Título: Materialismo, Anarquismo e Revolução Social: O bakuninismo como filosofia e como política do movimento operário e socialista
Fonte: XXVII Simpósio Nacional de História, 22 a 26 de julho de 2013, UFRN, Natal – RN
Notas: AUTOR: ANDREY CORDEIRO FERREIRA – Doutor em Antropologia Social, Professor do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) – UFRRJ. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Poder (NEP)

1 – A dialética autoridade-liberdade: a Fraternidade Internacional e a luta contra o liberalismo e absolutismo

No Brasil e no mundo conhece-se relativamente pouco sobre o anarquismo no século XIX e a obra teórica de Mikhail Bakunin, particularmente. Esse desconhecimento é resultado de diversos fatores, como a dispersão das fontes primárias e o tipo de interpretação dominante na historiografia (que tendia a ver Bakunin somente como um agitador, sem obra teórica e filosófica, ou como um pensador menor em face de outros teóricos, especialmente de Karl Marx). O objetivo desse artigo é mostrar como na realidade Bakunin elaborou uma proposta teórica de materialismo (que engloba uma ontologia e um tipo de análise sociológica) que por sua vez estava associada a sua política e ao tipo revolução que esta política construiu e difundiu através da Associação Internacional dos Trabalhadores. De maneira geral, podemos dizer que a concepção materialista de Bakunin possui três aspectos principais. Uma ontologia (uma teoria do sujeito, do mundo natural e material); uma análise sociológica baseada na ideia da multiplicidade de determinações (ao contrário de Marx, que postulava o determinismo econômico como base do materialismo histórico); um conceito de revolução social que expressava a articulação de práticas e ideias em um método de organização social e econômica, expressa na relação entre organização revolucionária com o sindicalismo revolucionário (que expressavam essa ontologia e essa concepção teórica). Nesse sentido, a construção da ala anarquista ou bakuninista dentro da AIT e o confronto com os marxistas estava diretamente ligada a essa diferenciação filosófico-teórica de concepções materialistas. Para realizar essa exposição iremos analisar uma documentação inédita em língua portuguesa, especialmente documentos secretos completos depositados no arquivo do International Institute of Social History (Sociedade internacional secreta da emancipação da humanidade; Projeto de organização da Família dos Irmãos escandinavos. Projeto de uma organização secreta internacional; Sociedade Internacional Secreta da Revolução convencionado pelos irmãos fundadores) e uma obra intitulada “O Império Knuto-Germanico e a Revolução Social” (análise de Bakunin sobre a Guerra Franco-Prussiana e a política internacional, da qual integram múltiplos manuscritos), além de outros documentos e livros, alguns publicados em língua portuguesa e espanhola. Por fim, iremos debater como essa concepção de materialismo pode ser atualizada como instrumento de análise histórica e sociológica. Nós iremos, para efeito dessa apresentação, dividir os textos de Bakunin em função do seu contexto de produção, dos seus objetivos e dos seus interlocutores ou opositores no campo político. Podemos dizer que nesse plano estão dois grandes conjuntos de textos: o primeiro, os documentos secretos do período 1863–1866, no qual Bakunin era parte destacada de um processo da construção de uma organização política revolucionária internacional , que ao que parece, reunia veteranos das revoluções e militantes das lutas de libertação nacional e anticoloniais europeias. São três os documentos secretos “Sociedade internacional secreta da emancipação da humanidade”, o “Projeto de organização da Família dos Irmãos escandinavos. Projeto de uma organização secreta internacional” e “Sociedade Internacional Secreta da Revolução – Programa provisório convencionado pelos irmãos fundadores”. São longas cartas endereçadas a militantes suecos e escandinavos apresentando a proposta da organização criada em 1864. De maneira geral, esses documentos apresentam a ligação de Bakunin ao proudhonismo francês e marcam a posição da organização secreta frente ao absolutismo, ao constitucionalismo e ao liberalismo, ao mesmo tempo que apresenta uma crítica teórica e filosófica da religião e do Estado. No espectro do debate, estavam os republicanos radicais, os nacionalistas e a religião, de maneira que os temas principais, os interlocutores e a crítica são direcionadas a esse campo. Entre 1868 e 1872 Bakunin vai deslocar os focos de suas discussões do republicanismo para socialismo, movimento expresso pela ruptura com o Congresso da Paz e da Liberdade e com a adesão da organização a AIT e a política do movimento socialista da Europa. A adesão da AIT em escala internacional provoca um profundo impacto na organização do movimento operário e socialista. Entre 1867 e 1872 temos a produção de alguns textos fundamentais, como “Federalismo, Socialismo e Antiteologismo”, “O Império Knuto-Germânico e a Revolução Social e seu “Apêndice” (publicado depois como “Considerações Filosóficas sobre o Fantasma Divino, a Natureza e sobre o Homem”) e alguns artigos de jornal, dos quais destacamos especialmente “A Política da Internacional” em que fica manifesta a continuidade entre a teoria-filosofia e a ação política concreta. Podemos dizer que nesse momento alguns acontecimentos chave marcam os documentos que aqui analisamos e conferem a historicidade dos mesmos: o processo de unificação da Itália (país em que Bakunin residiu em diversos períodos entre 1864–1868), a tensões e depois Guerra Franco-Prussiana e a Comuna de Paris; os conflitos nacionais entre países colonizados e Impérios Europeus e as lutas antimonárquicas. O documento “Sociedade internacional secreta da emancipação da humanidade” apresenta uma caracterização geral da situação europeia, apresenta os fundamentos filosóficos e programáticos dessa organização. Ao caracterizar a situação europeia, ele mostra a contradição entre expansão da reação representada pela “Santa Aliança” (uma internacional Inter-Estatal) e da necessidade de organização internacional de uma Aliança Revolucionária contra essa aliança reacionária. Bakunin então situa as lutas de emancipação nacional, distingue entre contradições primárias e secundárias: a contradição primária seria entre revolução e contra-revolução e as contradições secundárias, as disputas entre os Estados. A carta dessa maneira visa demonstrar a existência da reação na Europa como movimento organizado, sua forma internacional e justificar a necessidade de uma aliança revolucionária. Depois então passa a análise do sujeito dessa aliança, mostrando que nem governos, nem a burguesia seriam capazes de organizá-la e termina discutindo que essa, dada as condições históricas uma organização pública só serviria como balão de ensaio, mas uma organização revolucionária efetiva precisaria se organizar de forma secreta. E assim ele conclui: “Mas não somente o segredo; para que tal aliança se torne possível, é preciso que os homens que a formam tenham convicções filosóficas, religiosas, políticas e sociais mais ou menos, ou, se é que é possível, totalmente iguais” (Bakunin, 1864). A segunda parte da carta discorre sobre o principio filosófico-teórico da Aliança. Assim ele apresenta uma caracterização ao mesmo tempo da situação histórica europeia e uma análise da história:

“O mundo está, mais do que nunca, dividido entre dois sistemas eternamente opostos: o princípio teológico e o princípio humanitário, o da autoridade, e o da liberdade. O velho sistema parte desta ideia fundamental que a humanidade é má para si própria, e que, para reconhecer a verdade, ela precisa de revelação divina, para reconhecer a justiça, leis divinas, (20) e, para observá-las, de autoridades e instituições divinas (il.), ao mesmo tempo religiosas e políticas, da Igreja e do Estado” (Bakunin, 1864).

O entendimento apresentado aqui é o de que existe uma dialética, uma oposição, entre dois sistemas, o da autoridade e o da liberdade. Os sistemas fundados sobre o princípio da autoridade estariam manifestos na história nessas duas instituições, a Igreja e o Estado. E depois Bakunin conclui:

“Acreditamos que todas as religiões passadas e presentes foram tanto revelações progressivas e historicamente necessárias não da Divindade, mas da própria Humanidade, das próprias consciência e inteligência humanas. Nestes tempos remotos onde a inteligência ainda pouco desenvolvida do homem agia muito mais como imaginação que como razão, ele não atingia a compreensão (il.) sucessiva da terra e de si próprio a não ser por uma teologia fictícia. Cada povo e cada época criaram um Deus à sua imagem. Tal Deus, e tal tempo, e tal povo. Deus era e ainda é o homem refletindo-se na sua mais pura essência, no seu ideal: é a reverberação da humanidade num céu imaginário. Cada nova religião foi, assim, ao mesmo tempo um ato de força e de fraqueza, um progresso e uma estagnação. Alargando o seu ideal, sua representação de si própria através e sob a forma de uma nova religião, aperfeiçoando seu Deus, a humanidade fazia prova de potência. Mas ela revelava ao mesmo tempo sua fraqueza, transportando para fora de si, para as regiões celestes, este Deus, sua própria criação. Ela não ousava ainda reconhecer-se e apropriar-se de seu próprio bem e de sua obra. Ela divinizava sua própria natureza, sua própria essência e, prosternando-se frente a si própria no céu, desprezava-se sobre a terra. Suas próprias virtudes, suas próprias claridades e potência, ela as dava ao seu Deus, reservando para si somente a impotência, a ignorância e a miséria: incapaz de conduzir-se por si próprio, carente da tutela divina e condenado, por conseguinte, a uma infância e a uma dependência eternas nesta terra. p.12

Podemos dizer que o texto realiza assim alguns aspectos fundamentais da teoria de Bakunin, expressando seu método e a ontologia que orienta sua produção. Bakunin começa o texto com a aplicação da dialética Proudhoniana (autoridade—liberdade) à análise do mundo e da política mundial. Ele identifica e desdobra o uso de oposições dialéticas como Teologia (Autoridade) x Humanidade (Liberdade), Igreja/Estado x Associação Livre, para questionar a tese da formação do “ser” , a tese do inatismo que é a base da religião (da “maldade inata” que o cristianismo enquanto religião reproduz). A dialética autoridade-liberdade é assim uma oposição abstrata que vai se materializando em instituições históricas. Por outro lado, Bakunin atesta o caráter social da Igreja e do Estado, produtos da sociedade no sentido amplo. Esse aspecto é particularmente importante, apesar de parecer relativamente banal, ele tem um lugar diferente, pois existe uma implicação para a prática política. Ao afirmar o caráter social da religião e do Estado, Bakunin está afirmando a centralidade da sociedade em face da tese criacionista (que atribui a origem da sociedade um tempo mágico-religioso) e da tese contratualista (que atribui a origem da sociedade há um tempo conjectural-literário), mas que sempre chegam a ideia de que a autoridade deve suprimir e controlar a liberdade. Ou seja, a “sociedade” na visão da religião e do contratualismo liberal é uma fonte de “desordem” que precisa ser controlada por uma autoridade que lhe é exterior. Além disso, Bakunin considera as religiões como uma manifestação determinada da sociedade humana, que apresenta ao mesmo tempo um caráter contraditório: 1) progresso; 2) estagnação do desenvolvimento da razão. Esse princípio se aplica, por exemplo, a análise de como o protestantismo representou um progresso em relação ao catolicismo por individualizar e materializar a religião, , ao combater a Igreja Católica ele avançou na liberdade exterior (desestruturando o poder internacional da mesma), mas instituiu a negação da liberdade interior ao criar o autocontrole e a submissão como valores e práticas que ajudaram a fundar o absolutismo. Além disso, o protestantismo é a manifestação radical do individualismo e egoísmo, a doutrina do “eu”. Podemos observar isso pelo trecho abaixo:

“...o protestantismo consequente e puro é uma doutrina antissocial demais e anti-humana demais para poder algum dia encontrar uma realização algo completa. A sociedade humana preexiste a toda teoria; ela tem sua natureza, suas exigências, seu instinto de conservação, suas leis indiretas e suas condições de existência, às quais ela não saberia renunciar sem se destruir. Todas as ideias religiosas e filosóficas, políticas e sociais que se seguiram, no mundo, foram, da mesma forma, expressões das diferentes fases de seu desenvolvimento histórico. Todas, consequentemente, encontraram na humana sociedade sua justificação e sua razão de ser. Mas nenhuma, até aqui, exauriu, nem soube exprimir sua natureza completa, a plenitude de seu ser. Em comparação desta riqueza natural, inesgotável, todas estas ideias aparecem, pois, como abstrações, em mesmo número, e isto explica o duplo papel que elas desempenham no mundo. Quando nasce, cada ideia nova é um progresso. Mas como ela não é, ao mesmo tempo, mais que uma expressão incompleta e parcial da natureza infinitamente rica e complexa da sociedade, quando ela pretende encarnar-se totalmente nesta e destruir tudo o que lhe é contrário, a sociedade resiste, obstina-se, revolta-se e a ideia antes progressiva, não conseguindo deitá-la em seu leito de Procusto, nem a petrificá-la em suas formas, e persistindo mesmo assim na imposição pela violência, transforma-se por sua vez numa fonte de reação.”.

Dessa forma, ao analisar a história da religião, ele aplica as oposições entre autoridade e liberdade, progresso e reação, entre catolicismo e protestantismo, realizando uma correspondência entre progressiva entre o desenvolvimento do estatismo e da sociedade. O protestantismo foi um progresso, pois realizou oposição ao catolicismo e enfraqueceu a Igreja Católica no sistema internacional, mas representou uma estagnação pois reforçou o autoritarismo interno dos países. Assim, o desenvolvimento da sociedade e do Estado são explicados a partir dessa analise dialética da história a partir do desenvolvimento da política e das ideologias. Ele identifica que é a religião o principio que domina ainda a sociedade e logo, é preciso combater esse princípio. Isso abre o terreno para a enunciação da centralidade do conceito de sociedade no pensamento de Bakunin. Depois de realizar a crítica da religião, que Bakunin entende ser o fundamento do Estado absolutista, ele direciona sua crítica ao liberalismo. E esse movimento é extremamente importante, pois ele concebe que existe uma relação de continuidade entre a visão holista autoritária do absolutismo e o individualismo liberal. “Esta coincidência singular entre a teoria política de Rousseau e aquela relativa à doutrina cristã provém daquilo que, sem dizê-lo e sem admiti-lo para si mesmo, encara natureza humana e da liberdade do indivíduo como más por si sós, pelo menos em parte, já que precisam abandonar esta parte a fim de poder-se conformar à lei universal e moral” (Bakunin, 1864). Ao mesmo tempo, ele vai demonstrar que o liberalismo tem certas bases iguais ao cristianismo (católico e protestante) enquanto ideologia: a negação da liberdade e a ideia de inatismo. Ao falar do constitucionalismo e do liberalismo Bakunin apresenta uma radical crítica à teoria do contrato social e de uma “condição natural” num tempo “a-histórico”. O tempo do contrato social em que se realizaria a ruptura da sociedade com a natureza, é para Bakunin um equivalente da tese criacionista religiosa num tempo mítico. Bakunin historiciza e materializa a natureza ao considerar a evolução do homem da condição de animal – na qual ele não tem liberdade, mas é determinado por forças materiais. A história natural do homem é evocada para questionar a historia conjectural do liberalismo a tese criacionista da religião. Ou seja, o homem é natural, a sociedade faz parte da natureza, entre a natureza e a sociedade não existe ruptura. E a liberdade é o produto da luta do homem contra sua condição de animal, expressa nas diferentes formas de pensamento e organização social.

“O homem (36) é, instintiva e fatalmente, um ser social, e nasce na sociedade assim como a formiga, a abelha, o castor (il.). Há nele, como há em seus irmãos inferiores, ou seja, como em todos os animais selvagens, uma lei inerente de solidariedade natural que faz com que as tribos mais primitivas fiquem juntas e se ajudem entre si, e se governem por uma espécie de lei natural. O homem só tem um traço que o distingue dos outros animais, mas é um traço imenso, infinito, é a razão, é essa potência de sair dos limites estreitos do mundo que o envolve, de si mesmo, e abraçar, imaginar e conceber o Universal. É a única razão pela qual o homem não pode ficar em seu estado primitivo, selvagem, e, pela consciência sucessiva de si mesmo, pelo desenvolvimento progressivo de sua inteligência, ele cria para si uma segunda natureza, a humanidade, a liberdade. É a única causa pela qual seu instinto de solidariedade natural se transforma em consciência e esta, por sua vez, cria a justiça. É por isto que o labor instintivo, rotineiro e monótono do animal transforma-se, para ele, em trabalho triunfante e conquistador do mundo. É, enfim, unicamente por isto, que, transformando, por uma sucessão de imensas evoluções e revoluções históricas, a sociedade humana natural em sociedade organizada segundo a inteligência, a justiça e o direito, ele criou sua liberdade. Não se trata, pois, de diminuir a liberdade, é preciso, ao contrário, aumentá-la sempre e sempre, pois, quanto maior a liberdade de todos os homens que compõem a sociedade, mais esta sociedade é humana.”

Aqui nós temos dois componentes. Enquanto o homem, enquanto “ser”, se diferencia pela sua capacidade racional, pelo pensamento, esta só se realiza através do trabalho. É o trabalho que realiza o ser do dos seres humanos, ao transformá-lo em criador, ou seja, existe uma relação entre trabalho e liberdade, pois é através do pensamento e do trabalho que o homem cria a liberdade:

“A mesma lei de solidariedade encontra-se no trabalho. Ela se chama associação e divisão do trabalho. A grande, a maior missão do homem, depois da liberdade, e condição fundamental desta, seu mais belo triunfo, sua felicidade e sua honra, ao mesmo tempo, seu único título de nobreza, é conquistar o mundo exterior, transformando-o, criando-o, por assim dizer, uma segunda vez, através do trabalho. Através do trabalho, o homem torna-se criador. E aí está, novamente, uma diferença enorme, um dos abismos que nos separam dos teólogos: eles amaldiçoam, eles desprezam o trabalho, vendo-o como um símbolo da decadência humana. Nós, ao contrário, bendizemos o trabalho e o (38) reverenciamos acima de tudo, só não acima da liberdade, apesar de o primeiro ser a condição essencial da segunda, pois vemos no trabalho a base única de moralidade, da dignidade e da liberdade do homem”

Enquanto no liberalismo, se identifica a natureza como estado de liberdade absoluta que precisa ser controlado pelo Estado para fazer surgir à sociedade, Bakunin ao evocar a historia natural mostra que na realidade a condição natural é ultra-determinada pela animalidade do homem, pelo instinto e que é o trabalho e o pensamento que rompem com essa condição criando a liberdade. Aqui então temos a ideia de que a Liberdade coletiva é não a limitação, mas a confirmação da liberdade individual. Ou seja, não existe uma condição de liberdade original que precisa ser controlada para fazer surgir à sociedade, a sociedade já existe como fato natural, ela é apenas transformada pelo trabalho e pensamento, que criou inclusive a religião e o Estado. A dialética entre autoridade e liberdade é aplicada a análise e critica do liberalismo: não é autoridade do Estado que cria a sociedade, a sociedade é anterior, natural que criam as religiões e o Estado. Podemos dizer que Bakunin faz uma análise dialética que lança mão de um conjunto de oposições dialéticas que ao mesmo tempo englobam e materializam suas categorias, indo do abstrato ao concreto e do lógico ao histórico, da unicidade à multiplicidade, começando pela dialética autoridade-liberdade e se materializando em oposições como natureza/sociedade e reação revolução. De maneira geral, existe outro componente fundamental, que é a centralidade do conceito de sociedade. A ideia de sociedade é assim uma categoria ontológica (pois ela diz respeito à teoria do ser e do sujeito em Bakunin) e política, pois dessa perspectiva ele considera que sendo a sociedade parte do mundo material e criadora das formas de pensamento e instituições, ela deve ser a protagonista dos processos revolucionários. E aqui chegamos à análise da parte final do documento em que Bakunin vai apresentar o programa e as tarefas práticas da organização. A centralidade da ideia de sociedade e de coletividade no plano ontológico e teórico, vai se expressar no plano político na ideia de revolução social. É por isso que chamamos a concepção materialista de Bakunin de materialismo sociológico[1]. O conceito de revolução política e social expressa no plano prático a concepção de uma dialética e ontologia da filosofia e teoria: começando com o principio da autoridade e da liberdade, se sociologiza esses princípios em instituições e relações sociais determinadas (Estado/Igreja/Família Patriarcal/Capital/Herança-Propriedade). O quadro abaixo apresenta as medidas práticas que o programa da organização secreta prescreve como fundamentais para uma revolução socialista. O programa se diferencia em dois planos, um político e outro social (sendo que o social abrange as medidas econômicas, exatamente porque se considera que o trabalho é um dos componentes essenciais do social). Podemos observar que estão no campo dessas ações, medidas relativas ao trabalho e economia; educação, sociabilidade e ideologia; e medidas propriamente políticas, de destruição do Estado e instituição do auto-governo. Um tema destacado e que citaremos aqui porque ele mostra o nexo entre todas essas medidas e visão de múltipla-determinação, é exatamente a questão da mulher. O anti-patriarcalismo de Bakunin é parte do seu antiestatismo e anti-capitalismo:

“Não há dúvida que a emancipação do casamento dará um golpe mortal, o último golpe, na família patriarcal, teológica e sagrada – verdadeiro embrião-protótipo do Estado teológico e sagrado. Mas não vejo aí nenhum mal. Esta família foi e ainda continua a ser, mesmo que num grau consideravelmente enfraquecido, a ama de leite de todos os despotismos. A autoridade terrível do pai, do esposo, do irmão mais velho, e em geral dos irmãos sobre as irmãs, e de todos sobre os servidores. Esta solidariedade hierárquica da família, representando, de uma só vez, a aristocracia mais orgulhosa e a monarquia mais absoluta, eis o forte sagrado de toda opressão, de toda igualdade, de todas as injustiças políticas e sociais. Que mal há em que esta fonte do mal desapareça? Ela já tende a desaparecer em todo lugar, hoje. Em princípio, segundo a lei, ela continua mais ou menos a mesma – sempre, com pequenas modificações, esta velha instituição da autoridade patriarcal do pai, do esposo e do irmão – mas os modos mudaram; mas o espírito do século, em todo lugar, mostra-se mais forte que a lei – e a família antiga, patriarcal, este sanctus sanctorum[2] do estado centralizador, divino, monárquico, está visivelmente acabando. Os modos atuais, em todos os países, apesar de todas as leis, tendem, evidentemente, à instituição da família livre. A Família, para ser livre, será dissolvida? De forma alguma, a não ser que se pretenda que tenha por origem e por base não uma lei inerente à natureza humana, mas não sei qual mandamento vindo de cima, estranho e contrário a esta natureza (...) É sempre a mesma, a antiga questão da autoridade e da liberdade. Nossos adversários pretendem que para organizar, manter, conservar e moralizar a família, é necessária a mão opressiva e potente da autoridade. p. 24

É preciso entender então que Bakunin vai materializando e individualizando, o principio da autoridade, que se manifesta na teologia e na religião, se manifesta na política no Estado Absolutista ou Monarquico-Constitucional e na relação indivíduo-sociedade, na instituição da família patriarcal com o domínio masculino e gerentocrático. Assim a negação da autoridade é a negação da herança, religião, do idealismo, do Estado e da família patriarcal, que são na economia, política e sociedade a manifestação do mesmo princípio de autoridade através da propriedade privada e exploração. Assim, o ataque ao patriarcalismo faz parte de um conjunto de ações de destruição-criação que não priorizam a ação do Estado sobre a sociedade, mas a transformação das condições e fundamentos do Estado na sociedade e economia. Da multiplicidade de causas sociais e materiais, conclui-se a necessidade da simultaneidade de ações destrutivas-criativas que caracterizam o conceito de revolução social. A revolução é social porque não somente é preciso atacar o Estado (manifestação maior do principio da autoridade), mas as instituições sociais que são a origem e fundamento do Estado e aqui a centralidade da ideia de sociedade como a “criadora” (inclusive da religião e do Estado) se realiza como contraponto da ideia liberal e teológica de que o Estado cria a sociedade. O trabalho e o pensamento são as fontes e condições da liberdade, daí o ataque a Igreja e o papel da Escola e da educação; a família patriarcal é também a matriz da ordem política, daí a necessidade de um novo tipo de família para um novo tipo de organização sociopolítica; a propriedade privada e a herança são na economia, a manifestação do principio patriarcal e da autoridade sobre o trabalho e o produto, por isso o fim da herança e da propriedade em prol da associação e propriedade coletivas. Ou seja, o “social” não é somente um adjetivo, mas expressa uma teoria do ser, do mundo e da sociedade. Assim, a ideia da revolução social depende da dialética natureza-sociedade, pensamento-trabalho, autoridade-liberdade e todas as demais categorias. Os documentos “Projeto de organização da Família dos Irmãos escandinavos”, “Projeto de uma organização secreta internacional -Sociedade Internacional Secreta da Revolução convencionado pelos irmãos fundadores” apresentam uma detalhada descrição da estrutura, objetivos e formas de ação da organização revolucionária secreta. O primeiro documento consiste da continuação da argumentação em favor da criação de uma seção escandinava, e apresenta outros elementos da posição política, especialmente, uma critica a aliança com a burguesia. Ao mesmo tempo, ele detalha e reafirma o papel do campesinato e dos operários das cidades como os setores e sujeitos da revolução social. Apesar de existirem categorias da sociedade que poderiam ser mobilizadas (setores da juventude e intelectualidade burguesa, estas o seriam sob condições e parcelas especificas e restritas). O segundo é o programa provisório, com medidas sociais e políticas que passam pela reorganização da família até a estruturação de um governo revolucionário federativo e uma federação internacional de povos. A fraternidade internacional tinha uma preocupação organizativa, que é um tema típico do federalismo: equilibrar os poderes e garantir a eficácia da ação revolucionária. O trecho abaixo fala da estrutura diretiva da fraternidade:

Na cabeça de cada nação, ou de cada região, como, por exemplo, a Região Escandinava, haverá um Governo Nacional ou Regional, composto unicamente de irmãos pertencentes a tal nação ou tal região. Ele terá a dupla missão de organizar a propaganda e a sociedade secreta em seu país, e de nele executar, na medida do possível e parando somente frente ao impossível, as ordens do governo central em seu país, tendo sempre o cuidado de informar este último, o mais exatamente possível e com uma franqueza absoluta, sobre o estado real dos espíritos e das coisas em seu país. Se o Governo Central ordenar algo cuja execução lhe pareça impossível, ele relatará tal fato ao Conselho nacional, da mesma forma unicamente composto de irmãos, e que ele reunirá nesta ocasião, e, se este compartilhar a opinião do Governo nacional, este último enviará seu protesto ao Governo Central. Queremos uma organização tal que a autonomia das nações seja tão bem defendida quanto a eficácia da ação central. É a condição sine qua non de nosso sucesso” (Bakunin, 1684).

Depois de argumentar sobre a estrutura organizativa, Bakunin apresenta o programa ou catecismo revolucionário internacional, que deveria servir de base para os programas nacionais:

“O programa ou o Catecismo revolucionário de cada nação será o mais próximo possível do Catecismo dos irmãos internacionais, e será, naturalmente, adaptado ao caráter particular e ao grau de desenvolvimento de cada nação. Porém, é mais do que desejável, é necessário que, nos Catecismos revolucionários de todas as nações se encontrem estes pontos fundamentais: 1º – Separação absoluta entre a Religião e a Política, entre a Igreja e o Estado – Abolição de qualquer Igreja de Estado – de qualquer subvenção do Estado ao culto que for – Liberdade absoluta para todas as religiões cristãs ou anticristãs – e que os gastos e a manutenção de todas as igrejas sejam pagos pelos próprios sectários[3]. 2º – Para o estado[4] da república – e em todas as aplicações da vida política e social, o princípio da liberdade em lugar da autoridade – para o indivíduo assim como para as unidades coletivas: associações, comunas, distritos, províncias e nações. Em todo lugar, o princípio liberal da Federação deve substituir o princípio despótico da Centralização. 3º – Abolição das classes e dos privilégios – Sufrágio universal. Tudo para o povo e tudo pelo povo – E, na medida em que possa ser explicada, progressivamente, em cada país, a necessidade de uma reorganização social, de uma mudança progressiva nas leis que regulam as condições do trabalho e do capital, do direito de herança e da propriedade – Necessidade, para todo o mundo, de trabalhar, e de só viver de seu próprio trabalho, sem explorar o trabalho de outros. Dignidade do trabalho, que deve-se instituir como base única de todos os direitos políticos e sociais – Importância da educação pública, esta provedora[5] moral da democracia. Transformação das escolas – Instrução obrigatória e gratuita.(23) 4º – Abolição do exército – Armamento nacional. 5º – Política exterior fundada na justiça e na liberdade – Condenação definitiva e absoluta dos ditos interesses de Estado – e da Razão de Estado, tanto na política interior como na política exterior – Condenação da política de engorda política, estratégica e comercial, do direito de conquista e do direito histórico. Princípio absoluto: cada nação, pequena ou grande, cada província, tem o direito absoluto de dispor de si mesma segundo suas simpatias, sua vontade e seus interesses, e sem nenhuma consideração pelas ditas necessidades de Estado, tanto do país de que ela fez parte até então quanto do país dos outros países[6]. 6º – Solidariedade dos interesses e da liberdade de todos os povos e de todas as nações – Dever, para cada país, de apoiar, na medida de suas forças e de seus meios, qualquer outro país que combata por sua liberdade – O próprio interesse de cada país ordena isto, é claro. 7º Enfim, necessidade de uma forte organização nacional, regional e Europeia Central, primeiramente secreta, e depois, na medida do possível, pública, de todas as forças revolucionárias – para garantir e para acelerar o triunfo da liberdade em toda a Europa, e, através dela, em cada país – E, consequentemente, a absoluta necessidade de coletas de dinheiro para dar meios financeiros aos poderes nacionais, regionais e centrais”.

Dessa maneira, não somente a política da organização deveria implicar uma organização secreta (mas que tenderia a tornar-se pública), como também seu programa era a expressão da ontologia materialista e do conceito de revolução social. A liberdade política, religiosa, associativa como parte da política de destruição do Estado é assim o fundamento dessa política. A concepção materialista de Bakunin, centrada no conceito de sociedade expressava-se no plano da política no conceito e prática da revolução social. Mas sob o conceito de revolução social reside uma luta política e filosófica contra o absolutismo e o liberalismo, que reside na contraposição do protagonismo estatal (ou seja, da consideração da sociedade como uma fonte de desordem ou dispersão que precisa ser regulada por uma autoridade exterior, o Estado) por um protagonismo social, ou seja, pela afirmação de que a sociedade (como unidade natural, material e pré-condição da existência humana e das instituições econômicas e políticas) é o sujeito da criação da revolução, e mais especificamente, que sendo a sociedade dividida em classes, somente as classes trabalhadoras estariam em condição de assumir esse protagonismo (pois a burguesia e aristocracia estavam agora fundidas no Estado). A análise leva assim a afirmação do protagonismo das classes trabalhadoras, base do sindicalismo revolucionário de diversas seções da AIT. Essa ontologia, teoria e política foi uma das bases do conflito com os social-democratas e com Karl Marx.

2 – Estatismo e Anarquia: anarquistas, social-democratas e o problema do determinismo econômico

O período que vai de 1867 até 1873 é marcado pela adesão da organização secreta à AIT, pelo rápido desenvolvimento das greves e lutas operárias na Europa, pela Guerra e Comuna de Paris. É nesse contexto que são produzidos livros como “Federalismo, Socialismo e Anti-teologismo – Proposição apresentada ao Comitê Central da Liga da Paz e da Liberdade”, publicado em 1867; “O Urso de Berna e o Urso de São Petersburgo”, (1869), “O Império Knuto-Germanico e a Revolução Social” (publicado em 1870 por Bakunin, durante a guerra e ocupação da França pela Alemanha); “Cartas a um Francês sobre a Crise atual”, A Situação Política da França (1871). Uma relação entre a teoria e a prática política bakuninista pode ser claramente identificada no seu texto Federalismo, Socialismo e Antiteologismo[7]. Nela encontramos três pilares fundamentais da filosofia de Bakunin: a defesa da liberdade política (federalismo), da igualdade econômica (socialismo) e do materialismo (antiteologismo). De certa maneira, este livro constitui uma das principais bases do pensamento de Bakunin, já que articulam a dimensão que poderíamos denominar de político-programática com a dimensão teórico-filosófica. Bakunin apresenta desta maneira a sua argumentação: “Podrá parecer extraño a muchas personas que en un escrito político y socialista tratemos cuestiones de metafísica y de teología. Pero es que, según nuestra convicción más íntima, estas cuestiones no se pueden separar de las del socialismo y de la política.” (Bakunin, 2003b, p. 29) A crítica da religião e do idealismo está ligada dialeticamente a critica do Capital e do Estado. Iremos levar em consideração especialmente essas obras, pois nelas delineia-se claramente a sua filosofia e projeto cientifico (a formação de uma sociologia da liberação) bem como sua teoria da revolução, na qual ocupa um lugar central a teoria do Estado. Nesse conjunto de escritos começam a surgir as preocupações em debater como os comunistas, a social-democracia alemã e marcar sua diferença teórica. Esse segundo período, 1872–1873, será profundamente marcado por essa opção de teorias e de política. No prefácio à segunda edição do “Império” Bakunin afirma “esta é, enfim, a contradição já histórica que existe entre o comunismo cientificamente desenvolvido pela escola da social democracia alemã e aceito em parte pelos socialistas americanos e ingleses, por um lado, e por outro, o proudhonismo amplamente desenvolvido e levado até suas últimas consequências, aceito pelo proletariado dos países latinos” que teve seu “primeiro experimento prático ma Comuna de Paris” (Bakunin, 1870) Dessa maneira, livro e os diversos manuscritos que foram reunidos como parte integrante dessa obra, apresentam já uma critica da concepção de Marx, não somente da defesa do Estado, mas de interpretação da história e sociedade. Num dos manuscritos, por exemplo, existe a defesa do materialismo como concepção e emerge uma preocupação mais clara, de marcar uma diferença teórica e política em relação ao marxismo e a socialdemocracia alemã, em face da própria expansão da política imperial da Alemanha na Europa. O materialismo é uma forma de crítica teórica do idealismo e de crítica social da alienação diante do Estado: “Quem tem razão, os idealistas ou os materialistas? Uma vez feita à pergunta, a hesitação se torna impossível. Sem dúvida, os idealistas estão errados e os materialistas certos. Sim, os fatos têm primazia sobre as ideias; sim, o ideal, como disse Proudhon, nada mais é do que uma flor, cujas condições materiais de existência constituem a raiz” (Bakunin, 1988)[8] Mas iremos tomar o apêndice do livro Império Knuto-Germânico um livro que analisa a política externa alemã, as contradições entre Estados e a defende a estratégia da revolução social, basicamente materializada numa política de guerra de guerrilhas que deveria ser combinada com uma insurreição geral. O manuscrito foi publicado em língua espanhola sob o titulo “Considerações Filosóficas”. Esse texto coloca de forma clara a posição filosófica de Bakunin sobre o materialismo, especialmente no que tange a elaboração do contraponto a ideia de uma determinação econômica absoluta, e não relativa, da sociedade. Mais uma vez o tema volta a ser colocado no plano da filosofia e da ontologia (já que sempre essa questão surge nos debates sobre economia e classes sociais):

“No es este el lugar para entrar en especulaciones filosóficas sobre la naturaleza del ser. Pero como me veo forzado a emplear a menudo la palabra naturaleza, creo deber decir aquí lo que entiendo por ella. Podría decir que la naturaleza es la suma de todas las cosas realmente existentes. Pero eso me daría una idea completamente muerta de la naturaleza, que se presenta a nosotros, al contrario, toda movimiento y toda vida. Por lo demás, ¿qué es la suma de las cosas? Las cosas que son hoy no serán mañana; mañana se habrán no perdido, sino enteramente transformado. Me acercaré, pues, mucho más a la verdad diciendo que la naturaleza es la suma de las transformaciones reales de las cosas que se producen y que se producirán incesantemente en su seno; y para dar una idea un poco más determinada de lo que pueda ser esa suma o esa totalidad, que llamo la naturaleza, enunciaré, y creo poderla establecer como un axioma, la proposición siguiente. Todo lo que es, los seres que constituyen el conjunto indefinido del universo, todas las cosas existentes en el mundo, cualesquiera que sea por outra parte su naturaleza particular, tanto desde el punto de vista de la calidad como de la cantidad, las más diferentes y las más semejantes, grandes o pequeñas, cercanas o inmensamente alejadas, ejercen necesaria e inconscientemente, sea por vía inmediata y directa, sea por transmisión indirecta, una acción y una reacción perpetuas; y toda esa cantidad infinita de acciones y de reacciones particulares, al combinarse en un movimiento general y único, produce y constituye lo que llamamos vida, solidaridad y causalidad universal, la naturaleza. (Bakunin, CF)

O conceito de natureza, como mundo material, engloba a totalidade das causas, seres orgânicos e inorgânicos que exercem incessantemente uma ação-reação e formam a totalidade. A multiplicidade de causas e fatores materiais define assim o conceito de natureza e também o de sociedade, como vimos anteriormente.

“Toda cosa no es más que lo que hace: su hacer, su manifestación exterior, su acción incesante y múltiple sobre todas las cosas que están fuera de ella, es la exposición completa de su naturaleza, de su substancia, o de lo que los metafisicos, el señor Littré con ellos, llaman su ser íntimo. No puede tener nada en lo que se llama su exterior: en una palabra, su acción y su ser son uno. Se podría asombrar uno de que hable de la acción de todas las cosas, aun em apariencia las más inertes, tan habituados estamos a no asociar el sentido de essa palabra más que a los actos acompañados de una cierta agitación visible de movimientos aparentes, y sobre todo de la conciencia, animal o humana, del que obra. Pero, hablando propiamente, no existe en la naturaleza un solo punto que esté en reposo nunca, pues todo se encuentra, en cada momento, en la infinitesimal parte de cada segundo, agitado por una acción y una reacción incesantes. Lo que llamamos la inmovilidad, el reposo, no son más que apariencias groseras, nociones por completo relativas. En la naturaleza todo es movimiento y acción: ser no significa otra cosa que hacer. Todo lo que llamamos propiedades de las cosas: propiedades mecánicas, fisicas, químicas, orgánicas, animales, humanas, no son más que diferentes modos de acción. Toda cosa no es determinada o real más que por las propiedades que posee; y no las posee más que en tanto que las manifiesta, pues, sus propiedades determinan sus relaciones com el mundo exterior, es decir, sus diferentes modos de acción sobre el mundo exterior; de donde resulta que toda cosa no es real más que en tanto que se manifiesta, que obra. La suma de sus acciones diferentes, he ahí todo su ser (Bakunin, CF)”.

Aqui temos outra enunciação central: oser não é senão o fazer, a natureza e a sociedade não senão a continua dinâmica de ação-reação e progresso-estagnação. O modo de ser não é senão um modo de fazer, que diz respeito a todas as posições e influencias exercidas sobre as causas materiais, da multiplicidade objetiva. Em outro manuscrito/fragmento do “Império” ele coloca claramente o debate com a concepção materialista de Marx:

“Não é tal a opinião da escola doutrinaria dos socialistas, ou melhor dos comunistas autoritários da Alemanha, escola fundada pouco antes de 1848 e que prestou, temos que reconhecer, serviços eminentes a causa do proletariado (...) É uma escola perfeitamente respeitável, o que não a impede de (...) sobretudo de ter tomado por base de suas teorias um princípio profundamente certo quando se o considera em sua verdadeira luz, desde um ponto de vista relativo; mas que encarado e considerado como o único fundamento e todo o fundamento de todos os demais princípios, como faz esta escola, resulta completamente falso. (...) Tal princípio é absolutamente oposto ao princípio reconhecido pelos idealistas de todas as escolas. Enquanto que estes últimos derivam todos os fatos da historia compreendidos o desenvolvimento dos interesses materiais e das diferentes fases de organização econômica da sociedade, do desenvolvimento das ideias, os comunistas alemães, ao contrário, não querem ver em toda a história humana, nas manifestações mais ideias da vida, tanto coletiva quanto individual, da humanidade, em todos os seus desenvolvimentos intelectuais e morais, religiosos, metafísicos, científicos, artísticos, políticos, jurídicos e sociais que se produziram no passado e que continuam produzindo-se no presente, nada mais que reflexos o contragolpes necessários dos fatos econômicos. (Bakunin, IKG)

A ideia de que a economia determinava e qualificava os sujeitos sociais é assim questionada, e aparece de forma categoria no debate com Marx por ocasião da cisão da AIT em 1872. Essa diferença fica explícita na Carta ao jornal Le Liberte, em que Bakunin marca com clareza a sua diferença para com o determinismo econômico do comunismo alemão, Bakunin diz:

“É um princípio profundamente verdadeiro logo que o consideramos sob o seu verdadeiro aspecto, isto é, sob um ponto de vista relativo, mas que, visto e posto de uma maneira absoluta, como o único fundamento e a primeira fonte de todos os outros princípios, como o faz esta escola, torna-se completamente falso.”(Bakunin, 1976, p. 92).

O estado político de cada país ... é sempre o produto e a expressão fiel da sua situação econômica: para mudar o primeiro só é necessário transformar esta última. Todos os segredos das evoluções históricas, segundo o Sr. Marx está lá. Ele não toma em consideração os outros elementos da história, tais como a reação contudo evidente, das instituições políticas, jurídicas e religiosas sobre a situação econômica. Ele diz: ‘A miséria produz a escravatura política, o Estado’; mas não se atreve a revirar esta frase e a dizer: ‘A escravatura política, o Estado, reproduz por sua vez e mantém a miséria, como uma condição de sua existência; de modo que para destruir a miséria, é preciso destruir o Estado”. (Bakunin, 1989).

O Manuscrito intitulado “A Alemanha e o Comunismo de Estado” expressa a divergência de Bakunin com relação ao determinismo econômico e ao materialismo histórico, que segundo Bakunin estaria levando a uma defesa do industrialismo e do nacionalismo, fortalecendo a política de expansão do Império Germânico na Europa. O argumento da socialdemocracia era, segundo Bakunin, de que os povos eslavos eram camponeses e que nessas formações sociais o capitalismo não poderia ser desenvolvido, e que seria necessário a expansão do capitalismo pelo poder do Estado Alemão, que levando a industrialização criaria um proletariado industrial, iria proletarizar os camponeses e criaria assim as precondições para a revolução. Logo, Bakunin viu muito precocemente os efeitos práticos e políticos desse princípio. Para Bakunin não é possível assumir uma determinação absoluta da economia sobre a política e sobre o Estado. Ele coloca o Estado também como um fator determinante, inclusive da própria economia. Para Bakunin, o estatismo representava a força que caracterizaria a evolução do próprio capitalismo. E mesmo teorias como o comunismo alemão, fortaleciam o Estado, e por isso, ele as considerava como parte do próprio fenômeno do estatismo, e em contradição com a anarquia, que seria a teoria e expressão da revolução social, que por definição era a negação do Estado. Nesse sentido, a diferença e oposição ao pensamento social-democrata e marxista não seria pontual. Nesse aspecto, ele se diferencia em primeiro lugar, por questionar a tese do protagonismo estatal opondo-o o protagonismo social (que irá assumir a forma obreirista e populista, de centralidade da ação direta de classe). Essa ideia de revolução social integral oposta a revolução política ou por etapas da teoria social-democrata, expressa a distinção radical entre a visão bakuninista e marxista de materialismo. Para Bakunin, a socialdemocracia, o liberalismo e o absolutismo-conservadorismo eram todos estatistas e fundados no princípio da autoridade. Nesse sentido, o conceito de estatismo recobre esta relevância e importância atribuída ao Estado enquanto unidade política, e mesmo não estando plenamente sistematizado em Bakunin, sintetiza algumas teses e análises históricas do autor que cabe aqui dar forma teórica mais acabada. O uso do conceito de “estatismo” em Bakunin compreende três significados distintos: 1º) a tendência do Estado-Nação moderno estender de forma “geométrica” suas funções e atribuições, tanto social como territorialmente, e da sociedade organizar-se em função do Estado, iniciando um processo de centralização política crescente; 2º) a tendência à disseminação de “doutrinas” ou “ideologias” que afirmam a necessidade do Estado e da extensão de suas atribuições, legitimando-a e glorificando-a; 3º) uma etapa histórica em que ao mesmo tempo tais tendências sociais e doutrina afirmam-se e tornam-se dominantes dentro da sociedade. O método e a teoria de Bakunin constituem ainda uma linha de interpretação profunda e radicalmente distinta dos modelos de análise social-democrata, liberal e conservadora. De um lado, o liberalismo e o conservadorismo têm a tendência não somente de negar as contradições sociais, a dominação e a exploração, e naturalizar o papel do Estado, mas a escrever uma história de cima, que nega o protagonismo social dos trabalhadores, das classes dominadas e das categorias sociais dominadas entre os dominados (como as mulheres e os camponeses). Assim, o liberalismo e o conservadorismo tendem a negar a exploração e a dominação, e a escreverem sempre uma sociologia e historia de cima, elitista e da ordem. Por outro lado, a teoria social-democata/comunista, nos seus fundamentos filosóficos, tende a fazer a critica da exploração e da dominação, mas ao manter a vinculação ao protagonismo ou fetichismo do Estado, parcializa essa critica, ao mesmo tempo em que a narrativa do determinismo econômico (que transforma-se em determinadas versões no elogio da fatalidade do desenvolvimento capitalista), tende sempre a subordinar e secundarizar as determinações concretas não econômicas, teórica e politicamente, em favor da conquista do Estado para realizar a modernização e reformas econômicas. Nesse sentido, o anarquismo e materialismo de Bakunin constituem outro tipo de análise da sociedade e da história, mantendo a critica à exploração e dominação, mas sendo uma alternativa ao elitismo e estatismo, ao reconhecer o protagonismo social e a se propor a fazer uma ciência vista de baixo e de dentro dos antagonismos e conflitos sociais. Ao mesmo tempo, ao negar o idealismo e o determinismo econômico absoluto, apresenta outro instrumental para a análise política e sociológica. Essa concepção materialista, que estamos chamando de materialismo sociológico pelas razões apresentada acima, pode permitir outra abordagem, crítica e ao mesmo tempo cientifica, da historia do capitalismo, do movimento sindical e da classe trabalhadora e gerar novas teses sobre a interpretação do desenvolvimento capitalista e do sistema mundial nos diferentes países.

Referências Bibliográficas

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[1] Na nossa tese de doutorado, publicada pela EDUSP (2013) realizamos uma discussão sobre “Ordem e Anarquia” na sociologia, demonstrando como na epistemologia das ciências sociais um paradigma da ordem era aplicado na construção dos conceitos. Nesse movimento, fizemos uma contraposição da análise de Bakunin e o paradigma da ordem, expressando exatamente como seu conceito de sociedade era radicalmente distinto e se inscrevia num paradigma que poderia ser chamado de materialismo sociológico.

[2] “Sanctum sanctorum”: lugar sagrado.

[3] No original, “sectaires”. O dicionário Robert registra significados equivalentes ao do português. Evidentemente, o autor referia-se aos fiéis de cada Igreja.

[4] Ou será “Estado”?

[5] “Nourricière”, no original, cujo sentido próprio é “ama de leite”.

[6] No original, “… du pays des autres pays”, sendo que “pays” significa também “região”, referindo-se neste caso a territórios menores que um país e sua respectiva paisagem e cultura.

[7] Num certo sentido, esse livro expressa também as continuidades e rupturas de Bakunin em relação à Proudhon: Bakunin recupera a formulação da relação entre federalismo e socialismo, mas introduz a defesa do materialismo, e faz a crítica dos deslizes “idealistas” que ele atribuía à Proudhon.

[8] Fragmento Manuscrito do Império Knuto-Germanico, publicado depois com o título “Deus e o Estado”