Título: Carta de apresentação do Laboratório de Estudos Libertários
Data: Aproximadamente 1998
Fonte: http://www.nodo50.org/lel
Notas: No Rio de Janeiro, o Laboratório de Estudos Libertários (LEL), ativo de 1998 a 2003, contribuiu para questões teóricas e organizativas, sendo parte do processo que levou à fundação da Federação Anarquista Insurreição (FAI) em 2003. Em 2004, a FAI foi renomeada como União Popular Anarquista (UNIPA).

Objetivo

O objetivo da constituição do Laboratório de Estudos Libertários é fazer a recuperação de um patrimônio histórico, político e cultural pertencente aos movimentos populares e a memória de todos àqueles que deram as suas vidas pela construção de uma sociedade fundada nos princípios do Socialismo Libertário.

Para isso pretende desenvolver uma série de atividades no intuito de promover um maior conhecimento e um maior esclarecimento do caráter político/teórico da ideologia anarquista. No hall destas atividades incluem-se palestras, seminários, grupos de estudo, debates, vídeos e etc. Além disso, é também objetivo do Laboratório, manter uma produção intelectual regular, desenvolvendo atividades de pesquisa na área de memória dos movimentos políticos e das revoluções, da história do movimento operário brasileiro e internacional, do movimento das mulheres pela conquista do seu espaço e direitos sociais, da trajetória das organizações revolucionárias, da evolução do pensamento político anarquista, tentando tornar de conhecimento público as suas principais formulações, quase sempre mal conhecidas.

Estará obrigatoriamente entre as atividades do Laboratório o trabalho de análise da atual situação da sociedade brasileira, das mudanças e continuidades da conjuntura nacional e internacional. Será esta uma das formas através das quais o Laboratório pretende contribuir para a luta dos movimentos sociais, subsidiando as discussões naquilo que for possível, trabalhando para que os setores populares possam ter acesso a informações e interpretações da realidade social que não sejam contaminadas pelo legalismo institucional.

De forma geral, o Laboratório irá manter algumas publicações regulares, que funcionarão tanto como um veículo de informação das atividades, quanto como espaço de construção de uma forma anarquista de se interpretar as transformações contemporâneas da sociedade mundial e como meio de apresentação de repostas em termos anarquistas para as questões sociais. A responsabilidade social do Laboratório, será realizada através destes mecanismos e de outros que possam ser desenvolvidos no decorrer do trabalho.

Anarquismo: um século e meio de sangue, suor e barricadas

Este fim de século é marcado por uma profunda crise dos paradigmas teóricos e políticos dos movimentos sociais, de partidos e organizações. O longo século XX de tantas lutas e revoluções, vitórias e derrotas, expectativas e frustrações, chega ao seu fim colocando uma grande questão para reflexão: existe alternativa viável de luta por uma transformação radical da sociedade? Essa questão se coloca porque o século XX foi o primeiro que conheceu as vitórias de revoluções com caráter socialista. Mas o socialismo real não foi exatamente a vitória do socialismo, antes foi a forma mais cruel de sua derrota; o esvaziamento do "conteúdo do socialismo".

Porém, antes que esta crise se instaurasse, o século XX foi o século das convicções. A modernidade produziu muitas verdades, e as alternativas socialistas não escaparam incólumes à ela; a marca da modernidade e das crenças em verdades absolutas foram impressas na prática, no pensamento e no discurso socialista, transformando-o em um totem dos Estados do leste europeu e da URSS. A convicção de que o socialismo da corrente marxista-leninista e toda sua concepção de ação e organização era a única alternativa possível, sustentada pela "autoridade" outorgada pelas vitórias das revoluções que elevaram os Partidos Comunistas a chefes de Estado, produziu todo um ambiente em que o socialismo acabou se confundindo com as práticas oriundas do marxismo-leninismo, e o sistema dos países do leste europeu e da URSS foram entendidos enquanto o "sistema socialista". Esse movimento de simbiose entre "socialismo" e "marxismo-leninismo" não foi um acidente ou uma mera coincidência; existiu um movimento inspirado nas orientações e resoluções do PCUS durante a década de vinte que encaminhava todos os esforços dos PCs no sentido de eliminar politicamente (e fisicamente quando necessário) os adversários dentro do movimento operário. Este movimento de "higienização ideológica" iniciada pelos bolcheviques no interior do movimento revolucionário (ainda em 1917 na Rússia) resultou também em uma tentativa de promover a aniquilação da memória das demais correntes socialistas dentro do movimento operário, substituindo a sua história pelas interpretações feitas delas pelos próprios bolcheviques.

O anarquismo foi alvo central destes ataques. A rivalidade e a oposição irreconciliável entre anarquismo e bolchevismo, iniciada durante a revolução russa, se estendeu durante boa parte do século, e as lutas sangrentas travadas por ambos não foram nem o início nem o final de sua guerra. Não há possibilidade de compreender a história do movimento socialista, o bolchevismo e o anarquismo, sem compreender todas as nuanças das lutas que travaram entre si.

Por isso para conhecer as proposições anarquistas, e toda a sua trajetória de luta durante um século e meio, é preciso estar ciente de que o sujeito que vai se aventurar a esta tarefa irá ter de realizar um trabalho de verdadeiro escavador; o anarquismo está soterrado sob várias crostas de interpretações e significações atribuídas a ele tanto pela ideologia e pelos preconceitos burgueses, quanto pela estratégia de aniquilamento e denegrimento sistemático da memória e da ideologia anarquista, empreendida pelo bolchevismo.

A tradição do moderno anarquismo se inaugura na França do século XIX, na figura do militante operário-artesão Pierre-Joseph Proudhon. O anarquismo surgiu dentro do movimento operário, como resultado de um conjunto de experiências e de lutas. A formulação dada a ele por Proudhon, é inclusive uma resposta aos acontecimentos de 1848, onde a primavera dos povos, que tanto marcou a vida de Proudhon, iria conferir aos estatutos teóricos e práticos do anarquismo o seu traço mais original: o anti-colaboracionismo, ilustrado classicamente pelo anti-parlamentarismo.

A formação do anarquismo a partir do interior das lutas do movimento operário, inspirou e marcou profundamente a concepção de luta e organização da ideologia anarquista. A ênfase que dá ao movimento popular, colocando-o como principal agente do movimento revolucionário, ao invés de atribuir este papel a vanguardas políticas, a fidelidade a democracia aliada ao questionamento do parlamentarismo e do sufrágio burguês, é na realidade a expressão de um sentimento vivo e atuante nas lutas do proletariado francês do século XIX. A princípio, não é o anarquismo que inspira e alimenta o movimento operário, mas sim o movimento operário, que ao produzir formas de luta e organização, inspira a formação do anarquismo tal como a sua prática o fez historicamente.

O anarquismo é então uma das muitas formas de expressão dos sentimentos e das práticas de luta dos movimentos populares, sejam estes urbanos ou agrários, que se constituiu a partir de várias experiências históricas em diversos países, tendo muitas ramificações e variações, mas que preserva como elemento universal o seu caráter socialista e revolucionário. A formulação teórica do anarquismo se desenvolve de forma descontinua e fragmentária, muitas vezes refletindo a personalidade do militante, e outras a condição de sua vida, a qual a militância o arrastou.

Resgatar a memória do anarquismo é resgatar alguns dos capítulos mais importantes, ricos e singulares de toda a história dos movimentos populares. Inspirado "na" e inspirador "das" lutas populares, o anarquismo esteve presente em quase todas as manifestações revolucionárias desde o século XIX até hoje, mobilizando homens e mulheres, fomentando a solidariedade, o espírito de luta, o amor e a devoção pelo sentimento de liberdade e igualdade, erguendo sindicatos e comitês revolucionários na Rússia, na Espanha, na França, na Alemanha, no Brasil, na Argentina, no Uruguai e etc.

"A história do anarquismo é uma
história de lutas - é uma história
de Sangue, Suor e Barricadas."

O pensamento político anarquista: a ação teórica e a teoria da ação

Existe alguma alternativa viável? A crise do socialismo real está longe de ser a morte do socialismo. Na verdade ele representa um processo de deterioração de estruturas de poder e de sistemas ideológicos que sustentaram durante 70 anos o discurso e a "autoridade" da concepção bolchevista, e de suas variantes, como o estalinismo e o trotskismo. Toda a fundamentação bolchevista do socialismo passa a ser questionada depois de quase um século de infalibilidade. E hoje começa a se tornar cada vez mais claro que o socialismo não pode ser reduzido ao bolchevismo, e que o marxismo (como nenhuma teoria política) é capaz de dar "respostas" exatas a todas as questões sociais e políticas.

Esta crise não surpreende se refletirmos sobre o fato de que todo o esforço da ideologia bolchevista se deu no sentido de transformar o "socialismo real" em "socialismo possível". De certa forma é óbvio que munidos desta concepção, consideremos que o "fim" do socialismo real é o fim das "possibilidades".

Dentro deste quadro, muitas críticas e reflexões surgiram, e o resgate de algumas das críticas elaboradas pelo anarquismo foram assimiladas por diversos pensadores contemporâneos nos seus debates sobre os movimentos sociais, os movimentos ecológicos e algumas questões tocantes a epistemologia e a filosofia. Este "resgate", mesmo que parcial, da ideologia e do pensamento anarquista são de muita relevância, e hão de contribuir para um processo de reconstituição histórica do movimento anarquista, mas isso ainda é insuficiente. Isto porque, por um lado, este resgate se restringe geralmente ao campo de debates intelectuais; e por outro, o fato de que os pensadores que encaminham estas críticas não estão geralmente vinculados a tradição e a militância política anarquista. Desta forma não existe um compromisso de elaboração de propostas e alternativas em termos anarquistas para os problemas da sociedade contemporânea, apenas tomam como "inspiração" alguns aspectos do anarquismo.

A grande questão que se coloca hoje, é a da "viabilidade das propostas" de (re)organização social e de encaminhamento das lutas populares. No momento atual, em que há uma crise das ideologias e uma queda do nível (quantitativo e qualitativo) das mobilizações populares, emerge uma série de incertezas e discursos que pretendem ou sacramentar a perspectiva liberal ou revitalizar ortodoxias socialistas. Diante destes fatos é necessário recolocar o anarquismo em meio aos debates como uma das alternativas viáveis, e como um dos movimentos de crítica mais bem fundamentados. Estas críticas, feitas pelo anarquismo, são ao mesmo tempo "atuais" e "tradicionais". Elas figuram, com maior ou menor presença, em toda a formação do pensamento político anarquista, e nas interpretações e produções teóricas dos seus militantes de maior "projeção" pública.

O anarquismo é uma teoria política que pode oferecer possibilidades muito interessantes para os arranjos do poder e a distribuição dos mecanismos decisórios. Mas a questão que se coloca é ideológica; a crença é que cria as possibilidades. Cabe agora reformular a própria maneira de se colocar a questão das possibilidades: a escolha "realizada" é a escolha "possível"? Transformar as escolhas históricas, e a história já feita, em "história possível", é um dos grandes artifícios de manutenção do status quo, seja pela parte das elites dominantes, seja pelos grupos políticos que participam em um compromisso "policlassista" com a intenção de garantir o seu bocado na repartição da hegemonia em feudos de influência dentro do Estado ou junto a população. A elaboração de uma alternativa é antecedida por um processo de construção crítica e por uma crença ideológica que condiciona a própria visualização de possibilidades e alternativas. O "socialismo real" não é mais possível que os outros só por ter existido; isto porque ele só pôde existir porque se constituiu como escolha social histórica de determinadas sociedades, como forma material e ideológica de sua existência e reprodução.

A atual crise que afeta a sociedade mundial, que é ao mesmo tempo política, cultural, ética e sócio-econômica, está longe de anunciar um cataclisma generalizado do sistema capitalista. Muitos dos elementos desta crise só podem ser explicados pelo desenvolvimento dos movimentos sociais (operário, camponês, de mulheres, das etnias, dos movimentos de libertação nacional) e estabelecimento de compromissos políticos por parte destes, e não pela lógica estrutural da economia capitalista e das "forças produtivas".

O longo século XX, além de ser o século das convicções, e exatamente por isso, foi o século dos "compromissos". A cooptação da grande maioria das populações mundiais para um compromisso "nacional desenvolvimentista" e "progressista", que utilizavam como critérios de auto identificação o desenvolvimento tecnológico e o bem-estar social (o grande credo da modernidade ocidental), implicou obviamente na abdicação dos princípios revolucionários - internacionalismo, identidade de classe, autonomia frente ao Estado - em favor dos mecanismos de integração da Democracia liberal e dos princípios da jurisprudência burguesa - soberania nacional, estado de direito, governo popular e etc.

Várias correntes políticas de "esquerda" assimilaram este processo de enquadramento nas instituições da sociedade moderna-industrial-capitalista como parte necessária (e desejável) de uma trajetória linear de desenvolvimento das lutas pelo socialismo. Desta forma passaram a apostar em um movimento de participação deliberada dentro dos mecanismos de integração da sociedade capitalista, a colocando como estratégia dentro de um processo cumulativo de aquisição de condições para a realização de um processo revolucionário. A estratégia de cooptação elaborada pelas instituições e pelas elites capitalistas, foram incorporadas dentro de várias correntes de "esquerda" como sendo as "fissuras" no concreto da estrutura social pelas quais deveriam se "infiltrar", tornando-se co-defensores de alguns dos princípios mais caros à burguesia internacional. Mas ao chegarmos ao final do século conhecemos as consequências deste compromisso; desmobilização, descrédito, incapacidade de pensar e agir autonomamente, debilitação dos mecanismos de auto-proteção da sociedade frente ao totalitarismo estatal e aos avanços sanguinários da lógica de mercado.

Dentro de toda a vasta produção teórica do movimento anarquista internacional, que construiu a matriz do seu pensamento político, podem ser sempre encontradas referências críticas à possibilidade de estabelecimento de um "pacto" policlassista, e os efeitos nocivos que este teria sobre o conjunto dos movimentos sociais e da própria luta popular. A formulação do pensamento político anarquista nestes termos lhe valeu muitos títulos pejorativos e/ou desqualificativos, seja por parte dos setores conservadores da sociedade - que sofrem de pânico crônico frente a quaisquer reformas minimamente democráticas - ou por parte da esquerda burocrática, que sempre, como já foi dito, se preocupou em atestar a impossibilidade histórica de realização de qualquer projeto político que não fosse o seu.

Mas agora, que o castelinho de areia se desfez, que as estátuas de bronze dos grandes chefes de Estado e de líderes do proletariado começam a perder a capacidade de (com seu esplendor) ocultar cadáveres - atividade que por tanto tempo exerceram -, e que as disneylândias faliram, novas possibilidades hão de se abrir: e revolucionariamente.