#cover b-g-be-gay-do-crime-1.jpg #title Be Gay, Do Crime! #subtitle Uma introdução à criminalidade-queer-anarquista. #author Mary Nardini Gang #SORTtopics anarcoqueer, queer, Insurreição, ocultismo #date 2018 #source Mary Nardini Gang. Be Gay Do Crime. Contagion Press, 2018. #lang pt #pubdate 2022-01-07T23:00:00 #notes Tradução de Grilo do texto “Be Gay Do Crime: An Introduction”, escrita pela gangue anarquista transviada Mary Nardini. Tradução de 2021, texto original de 2018. ** Cabeçário Antes de começar o texto, seria interessante contextualizar algumas coisas. A primeira é que eu segui as tradutoras da versão em português de Bash Back! e traduzi algumas coisas em flexão de gênero neutra ou tentei ocultar o gênero ao máximo. Seria trair o próprio texto se não fizesse. Caso tiver algum problema com isso, sugiro ligar na ouvidoria do Lobby Queer®. Também traduzi, onde se dizia “queer”, por “tranviada/o/e”. Nas notas finais eu explico mais o porquê. Escolhi deixar a expressão “be gay do crime” no original. É um meme conhecido e acredito que qualquer tradução seria infiel ao sentimento que ele emana. O termo poderia ser traduzido, entretanto, como “seja gay cometa crimes”. Nas notas finais eu me explicar mais. ** Be Gay Do Crime Para Quincy Brinker, que, ao interromper mais uma conversa acadêmica de um fracassado que tentava tirar Marsha e Sylvia fora de Stonewall, nos lembrou que nem os mortos estão seguros se nossos inimigos forem vitoriosos. Para Feral Pines, vista pela última vez por algumas amizades jogando pedras na polícia, por outras pessoas em uma assembleia tramando uma guerra psíquica contra fascistas. Depois, foi vista dançando, e nos momentos antes de sua morte, foi vista desfigurando símbolos fascistas. Para Chris Chitty, que certamente usaria esta oportunidade para xingar os xingões, ao mesmo tempo que iria transmitir reflexões brilhantes sobre onde estávamos e para onde vamos. Para Ravin Myking, cuja beleza fez um pastor de uma megaigreja homofóbica espumar de raiva e clamar a chegada dos lobos para caçar suas ovelhas, e fez com que suas ovelhas caíssem no chão falando em línguas e orando por um deus ausente. Para Scout e a memória em fogaréu. Para Vlad, ai ferri corti! Para todos os nossos amigues desse outro lado, apresentamos nossas reflexões. Há dez anos fomos tomades por um espírito frenético e, em transe, recebemos um pacote de dez armas para lutar em uma guerra na qual estávamos apenas aprendendo a descrever. Éramos a conspiração da juventude fugitiva, mal-intencionada, “crias criminosas” como Genet dizia. Viemos de um nada com nada, com nada além de si mesmes. Nós experimentamos toda a ordem social como inimiga da liberdade, do desejo e das nossas relações mais íntimas. Mas havia a suspeita de que não estávamos sós nesse ódio visceral por todo o mundo. Então, codificamos essas coisas, nossas visões de abundância e alteridade, e imprimimos em um pequeno zine, o qual mandamos para os cafundós da Terra. Nós o seguimos por uma década, atravessando os limites da linguagem e da militância para encontrar os camaradas (em certo sentido, alienáveis dos significados homoeróticos que originou essa palavra, como argumentou Chris Chitty) que receberam a seguinte mensagem: insurreição transviada. Durante esse tempo, fugimos em trens com documentos falsos, em voos furecas ou pegando carona com estranhos que se ofereceram de um caminho após o outro, mochilando. Nós nos encontramos em acampamentos em florestas, comunas nos centros das cidades, em bloqueios contra a tempestade batizada progresso e na folia dentro das conchas escavadas da desindustrialização. Lutamos contra os inimigos míseros e gigantescos pelas ruas e becos. Estávamos lá quando cidades foram incendiadas, edifícios ocupados, mercadinhos saqueados, portos bloqueados, projetos de espancadores humilhados, nazistas agredidos. Nós entregamos um caixão vazio na porta de um cana assassino, jogamos fogo na casa de um Zé que matou uma mulher trans, e fomos além pelas janelas dos bancos em nome daqueles presos por recusarem um destino semelhante. Nós investigamos os motins transviados mais selvagens de uma geração fora das portas da cúpula elitista global, e novamente quando algum apologista do fascismo emergiu como uma “bixa perigosa” nos corredores sagrados do intelectualismo. Encontramos nosso caminho em grupos de estudos e reuniões, esperamos os homens terminarem suas falas e aí falamos apenas para sermos mal interpretades. Seres incompreendidos, exceto por nossas amizades, aquelas quem compartilhamos sprays de pimenta e armas porque os queríamos vivas. As amizades quais fazíamos nosso rolê para pagar as suas fianças porque as queríamos livres. Roubamos mercadinhos porque queríamos vê-las alimentadas. Enganamos as universidades para as trazermos de volta para nossas cidades. Vendemos nossos tempos em instituições estratégicas para que assim pudéssemos dar tudo a elas. Ficamos muito bons em demonstrar formas específicas de cuidado (tão bons que encontramos melhores encontros). Esperamos, com cigarros e cobertores, fora das cadeiras porque odiamos a ideia delas ficarem lá sozinhas. Preparados para a investida e o ataque nas noites que passaríamos com nosses amantes. Livros dedicados entre si e aos nossos entes queridos que já se foram, porque essas palavras significam nada fora da força que esses relacionamentos nos dão. Fizemos juramentos para manter os nossos segredos, para mantermo-nos vives. Para nos agarrarmos intensamente àquela genialidade que compartilhamos nos momentos que nunca poderíamos revelar, secretos assim como os nossos próprios nomes. Falávamos por cartas escritas à mão nas laterais dos prédios, entregues de mão em mão nas viagens até chegar em seu destino, ou então ficarem perdidas na mão de algum guarda. Na longa tradição da criminalidade transviada, expropriamos literalmente tudo o que podíamos. Escrevemos em hinos e jornais a nossa exegese, arquivos secretos e distros de prisões, páginas fraudulentas que atingiram milhares. Enchemos pacotes com coisas chiques roubadas e enviamos para nossas amizades distantes junto com cartinhas de amor. Escolhemos nós, entre si, como merecedores dessas mil e uma coisas. Nós nos quebramos aprendendo mil técnicas de cura para nossos corpos e espíritos quebrados. Dominamos a arte da deriva, vagando por instinto sós pela rua escura da metrópole em busca daquele sentimento inominável. Nós experimentamos cada permuta das drogas e dos hormônios para se encontrar na alquimia que nos abre ao mundo. Desenvolvemos vícios nos pontos altos entre uma revolta e depois, nos ajudamos mutuamente a achar novos caminhos. Experimentamos de maneira horrível modelos para uma nova relação, mas continuamos mesmo em nosso pior, pois aprendemos do jeito mais difícil que o descarte nunca é uma opção. Por fim, a carne dolorida e os reinos da flora revelaram suas línguas secretas. Aprendemos a língua do amor: a alegria incomparável de presentes e declarações silenciosas, de eternidades dos tempos-agora gastos em afeto e afinidade Tempo-agora: um conceito que foi de difícil conquista, que aprendemos por meio das nossas perdas sequenciais. Nós se machucamos entre si e tivemos que aprender a juntar os pedaços das relações despedaçadas. Fomos traídes também, mas não gostamos de derramar muita tinta para vendides e X9s. Nós fugimos para voltar humildes. Nossas amizades e amores foram tirados de nós, trancados em gaiolas, suicidados por policiais, queimados vivos nas festas que ficavam à margem da gentrificação urbana. Sabemos que nosso tempo com outrem é passageiro, por isso lutamos por cada segundo de interdependência e cumplicidade. Nessa primavera, junto com as flores, uma imagem floresceu em pequenos botões por toda a world wide web. Um esqueleto, vestido como um pirata, carregando uma tocha escrita “anarquia”, com a palavra “comunas” no peito, “bombas redondas” em torno do chapéu e “amor livre” pregado com um alfinete. Uma espada pendurada em seu cinto que segura um pergaminho que dizia “be gay! do crime!(seja gay! cometa crime!)”. O esqueleto está frenético. No rodapé dessa imagem se diz: “Muitos culpam transviades pelo declínio da sociedade — temos orgulho disso. Alguns acreditam que pretendemos despedaçar essa civilização e todo seu tecido da moralidade — eles não poderiam estar mais certos. Muitas vezes descritos como pessoas depravadas, decadentes e revoltadas — mas ah, eles ainda não viram nada.” É nesse rodapé que encontramos palavras que soam próximas. Após um pequeno deslize no tempo, lembramo-nos do sentimento que levaram sua escrita, e os sentimentos que as palavras em si ecoam em nós. Elas foram inicialmente criadas como um comunicado de uma associação transviada criminosa, em um zine de anarquistas em Milwaukee chamada Total Destroy. Ambas gangues que se encontravam no Bash Back!*, e essa publicação foi feita com expressão de um milieu em Riverwest — um bairro discreto (às vezes) anarquista que existe desde o final da Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, a nascente contracultura boêmia anarquista que vinha se desenvolvendo naqueles campos de resistência à guerra se fragmentou em uma diáspora que levou essa gente recém-liberta mística (seres que escrevem, que se endoidecem nas artes e alguns cristão) para Nova Iorque e São Francisco. Um pequeno povo ficou em Riverwest, juntando-se à linhagem de anarquistas galeanistas que se enraizaram naquela cidade. O bairro permaneceu como um espaço de luta constante, por vezes armado, contra as forças da ordem e da lei. Na vizinhança, pode ser encontrado certas encruzilhadas nas quais uma variedade de lutas se interseccionam: lutas transviadas, lutas antirracistas, lutas contra a polícia, pela liberação da comida, se juntando um escarcéu da contracultura. Correntes anarquistas distintas viviam em conjunto naquele bairro de maneira consistente, debatendo suas teorias e práticas. Por volta da época em que a gangue Mary Nardini publicava seus comunicados, rebeldes, transviades, eco-extremistas e os race traitors* se reuniam sob o mesmo teto, em um mesmo espaço anarquista. Esse espaço em particular, o Cream City Collectives, era um de muitos outros que existiam naquela função há décadas. Era nesse lugar onde nos reunimos, após alguns meses da publicação de “Toward the Queerest Insurrection”, quando anunciantes de um futuro falaram através do fogaréu disposto além dos mares. A insurreição explodiu. Não em Milwaukee, mas na Grécia. A civilização morreu dentro dos limites das mitificadas cidades-estado como o epicentro de seu nascimento. A polícia executou um jovem anarquista chamado Alexis Grigoropoulos em um velho bairro anárquico nomeado Exarcheia (ex- de fora de; -archea de governo). Exarcheia é um lugar onde a anarquia, a Bela Ideia, nunca ficou quieta, então os canas decidiram matar a juventude — algo tão rotineiro nos Estados Unidos — na encruzilhada onde se encontra afora o santuário do herói Alexis. O mundo inteiro pegou fogo. A insurreição havia chegado. E por dezessete noites o fogo queimou, se espalhou em brasas nos mais distantes cantos do mundo, e estes cantos encontraram lugares onde a chama poderia continuar queimando. Aquela chama pegou nosso bairro sombrio entre rios e tudo mudou para nós. Esses dezessete dias escancarou uma porta estreita*, como aquela que Walter Benjamin dizia que existia em cada momento. Essa porta se abriu na teia milicelial bizarra e internacionalista costurada por anarquistas por todo o globo. E por toda uma galáxia anarquista, o messias havia chegado. Nós prestamos seu testemunho. Nós vimos os rios correrem ao contrário. Nós presenciamos o Evento, a Abertura. Os fogos luminosos na Grécia se espalharam pelo planeta, nas metrópoles e subúrbios e ocupações, por todo o mundo expandindo e evoluindo em uma polivalência não-linear, uma fronteira entre o velho mundo em decadência e um novo, emergindo. Para muitas pessoas, a compreensão chegou pelo desastre ou pela urgência, respondendo um desastre diário e oculto da polícia. Nos Estados Unidos, a ideia se espalhou através das infraestruturas dos variados nódulos criados por anarquistas insurrecionalistas da década anterior. O primeiro encontro real com esse incêndio, nesse continente, ocorreu no começo de 2009, quando uma cidade de Oakland pegou fogo em resposta do assassinato de Oscar Grant por um policial. E pelas ações solidárias, pelas histórias contadas por viajantes, anarquistas que estiveram presentes na abertura da porta estreita da Costa Oeste dessa maldita nação, espalharam que a insurreição havia chegado, que todos deveriam agir conforme tal. Bash Back! foi uma das várias correntes que levaram essa mensagem à sério, com o coração. No contexto da rede em sua práxis emergente, surgiu uma proposta que gritava por uma nova forma de se viver: criminosa, transviada, anarquista. Em suma, devoção ao mundo que se emergia: indiferença à morte da ordem social, e guerra contra aqueles que a defenderem em sua memória ou tentarem reanimar seu cadáver. Percebemos que tempo e identidade são ficções, mas que estamos ligados à ancestrais e só podemos nos curar das violências nos conectando com o trauma de outras gerações. Percebemos que o momento sempre foi frutífero e imanente, só precisávamos mudar nossas perspectivas para acessá-lo. Anarquia sempre existiu sob as pavimentações de pedra. E nós a vimos, e mudamos para sempre, e agora temos que viver de acordo, não no tempo que resta, mas no tempo além, o tempo depois. A distribuição do texto sem autor “Desert” entre eco-anarquistas propunha que o mundo não terminaria em um único movimento de revolução ou colapso, mas morreria como uma colcha de retalhos, e desse húmus surgiriam novos mundos plurais e diversos. No embate contra a extrema direita, nós encontramos um desses mundos. Diane di Prima disse sobre isso em uma de suas cartas revolucionárias: E me parece que a luta deve ser travada em vários e diferentes números:
eles têm computadores para lançar I Ching para si mesmos
mas nós temos os hastes de mil-folhas
e as estrelas
é uma batalha de energias, de campos de força, o que os jornais chamam de
batalha de ideias.
Desde o momento que a rede Bash Back! deslumbrou o choque do novo mundo quebrando a existência em seu surgimento, nós experimentamos formas-de-vida nesse novo mundo o qual estamos ligados em algum ato divino de cocriação. Nós, e estas palavras, fomos aos confins do mundo anunciando, como o esqueleto frenético, a nossa magia: Be Gay! Do Crime! Esse nascimentos de formas-de-vida e luta nesse novo mundo apareceu de maneira diferente para cada pessoa entre nós. Sofremos perdas inimagináveis e aprendemos mil e uma maneiras de nos curar. Estudamos para nos tornarmos especialistas dessas variadas modalidades. Construimos redes de apoio para nos cuidar entre traições, repressões e mortes de nossas amizades. Aprendemos a nos curar das feridas entre si e cobrir aluguéis entre a gente. Muitos de nós trabalhamos com os espíritos e os ancestrais. Algumas pessoas começaram a publicar. Outras se mudaram para a selva e estão aprendendo seus mistérios. Temos as pessoas fanáticas do abolicionismos. Temos as pessoas pesquisadoras antifascistas que comprometeram as próprias vidas para documentar o movimento de nosso inimigo ancestral. Aprendemos a lutar, atacar, manter espaço para depois. Assistimos a todos os levantes da última década e compartilhamos o conhecimento entre eles. Aquelus entre nós que continuaram no caminho do trabalho do sexo, estão lutando agora contra as novas técnicas repressivas e cibernéticas do Estado. Algumas pessoas entre nós estão completamente clandestinas. Outras aprenderam os caminhos sagrados para mudar o próprio corpo. Enquanto conversamos, algumas pessoas estão estudando as estrelas para encontrar o próprio caminho. Outras, mensageiras, ainda estão vagando, outras permaneceram e agora estão criando relações animísticas com os lugares (sim, até nas cidades). Algumas pessoas entre nós são praticantes do sadomasoquismo, da performance transviada, do afro-futurismo, da magia do caos, da “saúde coletiva”, da fitoterapia, das tradições diaspóricas, da trocas de cartas com prisioneires, a poesia. Essa panóplia pode ser enxergada como um conjunto de diálogos táticos, mas essa visão deve ser invertida. Não são métodos para fazer surgir um novo mundo, são formas de viver que assumem sua imanente presença. Damos continuidade à proposta publicada há dez anos em “Criminal Intimacy”, de que nossas relações são a nossa força e que essas relações são forjadas nos momentos em que nos encontramos enquanto as portas estreitas se abrem. A estratégia não precede o momento, mas surge em seu ultimato. A insurreição é o messias, e ele já está aqui. A questão se transforma em como proceder, e não preceder. Não por outra que anarquistas se voltam ao misticismo (Fredy Perlman, Ursula Le Guin ou Diane di Prima). E que esses em algum momento venham a estudar o Tao — o caminho. Continuamos, apesar do fim do mundo, buscando a alegria em todos os lugares que podemos. Nossos comunicados pegavam as ruínas estabelecidas e dançávamos entre elas. Festas com orgia, dança e leitura — a festa surgiu como um epicentro daquele momento frenético. Nossas investigações posteriores sobre a natureza sagrada da festa — nos bacanais e luares — revelaram a relação intrínseca entre a festa e as artes de construir mundos. Em nossas festas, nos abrimos para a conexão de um a outrem, para outros reinos e outros gestos. A realização da dimensão insurrecional da festa mostrou-se perigosa precisamente pelo seu potencial de ser retificado como um partido da insurreição [em inglês, party compartilha o significado de festa e também de partido]. Por meio da articulação de de um livrinho azul (o “The Coming Insurrection”, do Invisible Committee), aqueles que se deleitavam nas chamas que nos acompanhava se fixaram na proposta do ressurgimento do partidarismo, a própria estrutura de síntese que havia dominado a imagética revolucionária de gerações inteiras perdidas. Onde possamos entender o partido e a festa enquanto espiritual, eles desejavam um partido enquanto político. Onde buscamos formas de conexão, eles se submeteram em nada além de segregação. O partido proposto por eles deveria ser invisível e, assim, evitaria os fracassos que os partidos políticos tiveram no século passado. Ainda não estamos convencides. Já experimentamos a morte do partidarismo e já lidamos com suas consequências autoritárias de culto. Quando a dimensão formal da rede Bash Back! se esgotou, analisamos rapidamente o momento para partirmos além. Como se diz no trecho de “Criminal Intimacy”: Ao descrever participantes da Bash Back! como uma forma-de-vida, estou fazendo um esforço pra descartar uma série de conceitos e modos de pensar que seriam totalmente inúteis pra avançarmos. Particularmente, quero que as noções de política e ativismo de identidade sejam totalmente abandonadas. Bash Back! não deve ser entendida como uma sequência de esforços ativistas, nem como articulação de uma política de identidade militante (foi um fracasso, à medida que pode ser identificada dessa forma). Bash Back! nunca foi sobre questões queer ou política queer. Pelo contrário, o projeto tomou como ponto de partida a vida de participantes. Em vez dos temas de vitimização e de caridade regurgitados ad nauseum nos círculos ativistas, a tendência Bash Back! assumiu como princípio a própria vida queer. Quem estava dentro da tendência organizava um espaço dentro do qual poderiam viver de forma genuína, assim como uma rede pra defender esse espaço. Eu vivenciei a Bash Back! como uma amálgama de desejos, disposições, atos, processos, gestos e cumplicidades. Bash Back! está tão envolvida em atos criminosos quanto na prática sexual, tanto na estratégia quanto no estilo. O processo Bash Back! e o surgimento de sua correspondente forma-de-vida exige ser lido menos no sentido de quê ou quem, mas, em vez disso, no sentido de como. Este como, é o como de organização, mas também de sobrevivência, de violência, de amor, da vida em si. E assim, quaisquer que sejam as limitações do que Bash Back! foi, é o como que demonstra verdadeiramente o potencial insurrecional que eu celebro [tradução da edição em português]. Tomamos nossas próprias vidas como projeto. Qualquer que seja a retórica que se empregue, nenhum partido pode dizer o mesmo. A própria função do partido é se expandir, sugando como vampiros a energia vital de todos que estão nele. Tomamos a morte da organização como ponto de partida e já experimentamos outras formas e maneiras. Infelizmente, os nossos camaradas heterossexuais já pararam de prestar atenção nesse processo de raciocínio e clareza. Aprendemos muito nessa última década, a maioria das coisas que fizemos podem ser resumidas ao simples fato de que não sabíamos o que estávamos fazendo. Nós nos encontramos agora nessa posição de falar através do tempo, na oportunidade de reeditar essas palavras nas quais algumas pessoas possam ler pela primeira vez, temos a responsabilidade de esclarecer que essas palavras iniciais não são políticas, mas mágicas. Aquelas pessoas mais estudadas em magia poderão te dizer algo semelhante aos seres rebeldes de toda a vida: o segredo está em seu início. No meio das questões inerentes da magia do caos e as reflexões compartilhadas entre anarquistas insurrecionalistas, se revela uma série de técnicas em comum: os caminhos para escolher um conto e torná-lo real através da manifestação de energias, a invocação de mortos, o trabalho ancestral de transviades, a necromancia das visitas do túmulo de Emma Goldman, a reprodução de textos apócrifos, a conjuração por meio da linguagem mágica, a necessidade dos abundantes sacrifícios, as fogueiras de purificação, os encontros na lua cheia & os ataques realizados sob suas trevas, os ritos de luto & vingança, a ascensão do inferno nos púlpitos de falsos sacerdotes, as interpretações dos sonhos e presságios, os nomes secretos dos nossos amores e seus sigilos criptografados rabiscados nas paredes das cidades, os estados se visões no gozo e o contato espiritual na dança, a descentralização do eu e a abertura a outrem, os pactos feitos nas encruzilhadas que são chaves para a litania transcendental, uma gramática da construção de mundos por meio da ação ritualística. Construção de mundos, pois realmente vemos efeitos nessa rede de poder — experimentalmente e reciprocamente — por meio do nosso engajamento. Pode ver, o mundo realmente acabou para nós em dezembro de 2012, quando perdemos Ravin. Enquanto o mundo olhava atentamente os relógios para ver se as máquinas iriam trair e si mesmas, nós escrevemos “Sem Futuro” como epitáfio para o mundo que estávamos deixando, não como um esforço de apagar preventivamente nossa luz, mas sim para iluminar outro mundo que já estava florescendo, bem debaixo da pele. Precisávamos de uma série de habilidades para nos conectar com nossas amizades que morreram, e elas, por sua vez, apontavam para uma visão de mundo animista, para um mundo espiritualizado. Vivemos, agora, em um mundo assombrado por um leviatã genocida, onde a terra cheia de ossos grita por vingança contra essas cidades cheias das pessoas mortas que as construiram, onde qualquer espetáculo de inclusão é destruído pelo mau-olhado daqueles que são excluídos, onde qualquer espaço é retomado para o encantamento e reciprocidade na co-criação destes espíritos. Quando nos deparamos às transmutações que a galáxia anarquista passou nos tempos dos sonhos da última década, é claramente alguma coisa diferente da heteronormatividade, o vazio, vácuo tedioso no qual lançamos esses encantamentos pela primeira vez. Correntes transviadas fortes, diversas e dinâmicas percorrem nosso espaço, desenhando constelações inimagináveis de ideias e vida. Tudo de melhor e pior daquilo que escrevemos, todas as nossas iluminações e omissões, se tornam realidade. Os conflitos mais miseráveis e mesquinhos em nosso pequeno mundo foram elevados globalmente, atingindo até o cósmico. As fechaduras que abrimos revelaram portas que mal podíamos imaginar, nos corações fortes seja onde se repousem. Se ao menos tivéssemos já internalizades a resistência de Diane di Prima que dizia “você pode ter tudo aquilo que pedir”, então “peça tudo”. Porque essas são palavras mágicas e porque os cúmplices as ouvem e respondem mesmo além do véu da morte, não podemos nos dar o luxo de uma má comunicação. Vamos levantar um espelho para as nossas dez armas e abastecê-las com advertências importantes. Essas dez, unidas, formam uma espécie de arcanos menores: I. A transviadagem em seu significado negativo. II. A normalidade. III. A guerra social. IV. A transviadagem como confronto. V. O outro, o excluído. VI. A repressão e as relações de força. VII. O ataque! VIII. A ancestralidade revoltada sob a terra. IX. O espaço, o terreno e a abundância. X. A negação, a autodescrição como anarquista. Na continuidade desse tarô, apresentamos de maneira reversa: ** X Segure-se naquele momento que você se definiu como anarquista pela primeira vez. Seja lá qual for sua história, certamente foi uma negação, uma recusa, uma preferência a não fazê-lo, de não produzir, dizendo “não”. Talvez não perceba, mas esta é a primeira vez na vida que estabeleceu uma barreira contra um mundo que tenta minar sua capacidade de produção. Encontre aquele momento, aquele afeto, e segure-o firme. O que quer que possa ser tirado de você, isso não será. Eles não podem. Vamos dispensar a conversa chata sobre individualismo e coletivismo. Precisamos um de outrem e, ainda assim, cada um de nós precisa voltar a esse afeto íntimo individual. Nos momentos difíceis, quando nos sentirmos sozinhes contra o mundo, sempre teremos essa negação inicial. Se cuidarmos daquela pequena chama, sempre poderemos iluminar o nosso caminho, de volta um a outrem, se necessário. A tensão anarquista se adapta à qualquer coisa que há de vir a seguir. ** IX Nós recebemos e faremos o melhor possível para repassar esse mistério: a criminalidade transviada. Uma corrente ancestral, um nós, herdada de uma longa e diversa linhagem de seres desordeiros, ladrões, escritores, traficantes, bruxos, ranters*, malucos e artistas. Como descendentes de qualquer linha ancestral, somos moradores atuais encarnadas dessa casa espiritual. Nada começou conosco: somos simplesmente portadores de agora daquele suspiro fraco messiânico, com o potencial de torná-lo inteiro novamente, para redimir todos aqueles que morreram entre nós por intermédio do céu e da terra. Em tudo que fazemos, estamos em sintonia com esses espíritos. Vamos aprender, portanto, a fazer isso da melhor maneira. Quando tentamos ocupar algum espaço — ou, na realidade, segurá-lo contra as ondas aniquiladoras do progresso — é por essas justamente por causa dessas relações recíprocas entre nós e todos os nossos fantasmas. Estamos lutando pela sobrevivência de um estilo de vida: criminoso, transviado, anárquico, místico, diferente. Cada um desses predicados é uma fonte de força, uma linhagem, uma coleção de técnicas de sobrevivência das pessoas que esse mundo tentou destruir. É por isso que buscamos excelência e abundância em tudo que fazemos. Sempre foi sobre estilos de vida transviados. Cuidado com aqueles que falam de outras vidas, mas não pelos cadáveres em sua boca, ou os ossos gritando sobre os quais caminham. ** VIII A crítica à assimilação ainda é entendida apenas pela metade. A linha dominante nos cantos transviados radicais do mundo ativista profissional e das escolas-de-publicação que se usam o suficiente para atingir as posições políticas exatas, contanto que falem na linguagem certa, a vida ética (que aqui significamos como felicidade) existe dentro do Leviatã. O impulso de criticar a assimilação, em sua primeira instância, recusa sua aquiescência. Desconfie de todos e qualquer um que lembre muito rapidamente que todos nós fazemos sacrifícios no capitalismo. Isso é verdade, claro, mas lembre-se de que sacrificar é tornar algo sagrado, é entregar-se aos espíritos. Este mundo nos condiciona a perder coisas facilmente, porque está sempre nos roubando-as, levando-as embora. Decidimos retomar o poder sobre o que perdemos. Você reconhecerá seus amigos de verdade pela maneira que eles respondem quando perguntados os porquês, os quês e os por quem eles perderam o que perderam. Há uma diferença sutil entre os carreiristas e conquistadores e aqueles que não têm nada a perder a não ser uns aos outres. Estes, por extensão, tem um mundo inteiro a ganhar, se reconhecem uns aos outres e agirem de acordo. É uma questão de prioridade: prefere-se este mundo morto, ou aquele que estamos cultivando? ** VII Ataque! Pois é o que sempre foi disponível a fazer e porque é o real marcador de fronteiras das nossas heterotopias propulsoras — os nossos mundos plurais. A criação de mundos nos dá a capacidade de mover nossa negação, nossa preferência-em-não-fazê-lo, para um gesto marginal, uma preferência diferente, uma preferência outra se não aquela que nos empurram, transcendental. A questão da opacidade (o armário, a passabilidade) é velha para nós. Os transviados que vieram antes navegaram nesse mesmo mar com várias estratégias, e nos cabe olhá-las criticamente. É tudo drag: uma máscara em nosso mundo emergente. A máscara esconde a realidade e faz o ataque possível. A realidade é sempre um jogo brincado com a normalidade. Aqueles que não perceberam isso são perigosos. Um ataque de qualquer intensidade é uma porta pela qual a realidade adentra, junto com seu mundo. É um mundo animista — leve isso em consideração quando escolher um alvo. Todo o cosmos está vivo e observando, isso que importa. Se nos acompanhou até aqui dentro desses corredores do labirinto, pode sempre chamar a presença da energia até nos menores ataques. Deixe a possibilidade ser o fio condutor de Ariadne enquanto avançamos. Deixe a ritualística sinalizar os conspiradores, encarnados ou não. ** VI A repressão é a tentativa de um mundo decadente de sufocar os novos mundos em sua ascendência. Nós resistimos à todas as formas dessa tentativa. O holocausto, a crise da AIDS: elas destruíram dois momentos no século passado, quando nosso mundo superou seu próprio conforto por eles. Em ambos os casos, os revolucionários e os marginalizados morreram primeiro. Gerações inteiras de nossos anciãos foram roubados de nós. Lembre-se disso quando esquecer quem é. O Estado tem seus meios discretos de disposição. A criminalização dos parques públicos anda de mãos dadas com a proliferação dos aplicativos de cruzada cibernética. As campanhas de caridade benevolentes de “reformadores do tráfico” mantêm as trabalhadoras do sexo na rua, e daí pra pior. Os ricos pagarão seus prep enquanto pessoas com AIDS continuarão a morrer nas sarjetas. O compartilhamento de imagens de corpos em particular, através das redes sociais, nos droga com sua luz azulada e nos distrai da execução destes mesmos corpos. Só chegamos aqui lutando contra a repressão em todas as suas formas. Aprenda com aquelus que lutaram antes de você. Fique atento aos mundos que estão lutando em sua volta e suas maneiras diferentes para qual. Precisaremos de todas as variadas técnicas contra o nosso inimigo comum. Precisaremos também de técnicas de cura. Nós herdamos os traumas das tentativas falhas do passado. Mas podemos escolher nos curar desses traumas ao invés de merda adiante. ** V O cerne do nosso mundo é a diferença e, portanto, cada um de nós navegamos liminarmente por outros mundos. Ficamos no meio, sempre um pouco a mais, demais para qualquer mundo, exceto para aquele que estamos construindo entre nós. Preste atenção em quais lugares você se sente diferente e onde você se sente em casa. Isso é determinista: traumas ancestrais podem ser superados, mas apenas pelas pessoas comprometidas a tal. É uma questão de hospitalidade, da comunicação de um mundo ao outro de seus portões. Nunca separe qualquer conceito de reconciliação — por exemplo, tikkun olam — de sua origem espiritual na visão de um mundo vivo, de um materialismo encantado. Recuse e resista ao impulso da homogeneidade. Circule por todos os mundos que assim nos quiserem. Liberte outres. ** IV Reconhecer a transviadagem como um confronto significa lidar com o resíduo de um mundo morto que está dentro de nós — o trauma de nossos corpos, a possessão por egrégoras, o desmaio em nossas línguas. Seja humilde: saiba que você está tratando feridas infeccionadas por incontáveis gerações. Seja gentil consigo mesmo e com outrem, mas lembre-se que aqueles que curam geralmente são aquelus que estão com a mão suja de sangue. ** III Guerra social, entendida como o movimento de ampliação dessa ou aquela concepção limitada de luta, gestos de boas-vindas a outrem, inclui histórias de resiliência e subversão que desorganizam qualquer tendência de fetiche científico (se lê: sistematizado) por parte dos militares. ** II Nós fazemos tudo isso porque lembramos que a Normalidade por si é nossa inimiga. Evite quem lê a contracapa dos livros do Foucault enquanto, ao mesmo tempo, exibem alegremente seus impulsos à Normalidade. Em qualquer espaço insurrecional, preste atenção aos malucos, às aberrações. As pessoas devotas à Normalidade — em suas formas psíquicas, libdinosas, afetivas, disciplinares ou ideológicas — serão vermes fardados quando a insurreição morrer. ** I O queer, a transviadagem, nunca será uma categoria coerente em uma lista de identidades. A última década mostrou a ruína miserável de cada tentativa de fazê-la. Já dissemos que essas palavras são mágicas. Poderíamos acrescentar que são wyrd — do inglês antigo, usado para descrever o destino e todas as outras causalidades invisíveis e não-lineares nas quais estamos inseridos, que originou a palavra moderna “weird”, estranho. A insurreição mais estranha, o mais enredado do invisível, o mais relacionado com tudo que borbulha para além do muro da normalidade que ainda lutamos para nos desaprender. Encontre aquelus que ocupam o topo desse muro, um pé em cada mundo. Compartilhe seus métodos, compartilhe seus aprendizados, compartilhe as histórias dos seus entes que se foram. Mortes que temos em comum nos transformam em uma família — alguma outra forma de parentesco que não a Normalidade e seu horror. Nós precisamos de si mesmes hoje mais que nunca. Queremos vencer dessa vez, vencer todo o tempo, e nossos mortos querem isso também. ** 0 Aqui. Agora. Nessa hora e nesse lugar. O espelho de nossa averiguação atual se reflete ao espelho que esse projeto sempre carregou consigo. Espelhos sobre espelhos; não somos estranhes aqui. Nossos inimigos sempre usaram o mito de Narciso contra os seres criminosos e transviados. Esses inquisidores e torturadores só podem fazer isso tirando desse mito a visão de um mundo encantado de onde ele se origina, na visão em que outros mundo existem, que há janelas entre eles e a comunicação verdadeira é possível. Nas notas de tradução do “The True Grimoire”, a bixa feiticeira Jake Stratton-Kent sugere que essa história seria uma criptografia primordial de perscruta— a técnica mágica na qual alguém usa um espelho para se comunicar com outros espíritos e acessar outros lugares. Narciso olhou por muito tempo o submundo e foi imortalizado como uma delicada flor com olhar tão fixado. É o sinal da imortalidade do mundo floral, o ciclo da vida e da morte, do infinito. Cada um é um pouco de outrem, cada um é uma versão diferente da história. Possuímos a liberdade para discernir, portanto escolha. As pessoas que conhecem a teoria do jogo dizem sobre um círculo mágico — o limite dentro qual jogadores concordam sobre seus objetivos e regras. Zero: o círculo mágico. Zero: o espaço das potências todas. Cuidado com o que você diz nesse espaço; tenha juízo de si mesmo. O que acontece aqui se estende a todos os níveis. Zero: vem no nada e retorna a tal. Zero: sempre o Louco, um estranho vindo do nada, indo à algum lugar. Quem você é? De onde você é e para onde está indo? O esqueleto já esteve aqui antes, frenético. O meme desviou um pouco da propaganda da Califórnia de 1880, que difama as correntes transviadas e anarquistas presentes em suas praias. Elas permanecem presentes ao longo dos fios diaspóricos que sempre floreceram o litoral sul. Ele é a Santa Muerte: a patrona dos seres criminosos e transviados, exilados do mundo. Ela usa outras vestes, mas insiste o lembrete constante de nossa própria imortalidade, e nos lembram daqueus que já perdemos. Se as correntes messiânicas dentro das nossas tradições mágicas ocidentais se revelem verdadeiras — e que o julgamento final é o retorno dos mortos — então quer dizer que os nossos mortos já estão entre nós, ancestrais voltaram e elus insistem que temos uma chance de fazer um mundo inteiro novamente. A tarefa continua em alinhar nossos caminhos em comum. *** Notas de tradução Seria interessante contextualizar algumas coisas, se estiver até aqui. Primeiramente sobre a Mary Nardini Gang. É um grupo anarquista transviado, anti-assimilacionista, que teve forte atuação na rede chamada “Bash Back!”, que atuou fortemente em Chicago e se espalhou por todo o EUA, e também fora dos Estados Unidos, na década passada. Vários textos escritos pela gangue se tornaram importante dentro do movimento anarquista transviado, ou anarcoqueer, incluindo o “Be Gay Do Crime” e o manifesto “Toward the Queerest Insurrection”. Foi compilado vários textos da rede Bash Back! (incluindo manifestos, ensaios, entrevistas, excertos sobre a história das gangues que mantiveram a rede, como, por exemplo, a gangue Mary Nardini) em um livro que leva o mesmo nome do movimento. A N-1 Edições e o Crocodilo Editorial trouxeram o livro traduzido para português, ele atualmente custa vinte reais e o pdf gratuito pode ser lido no site da Crocodilo. O texto “Be Gay Do Crime: An Introduction” original pode ser achado no site The Anachist Library. Acredito que seja importante ressaltar que traduzi, onde se diz queer, por transviada/o/e ou bixa. Há uma razão por trás disso, mas acredito que tiraria o foco do texto ter uma nota tão comprida explicando. Mas é basicamente sobre a elitização e a academização do “queer” aqui no Brasil, que ganha um outro significado do que na gringa. Acredito que deixar o “queer” original possa ecoar um significado que não é tão fiel ao jeito que se usa no texto, já que o termo veio pra cá justamente por causa dessa galera que focava mais no seu significado acadêmico que o marginal. Lá na gringa há também esse movimento mais “sujo”, mas é bem forte a distinção entre aqueles que o usam nesse sentido academicista e higiênica e aqueles que usam de maneira mais marginal. Como o termo “queer” é uma palavra em inglês, ainda tem essa sonoridade suja quando lido por nativos da língua inglesa, e o movimento academicista tenta apenas higieniza-lo, mas é uma tentativa por vezes falha. Aqui é só um termo gringo exportado, a gente não o sente nessa maneira marginal. A higienização dele é mais fácil, geralmente entramos em contato com ela primeiramente nesse significado “limpo”. Substitui queer por transviado, por mais que esse termo tenha uma história particular no Brasil, pois acho que ecoam um sentimento histórico e marginal parecido. Tanto quanto um termo que no passado era xingamento, mas virou uma auto-identificação contra a pureza heterossexual e cisgênera, como no sentido de ser algo que fale sobre desviar do caminho, o que se assemelha com o “esquisito” que queer significou originalmente. Pensei em usar “bixa” para substituir queer, e é sempre um embate mental pra mim. Acredito que “bixa” possa ecoar o sentimento e a história de queer de uma maneira mais fiel em nosso contexto latino, mas ao mesmo tempo não acho que ele fale, por exemplo, da mesma maneira para as pessoas transmasculinas, lésbicas e mulheres bissexuais em geral. Não sei se essas pessoas eram xingadas como queer na gringa ou virou o rolê de identificação depois. De qualquer forma, acho que “anarcobixa” tem uma beleza maior que “anarcotransviadagem”. Que fique a reflexão disso. No texto original, há a palavra “race traitors” que eu não consegui achar uma tradução que ecoe o mesmo significado original. É um termo que foi cunhado na revolta do apartheid, na África do Sul, que era direcionado aos brancos que “traíram a própria raça” lutando contra a segregação racial. Tem uma revista de um historiador chamado Noel Ignatiev com esse mesmo termo que fala sobre a abolição da branquitude, e nesse sentido ele seria uma traição da própria raça branca. Acho que se refere à isso, pessoas brancas que lutam contra o racismo e abolem a própria branquitude, mas pode ser um significado mais profundo que isso. No texto original, há a palavra “narrow gate” na parte que fala sobre o fogo da insurreição se espalhando. Traduzi como “porta estreita”, mas é bom deixar como nota que talvez isso signifique coisa além. Alguma expressão, alguma referência, que eu não consegui pegar. Há uma citação bíblica onde Jesus fala “Entrem pela porta estreita (narrow gate), pois a larga é a porta e amplo o caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram por ela”. Está em Matheus 7:13. Há várias músicas de rap e trap que usam a expressão. O Walter Benjamin é um aut da Escola de Frankfurt. Os “ranters”, que se refere no IX arcano, é uma seita radical inglesa, heréticos. A ideia era um panteísmo, de que Deus está em tudo e tudo é Deus, o que negava a autoridade da Igreja. Eles diziam sobre ouvir Jesus dentro de si, diziam ser “irmãos do livre espírito”. Tinham práticas nudistas e são repletos de histórias de “imoralidade sexual”, eram uma ameaça genuína ao governo, à Igreja e à ordem social. Poderiam simplesmente serem traduzidos como “bruxas”, ou “faladores”, mas achei importante manter a palavra original. Também não consegui traduzir o “be gay do crime”. Parece que tem toda essa relação no original, o fato de ser curto, de não ter vírgula, de ser rápido, do “crime” estar como ação, que não é tão possível de traduzir. O mais óbvio seria “seja gay, cometa crime”, mas já dá pra perceber como o significado, sentimentalmente, é alterado. Talvez só “gay criminosa” possa funcionar, mas “be gay do crime” fala sobre uma ação, não uma identidade em si. Enfim, fica outra reflexão. Nem tudo precisa ser traduzido, o significado emocional pode ser mais importante que o da língua.