Título: Movimento Fictício e Movimento Real
Fonte: @PDF
Notas: Por André Tunes @Consciência Subversiva Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.

Nota do Tradutor

O texto abaixo, escrito por Alfredo Bonanno e traduzido para o espanhol por Pablo Serrano, foi extraído do n° 16 de Ekintza Zuzena (Ação Direta). Claro e didático, no melhor sentido do termo, embora pareça óbvio para certos especialistas e catedráticos do “movimento anarquista”, é obra de quem sabe o que está dizendo – quando menos, porque se trata de observador-participante dos fatos que relata.

Ironizando a megalomania dos anarcoburocratas, a presunção analfabeta dos mandarins libertários e outros cacoetes dos onipresentes mascates da liberdade, o autor nos faz lembrar de farsescas personagens (durrutis fujões, proudhons avarentos, floras tristans promíscuas etc., além dos inumeráveis tipos ou poses: o guerrilheiro heroico, a poetisa feminista, o(a) punk de butique, o troglodita anarcristão, o sindicalista combativo, …), que compõem uma ruidosa malta, duplamente notória pelo oportunismo que lhe sobra e pela vergonha que lhe falta.

Alfredo e Pablo são dois anarquistas revolucionários que intermitentemente têm sido forçados a aceitar a nefasta hospitalidade carcerária dos estados democráticos sob os quais vivem.

O Movimento anarquista

O movimento anarquista, em sua estrutura, está composto por pequenos centros de poder que se desenvolvem, atuam, julgam, condenam, absolvem, decidem e se equivocam como todos os centros de poder. A função que desenvolvem é semelhante à de sindicatos e partidos, ao servir de enlace entre as exigências do capital e as pressões da luta de classes. Sua ótica é reunir o maior número possível de pessoas sob uma sigla ou bandeira. Neste caso, o poder se mede pelo número de militantes, ou melhor, pelo número de grupos federados (o mais impressionante é que não se sabe se um grupo está constituído por 2 ou 200 militantes).

Muitos companheiros estão mais preocupados com os congressos e reuniões do que com as próprias lutas; estão mais dispostos a redigir artigos filosóficos para as revistas que insistem em publicá-los do que ao compromisso pessoal; não estão preocupados em atacar o poder e sim em molestá-lo o mínimo possível, para continuar dispondo de pequeníssimos espaços onde lutam ou fingem lutar.

A verdade é que, na Itália, o movimento é, em sua maior parte, um movimento fictício. Excetuando raros casos, está fora das lutas. Lutas que não poucos grupos e federações se atribuem. Algum grupo vai mais além e se satisfaz fazendo-nos conhecer suas experiências dentro de algum conselho de fábrica ou comitê de bairro. O que queremos destacar é que, frequentemente, por trás de toda essa tendência ou coletivo podem se encontrar algumas personalidades mais fortes que outras, que acabam por construir um verdadeiro e próprio centro de poder, administrando-o em perfeita harmonia com as regras universais do poder.

Não falta – e isso é evidente de modo particular no movimento anarquista italiano – a tendência a supervalorizar a importância do movimento no sentido específico, como elemento dinamizador da revolução libertaria. É novamente a mania do crescimento quantitativo, da força numérica, tanto mais forte e desconcertante quanto menos se é, e quanto mais longe se está das condições que fazem possível o próprio crescimento.

Resumindo, temos um movimento que se coloca como depositário de um patrimônio de ideias, análises e experiências bem precisas, mas que não tem uma relação direta com as lutas. Falta sua presença nas massas, que se considera como condição “única” de se autodenominar movimento anarquista. Mas nem todos os companheiros que se situam dentro desse movimento compartilham essas ideias, nem todos se acomodam à espera de um crescimento quantitativo que deva ocorrer dentro do movimento, crescimento determinante para qualquer ação a desenvolver “nas” massas. Alguns veem o problema no sentido inverso. Em geral, essa análise distinta é realizada pelos denominados grupos autônomos, ainda que não seja nada homogênea ou universalmente aceita.

Movimento fictício e movimento real

Consideramos como movimento anarquista fictício o conjunto de companheiros que administram uma posição de poder dentro do movimento, que não realizam uma atividade anarquista que contribua para o crescimento da consciência revolucionária nas massas, mas se limitam a presidir reuniões e congressos, tratando de dirigir os companheiros mais jovens ou menos preparados para o que eles consideram os princípios indiscutíveis do anarquismo.

Sobram os outros companheiros que, por debilidade ou por aquiescência, acabam por se adequar às decisões, que são tomadas sempre pelas mesmas pessoas. Esses, ainda que comprometidos nas lutas concretas, deturpam o significado da necessidade de delegação, e não se ocupam em se contrapor de modo válido à “tirania” do companheiro mais competente ou de maior autoridade.

O resto do movimento compreende duas direções bem precisas: os que teorizam a necessidade da minoria específica, constituindo-se como vanguarda destinada a tutelar os sagrados princípios do anarquismo (o anarcoleninismo); e os autônomos, que se debatem entre o estímulo originário do crescimento e uma nova visão do movimento no sentido real. No caso em que esses últimos se considerem os possuidores da verdade e, como tais, destinados a recolher a herança das sagradas virtudes anarquistas do passado, seu destino está selado com antecipação. Muito em breve, eles também encontrarão seu líder (se já não o encontraram) e marcharão nas filas do movimento fictício; caso olhem para fora da organização, a realidade concreta das lutas, então talvez sejam os companheiros mais indicados para nos dar uma nova análise da essência e das possibilidades de um movimento anarquista real. Mas, em geral, o movimento anarquista não incomoda muito se lhe permitem dormir em paz. A ilusão democrática abre espaços de ação imaginária diante dos olhos de muitos companheiros e os induz ao erro.

O movimento anarquista real

A parte não desdenhável do movimento anarquista internacional que está constituída pelos grupos autônomos não tem um direito maior que qualquer outra, de declarar-se parte – ou constituinte – do movimento anarquista real. Aqui também se podem verificar fenômenos de concentração elitista, de gigantismo obtuso, de atraso nas análises e nas estratégias de luta.

Ao contrário, parece-nos que o lugar mais seguro para encontrar o movimento anarquista real está fora dos esquemas e das igrejas. Situa-se nas massas, que, concretamente, plasmam seus postulados na confusão e nas trocas de opinião, nos erros e nas vacilações, mas com um notável esforço de auto-organização da luta, empregando uma estratégia anarquista de aproximação da revolução social. Mas essa busca das massas não se pode fazer às cegas.

Nas massas exploradas, a organização dos ataques ao poder (patrões, sindicatos, partidos) é espontânea, emerge de modo imediato do processo de exploração. Nessas lutas, dá-se o mínimo de condições necessárias para o crescimento de um movimento real, que não é quantificável em termos de grupos ou federações, e que, indiretamente, torna-se reconhecível pela quantidade de ações de um certo tipo que se realizam com base na circulação de certas ideias, na resposta que essas ideias recebem em determinados ambientes de exploração.

Nessa perspectiva, as teses anarquistas do passado não podem ser aceitas como se fossem sagradas, mas devem ser lidas de forma atualizada, como modelos de ação e não como estereótipos mumificados. Somente deste modo se poderá ter um movimento anarquista real, que não se atrase frente aos estímulos teóricos procedentes das situações reais impostas pelo movimento real dos trabalhadores. Este, resistindo à eliminação física nas prisões e nos manicômios, recusando-se a jogar no território oferecido pelo poder, desenvolve uma organização autônoma que também pode chegar a formas bem precisas de articulação.

O movimento anarquista real não pode ser estranho a esta germinação organizativa espontânea: deve obrigatoriamente fazer parte dela, tratando de garantir a essência libertária que emerge do movimento de base: a luta contra todo tipo de poder. Mas esse movimento anarquista real não deve prevalecer sobre as organizações do movimento dos trabalhadores, e estas não podem ser administradas por especialistas iluminados, capazes de mantê-las atuantes nos momentos de cansaço. O ponto essencial, que não se deve esquecer, é que esses famosos momentos de refluxo são para o movimento fictício dos trabalhadores, não para o movimento real, submetido a todo instante a pressão incansável da exploração e do genocídio.

O movimento fictício e o domínio do aparente

Somos partidários da organização, mas a organização não pode ser um problema em si mesma, separada da luta, um obstáculo para a luta de classes. A organização que se desliga da realidade cai sob o domínio do aparente e se eleva à categoria de catedral no deserto. Em seu interior se produz todo tipo de disputas em torno de estratégias e táticas que nada têm a ver com a realidade; tudo acontece no mundo fictício.

O motivo dessa situação deveria ser procurado na existência de pequenos centros de poder, que atraem muitos companheiros a girar em torno deles, enquanto os poucos que administram esses centros, submetidos à dinâmica que rege qualquer organização de poder, não podem fazer outra coisa senão continuar a administrá-los. Parece-nos que esses companheiros, mesmo de boa fé, são os responsáveis diretos por essa situação, se continuam sem fazer nada a respeito. É verdadeiramente extraordinário o cuidado com que são embalsamadas certas múmias por quem deveria ser, por definição, contrário a todo tipo de conservadorismo. Essencialmente, é a ilusão produzida pela aparência o que impulsiona esses companheiros a se comprometerem com algo que não faz sentido se não é considerado um fim em si mesmo. Daí o enorme esforço para manter de pé organizações que apenas tendem a se perpetuar, esperando chegar o dia glorioso de passar à ação.

O projeto revolucionário anarquista parte do contexto específico da realidade das lutas. Não é um produto da minoria, não é elaborado por ela e exportado ao movimento dos trabalhadores, que o adquire no todo ou em parte. O projeto revolucionário não é nem mesmo uma realização acabada em todas suas partes. Os anarquistas não devem impor sua consciência de minoria revolucionária à classe trabalhadora. Atuar nesse sentido significa, involuntariamente, perpetuar a violência leninista.

Ao contrário, participando no processo de auto-organização da massa, atuando dentro, não como teóricos, políticos ou especialistas militares, mas como massa, pode-se evitar o obstáculo insuperável da minoria separada que tenta “viajar” até a totalidade da massa, mas não sabe decidir a metodologia a empregar. É necessário partir do nível real das lutas, do nível concreto e material do combate de classes, construindo pequenos organismos de base, autônomos, capazes de se situar no ponto de coincidência entre a visão total da liberação e a visão estratégica parcial que a colaboração revolucionária faz indispensável.

Não se trata pois de propaganda, de “fazer-se conhecer” pelas massas, de ter acesso aos grandes meios de comunicação, de falar na televisão para milhões de espectadores; trata-se de realizar em cada ato da luta de massas a consciência revolucionária da minoria, transformando em fato concreto a consciência que, em círculo minoritário, permanecia como simples abstração, fazendo com que a necessidade do comunismo, sentida pelas massas, se realize, pouco a pouco, em seu cotidiano, na organização material da vida.

Que movimento?

Definitivamente, o que devemos entender por movimento anarquista? Pensamos que deve ser entendido no sentido mais amplo do termo, como o conjunto de todas as forças que lutam pela realização de uma revolução social libertária. Mas pensamos também que a cristalização oficial de alguns componentes desse movimento, a posição cômoda sobre temas escolásticos, o encerramento em capelinhas que cospem sentenças de absolvição ou condenação acabou transformando a maior parte desse movimento num pesado traste ideológico. Contudo, além dessa estrutura que está matando tudo, existem companheiros, indivíduos que tentam lutar por seu ideal, que veem com clareza como esse choque contínuo com a estrutura acaba por oprimir seu ideal, quando deveria exaltá-lo e fazê-lo realizável. Esses companheiros são os destinatários privilegiados do nosso discurso.

A organização

A organização específica das massas exploradas é sua auto-organização. Esta pode estender-se ao longo do combate e do desenvolvimento das contradições, mas sem perder seu fundamento espontâneo e autorregulado. Isto garantirá a persistência de uma estrutura horizontal, única segurança para continuar a luta. O isolamento é a causa da derrota revolucionária, não somente no plano militar, mas também no plano político. Mas o isolamento pode ser evitado se a organização atuante não é produto de um dualismo (organismo de massas – organização específica), mas é criação da própria massa, que estende sua atividade e se organiza de modo autônomo.

Tudo ainda está por fazer nessa direção. A massa desenvolve e acrescenta diariamente sua necessidade de comunismo, elabora sua própria teoria, descobre seus inimigos. Não podemos continuar fechados em nossos grupos, meditando análises e propondo estratégias de ação como produtos de um organismo que se considera interlocutor privilegiado da massa. Devemos inverter o argumento, deixar de falar com nós mesmos e começar a falar com os explorados e oprimidos.

Novamente sobre o erro quantitativo da minoria

A velha ideologia quantitativa pode se transferir, sob a forma de objetivação da própria minoria. O compromisso com a luta é limitado pela busca do crescimento do movimento específico da minoria. Não devemos nos basear nas próprias perspectivas e nos próprios interesses, utilizando as instâncias ocasionais do movimento dos trabalhadores como detonador do processo de desenvolvimento e ampliação, mas, ao contrário, o ponto de partida deve ser a transformação da própria realidade, isto é, a transformação da relação existente entre auto-organização e delegação das lutas. Por isso, o “terreno” sobre o qual se compromete só pode ser o proposto pelos estímulos da própria realidade, levando em conta, como sabemos, que esses estímulos estão divididos entre a auto-organização das lutas e a delegação.

Se, num bairro, cresce o descontentamento por certas carências do poder que causam disfunções (aumento da exploração), isto não significa que o bairro está disposto a auto-organizar a luta para resolver o problema inicial, diminuir a exploração que o golpeia e passar a aprofundar a luta por outros objetivos mais gerais e mais especificamente revolucionários. Frequentemente, tudo o que se está disposto a fazer é esperar para ver que caminho é o mais eficaz para obter aquilo de que se carece … Por este simples motivo, sindicatos e partidos podem cumprir sua função de negociar com o poder a redução das contradições, e dessa forma, acabar com as lutas. Portanto, nossa tarefa não pode ser somente chegar antes deles, mas introduzir a luta num quadro mais amplo, num projeto revolucionário mais complexo, que transfira a relação auto-organização versus delegação para o lado da auto-organização. Isto não é possível limitando-nos aos fatos, à ação como fim em si mesma, ou pior, a uma perspectiva de crescimento quantitativo da minoria.

Nos últimos tempos, a necessidade de compreender bem essa relação se faz mais urgente. Podemos dizer que a dissidência se institucionalizou. A contestação, o formular de petições não ortodoxas, uma certa animosidade da base, coisas que até ontem causavam um certo pânico nos sindicatos e nos partidos, hoje é objeto de debate nas instituições. Mediante a discussão, a abertura, as assembleias de base, o diálogo, impõe-se, de forma limpa e sem manobras, o que o poder quer.

Portanto, o objetivo da intervenção não pode ser estabelecido a priori, mas vai se delimitando no curso da própria intervenção e das modificações que ela causa na realidade das lutas. Não pode ser avaliado com base em resultados objetivos imediatos por alcançar, porque esta também pode ser tarefa de partidos e sindicatos; não pode nem sequer ser avaliado com base numa ideologia a priori, que acaba por se fazer uma afirmação maximalista e, muitas vezes, inoperante frente a uma realidade que se vai estruturando sobre uma série de contradições.

Se, por exemplo, nos limitássemos a denunciar as condições dos presidiários, seriamos, sem dúvida, úteis aos companheiros que sofrem a repressão. Mas, limitando-nos a isso, condenaríamos nossa intervenção a ficar nas mãos de uma minoria externa que se aproxima de uma realidade e a divide, se bate por ela e, no limite, faz algo por torná-la melhor. Mas este “tornar melhor” também é útil para o poder que, antes ou depois, deve decidir-se a adotar sistemas mais refinados e sociais-democratas de repressão; sistemas igualmente, se não ainda mais eficazes.

A ação da minoria e a realidade das lutas é, portanto, a de impulsionar o desenvolvimento da auto-organização, rompendo com o delegacionismo e o dirigismo, ainda que estejam fantasiados de projeto revolucionário.

A fragmentação da realidade das lutas

A própria existência do poder e da exploração é o indício mais seguro da fragmentação da realidade das lutas. Se conseguissem se fundir numa ação homogênea, ou seja, fazer prevalecer a tendência a auto-organização, as lutas barrariam o poder. E dado que o poder avalia corretamente o perigo, organiza-se em consequência. Seus aliados mais eficazes são os partidos e os sindicatos.

A fragmentação não se traduz numa distinção de níveis segundo a presença reformista, tecnocrática ou revolucionária. É uma fragmentação que desce verticalmente, em profundidade. Uma realidade de luta, numa fábrica, bairro, gueto, escola, manicômio, etc., sempre tem um conjunto de problemas e de estímulos que a caracterizam, um conjunto de tendências e preconceitos, de separação e de empenho, de compromissos e de tomada de consciência. Somente fechando os olhos pode-se admitir, por definição, que a minoria é monolítica porque é consciente, enquanto que a realidade é fragmentária porque deve ser conquistada pela minoria. Na realidade, as coisas são muito diferentes, o processo é, para ambos os elementos desta relação, uma tendência e uma constante modificação.