Thiago Lemos Silva
Apresentação ao livro Neno Vasco por Neno Vasco
fragmentos autobiográficos de um anarquista
Vislumbrei a porta de entrada deste trabalho – originalmente defendido como dissertação de Mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFU (SILVA, 2012) – em fins dos anos 2000. Na ocasião, a convivência com colegas e professores do Núcleo de Estudos e Pesquisa em História Política (Nephispo),[1] do Instituto de História da UFU, me estimulou sobremaneira a escolher o tema da minha monografia no Curso de História do Unipam (SILVA, 2007), que versou sobre as relações tecidas entre o movimento anarquista e o movimento operário no contexto da chamada Primeira República Brasileira.
No referido trabalho de final de curso, busquei discutir a posição assumida pelos anarquistas face ao boom das organizações sindicais criadas e mantidas pelo jovem proletariado brasileiro, compostas por trabalhadores imigrantes e nacionais. Afinal, havia uma expectativa de levar a cabo sua resistência contra o nascente capitalismo industrial que impunha duras condições de vida à classe operária, tais como baixos salários, longas jornadas diárias, condições inadequadas de trabalho e, aliado a isso, uma superexploração da mão de obra infantil e feminina.[2]
A atuação do anarquista português Neno Vasco,[3] considerado na época o “expositor mais lúcido” (FAUSTO, 1997, p. 89) do sindicalismo revolucionário brasileiro, tornou-se então, o meu “fio de Ariadne”. Embora não se tratasse de uma biografia, a análise sobre sua trajetória ajudou a compreender melhor a experiência histórica da qual ele fez parte. Diferentemente, o trabalho que resultou em minha dissertação de Mestrado – aqui substancialmente revisto e ampliado – teve como objetivo escrever uma biografia de Neno Vasco.
Meu propósito neste livro é perscrutar fragmentos da autobiografia de Neno Vasco. Para tanto, trago à tona suas crônicas publicadas entre os anos de 1901 e 1920 em alguns dos principais títulos da imprensa anarquista e operária transatlântica. Em maior medida, trabalho com periódicos brasileiros e portugueses, tais como: O Amigo do Povo (1902-1904) e A Lanterna (1909-1916), de São Paulo; A Voz do Trabalhador (1908-1915) e A Guerra Social (1911-1912), do Rio de Janeiro; A Vida (1905-1910) e A Aurora (1910-1920), do Porto. A Obra (1898-1906); A Greve (1908); A Sementeira (1909-1918) e A Batalha (1919-1927), de Lisboa, fecham este roteiro. Em menor medida, trabalho igualmente com periódicos argentinos, franceses, espanhóis e italianos, tais como La Protesta (1897-1926), de Buenos Aires; Le Temps Nouveaux (1898-1914), de Paris, Tierra y Libertad (1910-1919), de Barcelona, e Volontà (1913-1914), de Ancona.
Ainda que sua escrita cronística estivesse prioritariamente voltada para informar e debater com seu público leitor a respeito da luta cotidiana levada a cabo pelo movimento anarquista e operário em diferentes países da Porta da América e da Porta da Europa, ela também possibilitou ao nosso biografado uma forma de escrita de si, ou seja, um tipo de escrita que assume a subjetividade como:
[...] dimensão integrante de sua linguagem, construindo sobre ela a “sua verdade”. Ou seja, toda essa documentação de “produção do eu autoral” é entendida como marcada pela busca de um “efeito de verdade” [...], que se exprime pela primeira pessoa do singular [...] do indivíduo que assume sua autoria. Um tipo de texto em que a narrativa se faz [...] de maneira que nessa subjetividade se possa assentar sua verdade, sua legitimidade como “prova”. Assim, a autenticidade da escrita de si torna-se inseparável de sua sinceridade (GOMES, 2004, p. 14-15).
Isso permitiu, por sua vez, a este biógrafo encontrar uma chave para abrir não apenas as portas da história do movimento anarquista e operário em ambos os continentes, mas também, e, sobretudo, as portas da sua história de vida.
Ao fim e ao cabo do processo de seleção e análise da documentação, me vi às voltas sobre como escrever este trabalho. Ao bio-grafar Neno Vasco tenho consciência de que eu passarei a ordenar, por meio da escrita, o desenrolar da sua vida, gesto a partir do qual esta se transformará em objeto e/ou tema histórico. Esse gesto a que faço alusão passa pela construção dos documentos, que o biógrafo seleciona e ordena segundo os seus próprios critérios, colocando em evidência a sua subjetividade. Diante desse fato, aparentemente banal, mas de fundamental importância, Cláudia Poncioni, ao reconstituir o trajeto de pesquisa que efetuou ao longo de sua escrita sobre a vida do socialista francês Louis Léger Vauthier, apresenta as seguintes questões, que faço minhas:
Evocar uma vida não seria forçosamente empobrecê-la? A simplificação, o ordenamento que a redação de um texto lógico impõe não seriam intrinsecamente redutores? Como dar conta de toda a complexidade, de todas as contradições, sonhos, esperanças, decepções, desgraças, sofrimentos de uma vida? Como escrever uma vida com tinta, se ela é feita de sangue? (PONCIONI, 2012, p. 417).
Questões importantes, que, caso não forem enfrentadas de modo sério, tendem a repetir os equívocos dos trabalhos (vinculados a uma historiografia tradicional) baseados em uma história meramente cronológica, factual e narrativa sobre a vida dos “grandes homens”, produzindo desse modo um resultado artificial e distante da complexidade que encerra a vida humana. Portanto, não basta reunir documentos, ordená-los, refletir sobre eles e apresentar conclusões. É preciso também dar vida, o que exige uma dose certa de imaginação.
Tal atitude leva, segundo Poncioni, o biógrafo a se aproximar do romancista e dele pegar algumas técnicas emprestadas, tais como o estilo, a necessidade dos detalhes e dos episódios na criação de um conjunto que apareça verossímil, ainda que os fatos narrados sejam verdadeiros. É claro, contudo, que a adoção de tais recursos não se dá de forma mecânica, uma vez que esse processo pressupõe que os acontecimentos evocados sejam transformados e que o método estético de representação do real seja quase tão importante quanto o próprio relato.
A narrativa do livro foi tramada de modo a pinçar alguns dos fragmentos autobiográficos de Neno Vasco. Esses fragmentos, uma vez reunidos, procuram criar mais um mosaico do que um quadro. A alusão às duas metáforas me pareceu sugestiva para pensar a composição desta pesquisa. Ao invés de criar um quadro total e fechado, que retratasse todo o rosto de Neno, optei, antes, por montar um mosaico lacunar e aberto, que enfocasse alguns dos seus tantos perfis, cujos contornos tentei delinear ao longo de três capítulos.
Fiel a essa perspectiva teórico-metodológica, procurei, inspirado pelos trabalhos do artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher, construir os três capítulos que seguem como um dos seus mosaicos, em que os fragmentos são colados e colocados em uma perspectiva enigmática, como se formassem um imenso labirinto que dá acesso às múltiplas portas da história de uma vida.
Referências:
CUBERO, Jaime. Razão, paixão e anarquismo. Revista Libertárias. São Paulo, n. 4, 1998.
FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: Difel, 1997.
FONSECA, Virginia. Anarquismo reconstruído. Minas Faz Ciência. Belo Horizonte, n. 24, 2006.
GOMES, Castro Ângela de. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: Ângela de Castro Gomes (org.). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
LOPREATO, Christina da Silva Roquette; SEIXAS, Jacy Alves (org.). Dicionário histórico-biográfico do(s) anarquismo(s) no Brasil. Uberlândia: Mimeo, 2000.
PONCIONI, Cláudia. Bio-grafar, escrever vidas? In: SEIXAS, Jacy Alves; CERASOLI, Josiane; NAXARA, Márcia (org.). Tramas do político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: EDUFU, 2012.
SILVA, Thiago Lemos. Fragmentos biográficos de um anarquista na Porta da Europa: a escrita cronística como escrita de si em Neno Vasco. 2012. 138 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2012.
SILVA, Thiago Lemos. Alcances e limites da ação sindical: ecos da crítica de Errico Malatesta no movimento anarquista brasileiro. 2007. 40 f. Monografia (Graduação em História) – Centro Universitário de Patos de Minas, Patos de Minas, 2007.
[1] O Nephispo surgiu com o propósito de discutir as relações tecidas entre razão, sentimentos e sensibilidades no processo de ressignificação da História Política. Nesse sentido, este núcleo sempre abrigou pesquisas e pesquisadores sobre anarquismo. Não por acaso, quando da sua criação, em 1994, contou com a presença do anarquista Jaime Cubero, então secretário do Centro de Cultura Social de São Paulo, que foi convidado para palestrar sobre “Razão e paixão na experiência anarquista”. Ver: Cubero (1998). Nos anos de 2010 e 2011, a professora Jacy Alves de Seixas, coordenadora do referido núcleo, organizou as jornadas de discussão “Noitadas Anarquistas”, voltadas para o debate e a reflexão sobre a história e historiografia do anarquismo e sua contemporaneidade.
[2] Trata-se de uma pesquisa realizada em jornais, revistas, panfletos e brochuras da época, pertencentes à minha então orientadora Antoniette Camargo de Oliveira. Oliveira tomou contato com esse material, quando foi bolsista de Iniciação Científica, com o projeto Dicionário Histórico-Biográfico do(s) anarquismo(s) no Brasil, entre 1998 e 1999, sob orientação das professoras Christina Roquette da Silva Lopreato e Jacy Alves de Seixas. Para saber mais sobre esse projeto: Ver: Fonseca (2006).
[3] Neno Vasco, pseudônimo de Gregório Nazianzeno Moreira de Queirós Vasconcelos, nasceu em Penafiel, norte de Portugal, em 09 de maio de 1878 e faleceu em 15 de setembro de 1920 em São Romão do Coronado, perto do Porto. Neno Vasco passou a utilizar esse pseudônimo somente após o seu ingresso no movimento anarquista e operário em Portugal, por volta de 1900.