Título: Gênese e significação do marxismo
Assuntos: Marxismo, socialismo
Data: 1983
Fonte: JOYEUX, Maurice; et al. Os anarquistas julgam Marx. São Paulo: Imaginário, 2001. pp. 29-47.

A classe letrada em seu conjunto sempre constituiu o assentamento espiritual do poder dominante; seus membros sempre foram, simultaneamente, os bobos zelosos, os responsáveis dedicados e os plumitivos servis dos poderosos de cada momento. A propósito da potência das idéias, lembremos a fórmula de Bacon: Saber é poder. A concepção de uma elite dominante ligada ao saber não é nova, ela se perde na noite dos tempos com as sociedades de tipo esotérico e religioso. A concepção de uma elite ligada ao desenvolvimento industrial, ao contrário, remonta às próprias fontes do socialismo do século XIX, mais exatamente a Saint-Simon, pai fundador do socialismo industrial. Querendo reagir contra a era destruidora das guerras napoleônicas, assim como contra o laissez-faire, laissez-passer da economia liberal, representada sobretudo por Adam Smith, Saint-Simon propôs substituir a guerra, motor negativo dos conflitos sociais, que entroniza a força, "ingrediente que tudo corrompe, e produz a miséria pela imoralidade", por uma nova atividade repousando sobre a indústria, fator de evolução pacífica rumo ao bem-estar geral da sociedade. Para ele, a direção sucede ao comando, a hierarquia não se estabelece mais segundo o nascimento, mas exclusivamente em virtude da capacidade de produzir melhor, e do critério de utilidade social por lei, pois "a ordem social deve ter hoje por objetivo único, direto e permanente a ação do homem sobre as coisas"[1].

Por via de conseqüência, o novo poder deve dividir-se em um poder espiritual, exclusivamente "confiado aos artistas, sábios e aos artesãos, únicos possuidores das capacidades positivas que são os elementos da ação administrativa útil"[2], e em um poder temporal, exercido pelos diretores de indústria, "verdadeiros chefes do povo, visto que são eles que o comandam em seus trabalhos diários"[3]. Esses novos responsáveis devem substituir os antigos privilegiados – os nobres, os padres, os militares e os juristas – para constituir uma nova classe dirigente, da qual o útil papel esteja em acordo com os progressos dos conhecimentos e da organização humana.

Os discípulos saint-simonianos vão disseminar, ampliar o ensinamento do mestre e participar, entre outras coisas, do desenvolvimento do capitalismo industrial. As "terras, oficinas, capitais etc., só podem ser empregados com o maior aproveitamento possível para a produção, sob uma condição, a de serem confiados às mãos exploradoras mais hábeis, ou em outros termos, às capacidades industriais"[4].

É possível compreender melhor a que ponto o ideal dos saint-simonianos pôde influenciar o conteúdo do socialismo pela seguinte passagem:

Transportemo-nos para um mundo novo. Lá não são mais os proprietários, os capitalistas isolados, estrangeiros por seus hábitos aos trabalhos industriais, que regulam a escolha das empresas e o destino dos trabalhadores. Uma instituição social é investida destas funções, tal mal exercidas atualmente; ela é depositária de todos os instrumentos da produção; ela preside a toda exploração material; assim, ela se encontra situada no plano de visão de conjunto que permite observar simultaneamente as partes da oficina industrial; através de suas ramificações ela está em contato com todas as localidades, com todos os tipos de indústria, com todos os trabalhadores; ela pode inteirar-se das necessidades gerais e das necessidades individuais, levar os braços e os instrumentos lá onde a necessidade se faz sentir, em uma palavra, dirigir a produção, colocá-Ia em harmonia com o consumo, e confiar os instrumentos de trabalho aos industriais mais dignos, pois ela se esforça constantemente para reconhecer suas capacidades, e está na melhor posição para desenvolvê-Ias.

(...) Em uma palavra, a indústria está organizada, tudo se encaixa, tudo está previsto: a divisão do trabalho é aperfeiçoada, a combinação dos esforços toma-se cada dia mais forte[5].

Aqueles que "regulam a escolha das empresas e o destino dos trabalhadores" são "homens gerais, cuja função é marcar a cada um o lugar que lhe é mais propício ocupar, para si mesmo e para os outros"[6]. Esses "chefes competentes" possuem "capacidades superiores, situadas a um plano de visão geral, liberadas dos entraves da especialidade". Essa capacidade será função unicamente do mérito pessoal, e será um "novo direito de propriedade transmissível, mas só como se transmite o saber"[7].

Bazard e Enfantin, os dois principais discípulos e propagadores das idéias saint-simonianas, acreditam na "desigualdade natural dos homens", e a consideram até mesmo como a "condição indispensável da ordem social"; é assim que eles preconizavam "Que no futuro cada um seja aproveitado segundo sua capacidade, e retribuído segundo suas obras"[8], fórmula que se tornará a pedra de toque do socialismo ulterior.

Esse último sempre se banhou no sonho irradiante de eliminar o "pauperismo", o reino da necessidade, a subjugação às tarefas materiais. Isso foi, e ainda é, a razão essencial de seu sucesso. Essa desalienação econômica, total segundo os preceitos socialistas, deve operar-se, evidentemente, pelo desvio da mediação dos representantes "autorizados" da "classe mais numerosa e mais pobre", segundo a fórmula consagrada de Saint-Simon para designar o proletariado.

Essa noção de produtivismo industrial é plenamente encontrada em Marx e influenciou de maneira de terminante sua concepção do "socialismo científico". É importante precisar o que significa "marxismo" na época da crítica de Makhaiski. O termo dizia respeito ao ensinamento fornecido pelas obras de Marx publicadas ainda em vida, assim como à sua experiência de militante no seio das organizações alemães, em 1848-1850, em seguida no quadro da Primeira Internacional. Foi isto que constituiu o corpo da doutrina, e que ainda permanece para numerosos "marxistas". A partir daí, certos textos inéditos de Marx foram revelados, descobrindo um pensamento diferente, amiúde contraditório com o aspecto até então admitido[9]. Todavia, é lamentável que esse aspecto "marxiano", apresentado como sendo mais próximo da verdadeira personalidade de Marx, tenha sido revelado por escritos ou rascunhos que o autor não tinha julgado útil tornar públicos naquele momento, mas que teriam sem dúvida modificado um pouco o dogma oficial. Essa circunstância limita em muito o alcance desta obra póstuma, que, de qualquer modo, só poderia constituir um tipo de "testamento oficioso".

É preciso também constatar a dificuldade de atribuir a Marx a paternidade da nebulosa dos "marxismos" que nele se apoiavam no passado ou que continuam a fazê-lo ainda hoje[10].

Se o marxismo foi amiúde transformado em discurso desconectado do real, isto só se tornou possível pelo seu caráter escatológico que fez dele uma verdadeira religião secular com seu cortejo inevitável de fanatismos e heresias. Esse aspecto, somado às suas contradições internas, permitiu a seus diversosherdeiros de lá encontrar simultaneamente sua fonte comum e as razões de seus ódios mútuos.

Nesta acepção, o marxismo foi e ainda é um raro momento histórico excepcionalmente estagnante. Marx podia muito bem retomar por sua conta a metáfora de Heine: "Minha infelicidade foi ter semeado dragões e colhido apenas pulgas".

No que concerne ao próprio Marx, a ambiguidade de sua relação com o "marxismo" – suas análises não eram simples hipóteses de trabalho, um "fio condutor", ou ainda verdades eternas e leis históricas imutáveis? – parece-nos refletir a própria ambiguidade de seu tempo.

Se é que se possa ou queira defini-lo neste âmbito, tendo em vista as inúmeras influências que ele sofreu de outros pensadores socialistas, deve estar em estreita relação com os socialistas do século XIX, considerados globalmente, "utópicos" e "científicos" confundidos[11].

De qualquer forma, o marxismo repousava, na época de Makhaiski, sobre as seguintes linhas de força, expostas de maneira sucinta:

  • ele propunha um fim último, a sociedade comunista, como solução à alienação econômica do homem, fonte de todas as desigualdades sociais.

  • as razões históricas deste fim eram fornecidas pela falência inelutável da sociedade capitalista em controlar o desenvolvimento crescente das forças produtivas, transformando as relações sociais de produção.

  • o proletariado era a única classe capaz de bem conduzir este desenvolvimento; era ele que estava investido da missão emancipadora de toda a sociedade.

  • os meios indicados eram os de ajudar este desenvolvimento até que o capitalismo fosse vítima de suas contradições, e educar politicamente a classe chamada a lhe suceder, pela conquista da democracia, de início, e, em seguida, pela conquista do poder político.

Isto exposto, todo o problema consistia em saber se o proletariado tinha a capacidade de assumir sozinho sua importante missão histórica. Poderia ele também, por seus próprios meios, educar-se ao contato da produção capitalista, adquirir uma maturidade suficiente para, no momento oportuno, apoderar-se do leme e exercer sua hegemonia, sua dominação de classe?

Marx já chamava a atenção para o papel dos comunistas, a "parte mais resoluta dos partido operários", "a parcela que está sempre à frente" e que, sobretudo, "do ponto de vista teórico", tem a vantagem "sobre o resto da massa proletária de compreender as condições, a marcha e os resultados gerais do movimento operário"[12]. Além do mais, segundo Marx, uma "parte importante da burguesia passa ao proletariado, e em particular aqueles dentre os ideólogos burgueses que se elevaram à inteligência teórica do movimento geral da história"[13]. O proletariado estava bem reforçado em sua delicada missão.

Nessas condições, o marxismo aparecia não apenas como defesa e ilustração do modo de produção capitalista, mas também como uma ideologia inovadora, inserindo-se harmoniosamente no desenvolvimento da sociedade burguesa, antes de colocar-se como sua herdeira à sucessão, pois a sociedade burguesa estava prometida aos tormentos de uma agonia que se aproximava.

O "reforço" à causa proletária, contemplado por Marx, esteve longe de ser unânime em sua época; por exemplo, no momento do Congresso de Genebra da Primeira Internacional (3-8 de setembro de 1866), a delegação francesa, composta entre outros por Malon, Varlin e Fribourg, propôs excluir da Internacional os "operários do pensamento" e limitar aos trabalhadores manuais a qualidade de proletários, a fim de evitar o perigo que podia existir em deixar invadir a associação por ambiciosos, homens de partido que gostariam de fazer dela um instrumento para seu próprio objetivo, estranho ao da associação. Os delegados alemães protestaram, declarando que seria um tipo de "condenação da ciência", como se o operário não fosse dela digno ou não soubesse apreciá-Ia.

A proposta francesa foi enfim rejeitada; os franceses fizeram então outra proposta, pedindo ao menos que a faculdade de ser elegível para a delegação, no congresso da Associação Internacional do Trabalhadores (AIT), fosse reservada aos operários, ainda por medo que homens pertencentes às profissões liberais ou mesmo capitalistas fizessem prevalecer, nos congressos, idéias contrárias aos interesses da classe operária.

Tolain considerou adversários todos os membros das classes privilegiadas, detentores do capital ou de diplomas[14].

Pouco depois do Congresso de Haia, em 1872, o comitê romanche de Genebra, em uma carta ao conselho federal britânico, atacou violentamente o antigo conselho geral de Londres, e foi ainda "mais longe que os jurassianos", segundo Marx (carta a Sorge, de 27 de setembro de 1873), exigindo a exclusão dos "pretensos trabalhadores do pensamento" da AlT.

Lembremos também que o lema da AIT foi "a emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios' trabalhadores".

O comportamento de Makhaiski assume assim todo o seu relevo, em completa continuidade com essa tendência "manuelliste"[15]. Além do mais, e sobretudo, ele teve de familiarizar-se quando de sua estada siberiana com os escritos de Bakunin; suas críticas do marxismo e da social-democracia apeiam-se sem nenhuma dúvida sobre aquelas deste último. Por essa razão, é conveniente aqui demorarmos um pouco para lembrar a substância das críticas bakuninianas.

Bakunin interessa-se principalmente pelas concepções políticas de Marx; quer saber essencialmente qual o objetivo da conquista do poder político, estabelecido como "grande tarefa das classes trabalhadoras", "grande dever do proletariado"[16] e o princípio de constituição do proletariado como classe dominante provocando a centralização, segundo Bakunin, de todos os meios de produção nas mãos do Estado, controlado de fato por uma minoria "savante"[17].

No Estado popular do Sr. Marx, dizem, não haverá classe privilegiada. Todos serão iguais, não só do ponto de vista jurídico e político como também do ponto de vista econômico. Pelo menos assim no-lo prometem, embora eu duvide muito de que, da maneira como é encarado e pela via que se quer seguir, se possa manter a promessa. Então, já não haverá mais nenhuma classe, mas um governo e, reparem bem, um governo excessivamente complicado, que não se contentará em governar e administrar as massas politicamente, como o fazem hoje todos os governos, mas também as administrará economicamente, concentrando em suas mãos a produção e a justa repartição das riquezas, a cultura da terra, o estabelecimento e o desenvolvimento das fábricas, a organização e a direção do comércio, enfim, a aplicação do capital na produção pelo único banqueiro, o Estado. Tudo isto exigirá uma imensa ciência e muitas cabeças transbordantes de cérebro neste governo. Será o reino da inteligência científica, o mais aristocrático, o mais despótico, o mais arrogante e o mais desprezível de todos os regimes. Haverá uma nova classe, uma nova hierarquia de savants reais e fictícios, e o mundo se dividirá em uma minoria dominando em nome da ciência, e uma imensa maioria ignorante. E então, cuidado com a massa dos ignorantes.

Tal regime não deixará de provocar seríssimos descontentamentos nesta massa, e, para contê-la, o governo iluminador e emancipador do Sr. Marx necessitará de uma força armada não menos séria[18].

Essa visão premonitória não é somente expressa em uma passagem isolada dos textos bakuninianos, ela constitui a pedra angular das posições antiestatistas do revolucionário russo, expostas com acuidade em sua obra fundamental, Estatismo e anarquia:

Atualmente, um Estado digno deste nome, um Estado forte, só pode ter uma base segura: a centralização militar e burocrática. Entre a monarquia e a república mais democrática, há apenas uma diferença notável: sob a primeira, o pessoal burocrático oprime e sufoca o povo, em nome do rei, para maior proveito das classes poprietárias e privilegiadas, assim como em seu próprio interesse; sob a república, ela oprime e esmaga o povo da mesma maneira para os mesmos bolsos e mesmas classes, todavia, em nome da vontade do povo. Sob a república, a pseudo-nação, o país legal, pretensamente representado pelo Estado, sufoca e continuará a sufocar o povo vivo e real. Mas o povo não terá a vida mais fácil quando a vara que o espancará se chamar popular.

(...) Assim, nenhum Estado, por mais democráticas que possam ser suas formas, e mesmo a república política mais vermelha, popular unicamente no sentido desta mentira conhecida sob o nome de representação do povo, está em medida de dar a ele aquilo de que necessita, quer dizer, a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem nenhuma imisção, tutela ou coerção de cima, porque todo Estado, mesmo o mais republicano e o mais democrático, mesmo pseudopopular como o Estado imaginado pelo Sr. Marx, nada mais é, em sua essência, que o governo das massas de cima para baixo por uma minoria savante, e por isso mesmo privilegiada, compreendendo, na aparência, os verdadeiros interesses do povo, melhor do que o próprio povo[19].

À luz da experiência histórica pode-se compreender a justeza desta análise do Estado, mesmo "operário", o mais vermelho que seja, dominado por uma "minoria savante" compreendendo melhor, segundo parece, os "verdadeiros interesses do povo, melhor do que o próprio povo".

O mais interessante é que desde pouco foi possível tomar conhecimento dos manuscristos de Marx dizendo respeito a uma passagem importante de Estatismo e Anarquia. Sabe-se que Marx manifestava o maior interesse pela Rússia, que ele tinha até mesmo aprendido o russo para melhor se documentar. Estas notas foram escritas por volta de 1874-1875, após o famoso cisma no seio da Primeira Internacional.

É preciso também dizer que Marx era pouco amável em relação a Bakunin naquela época, chegando, talvez, a exagerar alguns de seus pontos de vista, a menos que seu caráter ambíguo e contraditório não fosse revelador de um certo "marxismo". À pergunta de Bakunin:

Se o proletariado tornar-se a classe dominante, a quem, perguntar-se-à, ele dominará? Significa que restará ainda uma classe submetida a esta nova classe reinante, a este novo Estado?[20]

Marx responde:

Isto significa que, enquanto existirem outras classes, e especialmente a classe capitalista, enquanto o proletariado combatê-la (pois com sua chegada ao poder, seus inimigos e a antiga organização da sociedade ainda não terão desaparecido), medidas de violência e conseqüentemente medidas de governo devem ser empregadas; se ainda resta uma classe e se as condições econômicas sobre as quais repousam a luta de classes e a existência das classes ainda não desapareceram, elas devem ser eliminadas ou transformadas pela violência, e o processo de transformação deve ser acelerado pela violência[21].

Quais eram estas "medidas de violência, de governo" pensadas por Marx? Qual era esta violência que devia eliminar ou transformar as "condições econômicas" e acelerar o processo de transformação?

Seu discurso é ponderado por uma concepção radical da revolução social que deve

ligar-se a certas condições históricas do desenvolvimento econômico que são suas premissas. Ela só é possível Iá onde a produção capitalista está relacionada a um proletariado industrial que tem pelo menos um lugar considerável na massa do povo.

Ele reafirma ainda, criticando Bakunin, que são as condições econômicas e não a "vontade" que estão na base dessa revolução social. Isto vai de encontro e até mesmo desqualifica a concepção leninista da tomada do poder e de sua conservação, qualquer que seja a situação econômica, desde que seja realização do partido "proletário".

Bakunin continua:

Quem diz Estado, diz necessariamente dominação e, em conseqüencia, escravidão. Um Estado sem escravidão, declarada ou mascarada, é inconcebível, eis por que somos inimigos do Estado

O que significa: o proletariado organizado como classe dominante? Quer dizer que este estará por inteiro na direção dos negócios públicos?

O comentário de Marx é edíficante:

Um sindicato é composto unicamente pelo comitê executivo? É possível que toda a divisão do trabalho seja abolida em uma fábrica, e com ela as diversas funções que dela decorrem? E, segundo o esquema "de baixo para cima" de Bakunin, é possível que tudo esteja situado "em cima"? Neste caso não existe mais nada em baixo.

Percebeu-se desde então que não só o "comitê executivo de um sindicato", ou com maior razão, de um partido "proletário", podia representar todos os seus membros, decidindo em seu lugar sobre tudo e para tudo, como podia também encarnar-se em um único membro "eminente", constituindo por si só o "cimo", a "base" não decidindo mais nada.

É surpreendente constatar esta cegueira de Marx em relação ao papel privilegiado que representaria uma minoria, burocrática e socialista, no seio do Estado. Ela é mais manifesta ainda em relação ao trecho de Bakunin sobre

o governo da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Mas esta minoria, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Antigos operários, é certo, mas, desde que se tornem governantes ou representantes do povo cessarão de ser operários e colocar-se-ão a olhar o mundo proletário de cima do Estado; não representarão mais o povo, mas a eles próprios e suas pretensões a governá-lo. Quem duvida disto não conhece a natureza humana.

Esses eleitos serão, ao contrário, socialistas convictos e além do mais savants[22].

Marx retorque-lhe com uma gozação: os operários cessarão de ser operários "da mesma maneira que um fabricante de hoje cessa de ser capitalista porque se torna vereador!"

Ainda a respeito do mesmo trecho ele diz:

Se o Sr. Bakunin tivesse conhecimento da posição de um gerente em uma fábrica cooperativa operária, todos seus delírios senhoriais iriam ao diabo! Se ele tivesse a oportunidade de se perguntar: que forma podem tomar as funções de administração sobre a base deste Estado operário visto que o apraz chamá-lo assim?

Quando Bakunin tacha a direção governamental dos savants de a mais "pesada, vexatória e a mais desprezível que possa existir", Marx anota: "Que delírio!" Percebe-se que ele persiste em ser "ruim de ouvido" e recusa admitir a mínima possibilidade de degenerescência burocrática e ditatorial por parte dos responsáveis "proletários" ou "socialistas", ou mais ainda, por parte de uma minoria falando em seu nome e que ocuparia funções políticas em organismos de Estado ou cooperativas operárias. A corrupção pelo poder parece-lhe uma alucinação, um "delírio senhorial", surpreendente.

Ele prossegue seu monólogo de surdo quando Bakunin interroga-se sobre o caráter eventualmente passageiro desta "direção governamental dos savants": "Não, meu caro! A dominação de classe dos operários sobre as camadas rebeldes do velho mundo deve durar enquanto os fundamentos econômicos da existência das classes não forem destruídos". Isto deixa a porta aberta a todas as interpretações abusivas e mantém o equívoco sobre a natureza desta "dominação de classe". Além do mais, ele termina seu comentário por uma palavra das mais ambíguas: "besteira", em relação à "livre organização das massas operárias de baixo para cima" de Bakunin.

Esta atitude "marxista" suscita as maiores dúvidas sobre a natureza de classe da ditadura do "proletariado", sobre sua duração assim como sobre a eventualidade de um aniquilamento ulterior do Estado "operário".

Não se pode negar a última vontade de Marx em por fim à condição proletária, mas é lícito perguntarmos se não ficou prisioneiro de seu par antagônico capitalistas-operários, sem chegar a vislumbrar uma terceira força social que utilizaria sua ideologia por sua própria conta. Talvez ainda Marx tenha simplesmente assimilado muito bem o messianismo dos socialistas utópicos que o precederam: que o papel dirigente "daqueles que sabem" – o que Bakunin chama a "inteligência científica" (pensando no próprio Marx) – é óbvio para ele: só aqueles que são capazes de compreender o socialismo científico podem ter a "competência" de conduzir o proletariado e a humanidade inteira pela via do comunismo. Assim como o Estado, seu papel dominante só está condenado a "desaparecer" em um futuro indeterminado, quando forem abolidas as diferenças entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Pode-se compreender então por que Marx se recusa a dar receitas para assegurar a subsistência no futuro.

Bakunin forneceu a "substanciosa essência" da crítica de Marx, e é mais que provável que Makhaiski tenha se referido implicitamente a ela. É também muito provável que ele tenha tomado conhecimento da crítica de Kropotkin, contida em particular em A conquista do pão (1892):

Para salvar este sistema (o assalariado), os detentores atuais do capital estariam prestes a fazer certas concessões: dividir, por exemplo, uma parte dos lucros com os trabalhadores, ou ainda estabelecer uma escala dos salários que obrigue a aumentá-los no momento em que o ganho se eleva: enfim, eles consentiriam certos sacrifícios desde que lhes deixassem sempre o direito de gerir a indústria e sacar os lucros.

O coletivismo (marxismo), como se sabe, traz a esse regime modificações importantes, mas nem por isso deixa de manter o assalariado. Somente o Estado, quer dizer, o governo representativo, nacional ou comunal, substitui o patrão. São os representantes da nação ou da comuna e seus delegados, seus funcionários que se tornam gerentes da indústria. São eles também que se reservam o direito de empregar, no interesse de todos, a mais-valia da produção. Além disso, estabelece-se neste sistema uma distinção muito sutil, mas de consequências enormes entre o trabalho do operário e o do homem que fez uma aprendizagem prévia: o trabalho do operário, aos olhos do coletivista (marxista) não passa de um trabalho simples; enquanto o artesão, o engenheiro, o homem de ciência etc., fazem o que Marx chama de um trabalho complexo, e têm o direito a um salário mais elevado. Mas todos são "assalariados do Estado", todos "funcionários", dizia-se ultimamente para dourar a pílula.

Kropotkin lembrava, em seguida, uma verdade, elementar é certo, mas infelizmente de grande atualidade.

Pois bem, o maior serviço que a próxima revolução poderá conceder à humanidade será o de criar uma situação na qual todo o sistema de salariado torne-se impossível, inaplicável, e onde se imporá como única solução aceitável, o comunismo, negação do salariado[23].

Vemos assim que a crítica de Makhaiski não era completamente nova; todavia, teve o mérito de aprofundá-la no terreno de excelência de Marx: a economia. Aliás, alguns marxistas daquela época, e não dos pequenos, tentaram vedar algumas brechas do edifício magistral; a contribuição exposta por Rosa Luxemburgo em Acumulação do Capital, parece-nos, segundo este ponto de vista, a mais interessante, sobretudo quando ela sai do combate e pergunta-se sobre a realização da mais-valia acumulável fora do par assalariados-capitalistas. Evidentemente, sua audácia pára aí, e sua "terceira via" a conduz apenas aos setores não-capitalistas do mercado mundial e à descoberta da estratégia imperialista do capitalismo.

Muita tinta foi gasta desde aquela época sem contudo fazer realmente progredir a resolução do problema. Era preciso então retomar ao ponto de partida e tudo reconsiderar. Em relação a isso, lembremos que a análise que Marx faz da diferença de remuneração entre o trabalho simples-manual e o trabalho complexo-intelectual faz parte do patrimônio comum do socialismo do século XIX. Com efeito, a medida do trabalho médio, útil, necessário, agradável, qualificado ou não, inferior ou superior, foi uma constante preocupação para Owen, Fourier, Rodbertus e outros pensadores daquele tempo. Os critérios qualitativos e quantitativos de medida foram muito variados. Percebeu-se desde então que o terreno era muito escorregadio, que se poderia rapidamente deslizar do "direito ao trabalho" de Louis Blanc, ao salário por peças produzidas taylorista, ou à versão caricatural deste último, o famoso stakhanovismo stalinista. Tudo isto se situando aos antípodas da desalienação econômica do operário.

A definição dada por Marx ao valor da força de trabalho, que "tem apenas o valor dos meios de subsistência necessário àquele que a emprega[24]", permitia justificar as remunerações hierarquizadas e dar crédito à tese de Makhaiski. A fórmula saint-simoniana, que sempre serviu de leitmotiv aos socialistas "científicos": ''A cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas obras", também encoraja todas as interpretações e pode legitimar as desigualdades mais gritantes[25].

O conjunto da questão faz parte da complexa "querela de Marx", da qual Maximilien Rubel enumerou os pontos litigiosos:

  1. A teoria do valor-trabalho.

  2. O conceito de tempo de trabalho socialmente necessário.

  3. A redução do trabalho complexo ao trabalho simples e médio.

  4. O caráter histórico das categorias econômicas.

  5. O "fetichismo" da mercadoria e do dinheiro.

  6. A reificação do homem.

  7. A determinação dos meios de circulação monetária pelo preço das mercadorias.

  8. A teoria da mais-valia[26].

Makhaiski trouxe uma contribuição determinante a essa querela, contribuição infelizmente por muito tempo desconhecida. Mas o essencial já não é insistir sobre as interpretações bizantinas de concepções econômicas errôneas, ultrapassadas ou controvertidas. Hoje, pouco importa, no fundo, que Marx tenha se enganado: ele não é o único em questão. O verdadeiro interesse da contribuição makhaiskiana é que ela diz respeito à definição e à finalidade do socialismo estatista, no quadro de uma sociedade industrial ou em via de industrialização. O socialismo estatista seria a ideologia que melhor representa os interesses de uma nova classe dominante e ascendente: "os capitalistas do saber".


NOTAS

[1] Saint-Simon et Enfantin, Oeuvres completes, Paris, 1863, t. XX, p. 18l.

[2] Ibid.

[3] Ibid., t. XXIII, p. 83.

[4] Doctrine de Saint-Simon. Exposition, premíêre année, 1828-1829, Paris, 1831, p. 92.

[5] Ibid., pp. 193-194.

[6] Ibid., p. 209.

[7] Ibid., p. 247.

[8] Ibid., (Carta ao Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, por Bazard e Enfantin), p. 5.

[9] Citemos entre outros: Os Manuscritos de 1844, A Ideologia Alemã, conhecidos somente a partir de 1932, a "Carta à Vera Zassoulitch", texto e rascunhos etc. Surpresas podem ainda ser reservadas ao leitor francês na ocasião da publicação integral da correspondência entre Marx e Engels ou de outros inéditos em posse do IlHS de Amsterdã (nos arquivos da social-democracia alemã).

[10] Temos sob os olhos as numerosas variedades sectárias que se desenvolveram particularmente com o leninismo, este "blanquismo ao molho tártaro" segundo o gracejo de Charles Pappoport em 1918 (antes dele próprio se leníno-tartarizar). O exemplo mais espetacular é o do avatar sangrento de Stalin, que fez um grande estrago do "homem, o capital mais precioso".

[11] Para uma abordagem compreensível de Marx, dirigir-se aos escritos de L. Laurat (Otto Machl, 1898-1977) Le Marxisme en faillite?, Paris, 1939; Le Manifeste communiste de 1848 et le Monde d'aujourd'hui, Paris, 1948, assim como às outras obras e artigos publicados, em particular, no Contrat Social (1957-1968) e na Revue Socialiste. Isto para a análise da contribuição "marxista". Para um conhecimento mais íntimo e "marxien", consultar as edições elaboradas por Maximilien Rubel (op. cit.), assim como do mesmo autor: Karl Marx, Essai de biographie intellectuelle, Paris, Ríviêre, 2ª ed., 1971, e Marx, critique du Marxisme, Paris, Payot, 1974.

[12] Manifeste du parti communiste, in Karl Marx, Oeuvres, Economie, op. Cito T I, p. 174.

[13] Ibid., p. 171.

[14] La Premiere Internationale, coletânea de documentos publicados sob a direção de J. Freymond, Genebra, 1962, t. lI, pp. 68 e 373.

[15] O autor utiliza este neologismo referindo-se ao trabalho manual.

[16] Adresse inaugurale de l'AIT, redigida por Marx. Cf. Karl Marx, Oeuvres, Economie, op. Cit., r.L, p. 467 e estatutos, ibid., p. 472.

[17] Savant, em francês, significa douto, erudito, intelectual, homem de ciência etc. Optamos por manter o termo em francês, por ser mais abrangente e corresponder à idéia de Bakunin quando o emprega. (N. do T)

[18] "Lettre aux Compagnons du Jura", in Archives Bakounine, Leiden, 1965, t. IlI, p. 204.

[19] Ibid., 1967, t. IV, pp. 219-220.

[20] Ibid., pp. 346-347.

[21] Estas notas de Marx foram publicadas pela primeira vez por Riazanov em Letopissi Marksisma, 11, 1926. Elas foram retomadas em francês em uma pequena brochura, Contrre l'Anarchie, em 1935, sendo em seguida publicada em uma recente coletânea de artigos de Marx, Engels e Lenin, reunidos sob o título Sur l'anarchisme et l'anarcho-syndicalisme, Moscou, 1973, que utilizamos aqui. Estas anotações, traduzidas do alemão, figuram nas páginas 162-169 da coletânea.

[22] Ucenyj, em russo, significa erudito, savant, cientista, e designa todo indivíduo possuindo uma formação superior ou uma grande cultura. Este termo corresponde ao "mundo culto, instruído" do qual fala Makhaiski.

[23] Piotr Kropotkin, La Conquête du Pain, Paris, Stock, 1932, pp. 73-74.

[24] Karl Marx, Oeuvres, Economie, op. citoTI, p. 719.

[25] Este princípio está atualmente reduzido no regime "socialista" lenino-stalinista à simples sanção: "Aquele que não trabalha não come!", o que permite por sinal escalonar os salários de 1 a 150 por exemplo, entre a servente percebendo o salário-mínimo (60 rublos) e o membro da Academia de Ciências, com o salário de 5.000 rublos, dispondo além do salário, de um carro com motorista, uma datcha e outras vantagens.

[26] Karl Marx, op. cit., t. I, pp. 1.651-1.652.