Alexandre Samis
Sindicalismo e Movimentos Sociais
BREVE HISTÓRICO DO SINDICALISMO CONTEMPORÂNEO
ORIENTAÇÕES E CONCEPÇÕES SINDICAIS
AS TAREFAS DE MÉDIO PRAZO E OS MOVIMENTOS SOCIAIS
BREVE HISTÓRICO DO SINDICALISMO CONTEMPORÂNEO
No início do ano de 1980, ainda sob o espectro da ditadura militar, os trabalhadores do Brasil iniciaram um movimento em favor de uma nova forma de organização. O tipo de sindicalismo saído da ditadura era uma estranha simbiose do velho corporativismo varguista e outras formas de sujeição ao Estado militarista, inaugurado em março/abril de 1964. Reunidos em encontros estaduais, os Encontros Nacionais da Classe Trabalhadora (ENCLATs), os trabalhadores deram à estampa diversos documentos que deveriam ser analisados em um encontro nacional. Para tanto, no mês de agosto de 1981, na Praia Grande, São Paulo, aconteceu a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, a I CONCLAT. Desse evento participaram não apenas as velhas confederações e federações, como também um numero expressivo de associações pré-sindicais, representadas por delegados de base, que prefiguravam, em grande medida, a renovação das premissas sindicais até então vigentes. Como resultado prático da Conferência, surgia uma Comissão Pró-Central Única dos Trabalhadores (CUT) e evidenciava-se uma ruptura irreconciliável entre os setores mais radicalizados e a antiga burocracia sindical. Em agosto de 1983, com o nome de Congresso Nacional da Classe Trabalhadora, também sob a sigla de I CONCLAT, os grupos à esquerda organizaram as bases para a criação da CUT; enquanto, o bloco contrário, em novembro do mesmo ano, no também CONCLAT, inaugurava uma Coordenação Nacional das Classes Trabalhadoras e conservava a legenda CONCLAT. Esta última entidade seria responsável, em 1986, pela criação da Central Geral dos Trabalhadores, a CGT.
Entretanto, já na I CONCLAT, a de 1981, o tema da greve geral, tradicional bandeira do sindicalismo revolucionário, aparecia para clivar a distinção entre os grupos presentes. Muitos dos delegados de base aglutinaram-se, então, em torno da proposta que, em 1982, deveria ser posta em prática como forma de anunciar o nascimento da CUT e pressionar o governo e patrões a transigirem em favor de uma pauta unificada. Mas a formação de blocos antagônicos no interior da CONCLAT – o “Bloco Combativo”, formado por uma nebulosa de grupos da esquerda radical, setores progressistas da Igreja Católica e independentes, e o “Bloco da Reforma”, de composição de ativistas pouco engajados politicamente, além de partidários dos dois PCs e do MR-8 – acabou por atrasar a programação para o ano seguinte, inviabilizando, assim, a greve geral, sendo possível aos do “Bloco Combativo” apenas a fundação da CUT.
Dessa forma, a CUT nascia com um estatuto provisório que destacava a sua independência dos patrões, do governo, dos partidos políticos e dos credos religiosos. Além disso, o mesmo documento, insistindo em três pontos, definia-se pela autonomia e a liberdade sindical, a organização por ramo de atividade produtiva e a organização por local de trabalho, as então em voga “comissões de base”. Tais posicionamentos afastavam o grupo que formou a CUT ainda mais do que, em 1986, criou a CGT. Assim, a opção da nascente central sindical colocava-a na linha direta de sucessão da tradição sindicalista revolucionária dos primeiros anos do século XX, não apenas no Brasil como na França, EUA e outros países em igual período. Segundo Leôncio Martins Rodrigues:
“Esses pontos de contato podem ser encontrados na valorização do sindicato como um instrumento de mudança social, na defesa de sua autonomia frente aos partidos políticos, na ideia da construção de um sindicalismo ‘de base’, agressivo, sem burocracia, desprezando a atuação partidária, política e parlamentar e exaltação da ação direta e o conflito, vendo a greve geral como principal arma do trabalhador”.
Apesar das afinidades programáticas com o sindicalismo revolucionário dos primeiros tempos, boa parte dos sindicalistas atuava na estrutura das entidades oficiais. Tal situação colocava-os em flagrante contradição com os propósitos revolucionários e autonomistas uma vez que, em paralelo, gozavam dos benefícios concedidos pela legislação trabalhista em vigor. Assim, a ação dos sindicalistas acabava por fortalecer a estrutura corporativa e oficial que, contraditoriamente, pretendiam estes destruir por força das estratégias impressas nos documentos e estatutos. O III CONCUT, em 1988, selaria “pela direita” a idiossincrasia que nascera com a CUT em 1983. Nesse encontro celebrado no Estádio do Mineirinho, em Belo Horizonte, no mês de setembro, apesar das teses políticas reafirmarem o ethos do socialismo, foi a de número 10, apresentada pela corrente Articulação, organicamente ligada ao PT, que ganhou a maioria dos votos do plenário. A corrente conhecida genericamente por “CUT pela Base”, que defendia as teses ainda do estatuto provisório de 1983, foi derrotada e a burocracia sindical ganhou, por assim dizer, definitivamente a Central Única dos Trabalhadores.
Finalmente, com a vitória eleitoral de Lula, em 2002, a CUT, que havia se transformado na maior central sindical do país, passou a identificar sua política com as diretrizes defendidas pelo novo governo. Um claro desdobramento da tese vitoriosa em 1988 e que, por conta da fatídica associação, tornou mais didático, portanto mais evidente, o acelerado grau de burocratização da entidade de classe.
OS SINDICATOS HOJE
Grosso modo, podemos caracterizar a identidade sindical a partir de três condutas distintas. Os sindicatos que hoje representam mais claramente os interesses do governo/patrões são os colaboracionistas ou chapa-branca. Estes subordinam sua política a postulados puramente economicistas, encarando o governo como um interlocutor legítimo, uma instância imprescindível e fundamental na resolução dos problemas. Via de regra, tentam fazer entender à base que a função do órgão de classe é, na sua essência, pôr em entendimento os “interlocutores naturais” – governo/patrão e trabalhador – que, por uma falha na dinâmica do diálogo, estão em posição de oposição provisória.
Mesmo invocando no campo da retórica imagens tradicionalmente esposadas pelo campo socialista, o que fazem, no mais das vezes, é ressignificar o conteúdo das lutas dos trabalhadores em favor da conciliação de classe. Neste caso, as vantagens para a categoria, obtidas ou não na ação sindical, passam a ser encaradas como um fim em si mesmas, um acumular de “direitos” que reforça a sujeição às políticas econômicas macroestruturais do Estado, justamente aquelas que são as responsáveis pelas mazelas salariais da classe. Tal sindicalismo, portanto, mistifica a ação sindical determinando para as bases um papel de coadjuvante no conjunto orquestrado das políticas de governo.
Existem também os sindicatos que, em determinada conjuntura, apresentam certo grau de combatividade, sem a pretensão de tornar determinante o diálogo com o governo. Tais entidades de classe entendem a posição que ocupam no cenário da luta de classes, buscam o enfrentamento, mas o fazem a partir de uma pauta quase exclusivamente econômica, aproveitando as crises e as agendas eleitorais para arrancar do governo as melhorias imediatas.
Têm, mais por instinto que por ideologia, a disposição para a luta, fato que se observa em momentos de ascenso organizativo, mas que, em uma conjuntura desfavorável, pode se perder com impressionante velocidade. Seus métodos acabam por reforçar muito mais o campo do ativismo sindical – importante de fato, entretanto insuficiente – ao investirem exclusivamente na reação às medidas governamentais. Agem, dessa forma, estimulados pelas agendas eleitorais e políticas do Estado, ainda que em oposição a elas. Assim, a despeito da forma, no conteúdo orientam-se pela luta imediata, sem referências claras na própria classe, uma vez que o acúmulo é insuficientemente utilizado para formular um projeto de autonomia e emancipação definitiva dos trabalhadores. Ancorados no que é apenas visível, ou seja, as necessidades imediatas, esquecem do que é desejável, a mudança radical em favor de todos e não apenas da categoria. Aos sindicatos que adotam esta conduta podemos chamar corporativos.
A terceira conduta sindical pode ser identificada por sua ação em associação com seus postulados teóricos. Em comum com as demais, ela caracteriza-se também pela representação da classe. Preocupa-se com as necessidades imediatas da mesma e se legitima em determinados ritos e emblemas identitários do trabalho coletivo. Mas, para além destas semelhanças, o sindicalismo de resistência propõe-se a um enfrentamento mais claro e efetivo do Estado burguês. Utiliza o corte classista não para evidenciar a singularidade entre trabalhador e patrão/governo, mas para explicitar o fosso que separa a classe trabalhadora daqueles que a exploram. Pensa o sindicalismo como um meio importante para que os trabalhadores deem combate diuturno ao sistema que oprime a eles e aos seus iguais em destino. Nas reivindicações econômicas, igualmente, enxergam um meio para mais didaticamente perceberem os da classe, por evidências numéricas, as suas reais condições de explorados. E, uma vez que não se limitam ao sintoma, denunciam o capitalismo e suas mais claras manifestações como o motivo de todo o estado de coisas.
Destarte, o sindicalismo de resistência articula a teoria revolucionária, que podemos chamar de socialismo, com suas ações políticas e sociais, instituindo a primeira em conformidade com a realidade específica da segunda.
ORIENTAÇÕES E CONCEPÇÕES SINDICAIS
Pode-se, de forma esquemática, apresentar três etapas importantes para o desenvolvimento de um programa estratégico de classe no sindicalismo. Tais etapas, no entanto, longe de obedecerem uma linha evolutiva, combinam-se e orientam-se mutuamente. São como vasos comunicantes que formam um mesmo corpo vivo e indiviso. A primeira parte de um programa estratégico deve versar sobre os ganhos de curto prazo.
Aqueles que vão orientar as lutas do dia a dia, que devem mobilizar os ânimos e que se vinculam as necessidades igualmente prementes, inadiáveis e comuns a todos indistintamente no interior da classe. Circunstância que pode contar com campanhas de naturezas diversas, mas de preferência com forte apelo conjuntural. As campanhas salariais, acompanhadas de análises da política governamental, são formas bastante utilizadas e, quase sempre, trazem algum resultado. Nas questões de curto prazo, os sindicalismos colaboracionista, corporativista e mesmo o de resistência, às vezes se parecem muito.
Entretanto, é nas questões de médio e longo prazo que se distanciam sobremaneira as condutas sindicais. Na realidade, tanto os colaboracionistas quanto os corporativistas, não possuem as dimensões de médio e longo prazo. Não as possuem, ao menos, no sentido autônomo do termo, pois, uma vez que se guiam pelo pragmatismo, dificilmente vão além do que se apresenta de imediato. Além disso, diferenciam-se mais na forma do que no conteúdo ao se dirigirem ao governo, não indo além da colaboração declarada para um e consentida para outro. Mutatis mutandis, acabam adotando como referencial para a luta as estratégias do Estado, mesmo que na forma inversa para os corporativistas, visto que suas agendas serão sempre determinadas pelos embates com o governo, contra o qual deveriam estar criando suas próprias estratégias, mas que, uma vez presos a este, não fazem mais do que repetir, como imagem invertida, o que determina a política oficial.
Sofrem os efeitos de uma espécie de tautologia que os remete sempre ao mesmo ponto, percorrendo o mesmo trajeto, em idas e vindas, em um jogo de soma zero que acaba por favorecer sempre aquele que é, de fato, o causador do problema.
De outra maneira, os sindicatos de resistência, buscam sempre em seus programas estratégicos salientar as questões de médio e longo prazo. Tal preocupação deve-se a já terem os sindicalistas, vinculados a esta concepção, entendido que aquelas entidades que lutam apenas pelas questões imediatas, o que fazem, no mais das vezes, é garantir ao governo um certo grau de legitimidade. Se por um lado, as reivindicações podem parecer contestatórias, e algumas vezes o são, elas induzem, por outro, subliminarmente, o coletivo da categoria a acreditar que a resolução depende sempre da aquiescência do governo. O que retira do trabalhador boa parte de seu princípio decisório e reforça as teses reformistas.
É, portanto, nas projeções mais de fundo, aquelas que irão possibilitar o contato com um universo mais amplo de explorados e, a partir daí, consolidar a luta ideológica contra o capital, que se encontra a real estratégia para o desmonte de toda a estrutura que garante a manutenção do atual sistema. Não apenas isso, mas também, a elaboração deste programa auxilia no acúmulo de valores que, por ser de fato o resultado das experiências de luta e das reflexões extraídas a partir delas, constitui-se na essência de uma dimensão de mundo genuinamente de classe. Para reforço de tal raciocínio, escreveu E. P. Thompson:
“Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas”. E ainda, segundo Lúcia Bruno: “A classe operária não é uma realidade moral, mas social. Ela não tem qualquer realidade além da forma como se organiza”.
Outra questão se soma, com idêntica importância, às aqui abordadas. Que tipo de organização ou dinâmica interna permitiria a plena realização de um sindicalismo de resistência?
O universo das experiências históricas em favor da organização dos trabalhadores é generoso, entretanto, boa parte dos registros foi alienada de sua diversidade por força de modelos hegemônicos que tomaram seu próprio triunfo por verdade revolucionária. Sob tal perspectiva, a “Comuna de Paris” perdeu vários de seus matizes, os “sovietes”, viraram a manifestação de um partido único e os “conselhos de trabalhadores”, momentos prévios em situações históricas que careciam de uma direção de vanguarda. Apesar das versões autorizadas, uma outra literatura revolucionária, que apareceu como marginal, mesmo herética, teimou em registrar as nuances de um fazer proletário de enorme vigor organizativo.
O eixo insistentemente retomado pelas ações organizativas “marginais” dos trabalhadores encontrou sempre seu “ponto de Arquimedes” na autonomia. Foi com base nela que diversas iniciativas culminaram na Revolução Russa, de 1917, e na Espanhola, de 1936. As correntes libertária e autonomista, esta última batizada pela derivação da palavra-essência, firmaram seus postulados, ou antes, fizeram partir tudo desta premissa. Não era uma panaceia, mas uma metodologia que permitiria colocar, em uma mesma circunstância histórica, o conjunto da classe na condição de protagonista. Para L. Bruno:
“Uma luta é revolucionária quando cria relações sociais que permitem a união dos trabalhadores. Quando viabiliza a associação de homens livres que é, ao mesmo tempo, forma de luta e transformação social. Quando os trabalhadores criam organizações onde podem decidir em conjunto os rumos da luta, realizar uma nova divisão do trabalho e formas comunitárias de existência, estão criando o terreno sobre o qual o socialismo pode se desenvolver e generalizar”.
Este é, em poucas palavras, o princípio lógico dos “conselhos de trabalhadores”. Como se organizam então os conselhos de trabalhadores?
Os conselhos de trabalhadores definem sua representação a partir da base. É na base, organizada em comissões, que os delegados classistas são eleitos. Mas a representação é diversa daquela preconizada pelo capitalismo. As diferenças são as seguintes:
1ª: Os delegados não decidem por si mesmos. São apenas a voz do seu conjunto, daqueles que os elegeram;
2ª: Os delegados eleitos executam as tarefas, não determinam as linhas de ação, a menos que sejam sugeridas pelo coletivo que o indicou;
3ª: Os delegados ficam no cargo até o termino da tarefa, ou seja, o tempo suficiente para executá-la, pois do contrário poderia haver certa cristalização de funções;
4ª: Os delegados não podem se afastar por muito tempo de seu local de trabalho, junto à base, as suas atividades não lhes conferem nenhum privilégio. Outro ponto importante é que as delegações podem ser revogadas pela base a qualquer momento. A forma sugerida garante também que as habilidades pessoais de determinados sindicalistas sirvam a todos e não ao próprio indivíduo que, no que se verifica hoje, uma vez agindo em nome do coletivo, pode, na realidade, colocar adiante das deliberações coletivas suas próprias preferências partidárias.
O método, cuja centralidade está na autonomia dos trabalhadores, propugna também pela ação direta no que diz respeito aos interesses políticos e econômicos. Para a produção e a regulação da natureza do trabalho de cada categoria, indica o regime da autogestão generalizada. E ainda o estímulo a atitudes que unifiquem todas as frentes de luta: a econômica, a política e a ideológica, tendo-se como fim a edificação da nova sociedade.
Tal estrutura organizativa é fundamental para impedir a burocratização dos sindicatos, o distanciamento entre a base e a direção e a dicotomia entre massa e vanguarda. É também um meio no qual estão embutidos os fins, uma vez que o trabalhador apreende e elabora no cotidiano do trabalho e nos embates contra o capital os elementos vitais para sua emancipação. Como chamavam os sindicalistas revolucionários do século passado, é a “ginástica revolucionária”. Uma relação que se forja no fazer contínuo do confronto e que, por ser concomitantemente experiência sensível e teórica, realizada por quem mais necessita das mudanças, estabelece novas formas de organização desalienadas.
AS TAREFAS DE MÉDIO PRAZO E OS MOVIMENTOS SOCIAIS
Uma vez que o sindicalismo de resistência se institui na luta e sem o concurso da classe esta concepção é quase impossível de ser atingida, cabe identificar as tarefas que são da responsabilidade dos trabalhadores envolvidos com as questões revolucionárias. As construções de médio prazo hoje são da maior importância. Nelas se encontra o caminho através do qual irá a classe efetivar a direção a ser tomada para a liquidação final da ordem capitalista. Nesse sentido, cabe uma pequena ponderação sobre a separação que hoje se constata entre sindicalismo e movimentos sociais.
No início do século XX, há exatos 100 anos, era fundada a Confederação Operária Brasileira (COB). Com a entidade nascia também o seu órgão de propaganda A Voz do Trabalhador, em 1908. Por longos anos, a COB deu suporte e foi espaço organizatório dos trabalhadores contra a burguesia, valendo-se dos métodos do sindicalismo revolucionário. Nas primeiras três décadas do século XX, a COB foi fundamental para a caracterização da fisionomia social que, em público, exibiam os operários grevistas e insurretos. Entretanto, com o advento do sindicalismo corporativista, elevado a política de Estado após o movimento político-militar de 1930, cujo fato concreto mais saliente é a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, as bases do sindicalismo se viram bastante alteradas.
O setor reformista, já existente em períodos anteriores, tornou-se paradigmático e as ações radicais ganharam “foros” de crime contra a segurança nacional. Tal situação, reforçada por medidas oficiais em “benefício dos trabalhadores”, desmobilizou boa parte da massa assalariada e consagrou o Estado como árbitro de todos os litígios entre capital e trabalho. Estes fatos estão na origem – inaugurando assim uma ainda presente matriz interpretativa da História do Brasil – da perspectiva de que foi no governo De Getúlio Vargas (1930-1945) que os direitos dos trabalhadores foram, de fato, alcançados. Fenômeno conhecido como “ideologia da outorga”.
O populismo que marcou as décadas seguintes, até o golpe Militar de 1964, e mesmo o sindicalismo de subordinação, praticado durante os “Anos de Chumbo”, alteraram ainda mais a configuração das organizações sindicais. Nos anos posteriores, com o processo de redemocratização, após a frustração das esperanças na retomada de um sindicalismo revolucionário, o aparelhamento que fez o PT da CUT jogou por terra boa parte das expectativas e drenou a energia de importantes bases sindicais. No conjunto, estes acontecimentos colaboraram para o afastamento dos sindicatos do que se convenciona chamar hoje de movimentos sociais.
A burocracia, triste emblema ostentado pela maioria das entidades, continua, a despeito de louváveis esforços de uns poucos, a representar sérios limites ao desenvolvimento das políticas de médio e longo prazo. O sindicato passou a ter outra fisionomia, determinada agora, e nesse sentido como no passado, por sua prática social.
No caminho inverso estão, entretanto, outros setores organizados ou em vias de organização. Estes, envolvidos em uma grande membrana conceitual a qual se atribui o nome de movimentos sociais, são de procedência diversa. Apesar da pluralidade, esta nebulosa de organizações possui certa identidade. Existem elementos comuns a elas, mesmo com as demandas específicas. Os eixos, como no passado, na Associação Internacional dos Trabalhadores, são sempre de viés econômico.
O Movimento dos Trabalhadores Desempregados, cuja centralidade se encontra na geração de renda; o Movimento Nacional dos Catadores, que tiram dos resíduos urbanos a sua sobrevivência; o Movimento dos Sem-Teto, que elegeu a questão da moradia; os inúmeros grupos que se formam nas comunidades faveladas, sob a bandeira da cultura ou da denúncia contra a violência e finalmente o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, que sustenta com maior evidência a defesa da Reforma Agrária, contemporaneamente, assumiram um protagonismo importante, cujos resultados não podem ser ignorados, até mesmo pela grande mídia.
Em comum, e isso encontra correspondência nos comunicados e panfletos, possuem a radicalidade. Aquela disposição para o confronto, típica das pautas de médio e longo prazo. Tal característica tem sido utilizada pelo governo, inclusive, para a criminalização destes movimentos que insistem nas táticas de ação direta e gestão coletiva dos meios de produção, esgarçando a formalidade jurídica do sistema. Inovações como as “Comunas” do MST, no Rio Grande do Sul e São Paulo, têm obrigado o Incra a reinventar a legislação vigente para adequar parâmetros ao quadro geral já determinado pela prática concreta dos acampados e assentados.
A dinâmica social e a ação dos militantes concebeu experiências mistas, urbano-rurais, criando outra alternativa para o trabalhador das periferias. Nos grandes centros, os desempregados ocupam fábricas abandonadas, estabelecem novas normas de produção e tentam instituir outro padrão de subsistência, inclusive, na direção inversa do capital.
A despeito da tentativa de apropriação dos movimentos por alguns partidos, e mesmo a clara atuação de militantes destes nas bases ou direções, boa parte da massa trabalhadora envolvida preserva um grau de independência satisfatório. Suficiente ao menos para esboçar, em momentos de claudicância dos “quadros partidários” envolvidos, quando estes tentam fazer passar a política do partido, esquecendo as demandas genuínas da classe, uma reação dos setores mais organizados.
De qualquer forma, é por força do modo como se organizam os movimentos sociais que estes apresentam as características já bem salientadas aqui. São eles a expressão sem retoques da luta de classes, a unidade pela ação e pelos propósitos, movimentos que conseguem nas suas bandeiras, algumas muito simples, sintetizar e aglutinar os esforços e esperanças de todo um setor de excluídos.
O fenômeno que se caracteriza pelo crescimento da importância e da visibilidade dos movimentos sociais não é exclusivamente brasileiro. Com um número maior de exemplos podemos observar, a partir do início dos anos 90 do século precedente, o ascenso de manifestações nesse sentido. Em 1994, o levante zapatista, em Chiapas, no México, revelou ao mundo um organização indígena-militar com muitas demandas. Entre elas, a que mais se destacava era a autonomia. No mesmo país, outros índios e “minorias”, reunidos sob a legenda do magonismo, alusão ao líder revolucionário Ricardo Flores Magón, já utilizavam a tática da desobediência civil para enfrentar o governo. Em outras partes de “Nuestra America”, como Equador, Chile, Colômbia e Bolívia, empunhando a bandeira da autonomia, levantaram-se também índios e camponeses em insurreições e levantes. Inaugurando o novo milênio, os piqueteiros na Argentina, também pela ação direta, lograram sucessos e colocaram a classe como protagonista da história.
Para reforço do exposto, podemos analisar brevemente os recentes acontecimentos no estado mexicano de Oaxaca, no ano de 2006. Uma greve da educação, promovida pela 22a seção sindical, acabou por determinar a ocupação da praça central da capital do estado. Oaxaca (a capital tem o mesmo nome do estado), em maio, parecia ser palco de apenas mais uma de muitas outras manifestações. O diferencial, entretanto, deu-se com a aproximação da seção sindical dos movimentos sociais da região. As cerca de 16 etnias indígenas que estão representadas no estado, com importante tradição de luta, além de outras organizações populares, formaram a Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca, a APPO.
Em junho, os prédios públicos foram ocupados e o governo popular foi decretado, em substituição ao oficial de Ulises Ruiz Ortiz. Na prática, a capital passou a ser organizada pela APPO. As principais demandas como: democracia, liberdade e autonomia, tudo isso estava resumido na proposta de deposição do governador. A greve do sindicado gerou o fato, mas a evolução dos acontecimentos e mesmo a reação do governo federal mexicano, que enviou tropas para reprimir o movimento, só se deu por força da unidade entre entidade de classe e movimentos sociais.
A experiência que se estendeu até novembro daquele ano, contribuiu sobremaneira para o acúmulo revolucionário em toda a região. A chamada “Comuna de Oaxaca” legou à sociedade a manutenção dos organismos de resistência popular. As rádios comunitárias, os comitês de bairros que se formaram no âmbito da APPO continuam vivos e funcionando na perspectiva de novos embates do aperfeiçoamento da organização.
A tormenta social que atinge a América Latina representa, assim pensando, nada mais que a reação a outro ciclo de ataques do capital. A posição que as organizações populares assumem diante desta realidade é de transcendental importância para o que se dará a seguir. Os recuos são igualmente importantes, entretanto, para auxiliar as forças que exploram desde sempre os trabalhadores. O sindicalismo, para tanto, deve aproximar-se dos movimentos sociais para novamente reencontrar nesta simbiose política a vocação revolucionária.
OS PARADIGMAS DA ESQUERDA E OS PARTIDOS POLÍTICOS
Boa parte do que se discute hoje no campo estratégico da esquerda é ainda tributário de concepções bastante recuadas no tempo. Se por um lado, a leitura e a observância dos clássicos do socialismo é fundamental, por outro, a interpretação dogmática e mecânica dos mesmos traz sérios riscos para o resultado das análises e, dessa forma, também para as linhas estratégicas gerais. Um exemplo claro podemos encontrar, para não irmos muito além, na própria determinação de certos atores sociais privilegiados para liderar o processo revolucionário. Segundo Marx, primeiro no Manifesto Comunista, de 1848, com o reforço do capítulo 24, de O Capital:
“Sua [a burguesia] ruína e o triunfo do proletariado são igualmente inevitáveis... Entre todas as classes que hoje se confrontam com a burguesia, a única realmente revolucionária é o proletariado. As outras decaem e desaparecem com a expansão da grande indústria, enquanto o proletariado é desta o produto mais autêntico. Todos os setores da classe média, o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês (grifos nossos), combatem a burguesia para assegurar sua existência como classe média em face da extinção que os ameaça... São reacionários, pois procuram fazer andar para trás a roda da história”.
Para Marx existe um sujeito histórico, um que, mesmo sem sabê-lo, tem a missão de alterar a ordem social. Este sujeito é o proletariado urbano, a massa que é explorada pelas indústrias.
Se considerado este postulado, a História recente da América Latina encontrar-se-ia em desalinho com a teoria. Uma vez que as forças insurgentes no continente, e mesmo a guerrilha que sobrevive, possuem caráter marcadamente camponês ou indígena. Os grupos que, segundo Marx, seriam “reacionários, pois procuram fazer andar para trás a roda da história”, fazem muito mais pela revolução que o “proletariado industrial” que, no caso brasileiro, é copartícipe da gestão das instituições e do próprio Estado. Razão pela qual as discussões corporativas, quase sempre nos limites da legalidade burguesa, ocupam cada vez mais as agendas sindicais.
Outro problema, que deriva igualmente de fonte correlata, é a ideia de que “o sindicato é correia de transmissão do partido”. Este primeiro executa e o segundo pensa as políticas de médio e longo prazo. Tal lógica acaba por conferir status diferenciado a quem pensa e a quem trabalha, justificando, inclusive, o afastamento de trabalhadores por longo tempo da base em tarefas de direção que, no mais das vezes, tornam-se uma porta para a burocratização. Alguns, inclusive, vinculados a partidos político, como referido anteriormente, acabam por não ter clareza entre o papel de quadro partidário e de liderança sindical.
Mas tal prática encontra, sim, suporte na teoria, uma vez que boa parte dos partidos de esquerda percebe no sindicato um meio para levar adiante o programa do partido, a dualidade pensamento-ação passa, dentro do âmbito da classe, a vivenciar seu correspondente prático. Mas, existe aí um princípio deletério para a autonomia dos trabalhadores. Uma vez que o programa do partido pode substituir o da classe, este programa igualmente pode estar cumprindo o papel do Estado. Assim, um tipo específico de ideologia substitui o governo e abre caminho para uma nova burocracia, uma nova instância decisória, que se assemelhará, no conteúdo, à ordem que se pretende derrubar. Ela é parcialmente estranha à classe, pois foi gestada fora dela, ou antes, por um princípio que acredita pouco nas experiências não tuteladas. A autonomia, para tal concepção, pode não passar de um “espontaneísmo” ou falta de consistência ideológica.
O entendimento que temos é o de que a organização dos trabalhadores é, portanto, indivisa. Não se pode separar as instâncias política, econômica e social. O ato de pensar não pode estar desvinculado do ato de fazer. O programa da classe tem que partir dela própria, do acúmulo de suas experiências na luta por uma sociedade livre e socialista. Os corpos sociais não podem ser fragmentados, secionados em câmaras estanques, postos para dialogar apenas articulados por direções “bem intencionadas”, porém equivocadas no método. Nesse sentido, é fundamental a criação das organizações de base e a definição do papel destas no contato com o coletivo de representantes de toda a unidade de produção.
O papel da ideologia, entretanto, é fundamental. O debate de ideias no interior do sindicato se faz necessário. Mas tal debate deve obedecer aos fóruns organizativos e com eles dialogar permanentemente. A pluralidade das tradições de esquerda, sem a qual tudo se tornaria saber de manual, deve ser contemplada e as diversidades devem ser encaradas, todas elas, como um conjunto patrimonial a ser apropriado pela classe. Apropriado na medida das necessidades, daquilo que o conjunto de trabalhadores entenda pertinente para o tempo e o espaço presentes. A ideologia deve servir à classe e não o inverso. São os trabalhadores que, em ultima instância, vão mudar as coisas. Não contribui para a autonomia dos trabalhadores um sindicalismo que faça opção tácita por qualquer ideologia de esquerda; se assim fosse, estaria fazendo papel de partido e não de entidade de classe.
Podemos afirmar que a separação que hoje experimenta o sindicato em relação aos movimentos sociais, para além do fato da burocratização, pode ser explicada pela associação desse com os partidos políticos, confirmada na adesão de muitos às campanhas eleitorais. É bom ainda que se diga que, uma vez que os trabalhadores têm posições políticas diferentes, as paixões eleitorais acabam fracionando ainda mais o corpo sindical. Um programa próprio, que não implicasse na utilização de candidaturas institucionais, mesmo sob a alegação tática, diminuiria significativamente a divisão e atribuiria aos programas de médio e logo prazo a importância que estes realmente possuem.
Outro fato que pode ser verificado, cada vez com mais clareza, é que a associação dos sindicatos aos partidos trouxe, com a crise destes últimos, significativos desgastes para aqueles. Associa-se livremente, com o respaldo de inúmeros exemplos, os sindicatos aos fracassos da democracia representativa burguesa. Figuram as entidades de classe nos mesmos veículos de denúncia onde deveriam estar apenas os partidos. O sindicalismo, assim, cai na “vala comum da crise”. Por um motivo que é alheio à sua natural área de atuação colhe os frutos amargos da difamação junto com as instituições que dele fizeram uso para uma política ainda mais alheia à classe.
SINDICALISMO, BUROCRACIA E MOVIMENTOS SOCIAIS
No geral, o que temos abordado desde o início do texto à esta parte é, por assim dizer, o problema da burocracia, da clausura e dos limites dos métodos adotados pelos sindicatos. Limites que afastam o sindicato do paradigma revolucionário e de seus virtuais parceiros na direção da emancipação dos explorados.
Embutidos na apreciação geral estão elementos importantes a serem considerados para uma posterior tomada de decisão em relação aos caminhos a serem trilhados pelos trabalhadores. O diagnóstico, longe de evidenciar inteiramente o problema, convida, a partir de indícios, à busca de soluções. Sempre optando pela ação coletiva de indivíduos inseridos em sua classe e representados em suas categorias profissionais.
O socialismo é o eixo propositivo e seu algoz, ainda tanto quanto o próprio capitalismo, a burocracia. Segundo Cornelius Castoriadis:
“O socialismo é a supressão da divisão da sociedade em dirigentes e executantes, o que significa ao mesmo tempo gestão operária em todos os níveis – da fábrica, da economia e da sociedade – e poder dos organismos de massa – sovietes, comitês de fábrica ou conselhos. O socialismo tampouco pode ser, em nenhum caso, poder de um partido, qualquer que seja a sua ideologia e sua estrutura. A organização revolucionária não é e não pode ser um órgão de governo. Os únicos órgãos de governo em uma sociedade socialista são organismos tipo soviético, abarcando a totalidade dos trabalhadores. O caráter burocrático das organizações ‘operárias’ atuais não se expressa somente em seu programa último, o qual – sob a cobertura de uma fraseologia mistificadora – não visa mais do que modificar as formas de exploração para melhorar seu conteúdo. Expressa-se igualmente, ao mesmo tempo, em sua estrutura própria e no tipo de relação que mantêm com a massa operária: quer se trate de partidos ou sindicatos, esses organismos formam ou tentam formar direções separadas das massas, reduzindo essa a um papel passivo e tentando dominá-la, reproduzindo uma profunda divisão entre dirigentes e militantes (ou contribuintes) em seu próprio seio”.
A questão da autonomia, portanto, é fundamental para manter um órgão de classe fiel aos postulados emancipatórios sem afastar deste, por uma conveniência político-partidária, alheia quase sempre às necessidades dos trabalhadores, os objetivos de médio e longo prazo resultantes da experiência da classe. Neste sentido, os movimentos sociais hoje podem servir de horizonte para o reforço de algumas práticas de autonomia; a despeito da participação de militantes com o duplo vínculo, partidário e ativista de classe, a dinâmica organizativa e mesmo setores hostis ao atrelamento partidário contribuem sobremaneira para dificultar o processo de burocratização.
Com base em tais reflexões, e certamente não serão estas as únicas ponderações a serem feitas sobre o assunto, é fundamental hoje para os sindicatos a construção de uma agenda que possa articular seus interesses mais imediatos às lutas dos trabalhadores em geral, não apenas os formalmente admitidos no mercado de trabalho, mas todo aquele que estiver disposto a lutar e se organizar em favor de uma transformação radical e efetiva da sociedade rumo ao socialismo.
Bibliografia:
Bernardo, João. Democracia Totalitária. São Paulo: Cortez, 2004.
Bruno, Lúcia. O que é Autonomia Operária. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Castoriadis, Cornelius. A Experiência do Movimento Operário. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Colombo, Eduardo (org.). História do Movimento Operário Revolucionário. São Paulo: Imaginário, 2004.
Leval, Gaston. Bakunin, fundador do Sindicalismo Revolucionário. São Paulo: Imaginário, 2007.
Marx, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
Rodrigues, Leôncio Martins. Cut: os Militantes e a Ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
Thompson, E. P. Formação da Classe Operária Inglesa. Vol. I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.