Arthur Pye

Uma introdução ao socialismo libertário

2018

   Introdução

   Parte 1: Liberdade do capitalismo

    Socialismo vs Capitalismo

    Socialismo vs Social Democracia

   Parte 2: Liberdade do Poder Estatal

    Socialismo Libertário vs Socialismo de Estado

    Socialismo desde baixo

    Socialismo desde Cima

    Revolução vs Mudança de Regime

    O exemplo russo

    Revoluções socialistas libertárias:

   Parte 3: Liberdade da Opressão Social

    Solidariedade e Libertação Coletiva

    Poder vs Privilégio

   Parte 4: Na prática: Contruir Poder vs Tomar o Poder

    Política representativa

    Ação Direta

   Conclusão

Introdução

O socialismo voltou oficialmente a ser um termo em voga. De acordo com uma pesquisa recente, 44% d@s millennials dos EUA "preferem o socialismo ao capitalismo", e até os democratas mainstream estão a começar a dizer-se socialistas. Como dizia uma manchete: "O socialismo está muito atraente neste momento." Usado para descrever tudo, desde Bernie Sanders à Rússia stalinista, há poucas palavras que inspiram significados tão variados e contraditórios. Como a maioria dos chavões, o verdadeiro significado do socialismo foi obscurecido pela sua popularidade.

Mas o que é que socialismo realmente significa e como é que se parece na prática? Na sua essência, socialismo é a ideia de que recursos e instituições da sociedade devem ser gerenciadas democraticamente pela comunidade como um todo. Enquanto no capitalismo, o poder económico e político está concentrado nas mãos dos ricos, @s socialistas lutam por uma sociedade na qual os meios de produzir e distribuir bens e serviços são detidos em comum através da autogestão democrática dos locais de trabalho e das comunidades. Este artigo defenderá que o socialismo libertário representa a encarnação mais completa e consistente dos princípios socialistas fundamentais. Essencialmente, o socialismo libertário é uma política de liberdade e autodeterminação coletiva, realizada através de uma luta revolucionária contra o capitalismo, o poder estatal e a opressão social em todas as suas formas.

Parte 1: Liberdade do capitalismo

Socialismo vs Capitalismo

De modo a sobreviver sob o capitalismo, aqueles e aquelas sem propriedade são forçad@s a alugar-se a si mesm@s a proprietários e a serem explorad@s para fins lucrativos. Essa relação entre "quem tem" e "quem não tem" forma a própria base da sociedade capitalista - a exploração de classe. Em tal sociedade, o poder flui diretamente do relacionamento com a propriedade, ou seja, a posição de classe. Enquanto um punhado de pessoas possui e controla as instituições da sociedade, a grande maioria das pessoas (a classe trabalhadora) são tornadas impotentes enquanto indivíduos. Como a revolucionária socialista e ativista dos direitos d@s deficientes Helen Keller o colocou: "Os poucos são donos d@s muit@s porque possuem os meios de subsistência de tod@s." Praticamente nada acontece numa sociedade capitalista a não ser que isso faça uma pessoa rica ainda mais rica. Pela sua própria natureza, o capitalismo não só se alimenta da exploração de classes e da desigualdade de riqueza, mas também exige crescimento e expansão infinitos da economia, resultando em guerras, colonialismo e destruição ecológica. As empresas não pararão praticamente em nada na sua busca patológica pelo lucro.

As e os socialistas defendem uma "luta de classes" na qual nós, que ficamos impotentes sob o capitalismo, nos organizamos para mudar o equilíbrio de poder até que as instituições da sociedade sejam colocadas sob controle democrático e a classe como tal seja abolida. Numa sociedade socialista, o lucro privado seria eliminado. Em vez disso, o objetivo das instituições políticas e económicas seria atender de forma sustentável as necessidades e desejos do povo por meio da autogestão democrática dos locais de trabalho e das comunidades. Como diz a máxima socialista: "De cada um de acordo com sua capacidade, para cada um de acordo com sua necessidade." Eliminando a necessidade de uma classe proprietária que emprega e uma classe sem propriedade empregada (ou desempregada), os locais de trabalho seriam gerenciados cooperativamente pelas e pelos próprios trabalhadores, substituindo os negócios privados. As políticas públicas seriam planeadas através de conselhos democráticos de auto-administração, federados do bairro para fora, substituindo o estado centralizado. É neste espírito original que definimos o socialismo como um movimento revolucionário para uma sociedade sem classes.

Socialismo vs Social Democracia

Esta visão contrasta claramente não apenas com as ditaduras "socialistas" na Rússia ou na China, mas também com países capitalistas como a Suécia ou a Noruega, frequentemente descritos como "socialistas". Estas sociedades (também chamadas de "social-democracias") têm a mesma dinâmica de poder de qualquer outro estado capitalista. Enquanto que o socialismo exige propriedade cooperativa e democracia direta, as "social-democracias" mantêm o poder económico concentrado nas mãos dos ricos, com um governo central poderoso que regula os programas sociais, deixando assim a estrutura de classes da sociedade inalterada. Neste sentido, auto-descritos socialistas como Bernie Sanders seriam mais apropriadamente descritos como "social-democratas" ou "liberais" porque o seu objetivo final é realizar reformas progressivas para tornar a vida sob o estado capitalista mais tolerável. Tais reformas podem melhorar as condições de vida e de trabalho das pessoas de maneiras importantes, mas impostos e assistência médica mais barata não constituem socialismo. O socialismo é o apelo revolucionário por uma sociedade sem classes. Socialismo libertário não é paradoxal?

Nos Estados Unidos, a palavra "libertário" assumiu o significado oposto ao do resto do mundo. Estranhamente, tornou-se sinónimo de defesa do individualismo capitalista extremo, propriedade privada e os "direitos" das empresas de serem "livres" da supervisão pública. Mas liberdade para os poderosos não é de todo liberdade. Desde a sua origem, o libertarianismo é sinónimo de anarquismo ou anti-autoritarismo: a crença de que relacionamentos baseados em dominação, hierarquia e exploração devem ser desmantelados em favor da liberdade e da autodeterminação. Para @s anarquistas, um indivíduo só pode ser livre numa comunidade de iguais. Tal como o anarquista russo do século XIX Mikhail Bakunin o colocou: "Liberdade política sem igualdade económica é uma pretensão, uma fraude, uma mentira." Não deveria surpreender, portanto, que @s libertári@s sempre tenham sido socialistas, uma vez que o capitalismo se baseia na dominação de classe.

Embora a possível confusão seja compreensível, o socialismo libertário é mais uma redundância do que uma contradição de termos. Liberdade e socialismo são indispensáveis um ao outro. Sem um, o outro perde o seu significado. Portanto socialismo libertário significa simplesmente "socialismo livre". Como o pensador anarquista Rudolf Rocker afirmou: "O socialismo será livre, ou não será de todo".

Parte 2: Liberdade do Poder Estatal

Socialismo Libertário vs Socialismo de Estado

Historicamente, houve duas tendências gerais nos movimentos pelo socialismo, que podemos descrever sensivelmente como aquelas "de cima" e aquelas "de baixo". Ambos os lados se dedicam à abolição do capitalismo, mas diferem crucialmente na sua visão de uma sociedade futura e em como chegar lá. A principal diferença entre estas tendências é a sua abordagem ao poder estatal. Enquanto @s socialistas de estado veem o Estado como o meio para o socialismo, @s libertários veem-no como uma barreira.

Socialismo desde baixo

Socialistas libertári@s argumentam há muito tempo que os Estados (ou governos) não são instituições neutras, mas sim instrumentos de domínio de classe, criados para proteger uma minoria dominante através do monopólio da violência. Sem polícia, cadeias, fronteiras militarizadas e controlo político centralizado, um Estado não é mais um Estado. Essa concentração de poder é antitética à autogestão democrática e, portanto, ao socialismo.

Para alcançar o "socialismo livre", aqueles e aquelas de nós tornad@s impotentes sob o capitalismo devemo-nos empoderar, organizando-nos onde moramos, trabalhamos e frequentamos a escola, criando organizações populares (ou seja, sindicatos de classe para trabalhadores e inquilinos, assembleias populares, organizações comunitárias de massa ) e construindo o poder coletivo não apenas para adiar os problemas que nos são impostos, mas para colocar as instituições que nos rodeiam sob controlo democrático. Eventualmente, os e as trabalhadoras podem tomar os seus locais de trabalho dos chefes, as e os inquilinos podem tomar as casas dos proprietários e as comunidades indígenas podem impor a soberania sobre o território colonizado. Se os movimentos estiverem suficientemente organizados e unidos entre si, ações isoladas podem se transformar numa revolução social em grande escala, lançando as bases para uma nova sociedade na qual governos e empresas foram substituídos por órgãos coordenados de autogoverno. Tais estruturas devem-se basear no princípio da democracia direta, no qual as pessoas participam diretamente das decisões que afetam as suas vidas. Em vez de simplesmente eleger @s nossos própri@s governantes (também conhecido como "democracia representativa"), a democracia direta capacita as pessoas a governarem-se coletivamente. O mundo é complexo e os detalhes dependem sempre das circunstâncias, mas os nossos princípios orientadores são intransigentes: o poder concentrado em todas as suas formas deve ser superado em favor da liberdade, da igualdade e da democracia direta.

Socialismo desde Cima

Socialistas de estado têm uma visão diferente. Em vez de ver a revolução como uma onda de transformação vinda de baixo, ela deve ser implementada de cima. Nesta perspectiva, o socialismo é entendido como uma ciência, exigindo administração profissional. Um núcleo de revolucionários profissionais (a "vanguarda") deve, portanto, assumir o controlo do Estado capitalista em nome das "massas" (por meios eleitorais ou militares) e administrar o socialismo através dos mecanismos existentes de poder. Em vez de colocar a economia sob autogestão da comunidade e das e dos trabalhadores, a terra e a indústria são nacionalizadas e colocadas sob controle estatal direto.

Revolução vs Mudança de Regime

Não há atalho para o socialismo. Substituir uma classe dominante capitalista por uma classe dominante auto-proclamada “socialista" não é uma revolução social, mas um golpe; uma mudança de regime. O socialismo de Estado, portanto, é uma contradição de termos, descrita com mais precisão como "capitalismo de estado", uma vez que a população em geral ainda é obrigada a alugar-se a um chefe (neste caso, o todo-poderoso estado "socialista").

Se a essência do socialismo é a autogestão coletiva, então o socialismo à mão armada não pode ser socialismo. Até o próprio Karl Marx disse: "a emancipação das classes trabalhadoras deve ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras". Uma sociedade na qual o poder flui de baixo para cima só pode ser construída de baixo para cima. Logo, qualquer tentativa de impor o socialismo desde cima falhará logicamente no seu objetivo declarado. Ao longo da história, sempre que um pequeno grupo de pessoas toma o poder do Estado em nome do socialismo, em vez de criar uma sociedade sem classes, o Estado torna-se cada vez mais centralizado, resultando frequentemente numa sociedade mais opressiva do que a que derrubou.

O exemplo russo

A ideologia “vanguardista” do socialismo de estado foi desenvolvida por Vladimir Lenin durante a Revolução Russa e depois implementada quando ele e o partido bolchevique assumiram o controle do Estado em 1917. Embora uma verdadeira revolução socialista venceu de facto no país, foi rapidamente cooptada e derrubada pelo novo estado "socialista". Os recém-formados conselhos operários democráticos (sovietes) e comunas agrícolas - os próprios fundamentos de uma revolução socialista - foram desmantelados pelos bolcheviques e colocados sob controle estatal direto. Enquanto as e os trabalhadores russos exigiam "Todo o poder para os conselhos!", Lenin insistia que: "a revolução exige ... que as massas obedeçam inquestionavelmente à vontade única dos líderes". Inúmer@s socialistas foram pres@s ou mort@s em nome do socialismo muito antes de Stalin chegar ao poder.

O vanguardismo nas suas várias formas (leninismo, trotskismo, maoísmo, etc.) foi tomado como modelo ideológico ao longo do século XX por muitos que conseguiram tomar o poder do Estado. Infelizmente, devido ao sucesso do modelo na produção de regimes auto-descritos “socialistas” (Rússia, China, Cuba), a ideologia vanguardista tornou-se em grande parte sinónimo do próprio socialismo revolucionário.

Revoluções socialistas libertárias:

Felizmente, nem todas as revoluções socialistas foram cooptadas pelos autoritários. Desde a revolução anarquista espanhola, até a revolta zapatista e à revolução de Rojava no norte da Síria, existem numerosos exemplos de movimentos que reorganizam a sociedade segundo princípios socialistas sem um Estado. Estes movimentos, como quaisquer outros, não são modelos universais a serem replicados, mas exemplos que nos podem ensinar lições importantes e inspirar-nos com a esperança da possibilidade revolucionária.

Parte 3: Liberdade da Opressão Social

Solidariedade e Libertação Coletiva

Para socialistas libertári@s, todas as lutas contra a opressão estão necessariamente ligadas a uma luta mais ampla pela libertação coletiva. Uma sociedade enraizada na autodeterminação requer a total emancipação de todas as pessoas - não apenas da exploração de classes e da autoridade do Estado, mas de toda e qualquer forma de opressão social, ponto final. Como socialistas, acreditamos que o poder económico concentrado e a exploração de classe são fundamentais para a opressão que as pessoas enfrentam hoje no capitalismo. Mas, como libertári@s, também rejeitamos a ideia de que "socializar os meios de produção" criaria automaticamente uma sociedade livre. Em vez disso, acreditamos que em qualquer sociedade, capitalista ou não, pessoas de todas as esferas da vida precisam de defender os seus direitos contra toda e qualquer forma de discriminação e opressão. Lutar contra a opressão social, como o racismo, sexismo e transfobia, não deve ser tratado como uma consideração posterior ou uma nota lateral ao "trabalho real" da luta de classes. Em vez disso, deve ser entendido como central e indispensável a qualquer projeto socialista libertário. Com uma compreensão holística da opressão, conseguimos ver que se a luta de classes significa a luta da classe trabalhadora pela sua liberdade, então não pode haver luta de classes sem luta queer, feminista, anti-racista e anti-colonialista. Uma sociedade socialista requer necessariamente o fim de toda a opressão social porque a verdadeira liberdade de qualquer pessoa requer uma vida digna para todas. Ou como o velho Wobbly dizia: “Um ferimento a um/a é um ferimento a tod@s.”

Poder vs Privilégio

Para socialistas libertári@s, a libertação coletiva também requer que abordemos as raízes da opressão. Manifestações de privilégio pessoal e discriminação cultural devem ser entendidas como sintomas de estruturas subjacentes na sociedade que determinam quem tem poder e quem não tem. Os poderosos (maioritariamente homens brancos ricos) usaram o seu controlo das instituições da sociedade para moldar a cultura dominante à sua própria imagem e interesses. Apenas através da luta comum e da transformação revolucionária podemos remodelar fundamentalmente estas instituições para que sirvam os interesses de toda a gente.

Parte 4: Na prática: Contruir Poder vs Tomar o Poder

Como é que lutamos pelo socialismo sem sermos apanhad@s nas armadilhas do liberalismo e do autoritarismo? A resposta curta é: construindo poder popular. Poder popular é o oposto de poder concentrado. Significa construir movimentos sociais autogeridos, independentes da esquerda institucional, que consigam conquistar reformas significativas criando ao mesmo tempo as bases para lutar para além delas. A questão que nos devemos colocar não é quem deve sentar-se no lugar do poder, mas sim como é mudamos o equilíbrio do poder para que o trono perca o seu significado. Em vez de depositar a nossa fé naqueles que professam representar-nos como governantes benevolentes (nesta sociedade ou na próxima), devemos ver-nos como responsáveis pela nossa própria libertação. Esta é a diferença entre política representativa e ação direta.

Política representativa

A política representativa requer que a maioria de nós assuma um papel secundário. Ao focar na eleição de políticos ou mobilizar atrás de líderes carismáticos, rendemos a nossa entidade em troca de promessas. Na prática, o que os nossos “representantes” buscam é acesso ao poder estatal. Isto é perigoso porque, tal como mencionado, os Estados não são instituições neutras mas instrumentos de governação de uma minoria. Estados podem (e devem) ser reformados de maneira a melhorar a vida das pessoas, mas a história da política eleitoral mostra que eles irão minar, desmobilizar e criar relações de dependência aos movimentos sociais em vez de os fortalecer. Se queremos mudanças transformadoras, temos de lutar por reformas construindo poder popular desde baixo, não reforçando-as desde cima.

Ação Direta

Não há substituto do poder popular. Nem partidos, nem líderes carismáticos. Ação direta significa lutar por nós mesm@s: unindo-nos a @s outr@s e combater a opressão com o nosso próprio poder e não através de terceiros. Uma greve é o exemplo perfeito: trabalhadoras e trabalhadores usam o seu poder coletivo para simplesmente parar de trabalhar até as suas exigências serem cumpridas. Isto é não só um meio de mudança mais direto e efetivo, mas é também transformador, encorajando os e as trabalhadoras para um futuro em que possam gerir o próprio local de trabalho. O mesmo se aplica para lutas por terra alojamento, educação, etc. Mudança transformadora acontece quando pessoas comuns descobrem e exercitam o seu próprio poder coletivo.

Conclusão

Se olharmos honestamente para as estruturas e relações à nossa volta e nos perguntarmos: “poderia isto ser mais livre, igual e democrático?”, a nossa resposta será quase sempre: “sim”. Tomando estes princípios seriamente, e seguindo a sua conclusão lógica, talvez acordes e descubras que és socialista libertári@. Mas não temas! O socialismo não é uma utopia irrealista. A liberdade é possível. E admiti-lo é o primeiro passo da revolução.