#title revista trans-libertária, n. 1 (2024)
#author acervo digital trans-anarquista
#date 2024
#source Adquirido em 19/06/2025 de [[https://transanarquismo.noblogs.org/revista-trans-libertaria-v-1-2024/][transanarquismo.noblogs.org]]
#lang pt
#pubdate 2025-06-19T22:16:43
#topics trans-anarquismo, anarcafeminismo, anarquismo queer
Dedicamos essa edição à memória de
Cássia Siqueira Figueiredo.
A capa da edição homenageia sua obra “Dias”, lançada em 2015, que pode ser encontrada em seu perfil na plataforma “BandCamp”.
“Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os tomadores de almas, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos terrores íntimos. A longa lamentação universal sobre a vida: a falta-de-ser que é a vida... Por mais que se diga "dancemos", não se fica alegre. Por mais que se diga "que infelicidade a morte", teria sido preciso viver para ter alguma coisa a perder. Os doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio. Tudo é caso de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência.”
Trecho de Deleuze em “Diálogos”, páginas 50 e 51. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. Publicado pela editora Escuta em 1998.
“À revelia do mundo, eu as convoco a viver apesar de tudo. Na radicalidade do impossível. Aqui, onde todas as portas estão fechadas, e por isso mesmo somos levadas a conhecer o mapa das brechas. Aqui, onde a noite infinita já não nos assusta, porque nossos olhares comungam com o escuro e com a indefinição das formas. Aqui, onde apenas morremos quando precisamos recriar nossos corpos e vidas. Aqui, onde os cálculos da política falham em atualizar suas totalizações. Aqui, onde não somos a promessa, mas o milagre. Aqui, onde não nos cabe salvar o mundo, o Brasil ou o que quer que seja. Onde nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras e manifestam, com sua dissonância, dimensões e modalidades de mundo que nos recusamos a entregar ao poder. Aqui. Aqui ainda.”
Trecho de Jota Mombaça, em “Ñ Ṽ NOS MATAR AGORA”, página 14. Publicado pela editora Cobogó em 2021.
** APRESENTAÇÃO
com bastante satisfação, apresentamos a primeira edição da revista trans-libertária!
organizar essa revista é uma empreitada, uma iniciativa que corresponde a sentimentos tanto de entusiasmo como de aflição. nosso contato com o que se pode entender por perspectivas trans-anarquistas não é recente, embora algumas nomenclaturas nos pareçam quase inéditas. como escrevemos na apresentação do acervo trans-anarquista, onde essa edição fica hospedada, podemos entender perspectivas trans-anarquistas como um conjunto de movimentos libertários, trans, cuir/queer e transfeministas contrários às normatividades institucionais da modernidade e que se movimentam de modo transversal em relação às diferentes formas de violência que atravessam diferentes grupos. é uma definição bastante ampla, e não consideramos isso prejudicial.
algo que percebemos em inúmeras coletividades – anarquistas, libertárias ou o que quer que sejam – é uma espécie de isolamento discursivo que nos impede, descaradamente ou não, de traduzir nossos incômodos em palavras. é um regime linguístico que não nos oferece vocabulário para designar o que sentimos, porque se espera que não interpretemos, que não falemos sobre, que nos contentemos com a fixidez de categorias que não dão conta de nossas existências, de nossos corpos e desejos. nada mais justo, então, do que nos apropriarmos da linguagem e de criarmos a nossa própria. mas como criar uma outra língua se nossa musculatura foi forjada nesse mundo violento? como não corresponder àquilo que nos fere? uma de nossas feridas se refere à petulância acadêmica de tentar dar conta de tudo; uma petulância que se outorga a capacidade de determinar a verdade sobre si e sobre os outros. tantos acadêmicos estudam sobre gênero, violência e discriminação, escrevem sobre isso, analisam casos e narrativas, mas quantos deles identificam processos de violência que ocorrem diante de seus olhos? quantos estudam aquilo que fica nas entrelinhas, as normatividades, as formas de dominação, as instituições, e não percebem, ou fingem que não percebem, atos de transfobia, racismo, capacitismo ou misoginia subsumidos, subentendidos?
é doloroso não conseguir falar, mas é pior quando precisamos falar sozinhes; quando não temos quem fale conosco; quando temos de lidar com o silêncio dos outros – em outras palavras, com sua não-assumida conivência. é um silêncio geralmente respaldado por muitas justificativas. a mesma violência presente no silêncio é aquela que nos convence de que não há nada de errado acontecendo; é aquela que naturaliza o constrangimento do "outro", que transforma a diferença em um antagonismo radical; que concentra seus esforços em políticas do aniquilamento. reconhecer o teor violento desse silêncio, ainda mais em meios que se dizem libertários, pode ser um dos caminhos para romper com ele.
não por acaso, algo bastante presente na literatura trans-anarquista – e não só – é o desabafo. muitos textos começam a partir de desabafos e se desenrolam em torno da necessidade de externalizar incômodos. e a responsabilidade por explicar que o movimento social não é menos normativo que qualquer outro espaço recai justamente sobre quem já não aguenta mais ter que falar. como lidar com as cumplicidades cisgêneras, brancas e normativas que estruturam as conversas? como estar no movimento social se nossos corpos não são realmente bem-vindos? como constranger os olhares normativos sem ter que se dar ao trabalho cansativo e desgastante de explicar – e explicar, e explicar, e explicar?
o que motiva a organização tanto do acervo trans-anarquista como da revista trans-libertária é o desejo persistente de tensionar – tensionar um anarquismo contraditoriamente conservador, que resiste a reconhecer suas normatividades e centralizações; tensionar os movimentos trans assimilacionistas, que resistem a reconhecer a captura do capitalismo, do pink money, de políticas partidárias; tensionar toda e qualquer pretensão de universalidade; tensionar as palavras que empregamos para dar conta de nossas existências.
repetimos novamente aquilo que escrevemos no acervo: longe de recorrermos a essencialismos, ou de afirmarmos que ser trans é ser anarquista, entendemos, como escreveu Audre Lorde, que “as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande”. a emancipação de corpos subalternizados jamais será uma concessão das instituições que nos subalternizam. como forma de responder a isso, em junho de 2024 abrimos chamada para recebimento de materiais que tratem de trans-anarquismo, anarquismo cuir/queer, transfeminismo libertário, anarcofeminismo, e outros eixos de discussão que produzam, ou evidenciem, zonas de tensão. nossa expectativa é que isso contribua, de alguma forma e na medida do [im]possível, para a ampliação de diálogos, para a externalização de incômodos, para que consigamos nos identificar ou desidentificar com o que é trazido aqui, para que não adoeçamos – ou melhor, para que criemos vida: que não precisemos falar sozinhes; que, por um lado, reconheçamos a violência do silêncio e, por outro, que incorporemos o antagonismo radical, que incorporemos a ameaça. “Vivemos em um mundo desagradável”, escreveu Deleuze, e Mombaça nos convoca “a viver apesar de tudo. Na radicalidade do impossível”.
que possamos pensar em outras formas de vida onde nossas vidas sejam possíveis.
nessa edição, as lindas artes de Antonio Cleyton Ferreira Silva[1] abrem o caminho para o texto de Madelyyna Zicqua, Luta trans e anarquismo queer: rompendo os dogmas transfeministas para a liberação total. esse texto, publicado originalmente em espanhol em 2021, foi traduzido pela equipe da revista trans-libertária. nas palavras de Zicqua, “apresento uma abordagem anarcofeminista queer da luta trans como um meio termo entre o patriarcado e a liberação total dos estilos de vida por meio da abolição do gênero”.
seguimos para a arte de Bartô Haviláh em homenagem à vida de Matheusa Passarelli, que deve estar sempre em nossa memória e em nossos corações.
o ensaio de Agnes de Oliveira, “Combinamos de não morrer, precisávamos também que eles tivessem combinado de não nos matar” notas sobre a violência total cisheterossexual, nos oferece uma perspectiva crítica sobre cisheteronormatividade, transfobia e violência do estado. em suas palavras, “a morte de cada uma das pessoas dissidentes é um pouco a nossa, daquelas que sobrevivem”.
por sua vez, Luz Costa nos apresenta duas artes, Lute como um boyceta e Cura cis, que são interpeladas por seu texto Sistema, saúde e fabricação de corpos. em suas palavras, “Eu não quero ser outro corpo mecânico padronizado e capitalizado, tampouco sou contra aplicação de hormônios. Desejo aplicá-los com a autonomia de não depender desses maquinários midiáticos, corrosivos, que perpetuam das mesmas violências eugênicas”.
Iara Lemos Silva nos traz seu poema Laços de sangue, em que narra com bastante sensibilidade aquilo que muites de nós enfrentamos em nossas famílias.
então, agradecemos a todes que nos enviaram seus materiais, que confiaram em nossa iniciativa e que decidiram compartilhar aqui um pouco de suas narrativas e de seus olhares sobre o mundo. esperamos que essa edição seja somente a primeira de várias e que consigamos organizar um espaço acolhedor de divulgação, difusão e criação de diálogos. desejamos uma boa apreciação dos materiais que se seguem.
** ANTONIO CLEYTON FERREIRA SILVA
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** LUTA TRANS E ANARQUISMO QUEER: ROMPENDO OS DOGMAS (TRANS)FEMINISTAS PARA A LIBERAÇÃO TOTAL[2]
Madelyyna Zicqua
tradução por revista trans-libertária / acervo trans-anarquista
A natureza radical do pensamento anarquista implica, dentre muitas outras coisas, a capacidade de autocrítica permanente, tanto nas esferas teóricas quanto naquelas que se referem à nossa prática cotidiana. Sendo assim, pode até ser violento para algumas pessoas provenientes do feminismo e das dissidências militantes questionar a validade de conceitos que se enraizaram tão profundamente em nossa visão política de mundo ao ponto de algumas identidades terem sido moldadas em torno deles.
Neste trabalho, apresento uma abordagem anarcofeminista queer da luta trans como um meio termo entre o patriarcado e a liberação total dos estilos de vida por meio da abolição do gênero. Em seguida, questionarei a validade de conceitos como sexo, gênero, identidade de gênero e expressão de gênero.
*** O GÊNERO E O SEXO COMO CONSTRUÇÕES SOCIAIS
O senso comum dos liberais e progressistas atualmente nos dá uma visão bastante clara de como entender certas noções ligadas ao “feminismo” e às “questões de diversidade sexual”: o sexo refere-se a uma realidade biológica que os indivíduos encarnam de forma binária (masculino/feminino) e o gênero consiste, do ponto de vista dos indivíduos, em um conjunto de práticas, atitudes, imaginários e autopercepções. Do ponto de vista do gênero de uma pessoa, de acordo com a abordagem contemporânea, podemos distinguir a identidade de gênero, por um lado, e a expressão de gênero, por outro. Do lado da cultura, o gênero ofereceria em nosso mundo ocidental do século XXI dois gêneros, feminino e masculino, que preenchem uma lacuna tanto na identidade quanto na expressão de gênero. Assim, por exemplo, pode haver uma pessoa do sexo masculino, cuja identidade de gênero é feminina e a expressão de gênero é masculina, e assim por diante, em várias combinações.
O estabelecimento desse tipo de narrativa em canais do grande público permitiu a dignidade, o respeito e a segurança de muitas pessoas da comunidade trans, uma comunidade que foi historicamente perseguida e marginalizada até os dias de hoje. No entanto, é necessário questionar se essas histórias não favorecem novas opressões e se estão a meio caminho da busca pela liberação total. E, por outro lado, se essa narrativa não decorre de uma excessiva despolitização da luta trans, perdendo de vista os conflitos causados por um patriarcado que cria categorias justamente com o objetivo de oprimir. Talvez os conceitos que antes eram úteis para entender os fenômenos e construir a luta não sejam mais úteis para avançar em conquistas de maior alcance.
A primeira distinção com a qual devemos romper, e essa já é a herança da teoria queer histórica, é a distinção entre sexo e gênero. Ao contrário dos conservadores e das feministas radicais que defendem uma base biológica, objetiva e inamovível do sexo em oposição ao gênero, precisamos entender por que o sexo faz parte do gênero e, portanto, ambos são construções sociais. Mas para falar com propriedade sobre construções sociais é preciso ter uma perspectiva sobre as construções sociais que faça sentido para o entendimento que as ciências sociais e nossa vida cotidiana têm delas.
As categorias sociais, de qualquer tipo, sejam elas “cadeira”, “bombeiro”, “milionário” etc., possuem uma normatividade. Essa normatividade consiste em um conjunto de regras que os indivíduos carregam (nem sempre conscientemente) e que lhes permite identificar que o objeto à sua frente é de fato o que é, e não qualquer outro. Assim, por exemplo, identifico que esse objeto é uma cadeira porque tem um determinado formato e pode ser usado para sentar, etc.
A normatividade inerente a qualquer cultura em todos os seus âmbitos emprega formas habituais e comuns sobre como as coisas são. Isso não é pernicioso em si; na verdade, é essencial que haja um conjunto de maneiras típicas que nos digam como as coisas são, de modo que as práticas de nossa vida diária possam ser programadas e planejadas de forma mais ou menos rigorosa e fundamentada. Se não tivéssemos regras, por exemplo, que nos permitissem identificar o que é comestível do que é venenoso, a humanidade já teria desaparecido prontamente. Além disso, entendemos que tais regras têm uma origem histórica e que a estabilidade dessas regras está sujeita à discrição daqueles que compõem a comunidade. A normatividade da cultura, essas regras, torna-se problemática, entretanto, quando certas normas, certos imaginários, certas exigências, certos costumes interferem no bem-estar ou na liberdade das pessoas e se tornam mecanismos de dominação, opressão e discriminação. Sexo e gênero se enquadram nessa descrição.
O gênero do ponto de vista da cultura (ou seja, a norma social, não “o gênero de um indivíduo”), e aqui estamos necessariamente pensando dentro dos critérios da cultura patriarcal contra a qual estamos lutando, oferece uma série de critérios comuns por meio dos quais os indivíduos podem identificar quem é de fato “homem” ou “mulher”. Ser um “homem” ou uma “mulher” consistiria em um acúmulo de características e predicados que, quando reunidos de forma mais ou menos adequada, nos permitem dizer com maior ou menor dúvida que a pessoa à nossa frente é um homem ou uma mulher. Essas características são muito variadas e, ao examinarmos as normas sociais, percebemos que elas estão em coisas como roupas, um determinado tipo de corpo, um determinado papel na família, um determinado tom de voz, uma determinada vocação preferida, uma determinada maneira de expressar emoções, etc., etc.
Como Judith Butler observa em Problemas de Gênero[3], o gênero tem um caráter eminentemente performativo: o gênero é representado e desempenhado em público precisamente de acordo com essas regras sociais. Só se pertence a um gênero, novamente, raciocinando a partir da lógica patriarcal, quando uma pessoa se apresenta em público personificando uma quantidade razoável de predicados de gênero e é reconhecida como parte desse gênero. É dessa forma que, em nossa vida cotidiana, nos orientamos para designar “homens” e “mulheres”.
Aqui temos que observar que a separação entre gênero e sexo como componente biológico não se justifica porque os elementos que compõem o chamado “sexo biológico” muitas vezes servem de critério para identificar o gênero de uma pessoa. No imaginário patriarcal, um homem ou uma mulher são considerados como tendo um papel, vestindo-se de uma determinada maneira, tendo um determinado tipo de corpo e também tendo determinados órgãos genitais e cromossomos: a categoria social pensa no sexo e no gênero como uma unidade: macho, nesse contexto patriarcal, é o mesmo que homem. As características biológicas têm uma preeminência especial na normatividade do gênero, mas essa preeminência também tem uma natureza social: o fato de certas coisas serem estabelecidas como particularmente relevantes ou não também é uma arbitrariedade da cultura construída historicamente.
Por acaso o sexo biológico não seria uma realidade material inamovível? Na verdade, não. O chamado sexo biológico é uma categoria abstrata, social e, portanto, arbitrária, que reúne, de maneiras às vezes obscuras, um conjunto de critérios para estabelecer o que é masculino e o que é feminino. Anne Fausto-Sterling mostrou isso de forma particularmente sofisticada em Cuerpos sexuados[4]. O que enfatiza o caráter arbitrário do conceito é que pode haver critérios baseados em cromossomos, critérios baseados em genitália, critérios baseados em hormônios, e nunca fica claro qual é realmente preeminente dentro do sexo biológico, especialmente porque esses três critérios geralmente tendem a não ser unívocos. Novamente, nos deparamos com as fronteiras da categoria de sexo e gênero: quais elementos da aparência física são realmente pertencentes ao sexo e quais são pertencentes ao gênero – a voz, o formato dos quadris, uma certa suavidade da pele, um certo volume de cabelo, o comprimento dos dedos indicadores, o comprimento dos dedos dos pés, o volume das glândulas mamárias, o tamanho do gluteus maximus ou do pomo de Adão – essas coisas pertencem ao sexo ou ao gênero?
A tentativa de preservar essas categorias torna-se ainda mais difícil quando nos deparamos com a forma como a sociedade trata as aneuploidias sexuais. Uma pessoa com aneuploidia sexual é aquela cujos cromossomos sexuais são anômalos em relação aos usuais XX e XY, gerando várias síndromes que, no entanto, ainda permitem que o indivíduo viva. Uma pessoa que tenha decidido, de forma completamente arbitrária, sugerir que os sexos se baseiam única e exclusivamente nos cromossomos terá de lidar com dois fatos bastante interessantes. Em primeiro lugar, ela terá de presumir que existem vários sexos, não apenas masculino e feminino, com base nos casos de aneuploidia sexual (dos quais há pelo menos 50 possibilidades) e, em segundo lugar, terá de presumir que o sexo das pessoas é algo que só pode ser descoberto por meio de análise genética, porque não há outra maneira de acessar o conteúdo dos cromossomos sexuais. Entretanto, uma pessoa que age dessa forma seria movida por motivos ideológicos, porque a questão na vida cotidiana é diferente. O que acontece, por exemplo, com uma pessoa com síndrome de Klinefelter (XXY)? De um ponto de vista estritamente cromossômico, essa pessoa não é nem homem (XY) nem mulher (XX). Entretanto, ao ingressar na cultura, essas pessoas normalmente são socializadas como homens. Por quê? Porque, quando crescem, apresentam aspectos convencionalmente associados ao que nossa normatividade de gênero nos diz que um homem é (por exemplo, ter um pênis (embora muitas vezes atrofiado)). Aqui, uma guerra pode ser travada entre pessoas ideologicamente mais inclinadas a estabelecer que o critério hegemônico para definir o sexo é a genitália e não os cromossomos. Com efeito, a biologia, como ciência empírica dos fatos, pode determinar uma série de questões. A biologia pode dizer quais são os cromossomos sexuais de uma pessoa, pode descrever sua genitália e sua infraestrutura reprodutiva, pode explicar seus níveis de diferentes hormônios e uma série de outros dados fisiológicos. Em que ponto o sexo aparece? Em lugar nenhum! O sexo é uma categoria que seleciona arbitrariamente algumas dessas descobertas biológicas, cola-as (com uma cola que, em muitos casos, não consegue colá-las bem), cria novas categorias, universaliza-as e presume que elas podem ser atribuídas a todos os indivíduos. Mas como a categoria não deixa de ser social e não deixa de estabelecer regras para a identificação sexual dos indivíduos, uma vez que na cultura patriarcal a distinção entre sexo e gênero não existe, ela mesma é absorvida pelo gênero. Essa é a razão, aliás, pela qual muitos textos anarquistas queer usam a expressão “sexo/gênero” como uma unidade[5].
Embora essas conclusões possam ser um pouco desconcertantes, porque desafiam os conceitos com os quais muitas pessoas ingressam na teoria feminista, elas nos permitem entender a luta trans de forma mais profunda e, de fato, mais franca. A luta política diária na qual pessoas pró-trans e anti-trans se envolvem, ou seja, “ela [uma mulher trans] é uma mulher de verdade” e “não, ela é um homem”, revela que a normatividade de gênero tem sido tão elusiva para nós que não conseguimos oferecer boas ferramentas para defender a causa trans. A normatividade patriarcal, por mais arbitrária e convencional que seja, estabelece critérios para a identificação de gênero, e esses critérios são baseados em uma performatividade específica. Em que consiste a luta trans? Trata-se de mudar esses critérios. Assim como muitas práticas culturais que foram organicamente construídas nas sociedades ao longo de sua história são reveladas como prejudiciais e se faz um apelo explícito para mudá-las, a normatividade patriarcal de gênero deve ter o mesmo destino. A luta trans, que busca acabar com as situações opressivas e prejudiciais causadas pela cultura patriarcal, exige uma mudança na norma: que o único critério realmente válido para estabelecer o gênero de uma pessoa seja sua própria autopercepção ou autoidentificação, ou simplesmente o que melhor lhe convier. O aspecto preeminente e definidor do gênero/sexo é, portanto, a identidade de gênero.
Embora essa análise seja eficiente para entender o estado atual da causa e da luta trans, deve-se observar que ela também revela as limitações, especialmente conceituais, com as quais essa mesma luta foi concebida.
*** RUMO À ABOLIÇÃO DO GÊNERO
O que mais rapidamente vem à mente quando a luta trans é compreendida dessa forma é um fenômeno que aparece à margem: o não-conformismo com as duas categorias que a luta trans eventualmente liberaria para serem de livre identificação. Com efeito, aparecem as chamadas pessoas “não binárias” ou “agênero”; pessoas que, nesse momento específico em que a luta trans alcançou seu objetivo de modificar os critérios e conseguiu passar tudo para a autoidentificação, não se identificam com nenhum dos dois gêneros socialmente disponíveis, nem masculino nem feminino. A luta trans mais tradicional, em suas aspirações de manter o edifício conceitual de sua própria luta, estabeleceu que esses casos devem ser entendidos como gêneros separados. Assim, por exemplo, poderíamos falar que uma pessoa pode se identificar como mulher, homem ou não binária[6].
O que foi descrito até agora constitui uma descrição mais ou menos apropriada do imaginário atual que os esquerdistas progressistas e radicais têm sobre o gênero e a luta trans. Mas temos de observar as limitações no modo como essa luta toma forma. Com efeito, é questionável até que ponto “não binário” designa um gênero se ele é construído apenas pela oposição à identificação com duas categorias preexistentes. Mas, na realidade, as dificuldades que encontramos são muito mais profundas do que poderíamos pensar à primeira vista.
Voltemos ao nosso cenário: a luta trans alcançou seu objetivo e a única coisa relevante para determinar o sexo/gênero de alguém é a identidade de gênero. No entanto, o que devemos nos perguntar nesse contexto é o que significa ser “homem” ou ser “mulher” agora que a autoidentificação é o único critério relevante? Eliminamos todos os elementos performativos do gênero, de modo que a expressão do gênero não desempenhe mais nenhum papel na identificação do gênero de uma pessoa: basicamente, alguém poderia parecer, vestir-se, comportar-se, manifestar-se, expressar-se, etc., de qualquer maneira, e isso não nos diria nada sobre seu gênero. A exterioridade não nos diz nada sobre a interioridade, onde residiria aquilo que é relevante. Mas se esse for o caso, o que significa “mulher” ou “homem” agora? O que faz com que a luta trans, como tem sido pensada até agora, esteja em algum lugar entre a dinâmica patriarcal e a liberação total dos estilos de vida é a suposição de um essencialismo metafísico implícito que agora está se evidenciando para nós. A situação diante de nossos olhos pode sugerir que “homem” e “mulher” são, de fato, conceitos totalmente vazios que designam nada mais do que uma essência oculta, íntima e secreta que está dentro dos indivíduos, mas que não se manifesta de nenhuma maneira específica. Presumir esse essencialismo parece necessário, caso contrário, cairíamos novamente no gênero performativo e, mais uma vez, apareceriam os elementos opressivos envolvidos no fato de alguém se identificar com um gênero e não viver de acordo com as normas sociais pré-estabelecidas que são necessárias para a personificação adequada desse gênero.
No entanto, os resquícios da norma patriarcal permanecem adormecidos, mesmo quando a luta trans atinge seu objetivo. Isso se deve ao fato de que os imaginários predominantes da norma ainda guiam os indivíduos na identificação de si mesmos, senão não haveria explicação para o fato de uma pessoa se designar como não binária, ou mesmo de uma pessoa se identificar como mulher e não como homem ou vice-versa, se esses conceitos não implicam nada em si mesmos. Na verdade, o que a luta trans conseguiu involuntariamente com seu sucesso foi mostrar que a própria categoria de gênero, identidade de gênero e expressão de gênero são categorias não universais e até mesmo dispensáveis. A não-binariedade[7] é a chave. A não-binariedade mostra que a categoria de gênero ainda mantém sua carga performativa e, portanto, a nega. A não-binariedade não é um gênero, é a negação do gênero: é a afirmação de que a auto-expressão é uma expressão da própria pessoa, de sua individualidade e de seu bem-estar. Mas essa conclusão permaneceu implícita na própria luta trans, só tivemos que traçar suas consequências.
Estamos diante do ideal da abolição do gênero, que o anarcofeminismo queer conseguiu construir a partir de seu histórico no transfeminismo e na teoria queer. O que foi refletido até agora já nos deu algumas pistas. Diante da possibilidade permanente de que o gênero implica uma divisão entre aqueles que se sentem à vontade com a norma (em termos de “expressão de gênero”) e aqueles que desejam rejeitá-la, chegamos à consequência mais radical: vamos abolir o gênero como uma categoria social e todos os conceitos implícitos nela. O anarquismo queer, em suas reivindicações para abolir toda hierarquia, autoridade e opressão, entendeu que a categoria de gênero tem, em si, uma origem patriarcal e que, portanto, somente por meio da abolição da própria categoria podemos liberar modos de vida. Com o que se parece a abolição do gênero? Parece com pessoas não binárias: cada pessoa é um critério de si mesma e, portanto, cada pessoa expressa sua própria individualidade por meio de seu corpo, sua expressão, a maneira como fala, a maneira como se veste, seu papel social e sexual, etc. etc. etc. Ao eliminar o gênero, não apenas eliminamos a possibilidade abominável de alguém ouvir o epíteto “pessoas como você não se comportam assim”, mas também eliminamos a possibilidade de uma pessoa ser questionada por qualquer decisão que tome em relação à sua apresentação social. Nesse sentido, nenhuma pessoa trans perde nada: muito pelo contrário; tudo o que se consegue é que cada pessoa, sem exceção, possa viver como achar melhor, independentemente de quão única, rebuscada, errática e inovadora seja a maneira como ela decidiu se apresentar ao mundo.
O que foi dito acima tem como pano de fundo uma teoria anarquista queer sobre o patriarcado que só foi vislumbrada aqui em alguns momentos. Quem ainda estiver cético quanto à abolição do gênero, que anda de mãos dadas com a busca sistemática pela abolição da orientação sexual e da norma gâmica[8], precisa entender que as categorias sexuais não são naturais, mas têm um histórico que pode ser questionado. De fato, o patriarcado, como estrutura de dominação por meio de modos de vida, busca a estabilização, a fixação e a essencialização de ações de acordo com padrões arbitrariamente delimitados para estabelecer o normal e o anormal. Há muita dignidade em reivindicar o anormal, mas a história já nos mostrou que o caminho por meio de tal reivindicação tende a cair na política de identidade liberal e no assimilacionismo, em que alguns elementos hegemônicos dentro da categoria anormal (por exemplo, homens gays brancos de classe média) tornam-se normais, excluindo ainda mais aqueles que estão nas margens e nas interseções da norma[9]. Seguir lutando dentro das categorias patriarcais continua a fazer com que o fluido, o marginal, o etéreo e o mutável tendam à estabilização forçada e à fixação fictícia da palavra. Proliferar dezenas de novos gêneros com base em qualquer minúcia disponível só porque as categorias patriarcais se mostram muito restritas indica que a própria categoria falsifica a experiência que as pessoas têm de si mesmas, e se esforça para sobreviver como uma categoria em extinção por meio de concessões. A cultura, em sua história, possuiu e possuirá múltiplas categorias sociais que são e serão abandonadas[10], e se a luta se conscientizar da importância de tais abandonos em nome da liberação total, a única coisa que se pode esperar é que nossos graus de liberdade aumentem à medida que avançamos.
*** ANEXO: A PSEUDO-ABOLIÇÃO DE GÊNERO DO FEMINISMO RADICAL
O chamado feminismo radical também defendeu o ideal da abolição do gênero, mas é evidente que o mal-entendido de seus expoentes sobre o significado de gênero/sexo não lhes permite chegar a um entendimento adequado das questões. Vamos nos aprofundar brevemente nesse assunto.
É de conhecimento geral que o feminismo radical busca a abolição do gênero, mas não do sexo. Segundo essa teoria, o sexo seria aquela realidade biológica supostamente inamovível e eterna que recebe vários adornos por meio do gênero, mas permanece sempre o mesmo. A propósito, o feminismo radical enfrenta os mesmos problemas para determinar exatamente o que é sexo: se tem a ver com cromossomos ou se tem a ver com genitália ou qualquer outra coisa. De fato, é muito difícil alegar a opressão histórica das mulheres com base no sexo (com o qual as feministas radicais se preocupam muito), se sexo for cromossomos, e se considerarmos que os capadócios, os mongóis e os saduceus não tinham acesso à análise de DNA para determinar quem oprimir. Nesse sentido, o argumento apresentado acima de que o sexo é parte do gênero continua válido para ser usado contra o feminismo radical.
Entretanto, há elementos perniciosos que precisam ser abordados. Com efeito, em nome de evitar o “apagamento das mulheres”, o feminismo radical procura manter a distinção binária baseada no presumido sexo biológico e eliminar os imperativos culturais tradicionalmente associados ao “gênero”. Entretanto, já observamos que a categoria de sexo biológico está longe de ser biológica porque responde, como já foi indicado, a um conjunto caprichoso de descobertas biológicas reunidas de forma fragmentada e conveniente. Se voltarmos à controvérsia entre a luta trans e a normatividade patriarcal associada ao gênero, descobriremos que o feminismo radical se posiciona como um agente adicional na controvérsia: o feminismo radical passou a argumentar que os únicos critérios relevantes para estabelecer a diferença substantiva entre homem e mulher são, por exemplo, a genitália ou os cromossomos. Entendido dessa forma, podemos ver que o feminismo radical não busca abolir o gênero, se por abolir o gênero queremos dizer abolir a categoria. Muito pelo contrário, o que o feminismo radical quer é redefinir o gênero, sob um novo critério, essencialista e fixo, e, portanto, tão patriarcal quanto o anterior. As vantagens que emergem imediatamente a partir da compreensão das lutas feministas como sendo esforços para ressignificar (ou eliminar) a normatividade de gênero - como fizemos até agora - oferecem uma explicação muito simples para a conhecida transfobia do feminismo radical. Como há uma disputa sobre os critérios relevantes, não é de surpreender que o feminismo radical seja estruturalmente incapaz de entender ou de se solidarizar genuinamente com a luta trans, porque, em última análise, há uma disputa irreconciliável sobre a definição de gênero. Entretanto, o que também nos é mostrado de forma primorosa é que o feminismo radical constrói sua teoria com base em um grave mal-entendido sobre o significado de sexo e gênero, e que não aspira realmente à liberação total, mas apenas a defender um grupo restrito de pessoas (as “fêmeas humanas”) com base em um critério arbitrariamente construído tal como o sexo biológico.
É difícil entender exatamente em que se baseia a preocupação das feministas radicais com o “apagamento das mulheres” se ser mulher se baseia em aspectos tão irrelevantes e superficiais como a genitália ou os cromossomos. Se o gênero fosse abolido nos termos do feminismo radical, e a única coisa que distinguisse as categorias sexuais fosse o fato de ter uma vulva ou um pênis, a categoria seria tão supérflua que teríamos de nos perguntar até que ponto estaríamos nos protegendo do “apagamento das mulheres” se ser mulher é tão insignificante em comparação com as profundezas às quais a vida humana pode aspirar. Que mulheres se organizem por serem mulheres seria visto como algo tão absurdo e trivial quanto pessoas que se reunissem por terem cotovelos secos ou por calçarem sapatos de tamanho 38. O apagamento das mulheres aconteceria automaticamente porque, francamente, se ser mulher é isso, quem se importa se você é ou não uma mulher?
Mas não nos enganemos. O feminismo radical considera que o fato de ser uma “mulher biológica” confere um certo status. Muitas hipóteses que analisam as construções poético-simbólicas e ideológicas do feminismo radical podem ser feitas para explicar essa ilusão. O mais provável é que, no fundo, para o feminismo radical, ser mulher implica uma série de coisas além de ter uma vulva: virtudes comportamentais, pureza moral, sociabilidade, destreza, perspicácia, analiticidade, inocência histórica etc. Essa crença pode ser justificada ou está mais próxima das concepções obsoletas que afirmavam virtudes inerentes aos homens por terem um pênis? Você decide.
tradução por revista trans-libertária / acervo trans-anarquista
transanarquismo.noblogs.org
** BARTÔ HAVILÁH
para mais informações: [[https://www.instagram.com/brthvlh/][www.instagram.com]]
Multiartista, NB acadêmica, estudante de artes na UERJ e voz ativa em
diversos projetos. Matheusa Passarelli, 21, falava abertamente sobre vivências de um corpo dissidente em espaços que são de praxe violentos. A mesma foi participante do coletivo AEAN – Ambiente de Empretecimento da Arte Nacional – e do Seus Putos/UERJ e dentre uma pluralidade. Ao final de abril de 2018 desapareceu por uma semana e seu corpo foi
encontrado queimado no Morro do Dezoito após ser executada. Theusinha
vive para além desse trabalho pictórico na memória des que puderam partilhar
de sua presença em essência e na luta contra o genocídio de pessoas trans.
Que continuemos espalhando seu nome.
[[a-d-acervo-digital-trans-anarquista-revista-trans-3.jpg f]]
** “COMBINAMOS DE NÃO MORRER, PRECISÁVAMOS TAMBÉM QUE ELES TIVESSEM COMBINADO DE NÃO NOS MATAR”: NOTAS SOBRE A VIOLÊNCIA TOTAL CISHETEROSSEXUAL
Agnes de Oliveira
Membra do coletivo Quilombo Invisível, da CAT
(Coletiva Autonomia e Trans/versalidade), doutoranda em Ética e Filosofia
Política pela UFRN. e-mail pra contato: [[mailto:agnes.oliveira.costa1@gmail.com][agnes.oliveira.costa1@gmail.com]]
*** OBLITERAÇÃO MOLECULAR: NOS LEVAM, E ÀS VEZES DE MANEIRA IMPERCEPTÍVEL
Escrevi esse texto com angustia, raiva e medo. Ao partilhar esses afetos, uma amiga, que também é travesti, me disse: “eu não consigo muito ver. Os detalhes, essas coisas, os requintes de crueldade. Eu só fico com medo e brava, e mais que um pouco triste. Eu fico ciente, mas se eu ler a respeito, for a fundo, eu choro. Acho que não tem como, é muito presente na nossa vida, não sofrer com isso.”
Era 11/12/2023 quando soube da morte de Carol Câmpelo. assim como minha amiga, eu também fiquei ciente. A primeira reação imediata foi não ir a fundo, não saber os detalhes, porque dói, porque a morte de cada uma das pessoas dissidentes é um pouco a nossa, daquelas que sobrevivem. Aprendi com Denise Ferreira e Jota Mombaça que o mundo ordenado, que nos é dado a viver e conhecer, opera com separabilidades e quebras de vidas implicadas e implicantes umas nas outras. A vida não pode ser reivindicada como propriedade exclusiva de uma existência individuada: mesmo que nossas vidas não sejam imediatamente destruídas no exercício da violência total sobre outros corpos, uma parte de nossa vida é. A vida só existe em multiplicidades implicadas umas nas outras, como um plano pré-individual de experimentação que só se faz coletivamente, segundo relações variáveis capazes de criar modos muitos diferentes de povoar a Terra. É por isso, aliás, que a destruição constitutiva da cisheterossexualidade, pela qual ela busca se autopreservar diante de toda ameaça dissidente, é também uma autodestruição, um projeto autofágico: seu projeto de totalização abstrata só se faz minando a própria multiplicidade da qual depende para reproduzir sua unidade representativa, cuja conta nunca fecha: a algo que sempre escapa.
Poucos dias depois, no dia 14/12, Jéssica Hadassa, mulher trans e PCD do povo indígena Sateré-Mawé, é assassinada à tiros em Amazonas. Sem perceber, eu já estava fazendo levantamento de quantas de nós – pessoas dissidentes – eles estavam levando em menos de uma semana. Ainda no mesmo dia 14/12, Caio Siqueira, um homem trans, é morto à tiros dentro de um mercadinho em Maceió. Dois dias depois, em 16/12, Ashley Freitas, uma travesti, é morta em Porto Velho.
Dia 17/12 foi a parada LGBT+, em Natal-RN, onde moro atualmente. Mas não havia nada para me orgulhar, para comemorar ou celebrar. Desejava ver as ruas em chamas e redistribuir a violência, como condição de redistribuição a potência de vida.
Lembrei da profecia de Jota Mombaça, de 1 de Janeiro de 2012: “eles estão vindo, eles estão vindo”; “o tempo dos assassinos chegará novamente ao seu cúmulo”. E, desde então, não pararam de vir e de chegar. Muita gente e movimentos sociais alimentaram a ilusão, consciente ou não, de que eles estavam recuando, que foram “derrotados” nas eleições. Houve, e ainda há, um grande engajamento, por parte de diversos setores sociais, na “reconstrução nacional”. A perversidade desse projeto foi e é mobilizar as minorias sociais para reconstruírem o seu próprio trauma, para reencenar, mais uma vez, a catástrofe. A reconstrução impede de assumirmos a inevitável finitude de um determinado mundo e, quem sabe, com isso, proliferar a desejabilidade do “fim desse mundo”, para criar mundos que não sejam um reino de violência.
É preciso dizer que é muito diferente o desejo de fim de mundo da extrema-direita e o desejo do fim de um mundo enquanto projeto de abolição da dominação: o primeiro consiste em acabar com o mundo intensificando sua violência totalizante, no interior de um projeto sacrificial em que as vidas são consumidas em nome da eternidade desse mundo; o segundo fim do mundo, aquele que Denise Ferreira da Silva define como tarefa da Poética Negra Feminista como uma modalidade de práxis radical, consiste em abolir esse mundo para dar lugar a multiplicidade de mundos possíveis implicados, assumindo a transmutação imanente da vida.
De qualquer maneira, e retomando nosso ponto, se o trauma é brasileiro, como nos diz Castiel Vitorino, e se o Brasil é uma ficção biopolítica letal, a sua reconstrução só pode ser a reconstrução do trauma, uma espécie de operação de fundamentação pós-mortem: afirmar com recurso crescente à violência total aquilo que chega ao fim pelos seus próprios termos.
E se nossos violentadores não param de vir e de chegar, é porque chegam molecularmente, aquém e além do Estado e de sua macro-estrutura política: é o marido, o namorado, o pai de família, o cliente do trabalho sexual, o cidadão de bem, o grande proprietário, o segurança privado, o policial fora do serviço etc. Eles nos matam, e às vezes a gente nem fica sabendo. Ter em vista a violência molecular que sustenta esse mundo significa também nos atentarmos para as armadilhas da representatividade. Apesar das críticas teóricas à representação, a representação avança como forma imperiosa não só do fazer político, mas como princípio de organização da vida coletiva, isto é, de ordenação do mundo, mesmo em crise. E, nesse sentido, vejo hoje o transfeminismo seguindo os passos do feminismo de Estado: com sua aposta no Estado Penal, na criminalização da transfobia, no policiamento, nos tribunais de justiça, no encarceramento etc. Apesar de toda representação, e da hipervisibilidade que lhe é inerente, apesar das criminalizações e da inflação do aparato jurídico-penal, a violência continua avançando sobre nossos corpos, a diferença sexual continua exercendo seu trabalho de autorizar o poder de ferir corpos, e os nossos corpos continuam a testemunhar a fisicalidade do Capitalismo racial cispatriarcal.
Assim, ser dissidente da cis-heterossexualidade no Brasil tem nos conduzido a contar corpos, já que o próprio Estado, deliberadamente, oculta os dados das violências totais (simbólicas e físicas), muitas delas praticadas pelo seu próprio braço armado. Ocultar é menos se abster do que uma forma de exercício do poder.
*** GUERRA ONTOLÓGICA E VIOLÊNCIA QUE SE AUTOPRESSUPÕE
A violência total contra pessoas dissidentes do sistema sexo/gênero é constitutiva desse mundo e de sua ontologia. Por isso, é possível dizermos que o sistema sexo-gênero, que realizar e é constituindo pelos pilares onto-epistemológicos da modernidade capitalista e colonial, é fundamentalmente uma guerra ontológica hipermaterializada. Além disso, isso explica porque a violência total cismasculina é uma violência que se autopressupõe, na medida em que ela cria o próprio mundo sobre o qual ela se exerce: ela cria infraestruturas materiais e intraestruturas (pilares e descritores onto-epistemológicos do pensamento moderno) que lhes são próprias, identidades enclausuradoras e violáveis, regimes de distribuição desigual dos recursos e da violência etc.
Em resumo, é o próprio mundo tal como nos é dado a conhecer, com suas formas de vínculos sociais e instituições, que autojustifica a violência total que lhe constitui e garante sua autopreservação. Por isso, a legitimidade da violência cispatriarcal não é restrita ao plano legal, apesar de o Estado desempenhar um importante papel em condicionar, possibilitar – e também executar – o exercício dessa violência. É uma violência transversal que perpassa o Estado e as relações econômicas, estabelecendo vínculos de inimizade que constituem uma guerra civil molecular permanente. Não se trata de desvio, de falta de Justiça ou Lei. Estamos falando da textura das relações sociais que organizam um determinado modo de produção de mundo baseado na acumulação e concentração incessante de riqueza abstrata, cuja violência pressupõe a reprodução de guerras civis permanentes e multidimensionais.
A estrutura jurídico-política, o espaço público “comum”, a cena econômica do trabalho, do valor e sua valorização, a forma-sujeito enquanto forma de autodeterminação e liberdade humana, tudo isso pressupõe a guerra e o terror, que enformam um sistema de socialização baseado na igualdade e liberdade enquanto universais abstratos. Tal abstração é constitutiva da cisgeneridade branca e seu mundo baseado na valorização incessante do mundo por intermédio do trabalho, que se pretende universal e idêntico à própria estrutura objetiva da vida no planeta terra. Em outras palavras, o espaço público da liberdade e da igualdade, baseado nas relações contratuais e no reconhecimento recíproco da humanidade, é um espaço estruturalmente cis-masculino e branco: é o espaço da autopreservação, mediada pela concorrência. Enquanto tal, o espaço da liberdade e da igualdade deve sempre demarcar, por antecipação, sua antípoda, o seu Outro ameaçador – o que não é universal, o que se opõe à plena realização da autodeterminação, da liberdade (leia-se, liberdade de acumular dinheiro e vender a força de trabalho, de ordenar o mundo e sua reprodução cisheterossexual a todo custo) e que, por isso, pode ser violentado e submetido aos processos totalitários de controle social e de exceção em plena democracia. É preciso reforçarmos esse ponto: a subjetividade cismasculina é, fundamentalmente, uma subjetividade concorrencial e assentada numa indiferença ética em relação à violência, que efetiva sobre o mundo como condição de realização de sua autodeterminação enquanto sujeito livre, demarcando o espaço comum ou público de sua existência. Não por outra razão, sua forma mais bem acaba da violência cismasculina é o soldado, que experiencia o Mundo que tem diante de si como mero obstáculo ou mal necessário para sua liberdade e autopreservação.
Não é casual, aliás, que a morte de pessoas dissidentes de gênero seja feita em larga medida em espaços públicos: tais assassinatos explicitam a lógica de obliteração constitutivas dos espaços públicos gendrados, que visam incessantemente normalizar e impedir a aparição de corpos racializados e dissidentes. A esfera jurídico-política e moral da produção e atribuição de valor à vida é indissociável de um “direito à aparição” distribuído de maneira desigual.
Se não é possível sermos incluídas nesse mundo, é porque já fomos incluídas, desde o início, por nossa própria exclusão. Todas as categorias, aparentemente neutras, que enformam às formas de vinculação na modernidade são, internamente, cindidas e quebradas pela sexualização e racialização: trabalho, dinheiro, mercadoria, concorrência, Estado, Lei, democracia, sujeito, igualdade etc. Não é possível torná-las mais “democráticas”, pois o projeto de mundo que elas constituem é sustentado na/pela violência. O que a violência total explicita é, justamente, o núcleo arbitrário desse mundo e sua indiferença ética constitutiva diante das mortes de vidas que não podem ser abarcadas em sua universalidade vazia.
Assim, a exclusão-inclusiva constitui um mundo que é a negação absoluta da possibilidade de outros mundos e ontologias, que sustenta uma universalidade realmente existente e fundamentalmente quebrada. A universalidade é menos um adorno ideológico ou falseamento da realidade do que uma forma de relação social historicamente dinâmica, indissociável do processo de tornar-se concreto da universalidade vazia do cispatriarcado capitalista e branco: a universalização.
*** MENOS REPRESENTAÇÃO, MAIS ABOLIÇÃO
Tenho repetido como um mantra: menos representação, mais abolição. É preciso termos em vista o que queremos abolir. A posição abolicionista não é apenas restrita ao complexo industrial-prisional. Estamos falando em nada menos que a abolição desse mundo e, com ele, de suas instituições, de suas formas de determinação entre existentes humanos, não-humanos e mais-que-humanos. Contudo, construir uma prática abolicionista é indissociável de uma redistribuição da violência. Como nos lembra Jota:
“A redistribuição da violência é uma demanda prática quando estamos morrendo sozinhas e sem nenhum tipo de reparação, seja do Estado, seja da sociedade organizada.”
Desde que li “rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!” de Jota Mombaça, tenho me perguntado: o que temos feito para efetivar tal redistribuição? Não é uma pergunta com uma única resposta e nem com respostas que possam ser dadas de uma vez por todas. Trata-se sempre de criá-las.
Diante das mortes brutais de pessoas dissidentes de gênero e sexualidade, em um espaço tão pequeno de tempo, tendo a pensar sobre os limites do que tem sido feito, e sobre pra onde a institucionalização tem nos conduzido.
A institucionalização e introjeção da forma-empresa nos movimentos sociais, e aqui em especial do movimento LGBT+, é crescente. As paradas LGBT+ e as Marchas Trans, que surgem de processos insurgentes contra o capital e o Estado, não só têm sido cada vez mais financiados por grandes corporações, mas têm sido organizadas diretamente segundo a forma-empresa, por meio de ONG’s e empresas de consultoria especializadas, como a SSEXBBOX e DIVERSITYBBOX.
E é muito difícil escaparmos da gramática da inclusão e estarmos em espaços políticos que não falem sua língua: inclusão, integração, diversidade, representação, igualdade, democracia, liberdade, progresso etc., constituem seu léxico e sua sintaxe. Contudo, tal institucionalização acaba neutralizando as práticas para uma redistribuição da violência. Por que? Porque ela resolve a violência total na Justiça, e transforma, assim, o problema da violência num problema de reforma moral e jurídico-política: do preconceito diante da “diferença” tomada como dado natural, da falta de “inclusão” etc. Ao fazer isso, são as próprias formas de socialização que constitui o capitalismo sexo-racial que são expiadas de sua violência constitutiva. Em especial, a Forma-Estado, que é inerentemente violenta, passa a ter seu direito restabelecido para julgar o mundo, e com ele a legitimidade de sua soberania. Mas o restabelecimento do seu direito e sua legitimidade – inclusive a legitimidade de sua violência de autopreservação contra populações racializadas e dissidentes – é também o restabelecimento da legitimidade da Totalidade desse mundo e das categorias normativas que determinam objetivamente as formas de nossas relações sociais.
É como se o problema não fosse a pretensão de neutralidade e universalidade da Lei, do Estado e da economia, mas o fato de elas não incluírem todo mundo. Assim, passamos a lutar para tornar a Justiça mais justa, a Universalidade mais universal, nos engajamos em seus projetos ontológicos de mundo. Contudo, o Estado sempre irá pressupor seus Outros. Não há um “bom Estado”.
Ao nos engajarmos na institucionalização e representação, ceifamos nossa possibilidade de revolta e insurreição. Abdicamos da potência política de nossa intimidade criminosa, forjada no fato que a modernidade capitalista e colonial nasceu e só se reproduz sob o signo da criminalização da nossa existência dissidente. Ao abdicar dessa potência, abdicamos de nossa imaginação política contra a logística do poder cisgênero e branco: produzir motins transviades e afeminados, capaz de travar as ruas para destravar potências de vida; fazer barricadas não só para roubar o tempo das forças de repressão, mas para desalienar a logística, tomá-las em nossas mãos e criar autonomia; ocupar prédios públicos, para reconfigurar a somatopolítica do corpo social e garantir o acolhimento; instaurar a desordem de um ordem cuja segurança econômica, política e ontológica é baseada no terror permanente que desaba sobre nossos corpos.
Para falar com Ventura Profana, é preciso pensarmos sobre saberes bélicos. É uma tarefa urgente pensarmos na construção de comunidades de autodefesa, de práticas não só de cuidado coletivo, mas também de redistribuição da violência. Pois, como nos lembra Jota:
“Se não pudermos ser violentas, não seremos capazes de desfazer as prisões e os limites impostos à nossa experiência por efeito da distribuição social heteronormativa, branca, sexista e cissupremacista da violência. Se não pudermos ser violentas, nossas comunidades estarão fadadas ao assalto reiterado de nossas forças, saúdes, liberdades e potências. Se não pudermos ser violentas, seguiremos assombradas pela política do medo instituída como norma contra nós”.[[#_ftn11][[11]]]
** LUTE COMO UM BOYCETA
Luz Costa[12]
A arte surgiu incialmente como um fluxo de ideias que tive para lambe, porque era uma vontade minha colar frases e imagens que fizessem analogia a transgeneridade, para lembrar as pessoas que estamos na cidade. Essa em específico, veio de uma inspiração aqui da minha quebrada na região da zona sul. Eu sempre vejo uma pichação na rua escrito “lute como um indígena” e aquilo sempre intriga, quase como uma fixação. Era uma ideia a ser fermentada, mas que eu já sabia que queria usar em algum momento. E aí, poucos dias após Júpiter, que é um boyceta, sofrer uma perseguição na internet, essa mensagem me veio à tona como uma pergunta: Por que não lutar, também, como um boyceta? A princípio, eu não ia usar cogumelos, mas logo me apeguei a eles. O cogumelo pra mim é uma figura que representa quase uma saída da Matrix, como algo que está “infectando” o mundo. O que, para mim, também está muito próximo da minha experiência como transgênero, de descobrir um novo mundo cheio de subjetividades e de uma vontade de “infectar” a cisnorma. Toda arte foi criada de forma digital, pelo Photoshop.
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** SISTEMA, SAÚDE E FABRICAÇÃO DE CORPOS
Luz Costa
Às vezes, me parece que meu corpo está mais para um ser mecânico fabricado em cápsulas pós-modernas. Sinto como se toda minha anatomia já estivesse descrita como mais uma função capitalizada: meus braços precisam ser rápidos o suficiente para operar os maquinários, minhas pernas necessitam ser imóveis o suficiente para sustentar longas 9 horas de trabalho em pé e, principalmente, meus cromossomos precisam estar de acordo com o requerimento, assinando um x numa só caixinha: masculino ou feminino. Cada parte minha é construída e reconstruída de acordo com as necessidades pós-modernas de um capitalismo em decadência.
Os grandes cientistas e indústrias estudam corpos como o meu, como um ato falho de o consertar em pequenas doses que me faça aceitar parecer mais com eles – do que, de fato, comigo. O meu desalinhamento em relação à rigidez homem-mulher causa um grande transtorno entre as indústrias: se eles não conseguem me fabricar com a corporalidade cisnormativa, precisam me modificar o suficiente para que me pareça, minimamente, com o requerido. Assim, os papéis de gênero se reproduzam e autorregulem da devida forma. Não importa o quanto isso custe. Não importa se meu sangue derramar em verde, azul ou preto. A seringa que adentra minha pele é também um projeto dessa fabricação. Pouco é o custo das minhas dores, doenças e riscos possivelmente desenvolvidos por aplicações. Eu preciso me adequar. Preciso me adequar porque não conseguem me exterminar. Preciso me adequar porque preciso produzir.
Entretanto, como o próprio cis(tema) opera se escondendo por trás de grandes indústrias – de grandes hipocrisias e contrariedades –, que se mantém através da exploração desenfreada de minorias –, não me surpreende que outro artefato coesivo seja dificultar o acesso à harmonização com aumentos do custo dos insumos à população trans. É como se dissesse: vocês têm que se adequar, mas não queremos mais proliferação de vocês aqui. É como se sussurrasse: demos o que vocês queriam – dificultando informações, pouco se importando com como aquela parcela de pessoas vivenciam aquilo – agora, fiquem quietos. Como uma punição severa por termos desviado, minimamente, a ordem social. Enquanto isso, apenas uma minúscula parcela da população consegue chegar a uma parte restrita de ascensão socioeconômica minimamente condizente para continuar hormonioterapia, com médicos especializados e rotinas reguladas, contrariamente aos números estratosféricos do restante, que encontra-se em situação de vulnerabilidade social e têm dificuldade em realizar tratamento ou cirurgias de afirmação. É notável como o sistema utiliza mecanismos de exclusão social e recria uma nova camada afim de manter suas estruturas de rivalidade e apagamento. Ao inibir as formas de acesso, também força, inevitavelmente, que o restante da população ceda às violências.
Isso não é uma crítica à hormonização, de forma alguma. Isso é uma crítica às formas passivo-agressivas que as indústrias chegam até nós, seja pelo aumento no preço da testosterona, até às formas como a psicologia (muito manicomial) trabalha, alegando, constantemente, que estamos loucos, como forma de corrigir nosso “comportamento”. Essa fabricação de corpos que se alinhem com as crenças binaristas capitalistas não são de agora: há alguns – muitos – anos, vemos grandes mercados crescerem às nossas custas, às custas de nossas dores e incômodos. Eles nos estudam, mas não relevam como essas fabricações atuam no nosso corpo, não nos dão informações de outras formas de chegar no desejável e nem a construir um in(disfórico). Ainda que o próprio incômodo quanto a nossa apresentação social, física e psíquica nasça junto às violências que a sociedade impõe àqueles que divergem dela, eles nunca vão tomar a culpa, nem mesmo, parcialmente – a culpa e a vergonha estão fadadas a ser nossas. Assim, não nos dão escolha: seja o oposto, escolha ser oposto do que se impõem ser natural (mas quando chegar no desejável – quando descobrirmos, você sempre vai ser lido como a farsa. A farsa qual fingimos que não existe, porque não nos importamos com ela).
Eu não quero ser outro corpo mecânico padronizado e capitalizado, tampouco sou contra aplicação de hormônios. Desejo aplicá-los com a autonomia de não depender desses maquinários midiáticos, corrosivos, que perpetuam das mesmas violências eugênicas. Quero fabricar meu corpo, como quem fabrica um ciborgue. Quero me remontar inteiro, como um lego. E tacar fogo nesses industriais fodidos, que queimam minhas veias, com algo recém produzido num laboratório (esse mesmo laboratório que derrete os olhos dos ratos recém-nascidos e aplica ácido nos macacos, enquanto os observa desfilar de dor até a morte) por alguém que as aplica em mim, sem renovação, sem refazer novas cláusulas que des(acompanhe) meu ser, sem afundar meu fígado de gorduras e meu sangue com coagulação.
Nesse mundo pré-definido binarista, eu desejo hackear esse sistema. Quero um corpo-mecânico desenvolvido em cápsulas queer com raios ultra-bixa.
Eu quero fabricar meu corpo sem gênero.
** CURA CIS
Luz Costa
A arte Cura Cis também surgiu nesse mar de ideias para lambes. Poucos dias antes da criação eu fui à uma feira e conheci uma artista chamada Pérola, que tem uma arte chamada ‘cura binarista’ que foi uma inspiração para mim. Então a partir disso eu quis recriar algo usando a imagem -um tanto típica e eurocêntrica- de Cristo, como uma alusão ao cristianismo, brincando com a ideia de que Jesus cura a cisgeneridade, também provocando as ideologias cristãs de extrema direta. Toda arte foi criada de forma digital, pelo Photoshop.
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** LAÇOS DE SANGUE
Iara Lemos Silva
Comunicação extremamente violenta
Gritos se misturam a risadas, raiva se camufla e se dissimula em diversão
De um pro outro e de outro pra um
Ninguém escuta ninguém
Quem grita mais alto?
Qual “brincadeira” machuca mais - enquanto em nome do amor nos fazemos família?
Escondendo a mágoa com bom humor como se todo mundo estivesse bem
Ninguém cria um ser humano perfeitamente
Mas tenho me assustado conforme descubro as imperfeições que se escondem entre as paredes do nosso lar
Começo a entender de onde vem tanta dor
Não sofro sozinha, e por isso devo aprender a transformar ressentimento em amor
Desde cedo, eu sempre soube que a gente nunca foi nada além de uma farsa bem contada
Na fachada fingimos com ardor -
com orgulho assumimos nosso papel nesse comercial de margarina
Mas cada um sabe o peso que carrega ao ser entrelaçado por sangue a esse grupo que chamam Família
Em nome do Bem, de Deus e da Materialidade devemos aceitar o que quer que venha, seja o que for
Pai, mãe, filho, filha
Pai, mãe, filho confuso e indeciso e que deve ser melhor disciplinado em termos morais, e filha
Novo demais pra saber o que sente
Teimoso
Parece decidido demais pra mudar de ideia…
Sendo assim, tudo bem ser gay, desde que você se comporte
Não seja bicha
Se necessário, finja
O mundo é cruel, te amamos e só queremos proteger você
Cale-se e finja se não quiser apanhar (na rua, porque em casa só queremos seu bem)
Pai, mãe, filho, filha
Pai, mãe, filho que tem problemas de identidade dizendo ser uma menina trans e filha
O que foi que você disse meu filho, o que você é? Desde quando, como assim? É muito difícil pra mim…
Melhor não contar pra mais ninguém da família
Você é forte, sei que aguenta fingir
No fim é melhor assim, vista as roupas que deve e volte a assumir seu papel
Ainda parece inseguro, quem sabe com o tratamento certo não muda de ideia
Sente no divã, trave suas batalhas, pagamos sua terapia por nos importar muito com você
(Não é sobre a nossa fotografia perfeita ser corrompida e nossa criação impecável pegar mal na bolha em que tão bem somos encaixados)
Pai, mãe, filho, filha
Pai, mãe, filho que apesar de todo esforço empregado decidiu virar travesti e filha
Quanta teimosia, já cansamos de toda rebeldia
É muito difícil te chamar por esse tal nome e te tratar no feminino
Respeite nosso tempo, em troca respeitamos você
Sendo assim, tudo bem ser travesti, desde que você se comporte
Não seja puta
Não beba, nem chegue tarde da rua
O mundo é cruel, te amamos e só queremos proteger você
Pai, mãe, filha que se cansou de se fazer perfeita e apareceu com chupões, vestido imundo, lábios inchados, completamente destruída, filha
O que você fez?
Seu vestido branco envolto de pureza está manchado, sujo, contaminado por pecado
O que aconteceu com a sua boca?
O que fizeram com você?
Chegou o momento em que o mundo cruel deu uma surra em nossa ingênua filha?
Tenho minha máscara arrancada contra minha própria vontade
Tenho meu corpo invadido contra minha própria vontade, ainda que eu tivesse escolhido estar naquele lugar
Corpo invadido contra minha própria vontade
Sou carimbada com manchas escuras, como hematomas
Faço delas o meu troféu, como se assim pudessem enxergar as feridas que causaram ao me manter tão reprimida
Os sabores e fluídos em minha língua tem gosto de uma liberdade quase desconhecida
Saio dançando a beira do abismo, selvagemente tomada por mim mesma
Assustada, não tenho como me deter, nenhuma saída além de espatifar no chão
Depois da explosão já não tem mais como fingir e esperar que passem a mão na sua cabeça
Assumo minhas imperfeições e pago caro por elas
Como teve coragem de fazer isso com a gente?
Você só pode tá doente
Tem algo de muito errado com você
Puta, piranha, vagabunda
Eu tenho nojo de você
Ninguém te criou pra isso, a gente sempre te deu tudo e é assim que retribui?
Você só pode tá doente
Eu tenho nojo de você
Puta, piranha, vagabunda
Puta, piranha, vagabunda
Puta, piranha, vagabunda
O mundo é cruel, te amávamos e só queríamos proteger você
Cale-se e finja estar arrependida se não quiser apanhar
Cala a boca, ele é seu pai e você vai ter que nos ouvir
Merece morrer depois de tudo
Seu pai é um homem tão bom e olha como você faz ele se sentir
Ele até tinha te aceitado assim, nenhum pai faria isso, olha como você é ingrato
Preferia um filho ladrão do que alguém como você
Abaixa a cabeça
Cala a boca se não quiser apanhar
(E pela primeira vez realmente acreditei que o mundo é cruel
Nunca tive tanto medo de apanhar
Não na rua, mas em casa, com minha própria família)
Comunicação extremamente violenta
Somos uma família exemplar
Na fachada fingimos
Entre os muros nos engolimos
Um afoga o outro, incapaz de escutar a própria dor
A dor soa tão alto como nossos próprios gritos
Mas obedecemos, em nome do Bem, de Deus e da Materialidade
Em nome da Família morremos
Na esperança de que por fora possamos exibir um belo retrato
[1] Me chamo Cleyton. Atualmente sou graduando no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Campus Acopiara. Faço parte do Grupo de Pesquisa em Biodiversidade, Educação e Meio Ambiente, atuando nas linhas de pesquisa: Evolução, Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade e Divulgação Científica. Ministrei o curso de curta duração intitulado: "Isogravuras: produções artísticas como ferramenta de valorização da caatinga" no Universo IFCE. Sou membro ativo do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI); Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual (NUGEDS) e do Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas (NAPNE). Participo do movimento nacional Kizomba, que propõe uma nova cultura política orientada para a luta democrática, socialista, feminista, anti-racista e anti-lgbtfóbica. Instagram: Cleyton.oficial. Página do insta dedicada a artes: Im_perfeito
[2] Originalmente publicado em 12 de março de 2021, em espanhol, no site [[https://www.portaloaca.com/pensamientolibertario/textosanarquismo/lucha-trans-y-anarquismo-queer-desbaratando-dogmas-trans-feministas-por-la-liberacion-total-2/][https://www.portaloaca.com/pensamientolibertario/textosanarquismo/lucha-trans-y-anarquismo-queer-desbaratando-dogmas-trans-feministas-por-la-liberacion-total-2/]]. Acesso em: 11/06/2024. O texto foi publicado posteriormente no Nº 4 do Fanzine Bugambilia, da Colectiva anarco-feminista queer Brotar.
[3] Butler, Judith (1999). Gender Trouble. Feminism and the Subversion of identity. Nueva York: Routledge
[4] Fausto-Sterling, Anne (2006). Cuerpos sexuados. La política de género y la construcción de la sexualidad. Barcelona: Melusina.
[5] Encontramos usos desse termo e podemos encontrar uma extensão dessa mesma discussão em Stacy aka sallydarity, “Anarcafeminism and the very new women's ‘question’”, Bugambilia, n° 1.
[6] O que foi explicado aqui nos permite entender até que ponto a não-binariedade e a ageneridade são a mesma coisa.
[7] Nota de tradução: originalmente se escreveu, em espanhol, “no binarismo”, referente a “não-binarismo” em português; optamos por traduzir por “não-binariedade” em razão da atual disseminação do termo.
[8] A categoria em que se situam a monogamia, o poliamor, a poligamia, a anarquia relacional, etc.
[9] Volcano, Abbey (2018). “Policía en las fronteras”. Revista cultura social y pensar contemporáneo. n° 1, vol. I, pp. 16-24
[10] A categoria de “masturbador”, que era atribuída às crianças há alguns séculos como uma “condição”, foi praticamente abolida com o passar do século XX. A orientação sexual, que surgiu na mesma época, no entanto, perdurou. Vemos hoje que categorias como “pecador” estão felizmente morrendo. Esse é o curso natural da evolução da cultura. Uma discussão muito interessante sobre o caráter histórico das categorias sexuais está na introdução da obra de Sedgwick, Eve Kosofsky (1998), Epistemología del armario (Barcelona: Ediciones de la tempestad).
[11] [[https://piseagrama.org/artigos/profecia-de-vida/][piseagrama.org]]
[12] Sou Luz, pessoa não-binária (elu/ela/ele) escritora, artista e residente da periferia da zona sul de São Paulo. Anarquista e neurodivergente