Título: Bakunin e a ditadura do proletariado
Data: 1924
Fonte: MAKHAISKI, Jan Waclav; et al. Marxismo e ditadura. Tradução: Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Intermezzo, 2014. pp. 47-60. [orig.: La Antorcha, n. 155, 31 de outubro de 1924]

Os partidários da ditadura tratam com frequência de apoiar-se em suas afirmações, nas ideias de Bakunin, indicando que, conquanto em teoria Bakunin negasse o Estado e a autoridade, na realidade não combateu o período de transição nem a ditadura do proletariado, porque ele foi sempre partidário da ação organizada das próprias massas operárias e do direito que elas tinham de dirigir a revolução econômica e social. E muitos dos que se denominam anarcossindicalistas e apregoam a ideia inevitável da ditadura do trabalho, a ditadura das organizações operárias etc., afirmam que eles são os fiéis portadores das ideias desse gigante do pensamento revolucionário, os verdadeiros herdeiros de Bakunin.

É impossível tratar, em um artigo de relativa extensão, de todas as ideias e conceitos de Bakunin, nem mesmo aclarar por completo sua interpretação do papel do Estado na sociedade e na vida, nem seus conceitos sobre as relações entre a sociedade e o indivíduo.

Bakunin afirmava, e demonstrou uma infinidade de vezes, que “a verdadeira escola para o povo e para as pessoas adultas é a vida”. Dizia ainda que a sociabilidade não é a consequência da união artificial dos homens nem da imposição dos governantes, mas um estado natural da espécie humana.

A força do sentimento coletivo ou do espírito de sociabilidade é ainda agora um assunto muito sério…

Um número infinito de dados e fatos da vida diária são, segundo Bakunin, índices inequívocos “da solidariedade natural e inequívoca que une todos os homens”.

Repito que é a vida, e não a ciência, que cria a vida; a atividade espontânea do próprio povo é a única capaz de criar a liberdade. Seria, indubitavelmente, um caso muito feliz se a ciência pudesse desde já iluminar a marcha espontânea da humanidade rumo a sua liberação. Mas é preferível a ausência de luz a uma luz vacilante e incerta, que só faz confundir aqueles que a seguem.

E, de fato, ninguém como ele atacou tão acerbamente os pseudossacerdotes da ciência, aqueles que queriam subjugar as massas laboriosas, quando os sacerdotes divinos mostraram ser impotentes para deter o fluxo que começou a iluminar os cérebros e os sentimentos das massas. As massas buscam meios de sair, por seus próprios esforços, do atoleiro em que as colocaram e que não as deixam sair o Estado e o Capital. Os que têm mais noção de si mesmos buscam esses meios constantemente, os menos conscientes, ainda que nos períodos de reação e calma caiam na apatia, recuperam ânimos nos momentos de despertar geral e introduzem-se impetuosamente, nos períodos revolucionários, na torrente da vida e trabalham; e mediante sua experiência da vida logram conhecer o papel da autoridade e da coerção na vida social. São cada vez menos numerosos agora os homens que vivem exclusivamente a vida de seu círculo, sua fábrica ou seu bairro. Mas tampouco existe esta consciência universal que permitiria a cada um elucidar, ele mesmo, todos os problemas da vida. E é aqui onde surgem as profundas divergências entre os revolucionários. Uns, vendo a falta de preparação das massas para passar imediatamente à total reconstrução da sociedade e à convivência livre e recíproca, consideram que isso tem de ser assim, que isso é natural e normal. Baseando-se nessas considerações, pregam que as massas têm de sofrer, aguentar em nome da fatalidade histórica. Outros afirmam que esses são fenômenos antinaturais, anormais, e que são consequência da vida que levam atualmente as massas sob a opressão constante do capitalismo e da autoridade. E insistem que a destruição dessas forças estranhas à sociedade, impostas com artifícios aos homens, libertará a personalidade humana e dará início a uma nova sociedade, livre e progressiva.

Estas são as ideias que Bakunin sustentou durante toda a sua vida, com toda a força de sua vontade.

Compreende-se por que, com semelhante conceito da revolução, não poderia deixar de haver um abismo intransponível entre Bakunin e Marx, tanto em seus temperamentos quanto em suas ideias. Diz Bakunin em Deus e o Estado:

Já expressei em várias oportunidades minha profunda aversão à teoria de Lassalle e de Marx, que recomenda aos trabalhadores – se não como seu ideal definitivo, pelo menos como o objetivo mais imediato – a fundação de um Estado popular, o qual, tal como eles o explicam, não será outra coisa senão “o proletariado elevado à categoria de classe dominante”.

E, em poucas páginas de uma beleza incomparável, Bakunin faz o comentário desse horrível absurdo universal, o significado da ditadura do proletariado e o papel que ela desempenha na vida real. Escreve Bakunin:

Pergunto se o proletariado for a classe dominante, a quem dominará? Isso significa que restará algum outro proletariado, o qual estará submetido a esse novo senhor, o novo Estado…

Se há Estado, é inevitável a dominação, e, por conseguinte, a escravidão; Estado sem escravidão, aberta ou oculta, é impossível, eis porque somos inimigos do Estado.

Mas Bakunin não se contenta com isso. Examina a ideia de ditadura do proletariado, expõe sua essência estatista e o papel que a ditadura do proletariado desempenhará na vida real.

O que significa o proletariado elevado à condição de classe dominante? Estaria todo o proletariado, por acaso, à frente do governo? Há cerca de 40 milhões de alemães. Por acaso todos eles seriam membros do governo? Todo o povo será diretor e não haverá governo, não haverá Estado. Mas toda vez que houver Estado, haverá dirigidos, existirão escravos.

Este dilema resolve-se na teoria marxista de um modo muito simples. Por governo do povo eles entendem o governo sobre esse mesmo povo de um pequeno número de representantes eleitos pelo povo…

Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado, não mais representarão o povo, mas a si mesmos e a suas pretensões a governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana.

Esses eleitos serão, em compensação, socialistas convictos e, além do mais, doutos. Os termos “socialista científico”, “socialismo científico”, que estão sempre presentes nos escritos dos lassallianos e dos marxistas, provam por si que o pseudo-Estado popular nada mais será do que o governo despótico das massas proletárias por uma nova e muito restrita aristocracia de verdadeiros ou pretensos doutos. Não tendo o povo a Ciência, ele será de todo libertado das preocupações governamentais e integrado por inteiro no rebanho dos governados. Bela libertação!

Os marxistas dão-se conta desta contradição e, ainda que admitindo que a direção governamental dos doutos, a mais pesada, a mais vexatória e a mais desprezível que possa existir, será, quaisquer que possam ser as formas democráticas, uma verdadeira Ditadura, consolam-se com a ideia de que esta Ditadura será temporária e de curta duração. Eles sustentam que sua única preocupação e seu único objetivo será dar instrução ao povo, elevá-lo, tanto econômica quanto politicamente, a um tal nível que todo governo não tardará a tornar-se inútil; e o Estado, após ter perdido seu caráter político, isto é, autoritário, transformar-se-á por si mesmo em organização de todo livre dos interesses econômicos e das comunas.

Eis aí uma flagrante contradição. Se seu Estado é de fato um Estado popular, por que motivos dever-se-ia suprimi-lo? E se, por outro lado, sua supressão é necessária para a emancipação real do povo, como se poderia qualificá-lo de Estado popular?

Deste excerto depreende-se que Bakunin já conhecia o marxismo em sua essência e denota a atitude de Marx em relação à ditadura do proletariado e ao período de transição.

Já naquele momento era grande a luta entre esses dois conceitos da vida social: o conceito anarquista e o marxista, e já havia entre ambos um profundo abismo. É por isso que Marx, Engels, Liebknecht e Bebel – como agora Plekhanov, Lênin, Trótski, Bukharin e os comunistas – não se detinham ante qualquer meio para enlodar, denegrir e apresentar Bakunin e seus companheiros como confidentes e agentes do governo. A história agora se repete. E se Marx e Engels não podiam matar Bakunin e seus companheiros mais do que moralmente, o que já era muito, Lênin e Trótski, Kamenev e Zinoviev não se contentam em matar moralmente Liev Chorny e os anarquistas russos em geral, mata-nos também fisicamente para maior segurança.

Vemos que Bakunin já previra os frutos que dariam a ditadura do proletariado e o período de transição, e sustentara contra essas ideias a luta mais feroz.

Com nossa polêmica nós os fizemos compreender (aos marxistas) que a liberdade ou a anarquia, ou seja, a livre organização das massas operárias de baixo para cima, é o elo final da evolução da sociedade, e que todo governo, sem excluir o proletário que eles pregam, é um jugo que, de um lado, cria o despotismo, e do outro, a escravidão.

Eles dizem que esse jugo da ditadura do Estado é um meio transitório imprescindível para conseguir a liberação integral do povo; a anarquia ou a liberdade é o fim, o governo ou a ditadura é o meio. Daí se deduz que, para emancipar as massas trabalhadoras, é necessário antes subjugá-las.

Vemos, então, que os problemas da ditadura do proletariado e do período de transição, uma vez expostos, Bakunin rebate-os com toda simplicidade e clareza, de modo que sua opinião a respeito não possa prestar-se a interpretações distorcidas nem dar lugar a dúvidas quanto à sua atitude como anarquista, em relação a esses problemas de vital importância para os momentos que atravessamos.

Os marxistas afirmam que só a ditadura – a deles, é claro – pode dar a liberdade ao povo, ao que lhes respondemos: nenhuma ditadura pode ter outro objeto senão eternizar-se, e que é capaz de fazer germinar e enraizar no povo que a suporta sentimentos de escravidão, e que a liberdade só pode ser fruto da liberdade, ou seja, da rebelião das massas e da livre organização dos trabalhadores de baixo para cima.

A resposta de Bakunin sobre sua atitude relativa à ditadura do proletariado e ao período de transição é tão clara que é de se espantar que possa haver anarquistas que atribuem a este anarquista e revolucionário intransigente alguma simpatia em relação a qualquer forma de governo, e especialmente à ditadura do proletariado. Os renegados do anarquismo ou os “anarcobolcheviques”, que têm todo o direito de manter a sua opinião a respeito, não podem apoiar-se em Bakunin ou em qualquer outro precursor do anarquismo. Podem apoiar-se unicamente em distintos economistas burgueses partidários da teoria de classes e em Marx e Engels.

Mas Bakunin opunha-se não apenas à ditadura política do proletariado: era inimigo de toda ditadura – daquela das organizações operárias e até da ditadura da Internacional, se a esta fosse incumbido encarregar-se do governo e convertesse-se em Estado.

Se a Internacional pudesse converter-se em Estado, nós nos converteríamos, de adeptos convictos e entusiastas que somos, em seus inimigos mais encarniçados.

E então Bakunin mantinha a luta contra a tendência dos chefes e dos eleitos de predominar sobre as massas na Primeira Internacional. Escreve Bakunin no artigo “A prostração da Aliança”:

Dizem-nos que nem todos os operários, conquanto sejam membros da Internacional, podem ser doutos; e não basta que haja na Internacional um grupo de homens que dominam à perfeição, na medida que isso seja possível em nossos dias, a ciência, a filosofia e a política do socialismo, para que a maioria – as massas que integram a Internacional –, confiando-se à sua direção e a seus “preceitos fraternos”, saia do caminho que há de conduzi-la à liberação total do proletariado?

Estas são as reflexões que amiúde ouvimos pronunciar em voz baixa… Sempre lutamos decididamente contra este raciocínio, porque estamos convencidos de que se a Associação Internacional dos Trabalhadores estiver dividida em dois grupos: um, composto pela imensa maioria dos membros, cujo saber consistirá em ter uma fé cega na sabedoria teórica e prática de seus chefes, e o outro, composto por umas poucas dezenas de dirigentes, esta instituição, que tem a missão de emancipar a humanidade, converter-se-á numa espécie de governo oligárquico, o pior dos governos. Esta minoria, perspicaz, científica e hábil, que será revestida de toda a respeitabilidade e de todos os direitos do governo, ainda mais absoluto porque seu despotismo oculta-se cuidadosamente sob a máscara do respeito pela vontade e pelas decisões, embora sempre por eles ditadas, mas aparentemente pelas massas do povo, esta minoria, repito, obedecendo à necessidade e às condições de sua situação privilegiada, e sofrendo o destino de todos os governos, far-se-á paulatinamente cada vez mais despótica, prejudicial e reacionária.

E Bakunin conclui seu artigo “A protestação da Aliança”:

A Associação Internacional dos Trabalhadores só poderá converter-se em instrumento de emancipação da humanidade quando ela própria tiver antes se emancipado; e ela só o será quando, cessando de estar dividida em dois grupos – a maioria dos instrumentos cegos e a minoria dos maquinistas doutos –, tiver feito penetrar na consciência refletida de cada um de seus membros a ciência, a filosofia e a política do socialismo.

Eis a que chegava Bakunin em sua negação do autoritarismo e da coerção. Não ficava contente em atacar o Estado e a ditadura social. Era o lutador mais intransigente contra a servidão das próprias organizações operárias nas quais defendia a autonomia completa de cada indivíduo e de seu direito à autoatividade.

Bakunin era um adversário encarniçado de toda autoridade, mesmo nas organizações operárias. Na organização não deve haver máquinas nem maquinistas. Todos são iguais e todos têm o direito de julgar a conduta dos eleitos e dos chefes. Bakunin, o anarquista, opunha-se a toda subjugação do homem pelo homem. E suas razões permanecerão incólumes e sem refutação até hoje.

Os partidários de todo tipo de ditadura, não apenas estatista, mas também dentro das organizações operárias, deveriam meditar sobre o excerto de Bakunin que aparece no final, sendo possível, talvez, que compreendessem que o anarquismo e a imposição são incompatíveis com todas as formas.

Só a liberdade, a tolerância mútua e a renúncia dos dirigentes a toda imposição pode tirar o movimento operário do atoleiro em que o meteram diversos partidários da ditadura, da direção e dos “preceitos fraternais”. Esses mesmos companheiros deveriam compreender que estão distantes do anarquismo, e que são muito mais herdeiros de Marx que de Bakunin.

Bakunin era anarquista e adversário absoluto de toda coerção e ditadura; e não deixa de ser estranho que as diversas classes de adeptos da ditadura do bolchevismo e do anarquismo “obreiro” etc. atrevam-se, em suas atitudes antianarquistas, a apoiar-se no incansável e intransigente lutador pela liberdade de cada indivíduo em todas as organizações sociais e na vida, no anunciador da Revolução Social – Bakunin.

Assim como Bakunin e Marx não puderam conviver, assim também não puderam nem poderão conviver a liberdade e a coerção, a anarquia e a ditadura. Ou Marx ou Bakunin. Ou a Anarquia e a Liberdade ou a ditadura e a coerção.