Biblioteca Emma Goldman
Homossexualidade e a Eugenia Anarquista
Jornal A Batalha nos Anos 1920
Link para o artigo original resenhado aqui:
O artigo ‘Um grito de alarme contra a degenerescência da espécie’: Homosexuality and decadence in the anarchosyndicalist A Batalha in the early 1920s de Richard Cleminson e Diogo Duarte explora a interseção entre a história da homossexualidade e os movimentos laborais, especificamente no contexto do jornal anarcossindicalista A Batalha. Publicado entre 1919 e 1927, A Batalha era o órgão oficial da Confederação Geral do Trabalho em Portugal e tornou-se um dos jornais mais importantes do país no início da década de 1920. Este artigo investiga como as questões de homossexualidade foram recebidas e discutidas no jornal, refletindo as tensões mais amplas dentro da sociedade e do movimento laboral sobre a aceitação e a rejeição de sexualidades não convencionais.
Os autores argumentam que, apesar da expectativa de maior tolerância dentro dos movimentos progressistas, a realidade frequentemente se mostrou menos acolhedora. A Batalha, como um microcosmo dos sentimentos sociais mais amplos, muitas vezes adotou uma postura moralista e crítica em relação à homossexualidade, vendo-a como uma expressão de degeneração e desvio moral. A análise detalhada do jornal revela como as atitudes em relação à sexualidade eram moldadas por fatores contextuais, como a recepção de ideias científicas e secularistas, além das relações com conceitos de modernidade. Este estudo contribui para um campo pouco desenvolvido, oferecendo novas perspectivas sobre a interação entre sexualidade e movimentos laborais em Portugal.
Duarte e Cleminson percebem a tensão entre as ideias progressistas do movimento operário e o moralismo existente como uma dinâmica complexa e muitas vezes contraditória. Embora o anarquismo e outros movimentos operários do início do século XX fossem teoricamente comprometidos com a liberdade individual e a oposição às formas tradicionais de autoridade, incluindo a moral sexual imposta pelo Estado e pela Igreja, na prática, esses movimentos frequentemente reproduziam preconceitos e normas sociais dominantes. A homossexualidade, em particular, era vista através de uma lente de degeneração moral e biológica, influenciada por discursos científicos da época que associavam práticas sexuais não reprodutivas a uma suposta decadência social e biológica.
Os anarquistas acreditavam que o ser humano era moldado pelo seu ambiente e pelas condições sociais prevalecentes, e que a natureza poderia ser modificada para o bem de todos. No entanto, essa visão entrou em conflito com os entendimentos biológicos e científicos que permeavam a moral anarquista, resultando em uma aceitação limitada de sexualidades não normativas. O moralismo dentro do movimento operário português era reforçado por uma interpretação cientificista da natureza humana, onde comportamentos vistos como 'anormais' ou 'degenerados' eram condenados como prejudiciais ao progresso social e biológico. Assim, a homossexualidade foi frequentemente rejeitada não apenas como uma questão moral, mas como um obstáculo à construção de uma sociedade anarquista ideal.
Em determinado ponto do artigo, os autores destacam que os anarquistas do início do século XX defendiam práticas e políticas que, em alguns aspectos, ressoavam com as ideias eugenistas da época para combater a "degenerescência da espécie". Entre as soluções propostas estavam a abolição completa do militarismo, a coeducação nas escolas, a destruição da noção tradicional de "honestidade" relacionada à virgindade e à secretividade em torno da sexualidade, e a promoção do "amor livre". Eles acreditavam que o "amor livre" elevaria as relações amorosas aos seus verdadeiros patamares, criando um ambiente mais saudável tanto física quanto moralmente.
Para os anarquistas portugueses, como Campos Lima, a regeneração da espécie estaria garantida quando a expressão natural da sexualidade estivesse em harmonia com a natureza, através do "amor livre". Eles acreditavam que, em uma sociedade comunista anarquista, a seleção natural resultaria na redução do número de degenerados, já que a infertilidade era vista como uma característica associada à degenerescência. Essa visão implicava que as práticas sexuais reprodutivas e "naturais" seriam privilegiadas em uma sociedade ideal, conduzindo à regeneração moral e física.
Assim, os anarquistas propunham uma síntese de ideias anarquistas e eugenistas, onde a regeneração da sociedade passaria pela eliminação de práticas e estruturas sociais vistas como opressivas e degenerativas. Acreditavam que a transformação da sociedade através da educação, da promoção de valores progressistas e da seleção natural em um ambiente livre de opressão levaria à criação de uma nova ordem social, onde a degenerescência seria extirpada e a saúde física e moral da população estaria garantida.
Os autores, Cleminson e Duarte, não identificaram uma oposição visível dentro do movimento anarquista ou no jornal "A Batalha" às ideias que associavam a homossexualidade com a degenerescência da espécie. Na verdade, o jornal "A Batalha" frequentemente reforçava essas noções, publicando artigos que condenavam a "inversão sexual" e a associavam com a decadência moral e física da sociedade. Por exemplo, um artigo anônimo publicado em agosto de 1921, intitulado "Um problema patológico-social", alertava contra a degeneração da espécie e ligava diretamente a homossexualidade a essa degeneração, sem receber respostas críticas visíveis em edições subsequentes do jornal .
Outro exemplo de como essas ideias eram promovidas sem oposição dentro do jornal é a publicação de setembro de 1921, "Um adultério repugnante", que usava um caso de amor entre duas mulheres para justificar a campanha do jornal contra a degeneração moral da sociedade. A narrativa reforçava a visão de que a homossexualidade era um ataque monstruoso à procriação e à saúde moral e física da raça .
Embora o jornal "A Batalha" tivesse debates sobre a necessidade de reduzir o número de filhos como uma forma de combate operário contra a ordem estabelecida, esses debates não se contrapunham diretamente às ideias eugenistas. Em vez disso, eles complementavam a visão de que as relações sexuais "normais" e saudáveis eram essenciais para a criação de uma nova sociedade libertária. Não há registros de uma oposição organizada dentro do movimento anarquista português que desafiasse a categorização da homossexualidade como uma forma de degenerescência.
Os autores demonstram uma postura crítica em relação às perspectivas que predominavam no jornal "A Batalha" sobre a homossexualidade. Eles sublinham como o jornal, que deveria ser um espaço de emancipação e progresso, frequentemente reforçava noções conservadoras e moralistas associadas à degenerescência da espécie. Essas ideias, amplamente divulgadas em artigos anônimos, não encontravam oposição significativa dentro das páginas do jornal, refletindo uma aceitação tácita ou mesmo apoio às visões eugenistas e patologizantes da homossexualidade.
Destacam, também, que "A Batalha" adotava uma narrativa que via a homossexualidade como uma ameaça à pureza e à saúde da sociedade. A retórica do jornal alinhava-se com os discursos científicos da época que tratavam a "inversão sexual" como uma patologia a ser erradicada. Cleminson e García sublinham a contradição inerente no discurso anarquista, que por um lado combatia a moralidade burguesa, mas por outro, perpetuava uma moralidade repressiva em relação às questões de sexualidade.
Essa crítica é evidente na análise dos autores sobre como o jornal reagiu a figuras públicas como António Botto, cuja homossexualidade visível era tratada como um símbolo de decadência moral. Cleminson e García argumentam que o posicionamento do jornal, ao não questionar essas ideias e ao promovê-las ativamente, contribuiu para a perpetuação de preconceitos e para a marginalização de indivíduos homossexuais dentro do movimento anarquista e da sociedade em geral.