano pela primeira vez, então isto é algo pelo qual vale a pena ficar-se muito animada. Talvez compreender o universo é o verdadeiro significado da vida. Isto, por sua vez, significaria que o ciclo da vida-morte foi transcendido; não poderia haver maior fonte de ânimo e alegria para a humanidade.

O resultado mais importante da guerra popular revolucionária do PKK em relação ao chauvinismo masculino é a sua compreensão de que a libertação e liberdade da sociedade só é possível através da análise do fenómeno da mulher, assim como da sua libertação e liberdade. Contudo, tal como foi assinalado, o macho curdo define erroneamente a sua chamada honra em termos da sua soberania absoluta sobre as mulheres. A grave contradição precisa de ser resolvida.

No caminho de construir uma nação democrática, teremos de fazer o oposto do que tem sido feito até à data em nome da honra. Estou a falar de transformar de uma virilidade curda transformada e em parte falo sobre eu mesmo. E deverá ser feito assim: devemos abandonar qualquer noção de propriedade em relação às mulheres. As mulheres devem pertencer apenas a si mesmas (xwebûn). Ela deve saber que não tem dono e que a único dona que tem é ela mesma. Não nos devemos prender a mulheres com nenhuma emoção de subordinação, incluindo o amor e o amor cego. Do mesmo modo, também a mulher deve parar de ser dependente e controlada. Esta deve ser a primeira condição para ser um ou uma revolucionária, uma militante. Aqueles e aquelas que atravessam esta experiência com sucesso, são aqueles e aquelas que concretizam a liberdade na sua personalidade e que conseguem construir a nova sociedade e a nação democrática começando com as suas próprias personalidades libertadas.

A libertação da mulher é muito importante no processo de se tornar uma nação democrática. A libertação da mulher é a libertação da sociedade. A sociedade que se torna livre, por sua vez, é uma nação democrática. Falei sobre a importância revolucionária de reverter o papel do homem. Isto significa, em vez de abordar a mulher como um meio para continuar a sua linhagem de sangue ou de a dominar, ele deve sustentar o processo de transformação para uma nação democrática através da sua própria força, deve formar o poder ideológico e organizacional necessário para isto e deve assegurar a soberania da sua autoridade política; desta forma deve produzir-se a si mesmo ideologicamente e politicamente. Assim, em vez de assegurar a reprodução física, deve assegurar o empoderamento espiritual e intelectual. A modernidade capitalista é um sistema baseado na negação do amor. A negação da sociedade, a incontrolabilidade do individualismo, o sexismo generalizado, a deificação do dinheiro, a substituição de deus pelo estado-nação e a transformação das mulheres em trabalhadoras não pagas ou mal pagas também significa a negação da base material do amor.

A natureza feminina deve ser bem entendida. Abordar a sexualidade de uma mulher somente por a achar biologicamente atrativa e relacionar-se com ela com base nisto é a perda do amor desde o início. Tal como não chamamos ao acasalamento biológico de outras espécies amor, também não podemos chamar amor a relações sexuais entre humanos baseadas em fatores biológicos. Podemos chamar a isto de atividade reprodutiva normal de seres vivos. Não é preciso ser-se humano para realizar estas atividades. Aquelas e aqueles que querem amor verdadeiro têm de abandonar este tipo de reprodução animal-humano. Podemos ver as mulheres com amigas e camaradas valiosas apenas na medida em que transcendemos vê-las como objetos de atração sexual. A relação mais difícil é a de amizade e camaradagem com uma mulher que transcenda o sexismo. Mesmo quando a vida e livremente partilhada com uma mulher enquanto parceira, a construção da sociedade e da nação democrática deve formar a sua base. Temos de superar os limites tradicionais e enquanto modernidade de ver as mulheres somente nos papeis de parceiras, mães, irmãs ou amantes. Primeiro que tudo devemos estabelecer relações humanas fortes baseadas numa compreensão comum e na construção da sociedade. Se um homem quer ter uma relação com uma mulher que tem uma forte fundação ideológica e societal, então ele precisa de deixar a escolha e o cortejo para a mulher. Quanto mais se tiver desenvolvido o nível de liberdade da mulher, a sua capacidade de escolher livremente e a mobilidade baseada na sua própria força, mais será possível viver com ela significativamente e belamente.

Nós enfatizamos continuamente que as condições sob as quais jin e jyan deixaram de ser mulher e vida refletem o colapso e a desintegração da sociedade. Sem que esta realidade seja compreendida e sem que a ação se baseie nela, é impossível para aquelas componentes a que chamamos revolução, partido, guias e militantes revolucionários desempenharem o seu papel É impossível para aqueles e aquelas que estão num impasse resolverem os impasses das outras pessoas e torná-las livres. A consequência mais importante do PKK e da sua guerra popular revolucionária neste aspeto é que a libertação e liberdade da sociedade só pode ser alcançada através da análise do fenómeno da mulher e da sua libertação e liberdade.

5 - Autonomia Económica

Quando o poder do Estado está organizado enquanto estado-nação, a modernidade capitalista e especialmente a sua lei do lucro máximo e da acumulação de capital realizadas sobre a economia podem-se materializar. Sem este instrumento, o lucro máximo e a acumulação de capital não podem ser alcançadas. O estado-nação representa a concretização do nível máximo de pilhagem económica com uma certa legitimidade na história da civilização. Uma definição correta de estado-nação não pode ser feita sem analisar a sua relação com o lucro máximo e a acumulação de capital. O estado-nação também não pode ser definido somente como um sistema de tirania e poder. Apenas quando o poder do estado está organizado enquanto estado-nação é que a modernidade capitalista pode e, em particular, a sua lei do lucro máximo e da acumulação de capital podem ser materializadas. Isto significa que o controlo do estado-nação sobre a vida económica da sociedade permitiu ao Estado apoderar-se de mais mais-valia do que nunca. Está revestido com o verniz do nacionalismo e do patriotismo, deificado através da educação e penetra completamente a sociedade para legitimar a extorsão económica que exerce. Conceitos, teorias e instituições desenvolvidas nos campos do direito, economia política e diplomacia procuram a legitimidade com o mesmo objetivo. A execução de um terror implacável junto com a obtenção do lucro máximo no domínio económico, por um lado condena a sociedade ao trabalho com salário mínimo, enquanto que por outro lado transforma a maioria num exército de desempregados. A escravidão de salários baixos e um enorme exército de pessoas desempregadas são as consequências naturais da lei lucro máximo, do estado-nação e do industrialismo.

A concretização destas três componentes fundamentais da modernidade capitalista só é possibilitada quando a sociedade perde o controlo e a liberdade de fazer escolhas sobre a sua vida económica, está condenada à escravatura salarial, quando a maioria da população está transformada num exército de desempregados e quando as mulheres estão condenadas à escravatura não paga ou com salários baixos. As ciências sociais do capitalismo em geral e em particular a sua economia política, são mitologias inventadas para esconder e distorcer estes factos; nunca se deve acreditar nelas e deve-se saber o que estes mitos significam.

A sociedade curda é uma sociedade que foi amedrontada de se defender a si mesma como consequência do genocídio cultural que enfrentou através de conquistas, ocupações, invasões, saqueio, colonialismo e assimilação, assim como consequência da modernidade capitalista. É uma sociedade que perdeu o controlo da sua economia e foi tomada sob o controlo completo pelo moderno monstro de três pernas dos elementos estrangeiros e colaboracionistas. O facto de que apenas trabalha para ser capaz de se alimentar demonstra que é uma sociedade que foi amarrada a uma tentativa de genocídio. É uma sociedade em que as mulheres, as criadoras da economia, estão completamente entregues ao desemprego e o seu trabalho é o menos valorizado. É uma sociedade cujos homens se dispersaram pelo mundo em busca de trabalho para sustentar as suas famílias É uma sociedade na qual as pessoas se matam umas às outras por uma galinha ou um pedaço de terra. Claramente, tal sociedade deixou de ser uma sociedade e é uma sociedade que se desmoronou e se dissolveu.

A ocupação económica é a ocupação mais perigosa de todas. É a forma mais cruel de degradar e destruir uma sociedade. Mais do que a repressão e tirania do estado-nação, a sociedade curda foi eviscerada pela perda das suas ferramentas económicas e do controlo do seu domínio económico. Não é possível para uma sociedade manter a sua liberdade uma vez que tenha perdido o controlo dos seus meios de produção e o seu mercado. As e os curdos não só perderam efetivamente o controlo dos seus meios e relações de produção; também perderam controlo sob a sua produção, consumo e mercado. Mais precisamente, só lhes foi possível fazer uso da sua propriedade e participar no comércio e na indústria na medida em que se anexem a estados-nação soberanos através da renuncia da sua identidade. O cativeiro económico foi uma ferramenta efetiva para a negação da identidade e a perda da liberdade. Os empreendimentos unilaterais estabelecidos sobre os rios e as reservas de petróleo não só destruíram artefactos culturais milenares mas também muita terra fértil. A intensificação do colonialismo económico, que veio após a colonização política e cultural , foi o prego final no caixão. O ponto final a que se chega é: “ou deixar de ser uma sociedade, ou morrer!”.

O sistema económico de uma nação democrática não só põe um fim a estas práticas bárbaras, mas baseia-se no restabelecimento por parte da sociedade do controlo sobre a sua própria economia. A autonomia económica é o compromisso mínimo que pode ser feito entre o estado-nação e a nação democrática; qualquer compromisso menor é uma mandato para a rendição e a aniquilação. O aprofundamento da autonomia económica para a independência significaria um estado-nação de oposição, o que é ultima instância uma rendição à modernidade capitalista. Renunciar à autonomia económica, por outro lado, significaria a rendição ao estado-nação dominante. A essência da autonomia económica não se baseia nem no capitalismo privado nem no capitalismo de Estado. É baseada na indústria ecológica e na economia comunal – o modelo em que a democracia se reflete na economia. A indústria, o desenvolvimento, a tecnologia, os negócios e a propriedade estão ligadas pelo princípio de ser uma sociedade ecológica e democrática. Na autonomia económica não há espaço para indústria, tecnologia, desenvolvimento, propriedade ou estabelecimento urbano-rural que negue a sociedade ecológica e democrática. A economia não pode ser deixada enquanto um domínio em que o lucro e a acumulação de capital se materializem.

A autonomia económica é um modelo em que o lucro e a acumulação de capital é minimizada. Embora não rejeite o mercado, o comércio, a variedade de produtos, a competição e a produtividade, rejeita, no entanto, a dominância do lucro e da acumulação de capital. A finança e os sistemas financeiros são validados apenas na medida em que sirvam a produtividade e funcionalidade económica. Fazer dinheiro a partir de dinheiro é considerado como a forma mais fácil de exploração, o que não tem lugar na autonomia económica. A autonomia económica de uma nação democrática não considera o trabalho como algo fatigante mas como um ato de libertação. Ver o trabalho como uma estafa é estar alienado dos resultados do trabalho. Quando os resultados do trabalho atendem à identidade pessoal e à liberdade do indivíduo, a situação muda para melhor. Isto também não é igual às tentativas de coletivização do socialismo real. Na comuna, não há lugar para o trabalho fatigante nem para trabalho que não seja libertador.

As barragens construídas nos rios do Curdistão levaram a um genocídio histórico e a um desastre ecológico. Nenhuma barragem que ignore a ecologia, a terra fértil ou a história pode ser permitida; mesmo aquelas que já foram construídos não serão substituídas quando se deteriorarem. Se possível, a eliminação precoce não deve ser evitada. A oposição à desflorestação e à erosão — o maior inimigo da sociedade e da vida — harmoniza com o espírito de mobilização total. Declara que a proteção da terra e a reflorestação são as formas de trabalho mais valorosas.

A KCK, como espinha dorsal da nação democrática, fundamenta-se na autonomia económica e na economia comunal e vê-as como essenciais para a auto-defesa da sociedade. Assim como a sociedade não se pode manter sem a autodefesa, a nutrição e o sustento da sociedade só é possível com a autonomia económica, que é dependente da conservação do solo e da reflorestação, da ecologia e da comuna.

A autonomia económica exige também uma base legal. A uniformidade e o centralismo das leis do Estado-nação soberano obstruam a criatividade económica, o ambiente e a concorrência sob o pretexto da unidade. Em vez de tal compreensão do direito essencialmente baseada no colonialismo económico, há uma necessidade urgente de uma economia localizada que funcione de forma autónoma, mas que tenha em conta a coordenação com a economia nacional. Uma lei económica que tenha em conta a dinâmica do mercado local, mas que não negue o mercado nacional, é crucial. Um único sistema legal central é o maior aspeto do conservadorismo. É completamente político e não tem sentido economicamente.

6 - Estrutura Legal

O direito democrático é uma lei baseada na diversidade. Mais importante ainda, refere-se pouco à regulamentação legal e é uma construção simples. Ao longo da história, o estado-nação soberano é uma forma de Estado que desenvolveu regulamentos legais mais extensivamente, de modo a eliminar a sociedade moral e política. As sociedades passadas tentaram, em grande medida, resolver os seus problemas através de regulamentos morais e políticos. A modernidade capitalista tentou colocar toda a sua legitimidade na lei. A intervenção excessiva da modernidade capitalista e a sua exploração da sociedade levou-a a recorrer a uma ferramenta complicada chamada lei, que formalizou a justiça.

O direito, mais do que consistir em leis que regulam os direitos e deveres dos indivíduos e da sociedade, como é muitas vezes alegado ser, é a arte de governar através de uma regulamentação excessiva destinada a legitimar as injustiças causadas pelo capitalismo. Governar através de leis em vez de regras morais e políticas é específico à modernidade capitalista. Rejeitando a moral e a política, a burguesia recorre ao instrumento da legislação, que lhe confere um enorme poder. Nas mãos da burguesia, a lei é uma arma poderosa. Defende-se a si mesma através da lei tanto contra a antiga ordem moral e política como contra os e as trabalhadoras. O poder do estado-nação é em grande parte derivado do poder de um sistema jurídico que é regulado unilateralmente. As leis, em certo sentido, são os versículos do deus do estado-nação. Este prefere governar a sua sociedade através destes versículos.

É por esta razão que a nação democrática é sensível em relação ao direito, especialmente ao direito constitucional. A nação democrática é mais uma nação moral e política do que uma nação baseada na lei. A necessidade de lei surge se se opta e por uma vida conjunta e pelo compromisso com estados-nação sob um teto político comum. Quando isto acontece, a distinção entre a legislação nacional e as leis do governo local ganha importância. Quando as leis nacionais, baseadas em interesses unilateralmente centralizados e burocráticos, enfrentam constantemente a resistência dos grupos democráticos locais e culturais, devem ser adotadas as leis do governo local.

Devido ao facto de a existência do Curdistão e das e dos Curdos ter sido negada, os e as curdas não têm leis específicas para elas. No período otomano, as e os curdos tinham tanto leis escritas como leis tradicionais. A partir de 1925, a identidade curda foi considerada inexistente, para ser apagada da história através de conspirações, golpes e assimilação. Embora a resistência da PKK tenha restabelecido a existência dos e das curdas, ainda não conseguiu assegurar uma definição legal. Durante este período, a KCK trabalhará para persuadir os estados-nação a reconhecerem legalmente a entidade curda, mas se tal não acontecer, desenvolverá unilateralmente o seu próprio sistema legal autónomo. No entanto, a KCK dará prioridade a encontrar um lugar no seio das constituições nacionais. Assim, de acordo com tal prioridade, trabalhará para expressar o seu estatuto de autonomia democrática no seio das constituições democráticas nacionais. É isto que se entende por uma solução pacífica e democrática para a questão curda: Compromisso constitucional democrático nacional baseado no estatuto de autonomia democrática. Se a KCK não for bem sucedida na sua solução preferencial, constitucional democrática nacional com um estatuto de autonomia democrática baseado num compromisso, fará a transição para uma governança autónoma democrática unilateral como a sua segunda opção preferencial. A Governança Autónoma Democrática no Curdistão não é um estado-nação com governação através de leis. É a governação da modernidade democrática à escala local e regional.

7 - Cultura

O Estado baseia-se em milhares de anos de cultura patriarcal. A instituição do Estado é uma invenção masculina, onde as guerras com o objetivo de pilhar e saquear quase que se tornaram uma forma de produção. Em vez da efetividade social da mulher baseada na produção, ocorreu uma transição para a efetividade social do homem baseada em guerras e no saqueio. Há uma estreita correlação entre a escravidão das mulheres e a cultura da sociedade guerreira. A guerra não produz, apreende e pilha. Embora em determinadas circunstâncias específicas a violência tenha desempenhado um papel decisivo no desenvolvimento societal — abrindo o caminho para a liberdade, resistindo à ocupação, à invasão e ao colonialismo — é em grande parte destrutiva e negativa. A cultura internalizada da violência numa sociedade é também alimentada por guerras. A espada da guerra entre os Estados e a mão do homem dentro da família, ambas simbolizam dominação.

Além disso, ao formalizar as normas culturais de uma etnia dominante ou de uma comunidade religiosa sob o nome da cultura nacional, a modernidade capitalista declara guerra contra todas as outras entidades culturais. Ao afirmar que as religiões, etnias, povos, nações, línguas e culturas que se preservam há milhares de anos “prejudicam a unidade nacional”, a modernidade capitalista prepara-se para destruí-las, quer pela força quer por meio de incentivos materiais. Em nenhuma outra época na história tantas línguas, religiões, denominações, tribos étnicas e clãs, assim como povos e nações foram alvo destas políticas, ou para ser mais preciso, de genocídios. Genocídios físicos são na verdade uma gota no oceano quando comparado com o genocídio imaterial. Os valores culturais e linguísticos, juntamente com as suas comunidades que existem há milhares de anos, são sacrificados, em prol do sagrado ato de criação de “unidade nacional”.

Também a dimensão cultural é muito importante na formação das nações. No sentido estreito, a cultura representa a mentalidade tradicional e a realidade emocional de uma sociedade. Mais uma vez, no sentido estreito, a religião, a filosofia, a mitologia, a ciência e as diversas formas de arte constituem a cultura de uma sociedade. De certa forma, representam a lógica e o estado mental de uma sociedade. Num estado-nação, ou uma vez que as nações são formadas pelo Estado, o mundo da cultura é grandemente distorcido e dizimado. Isto porque, de outra forma, o Estado não consegue legitimar a sua lei do lucro máximo e da acumulação de capital. A modernidade e o estado-nação não podem desenvolver-se sem antes reconstruir a cultura e a história de acordo com os seus próprios interesses. A realidade resultante da modernidade e do estado-nação não tem nenhuma relação com a realidade da sua história e cultura; representa um sentido diferente em termos da verdade.

O papel da cultura na modernidade capitalista é vital. A cultura, enquanto a mentalidade total de todas as esferas sociais, é submetida primeiro à assimilação (para acomodar a hegemonia económica e política), depois é transformada numa indústria a ser difundida extensa e intensamente a todas as sociedades (nações, povos, estados-nação, sociedade civil, corporações) do mundo. A industrialização da cultura é o segundo meio mais eficaz de escravização. A cultura, num sentido estreito, representa a mentalidade das sociedades. O pensamento, o gosto e a moral são as suas três questões fundamentais. Demorou séculos para o poder político e económico cercar e subornar os elementos culturais. Estes consideraram a apropriação de elementos culturais como indispensável para a sua legitimidade ao longo da história civilizacional. Poderes económicos e governantes rapidamente perceberam isto e tomaram precauções. A assimilação da cultura pelos governantes remonta à génese da hierarquia. É a ferramenta essencial para dominar. Sem a hegemonia cultural, monopólios económicos e de poder não conseguem governar. A fase de império do capitalismo só é possível com uma indústria cultural desenvolvida. É por esta razão que a luta contra a hegemonia cultural requer constante diligência.

Em contraste, a sociedade democrática, a forma contemporânea de modernidade da sociedade moral e política, é uma sociedade que verdadeiramente acomoda a diferença no sentido mais amplo. Todos os grupos sociais dentro da sociedade democrática podem coexistir com base em diferenças que se formam em torno da sua própria cultura e identidade, sem se limitarem a uma cultura e cidadania uniformes. As sociedades podem revelar o seu potencial em termos de diferenciação identitária até à diferenciação política e transformá-lo numa vida ativa. Nenhuma das comunidades tem qualquer preocupação de que sejam homogeneizadas. A uniformidade é vista como deformidade, assolada pela pobreza e aborrecida. O pluralismo, no entanto, oferece riqueza, beleza e tolerância. A liberdade e a igualdade florescem sob estas condições. Só a igualdade e a liberdade que se baseiem na diversidade são de valor. Na verdade, a liberdade e a igualdade alcançadas através dos estados-nação são apenas para monopólios, como provado em todo o mundo. O poder e os monopólios de capital nunca permitem verdadeiras liberdades ou igualdade. A liberdade e a igualdade só podem ser adquiridas através da política democrática da sociedade democrática e protegidas com autodefesa.

Tal como é possível reunir diferentes culturas étnicas no âmbito da nação democrática, é igualmente importante utilizar o conteúdo democrático da cultura religiosa dentro da nação democrática como componente livre, igual e democrática e permitir espaço para este numa resolução. A abordagem reconciliatória da aliança desenvolvida pela modernidade democrática em relação a todos os movimentos anti-sistémicos deve também ser desenvolvida para a cultura religiosa com conteúdo democrático, isto insere-se no âmbito de uma outra tarefa de importância vital. A nação democrática procura compor-se restabelecendo o verdadeiro significado da história e da cultura, que no processo renasce na formação da nação democrática.

A solução da nação democrática da questão curda está, antes de mais, ligada à definição correta da história e da cultura curda. A definição correta da sua história e cultura trará o reconhecimento de sua existência social consigo mesma. A negação e aniquilação das e dos curdos na história da República da Turquia começou com a negação da história curda e com a aniquilação do seu património cultural, eliminando primeiro a sua cultura imaterial e depois a sua cultura material. É por esta razão que foi pertinente que o PKK começasse a construir-se com uma consciência da história e da cultura. Ao tentar explicar a história e a cultura curda através de comparação com a história e a cultura de outros povos em todo o mundo e proclamá-la num manifesto chamado O Caminho da Revolução do Curdistão, permitiu ao PKK desempenhar o papel de uma Renascença revolucionária na revigoração da história e da cultura curda.

A construção da nação democrática curda é qualitativamente diferente dos processos nacionalistas e estatistas de construção de nação. É diferente do nacionalismo do estado-nação soberano e das abordagens nacionalistas e estatistas curdas; é uma construção alternativa de uma nação baseada na tradição e cultura dos trabalhadores e dos povos.

A nação democrática curda adquirirá gradualmente uma outra qualidade estrutural sob a KCK e apresentará uma nova práxis de construção nacional que se tornará um modelo para os povos do Médio Oriente. Está aberta a uniões e alianças nacionais democráticas mais extensas com outros povos, com base numa compreensão aberta de nação democrática. Iniciará o surgimento de uma nova era, a era da modernidade democrática, através do renascimento revolucionário e democrático da nação contra o negacionismo cultural e histórico dos estados-nação que não conseguem transcender o seu papel enquanto agentes da modernidade ocidental.

8 - Sistema de Autodefesa

Todas as espécies de seres vivos têm sistemas de defesa próprios. Não há uma única espécie indefesa. Na verdade, é possível interpretar a resistência demonstrada por cada elemento ou partícula no universo para proteger sua existência como autodefesa.

O mesmo sistema é mais do que válido para as espécies humanas e para as sociedades. A defesa em espécies humanas é tão social quanto biológica. A defesa biológica é realizada pelos instintos defensivos de cada organismo vivo. Na defesa social, como sempre, todos os indivíduos da comunidade se defendem coletivamente. Além disso, o número de comunidades e a sua forma organizativa mudam constantemente de acordo com os meios de defesa. A defesa é uma função essencial da sociedade. A vida não pode ser mantida sem ela.

Outra conclusão importante que podemos tirar dos mecanismos de autodefesa dos organismos vivos é que esta defesa se destina apenas à proteção da sua existência. Não estabelecem sistemas de dominação e colonização sobre a sua própria espécie ou sobre qualquer outra espécie. Os sistemas de dominação e exploração foram desenvolvidos pela primeira vez pela espécie humana. O desenvolvimento mental da espécie humana que resultou em possibilidades de exploração e, em conexão com isto, na concretização de excedentes desempenha um papel nisto. Esta situação leva a proteger a sua existência juntamente com a defesa dos valores do trabalho, por outras palavras, as guerras sociais.

Quando vemos as coisas da perspetiva da sociedade democrática, temos de sublinhar o seguinte: quando falamos de autodefesa e não de uma posição militar ou de uma organização armada, o que queremos dizer é a organização da sociedade para se proteger em todos os domínios e para que ela lute com base nestas organizações. Dito isto, a fim de combater os ataques do sistema estatista contra a sociedade e proteger a sociedade, organizações militares também podem ser necessárias, para defender a sociedade em toda a sua diversidade. E isto pode ser considerado como legítima defesa. Mas este tipo de organização militar, organizada desta forma, que serve para proteger a sociedade e a sua reorganização, também não pode ser avaliada meramente como uma organização militar. A função das forças militares ao serviço da sociedade, as forças fundamentais de autodefesa, consiste em desempenhar o papel de catalisador para acelerar e proteger a luta da sociedade democrática. As forças militares que se afastem destas funções não conseguem evitar ser transformadas numa força ofensiva que é um instrumento de forças hegemônicas.

A autodefesa não estipula apenas uma estrutura armada; embora não rejeite o uso da força quando necessário, não pode ser vista apenas como uma estrutura armada. Representa a organização da sociedade em todas as esferas e em relação à sua própria identidade e vida: as decisões tomadas para o efeito refletem a vontade própria da sociedade e são implementadas sob o seu comando. Valores que pertenciam ao povo e ao país, mas foram usurpados pelas potências colonialistas, são recuperados e devolvidos aos valores sociais num ato de autodefesa. A sociedade deve alcançar uma posição em que possa proteger os seus valores e recuperar os seus direitos usurpados de modo a poder governar-se a si mesma.. É assim que se cria uma nação democrática.

Um mecanismo de autodefesa para as mulheres, enquanto o segmento mais oprimido e suprimido da sociedade, é também de extrema importância. Sob o sistema patriarcal todos os direitos das mulheres foram usurpados. As mulheres podem contornar estas políticas de degradação, assédio, violação e matança através da formação dos seus próprios mecanismos de autodefesa. Por esta razão, têm de aprender a sua história, criar as suas próprias organizações e instituições, esculpir espaço para si em todas as áreas da vida e, se necessário, criar as suas próprias forças militares.

Um tópico importante e indispensável no programa da KCK para a construção de uma nação democrática é como a autodefesa vai estar ligada a uma sistemática permanente. Os estados-nação, que são o único e exclusivo monopólio armado, serão impiedosos se tiverem a oportunidade de implementar novas políticas de negação, aniquilação e assimilação. Estas políticas obrigaram a criação de um sistema permanente de autodefesa pela KCK. O requisito mínimo para a coexistência com os estados-nação consiste em garantir constitucionalmente a identidade e a existência curdas. A garantia constitucional não é suficiente: os fundamentos concretos para esta garantia devem ser procurados através de estatutos determinados por lei. Para além da defesa nacional conjunta contra as ameaças externas, a sociedade curda deve satisfazer as suas próprias exigências de segurança. Isto porque uma sociedade só pode garantir a sua segurança interna de acordo com as suas exigências. Por conseguinte, os estados-nação respetivos (os estados-nação centralizados da Turquia, do Irão, do Iraque e da Síria) devem implementar reformas importantes nas suas próprias políticas de segurança interna.

Se não puder ser acordado um compromisso com os estados-nação respetivos, a KCK, com base na proteção unilateral da nação democrática em todas as suas dimensões, deverá tentar organizar o estatuto quantitativo e qualitativo das suas próprias forças de autodefesa de acordo com as novas necessidades.

9 - Diplomacia

Uma das atividades mais desenvolvidas pelo estado-nação é a diplomacia entre estados-nação. A diplomacia descreve atividades de pré-guerra entre estados-nação. Pode até ser definida como a fase preparatória para as guerras na história dos estados-nação. Ao longo da história, sempre houve certos rituais de expressar relações de vizinhança entre diferentes tipos de unidades comunitárias. Estes são considerados muito valiosos. A razão pela qual os estados-nação institucionalizaram esta relação pode ser associada com a tendência de lucro da modernidade capitalista. Se as relações forem mais rentáveis em tempos de paz, então não há necessidade de guerra. A diplomacia serve para alcançar relações lucrativas. Se a tendência do lucro máximo estiver ligada à guerra, então as forças diplomáticas não serão capazes de evitar uma guerra lucrativa, acabando assim com a necessidade de diplomacia. A diplomacia foi reduzida à lógica do lucro; já não tem qualquer ligação com as relações inter-societais com significado que existiram ao longo da história. A diplomacia foi degradada para uma ferramenta manipuladora no jogo das guerras lucrativas entre estados-nação.

A diplomacia da nação democrática deve, em primeiro lugar, criar uma plataforma comum entre as e os curdos, que estão fragmentados e divididos de várias formas. Todas as outras atividades diplomáticas, especialmente aquelas que cada organização deseja desenvolver por si só e de acordo com os seus próprios interesses, fizeram mais mal do que bem e serviram para fragmentar, criar conflitos e dividir as e os curdos. É por esta razão que a criação do Congresso Nacional Democrático é a prioridade mais vital para a diplomacia curda. A diplomacia em que assenta o Estado Federal Iraquiano-Curdo é importante, mas não pode satisfazer as necessidades de todo o povo curdo. Este Estado não tem nem capacidade de atender a esta exigência nem as condições que lhe permitiriam fazê-lo. Uma diplomacia que satisfaça as necessidades de todas e todos os curdos só pode ser desenvolvida através de um Congresso Nacional Democrático. Portanto, a tarefa principal é reunir o Congresso Nacional Democrático e declará-lo como uma organização democrática nacional integrativa permanente. É evidente que, durante algum tempo, as relações e as contradições, tanto ideológica como politicamente, continuarão entre a KCK, ao construir uma nação democrática e o Governo Regional do Curdistão na construção nação-estatista do Iraque. A este respeito, o Congresso Nacional Democrático pode servir como uma organização coordenadora orientada para a solução.

A diplomacia, que se volta a tornar num instrumento de paz e solidariedade, bem como de intercâmbios criativos entre sociedades, trata essencialmente com a solução de problemas. A diplomacia da nação democrática é uma ferramenta para a paz e para relações benéficas, não para as guerras. Simboliza uma missão em que os sábios desempenham um papel e que tem elevados valores éticos e políticos. Desempenha um papel importante no desenvolvimento e manutenção de processos bilateralmente benéficos e de relações amigáveis, especialmente entre povos vizinhos e comunidades relacionadas. É a força construtiva das sociabilidades comuns e a síntese das sociedades a níveis mais elevados. A diplomacia da nação democrática pode desempenhar um papel duradouro e fornecer soluções no contexto da modernidade democrática entre os povos e as nações do Médio Oriente que enfrentaram o caos e o conflito devido à diplomacia do estado-nação. A união global das nações democráticas, como alternativa à ONU, é a Confederação Mundial das Nações Democráticas. Os continentes e as grandes regiões culturais podem formar também as suas próprias Confederações de Nações Democráticas.

6. BUSCAR A SOLUÇÃO DA NAÇÃO DEMOCRÁTICA

A construção da nação democrática no Curdistão é a nova expressão histórica e societal da existência curda e da sua vida livre que requer concentração e transformação teórica e prática. Representa uma verdade que requer devoção ao nível do amor verdadeiro. Assim como não há espaço para o falso amor nesta viagem, também não há espaço para viajantes não comprometidos. Nesta viagem, a questão de quando será concluída a construção da nação democrática é redundante. Esta é uma construção que nunca estará terminada : é um processo contínuo. A construção da nação democrática tem a liberdade para se recriar a cada instante. Em termos societais, não pode haver utopia ou realidade que seja mais ambiciosa do que esta. De acordo com a sua realidade histórica e social, as e os curdos voltaram-se vigorosamente para a construção de uma nação democrática. Na verdade, eles e elas não perderam nada ao se livrar de um deus estado-nação em que nunca acreditaram; eles estão livres de um fardo pesado, um fardo que os trouxe à beira da aniquilação. Em vez disso, ganharam a oportunidade de se tornarem uma nação democrática.

As e os curdos, como indivíduos e como sociedade, devem conceber, internalizar e implementar a construção de uma nação democrática como a síntese de todas as expressões da verdade e da resistência ao longo da sua história, incluindo as mais antigas crenças em deusas, o zoroastrismo e o islamismo. As verdades que todos os ensinamentos mitológicos, religiosos e filosóficos passados, bem como as ciências sociais contemporâneas, têm tentado ensinar e que todas as guerras de resistência e rebeliões têm tentado individualmente e de forma coletiva expressar estão representadas na mente e no corpo da construção de uma nação democrática. Foi esta realidade e a sua expressão como verdade que foi o meu ponto de partida, não só às vezes quando eu me recriei, mas especialmente ao chegar ao presente enquanto tentava recriar-me quase a cada instante. Desta forma, socializei-me livremente e concretizei isto como nação democrática (num contexto curdo), apresentando-a como modernidade democrática a toda a humanidade, aos povos oprimidos e aos indivíduos do Médio Oriente.

É evidente que é necessário tomar cuidado para evitar o liberalismo — visto que este tantas vezes se fez ao longo da sua história — desde degenerar e dissolver estas tendências positivas de democratização sob a sua própria hegemonia ideológica e material. A tarefa mais estratégica é unificar não só todos os adversários do sistema, mas também o fluxo da sociedade histórico-social em todas as suas formações políticas urbanistas, locais e regionais numa nova estrutura ideológica e política. A este respeito, interligado com um trabalho teórico abrangente que deve ser retomado, é necessário desenvolver um programa e estruturas de organização e ação. As condições no século XXI são propícias para evitar o destino das estruturas confederais que foram eliminadas pelos estados-nação em meados do século XIX e para alcançar a vitória do confederalismo democrático. Para a modernidade democrática sair da depressão sustentada, que é a depressão mais profunda e duradoura, sustentada apenas através da gestão de crises durante a era do capital financeiro da modernidade, a capacidade de ter sucesso nos deveres intelectuais, morais e políticos de reconstrução nunca tinha tido um significado tão vital.

7. CONCLUSÃO

Nesse caso, se novos partidos pela liberdade e igualdade querem ser consistentes, então devem desenvolver políticas e formas sociais que não estejam centradas em torno do Estado. A alternativa ao Estado é a democracia. Todos os caminhos — além da democracia — que foram tentados em esforços para combater o Estado não chegaram a nada. Contrariamente à crença popular, a democracia não é uma forma de Estado capitalista. Além disso, nada além da democracia pode restringir o Estado e mantê-lo dentro da lei. Derrubar um Estado não significa que se tenha superado a cultura do Estado. Pode sempre ser criado um novo para preencher o vácuo. Somente a democracia compartilha a mesma área com o Estado; ao restringir o Estado, amplia a esfera de liberdade da sociedade. Pode, assim, promover um pouco mais a igualdade, reduzindo o número de valores apropriados.

Portanto, podemos definir a democracia como sendo a auto-governação de uma sociedade não estatal. Democracia é governança que não é Estado; é o poder das comunidades para se governar a si mesmas sem o Estado. Contrariamente à crença popular, desde a sua formação, a sociedade humana experimentou mais a democracia do que experimentou o Estado. Talvez a situação de de democracia de um país ou de uma nação geral não tenha sido intensamente experienciada. Mas o surgimento da existência da sociedade é comunal e democrático. Sem a comunalidade, ou na ausência de um reflexo democrático, é impossível que uma sociedade seja governada exclusivamente pelo Estado. O Estado só pode governar ao crescerà custa da comunalidade e da democracia. Os fundamentos dos quais o Estado se ergue e sobre os quais prospera são a comunalidade da sociedade — a necessidade de coexistência — e a postura democrática. Existe uma relação dialética entre os dois. Portanto, quando a sociedade e a civilização se encontram, a principal contradição está entre o Estado e a democracia. Menos de um é mais do outro. A democracia plena é a ausência de Estado. A soberania total do Estado é a negação da democracia. Os Estados só podem ser derrubados por Estados; a democracia não derruba o Estado; pode apenas abrir caminho para um novo Estado, como fez o socialismo real. Desta forma, a função fundamental da democracia torna-se evidente. Só pode aumentar as oportunidades de liberdade e igualdade restringindo o Estado, tornando-o menor e aparando os seus tentáculos sobre a sociedade. No final do processo, talvez o Estado se torne redundante e se dissolva. A conclusão que tiramos disto é que a relação entre o Estado e a democracia não é de um derrubar o outro, mas de transcendência.

O que estou a tentar mostrar com esta breve análise é que a nossa visão de mundo continha um erro fundamental desde o começo por ser um partido orientado para o Estado. Estes partidos, quer formem um Estado quer não, não podem alcançar os seus objetivos de democracia, liberdade e igualdade através da formação de um Estado. Sem se desviar deste caminho, não é possível tornar-se um novo partido libertário e igualitário. Em suma, o caminho para se tornar um partido democrático e socialista é assegurar a renovação fazendo a transição na teoria, programa, estratégia e táticas orientadas para o Estado. Há necessidade de uma teoria, programa, estratégia e tática socialista democrática não orientada pelo Estado. Se a autocrítica se desenvolver neste contexto, será significante. Caso contrário, os métodos antigos persistirão sob o disfarce dos novos. O Estado do socialismo real, da social-democracia e dos partidos de libertação nacional é suficiente para provar esta realidade.

Tal como aconteceu muitas vezes ao longo da história entre forças civilizacionais e forças democráticas, as forças capitalistas da modernidade e as forças democráticas da modernidade podem aceitar a existência e a identidade uma da outra e podem coexistir pacificamente com base no reconhecimento de administrações autónomas e democráticas. Neste âmbito e nestas condições, dentro e fora das fronteiras de um estado-nação, as formações políticas confederais democráticas podem coexistir pacificamente com formações do estado-nação.

Tentei entender e analisar de forma abrangente a proposição de que, enquanto a modernidade capitalista sobreviver sob a base do capitalismo, do industrialismo e do nação-estatismo, a modernidade democrática só pode surgir através da comunalidade democrática, da indústria ecológica e de uma nação democrática. Defini a comunidade democrática não como o igualitarismo de uma sociedade homogênea, mas como qualquer tipo de comunidade (das mulheres comunidades de mulheres às comunidades de homens, do desporto e das artes à indústria, dos intelectuais aos pastores, das tribos às corporações, das famílias às nações, das aldeias às cidades, das localidades à universalidade e do clã para qualquer tipo de sociedade global) de qualquer tamanho. Defini comunidades ecológicas como comunidades nas quais a sociedade industrial ecológica, a sociedade agrícola das aldeias e a sociedade industrial das cidades se alimentam mutuamente e estão estritamente alinhadas com a ecologia. Por outro lado, defini também a nação democrática. É um novo tipo de nação que engloba todas as entidades culturais desde a etnia à religião; das comunidades urbanas, locais, regionais às nacionais formadas por meio de formações políticas autónomas democráticas e a sua principal forma política, as implementações confederais democráticas. Mais precisamente, em oposição aos monstros nação-estatistas, a nação democrática é uma nação que tem formações multi-políticas, identidades múltiplas e é multicultural.

À medida que tentamos analisar os 5.000 anos da história civilizacional em termos dos dois polos conflitantes, entendemos que estes dois polos continuarão a coexistir por algum tempo. A erradicação de um dos polos pelo outro não é previsível num futuro próximo. Além disso, dialeticamente isto não parece realista. A precipitação do socialismo real a este respeito e a sua tentativa de experimentar o seu próprio sistema sem primeiro analisar a civilização e a modernidade resultaram na sua própria dissolução. O importante é ter em conta esta bipolaridade em todo o trabalho teórico e prático, e desenvolver continuamente a civilização e a modernidade democráticas no cotidiano e através de um novo trabalho construtivo. Quanto mais desenvolvermos o nosso sistema através de métodos revolucionários e evolutivos, mais poderemos resolver positivamente os problemas de tempo e de espaço e tornar a solução permanente. A modernidade democrática como sistema, incluindo os seus elementos fundamentais, é bem adequada para a verdadeira paz. A nação democrática, com a sua clara capacidade de criar soluções desde a mais pequena comunidade nacional até uma nação mundial, oferece uma opção de paz muito valiosa.

O importante é institucionalizar a identidade comunitária e democrática, o que é também historicamente a posição fundamental dos povos, com a ciência contemporânea e com os recursos tecnológicos através da sua unificação. Para ter uma estrutura social mais democrática, libertada e ecológica, é necessário sobretudo uma nova estrutura das ciências sociais. Não se deve esquecer que a componente mais abrangente e permanente da democratização é a liberdade das mulheres. Sem a realização da igualdade social de género, nenhuma exigência de liberdade ou de igualdade pode ser significativa ou concretizada.

Hoje em dia, a democracia é necessária, tal como o pão, o ar e a água, mas em nenhum lado mais do que para os povos do Médio Oriente. Não há outra opção senão a democracia — todas as outras foram testadas ao longo da história — que tenha a capacidade de trazer felicidade ao povo. As e os curdos estão na vanguarda destes povos. Se conseguirem mobilizar com êxito a sua geografia, o seu tempo histórico e as suas características sociais — todas elas constituídas por elementos estratégicos significativos — a favor da civilização democrática no Médio Oriente, terão feito o maior bem para as e os seus vizinhos e para a humanidade. O que levámos a cabo foi um esboço para esta nobre e excitante tarefa.

SOBRE O AUTOR

Abdullah Öcalan, nascido em 1949, estudou ciências políticas em Ancara. Liderou ativamente a luta de libertação curda como dirigente do PKK desde a sua fundação em 1978 até ao seu sequestro a 15 de fevereiro de 1999. É considerado um estrategista proeminente e um dos mais importantes representantes políticos do povo curdo.

Em condições de isolamento na Prisão da Ilha de Imrali, Öcalan escreveu mais de dez livros, que revolucionaram a política curda. Iniciou várias vezes cessar-fogo unilateral da guerrilha e apresentou propostas construtivas para uma solução política para a questão curda.

O chamado “processo de paz” começou em 2009, quando o Estado turco respondeu ao apelo de Öcalan para resolver politicamente a questão curda. Este processo foi quebrado em abril de 2015, quando o Estado turco encerrou unilateralmente as negociações e voltou a uma política de aniquilação e negação.

Desde 27 de julho de 2011, Öcalan tem estado novamente detido em quase total isolamento na Prisão da Ilha de Imrali. Desde 5 de abril de 2015, toda a prisão foi completamente desconectada do resto do mundo.

SOBRE A INICIATIVA INTERNACIONAL

Dia 15 de Fevereiro de 1999, o Presidente do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, Abdullah Öcalan, foi entregue à República da Turquia na sequência de uma operação clandestina apoiada por uma aliança de serviços secretos dirigida pelos respectivos governos. Repugnados com esta escandalosa violação do direito internacional, vários intelectuais e representantes de organizações civis lançaram uma iniciativa que apelava à libertação de Abdullah Öcalan. Com a abertura de um escritório central de coordenação em março de 1999, a Iniciativa Internacional “Liberdade para Abdullah Öcalan — Paz no Curdistão” iniciou o seu trabalho.

A Iniciativa Internacional considera-se uma iniciativa de paz multinacional que visa uma solução pacífica e democrática para a questão curda. Mesmo depois de longos anos de prisão, Abdullah Öcalan continua a ser considerado um líder indiscutível pela maioria do povo curdo. Assim, a solução da questão curda na Turquia estará estreitamente ligada ao seu destino. Enquanto principal arquiteto do processo de paz, ele é visto por todas as partes como a chave para a sua conclusão bem sucedida, o que coloca a liberdade de Öcalan cada vez mais firme na ordem do dia.

A Iniciativa Internacional está empenhada em desempenhar o seu papel nesse sentido. Faz isto através da divulgação de informações objetivas, lobbying e trabalho de relações públicas, incluindo a organização de campanhas. Ao publicar traduções dos textos de prisão de Öcalan, espera contribuir para uma melhor compreensão das origens dos conflitos e das possíveis soluções.


Publicado por: Iniciativa Internacional “Liberdade para Abdullah Öcalan — Paz no Curdistão”