Título: “Veganismo Popular é Poder Popular!”:
Subtítulo: por uma teoria e práxis de um antiespecismo revolucionário
Data: 2022
Fonte: Animales & Sociedad
Notas: Versão em língua portuguesa do texto "Veganismo popular y poder popular: por una teoría y praxis de un antiespecismo revolucionario" publicado na Revista Animales & Sociedad (2022)

Para nós, a maioria das críticas que acertadamente colocam o Veganismo liberal, colonial e ocidental como ineficientes, não propõem e não tem uma práxis (teoria e prática) inserida na realidade para mudá-la, o que torna a crítica estéril. Sendo assim, apenas no nível retórico e discursivo, o Veganismo se retém a um tipo de alimentação e lifestyle, sua proposta se resumindo apenas em consumir ou não consumir algo. Assim, além de uma crítica ao Veganismo hegemônico, devemos considerar uma teoria, assim como uma prática de militância e atuação, que sejam realmente populares, antiespecistas e revolucionárias.

Aqui concordamos que o termo Veganismo, enquanto criado pela “Vegan Society” em 1944 realmente está, desde sua origem, imbricado em um elitismo eurocêntrico, tendo suas pautas e propostas aliadas às políticas estatais de guerra da época, que acabaram por não representar o sul global ou um socialismo internacionalista. Não obstante, ressaltamos que existe uma história (escondida) da libertação animal, que embora minoritária, marcou o trajeto de diversos grupos e agentes revolucionários, construindo um ideário radical e já relacionado a outras lutas, e que pode nos dar pistas para a construção de novos caminhos e veganismos - que aqui chamamos de veganismo popular.

Nesse quesito, a construção e a tradição de luta do chamado “veganismo popular” de vários pontos da América Latina - tradição que nasce na última década de uma crítica ao Veganismo hegemônico e se juntando às lutas feministas, ecologistas, socialistas e decoloniais - mesmo ainda incipiente, pode ser uma proposta para a construção de uma práxis antiespecista que enfrente as dominações e estruturas existentes que afligem animais humanos, não-humanos e a natureza como um todo. Na obra “Reflexiones animalistas desde el Sur” (“Reflexões animalistas advindas do Sul” - na tradução livre para o português) sobre a experiência e reflexões do coletivo Activistas por la Defensa y Liberación Animal (ADLA - Ativistas pela Defesa e Libertação Animal) no Equador, é colocado que:

Desde las luchas anti-extractivistas y por la soberanía alimentaria hasta las luchas de reivindicación étnica, identitaria, de género, y las luchas por preservar modos ancestrales o tradicionales de subsistencia y de organización social y política. Todo veganismo popular nace en la lucha particular de cada pueblo, en la manifestación específica de cada grupo y de cada sector social en resistencia y que lucha por su emancipación y por construir y defender su posibilidad de auto-determinarse (Ponce, J. y Proaño, D., 2020, p.54).

No Brasil, o livro “Antiespecistas: o manual do veganismo popular e revolucionário”, escrito pelos militantes da Antar - Poder Popular Antiespecista e União Vegana Feminista, mostra que a construção do veganismo radical está envolvida em princípios como boicote, ação direta, conscientização, luta de classes e antidominações, antirracismo, antifascismo, feminismo e luta contra as dominações de gênero e sexualidade. Não obstante, seu desenvolvimento e fortalecimento só se dá com as estratégias de inserção social e poder popular. Entendemos esta última, assim como o Movimento dos Trabalhadores sem Teto, como “a realização efetiva do princípio que só os trabalhadores podem resolver os problemas dos trabalhadores” ou seja “estimular e valorizar as iniciativas autônomas, construir formas de organização e de decisão coletivas, lutar por nossas reivindicações e direitos.” (MTST, 2015, p.54)

Construir movimentos que dão poder para lutar por nossos direitos econômicos como sindicatos, organizações políticas anticapitalistas, somados a movimentos com a mesma perspectiva radical, como os movimentos indígenas, ecológicos, feministas, antirracistas, anticapacitistas, LGBTIA+ e queer, e de luta por moradia e por terra são a resposta, tanto para construir uma força que se contraponha aos instrumentos da classe dominante visando sua derrubada, e também para a origem de um novo sistema governado pelos trabalhadores, grupos populares e oprimidos de forma direta.

Um antiespecismo revolucionário não existirá sem se construir, por exemplo, aliado à pauta da soberania alimentar e hídrica, proposta pelos movimentos de luta pela terra, camponeses, indígenas e quilombolas. A partir do momento que a produção de alimentos for realizada pelos próprios oprimidos em seus territórios, e tiver força para combater o Estado e propor isso em nível nacional, sanando o problema estrutural da fome no Brasil e na América Latina, é que o empoderamento a partir de uma alimentação e hábitos que não envolvam animais torturados e mortos pelo modo de produção capitalista pode acontecer.

Além de resgates de animais presos ou ações que escancaram os males da indústria animal (que não deixam de ser relevantes), podemos falar sobre outras lutas que exercitam o antiespecismo, como, por exemplo, movimentos em ocupações, favelas e comunidades que possuem uma enorme quantidade de animais abandonados e falta de saneamento básico, lutas essas fortemente conectadas com a pauta animal e ambiental. Não se trata, portanto, de apenas uma crítica nesse caso, mas de construir um mundo onde o veganismo seja o mais viável possível, onde a luta por melhoria de vida pode ser exercitada junto à reflexão que isso se faz melhorando a relação sociedade-natureza, e, portanto, abrindo brechas para uma libertação animal efetiva.

Mas isso só é possível, primeiramente, com uma teoria antiespecista forte e concisa, pautada e inscrita numa visão internacionalista, anticolonial, socialista e revolucionária, que seja uma crítica anticapitalista e antidominações, e que seja desenvolvida por coletivos revolucionários com estratégia e organicidade, e não apenas por ativismos isolados e performances pessoais. A partir daí, esses militantes podem se inserir em movimentos de massas, impulsionando-os e desenvolvendo seus potenciais ecológicos e antiespecistas.

Na obra “Bestas de Carga: panfleto vegano-socialista” é colocado que:

"O capitalismo tenta espremer até a última gota a vida de seres humanos, intensificando o processo de trabalho para eliminar todos os movimentos não-produtivos.[...] O mesmo ocorre com os animais, o objetivo é eliminar tudo o que não contribui para o produto final, para transformá-los em máquinas para a conversão de ração em carne ou outras commodities. Com os animais, assim como com os seres humanos, o sistema fabril visa restringir o movimento do corpo para maximizar os lucros." (Bestas de Carga, 2015, p.29-30.)

A reificação, a mercantilização e a coisificação da vida, é o que transforma trabalhadores em “bestas de carga”, mulheres em “reprodutoras de mão de obra”, pessoas racializadas em "subalternas" e animais em “comida”. Se a nossa consciência de classe é incapaz de alargar seus horizontes, expandir suas fronteiras arbitrárias ou de incluir aqueles que sofrem opressões semelhantes, estaremos fadados a repetir a mesma lógica supremacista e violenta da classe opressora. Igualmente estaremos fadados a reproduzir, provocar e até mesmo sermos vítimas dessa necropolítica, pois as únicas sementes que irão germinar são as sementes de morte. Só seremos verdadeiramente livres quando libertarmos a última forma de vida de seu cativeiro, seja ela mineral, vegetal ou animal.

Para o veganismo ser popular, ele deve ser construído de forma popular (isto é, a partir da base do povo, das massas, do protagonismo da classe trabalhadora), servindo realmente como um instrumento dos oprimidos para a libertação dos oprimidos. Animais humanos, não-humanos e natureza: todos somos alvos da lógica de produção e dos poderes estabelecidos pelas classes dominantes, e só juntos podemos detê-los e refazer nosso mundo. É por isso que dizemos que “Veganismo popular é poder popular!”

ANTAR & UVF. Antiespecistas: o manual do veganismo popular e revolucionário. Editora Terra Sem Amos, 2021.

BESTAS DE CARGA - Panfleto Vegano-socialista. Traduzido e editado por Victória Monteiro e Vinicius Siqueira. São Paulo: Colunas Tortas, 2015. p.29-30.

CALLE, Antonella; PONCE, Juan José (Coords). Reflexiones Animalistas desde el Sur. Editorial Abya-Yala/ Instituto de Estudios Ecologistas del Tercer Mundo,2020.

DAVIDSON, Martina. “Repensando o Veganismo: o feminismo e o projeto decoloniais como ferramentas ético-políticas para um veganismo anticapitalista”. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2021.

Movimento dos Trabalhadores sem Teto. “Linhas Políticas do MTST: resolução final do I Encontro Nacional (2011).” Revista Insurgência, Brasília, p.243-246,2015.

MOTA, Ana; SANTOS, Kauan Willian dos. Libertação Animal, Libertação Humana: Veganismo, Política e Conexões no Brasil. Minas Gerais: Editora Garcia, 2020 e ANTAR & UVF. Antiespecistas: o manual do veganismo popular e revolucionário. Editora Terra Sem Amos, 2021.