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Brian Morris
Povos sem governo
1. Duas imagens de humanos
A ciência social e a eco-filosofia ocidentais estão permanentemente divididas entre duas imagens contraditórias da espécie humana. Uma delas, associada a Thomas Hobbes (1651), vê a vida social dos seres humanos como uma “guerra contra todos”,e a natureza humana como essencialmente possessiva, individualista, egoísta e agressiva, é um princípio básico do “individualismo possessivo” da teoria política liberal (Mac-Pherson, 1962). A outra, associada a Rousseau, representa a natureza humana em termos do “bom selvagem”: da espécie humana como boa, racional e angélica, exigindo apenas uma sociedade boa e racional para desenvolver sua natureza essencial (Lukes 1967, 144–45). Ambas as ideias ainda são válidas e têm exemplos contemporâneos próprios. Os escritos de muitas estudiosas ecofeministas e afrocêntricas retratam uma era de ouro do passado, em que relações sociais pacíficas, igualdade de gênero e harmonia com a natureza eram a norma – antes do surgimento da cultura do Bronze e do Colonialismo, respectivamente (Eisler 1987, Diop 1989) -. Ambas as imagens compartilham um paradigma teórico similar, elas veem as relações humanas como exclusivamente “determinadas por algum estado natural dos seres humanos” (Robarchek 1989, 31). Aqueles que colaboraram no livro Societies at Peace [Sociedades na Paz] (Howell e Willis, 1989) rejeitam, acompanhado de Robarchek, o determinismo biológico, e enfatizam uma abordagem que rejeita “definições universalistas”, sugerindo que o comportamento humano nunca é culturalmente neutro, mas sempre foi integrado em um conjunto de significados compartilhados. Eles até argumentam fortemente que a “sociabilidade” é uma capacidade inerente da espécie humana, e todos os artigos tendem para a tradição de Rousseau. Mas neutralizar as abordagens biológica e determinista da cultura não deveria nos levar a apoiar um determinismo cultural unilateral (ou linguístico) que ignora completamente a biologia.
2. O que é política?
As contribuições que os antropólogos fizeram para a ciência política no passado concentram-se especificamente em dois campos importantes. Descreve-se a política das sociedades sem governos centralizados; Os estudos de Malinowski sobre as ilhas Trobriand e Evans-Pritchard sobre o povo nuer tornaram-se clássicos. O outro analisa a micropolítica, particularmente a liderança política, da política da aldeia e a relação entre política e simbolismo (Bailey, 1969, A. Cohen, 1974).
Ordem e poder são intrínsecos à vida social. Uma sociedade humana tem, por definição, ordem e estrutura, e age com modos de comportamento regularizados e relativamente fixos. Os seres humanos sem sociedade não são humanos, porque a sociedade é intrínseca à condição humana, como Marx insistiu há muito tempo (ver também Carrithers, 1992). E assim é o poder.
O poder é um relacionamento e implica a capacidade de fazer com que os outros façam o que você quer que eles façam. O poder pode significar influência: convencer os outros através de recompensas econômicas, argumentos lógicos ou o prestígio de ter um status. Ou pode significar coerção: ameaça implícita ou clara de dano. Mas o poder é intrínseco a qualquer grupo social. A questão para os anarquistas, portanto, não é se deve haver ordem ou estrutura, mas sim que tipo de ordem social deve existir e qual deve ser sua base. Da mesma forma, os anarquistas não são utópicos que desejam abolir o poder, pois reconhecem que o poder é intrínseco à condição humana. Como Bakunin expressou:
“Todos os homens têm um instinto natural de poder que tem sua origem na lei básica da vida, onde cada indivíduo é forçado a manter uma luta incessante para garantir sua existência ou afirmar seus direitos.” (Maximoff, 1953, 248)[1]
O que os anarquistas aspiram não é a abolição do poder, mas sua dispersão, seu equilíbrio, de modo que seja ideal e equitativamente distribuído (Barclay, 1982, 16–18). A noção de que os anarquistas defendem a liberdade ilimitada, como Andrew Heywood sugere (1994, 198) é um sério equívoco sobre o anarquismo. Anarquismo não significa permissividade; antes, é a rejeição do poder coercitivo.
A autoridade, como Weber analisou há muito tempo (1947), é o poder que é considerado legítimo pelos membros de uma comunidade. Mas, como Barclay enfatiza, tal legitimidade pode ser mais no sentido de “consentimento tácito” do que na aceitação incondicional do poder, e citando Morton Fried, ele observa que a legitimidade é a maneira que a ideologia usa para sustentar estruturas de poder.
A função de legitimidade é “explicar e justificar a existência de um poder social concentrado, exercido por uma parte da comunidade, e oferecer apoio similar a preceitos sociais específicos, isto é, formas específicas de distribuir e dirigir o fluxo do poder social”(Fried, 1967, 26). Todas as sociedades humanas, portanto, têm sistemas políticos, mas nem todos têm um governo, porque este último é apenas uma forma de organização política.
No prefácio do estudo clássico African Political Systems[2] (1940), A. R. Radcliffe Brown define a organização política como “a manutenção ou o estabelecimento da ordem social, dentro de um quadro territorial, através do exercício organizado da autoridade coerciva do uso, ou da possibilidade de fazê-lo, de força física”(xiv). Ele prossegue sugerindo que a organização política de uma sociedade “é aquele aspecto da organização total responsável pelo controle e regulação do uso da força física” (xxiii).
Tal definição, que é claramente tirada de Weber, de sua dupla tensão sobre o território e força coercitiva, refere-se principalmente ao governo e, portanto, é muito restritiva como uma definição de política. Weber definiu o poder[3] (macht) como a “probabilidade de impor a vontade, dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência”, e definiu um grupo como político “quando e na medida em que sua existência e a validade de suas ordenações, dentro de uma determinada área geográfica, são garantidas de maneira contínua pela ameaça e aplicação da força física” (1947, 152–54).
Fortes e Evans-Pritchard, em sua introdução aos Sistemas Políticos Africanos, acharam essas definições de política muito restritivas e observaram que os etnógrafos que, como eles, próprios, estudaram sociedades como as dos povos Nuer e Tallensi – sociedades sem autoridade centralizada – foram forçados a considerar “que, na ausência de formas explícitas de governo, isso poderia ajudar a constituir a estrutura política de um povo”[4] (1940, p. 6). No estudo, uma divisão simples é feita entre as duas principais categorias do sistema político, aquelas sociedades que têm sistemas centralizados de autoridade, isto é, que eles têm governo ou Estado (sociedades como o bemba ou o zulú) e aquelas sociedades que carecem de autoridade centralizada, como os caçadores-coletores e aqueles já nomeados tallansi e nuer.
Embora admitindo haver uma conexão intrínseca entre a cultura do povo e sua organização social, Fortes e Evans-Pritchard enfatizam que esses dois componentes da vida social não devem ser confundidos ou misturados. Eles enfatizam que a cultura e o tipo de sistema político variam independentemente uns dos outros, e que não existe uma relação simples entre os modos de subsistência e a estrutura política das sociedades. Mas eles admitem que, em um sentido geral, as formas de subsistência determinam os valores dominantes de um povo e influenciam fortemente suas organizações sociais, incluindo seus sistemas políticos. Eles sugerem que as grandes divergências no desenvolvimento cultural e econômico podem ser incompatíveis com o que descrevem como um “sistema político segmentário”, característico da população de Nuer, Tallensi e Logoli.No último sistema não há organização administrativa ou governo, e a comunidade local, e não o Estado, é a chave para a unidade territorial. Eles sugerem que pertencer à comunidade local é adquirido, geralmente através de laços de parentesco, reais ou fictícios, e eles escrevem:
“O princípio da linhagem toma o lugar da aliança política, e as inter-relações dos segmentos territoriais são diretamente coordenadas com as inter-relações dos segmentos da linhagem” (Fortes e Evans-Pritchard 1940, 11).[5]
A estrutura política dessas sociedades, portanto, consiste em um “equilíbrio entre o número de segmentos, espacialmente justapostos e estruturalmente equivalentes, definido no local e na linhagem, e não em termos administrativos … é um equilíbrio que se opõe às lealdades locais e à diversidade de ‘laços de linhagem e rituais’”.
O importante estudo de Middleton e Tait, Tribes Without Rulers, 1958 [Tribos sem governantes], dedica-se a moldar a estrutura política de seis sociedades africanas, onde a autoridade política se concentra em grupos locais unidos por uma única linha de descendência. Essas sociedades – tiv, mandari, dinka, bwamba, kankomba e lugbara – são vistas, portanto, como beneficiárias de uma estrutura política descentralizada baseada em um “sistema de linhagem segmentar”. Os autores reconhecem que, em outras comunidades africanas, a autoridade poderia ser dada em outras instituições, como chefes de aldeias locais, o sistema de idade mínima, conselhos ou associações de aldeia, ou irmandades rituais; e estes são geralmente encontrados em conjunção de estruturas de linhagem. Eles também reconhecem a diversidade destas seis sociedades, com respeito à existência dos chefes, e se os grupos de descendentes estão dispersos ou não. Mas eles sugerem que em todas essas sociedades “o princípio segmentário” é ativo, isto é, que as relações políticas entre grupos territoriais são concebidas em termos de descendência, seja por linhagem ou por um sistema de clãs.
Tem havido muita discussão crítica sobre este modelo de análise e, acima de tudo, sobre a “teoria da descendência”. A correlação presumida e simples entre grupos locais (território), sendo um membro de grupos de descendência (família) e afiliação política tem sido criticamente questionada, especialmente em relação aos Nuer. A noção geral de uma “organização de linhagem”, uma política baseada em grupos de ancestrais exogâmicos, tem sido descrita como mais “mítica” do que real por um estudioso (Beidelman 1971, Kuper 1988, 190–209, e ver Kelly 1985, em Expansão Nuer).
A simples equação de hierarquia política e poder coercitivo também foi contestada por Pierre Clastres em seu estudo clássico Society against the State[6] (1977). Como Barclay, Clastres pertence a uma longa tradição anarquista que remonta ao final do século XVIII. O estudo se concentra no “líder como servo e nos usos humanos do poder entre os índios das Américas”. O livro é apropriadamente intitulado A Sociedade Contra o Estado, porque como Tom Paine e os primeiros anarquistas, Clastres faz uma distinção clara e inequívoca entre a sociedade e o Estado, e sugere que a essência das sociedades anárquicas, sejam elas caçadoras-coletoras ou populações neolíticas precoces, é institucionalizar meios eficazes para impedir que o poder seja separado da vida social.
A definição clássica de poder político na tradição intelectual ocidental, evidente nos escritos de Nietzsche e Weber, assim como os dos antropólogos, coloca uma ênfase fundamental no controle e na dominação. O poder sempre se manifesta dentro de “uma relação que é resolvida, em suma, em um relacionamento coercitivo … a verdade do ser do poder consiste na violência”[7] (1977, 4). O modelo ocidental de poder político, que vem dos primórdios da civilização ocidental, tende a ver o poder em termos de “relações de comando-obediência hierárquicas e autoritárias”[8]. Clastres argumenta que tal ponto de vista é etnocêntrico e que imediatamente deixa os etnólogos perplexos quando confrontam as sociedades sem Estado ou sem qualquer outra agência centralizadora. Tais sociedades são concebidas como se lhes faltasse algo, incompleto, como se lhes faltasse … um Estado. Em contextos sociais onde não há coerção ou violência, é possível falar em poder político? Assim, os especialistas foram levados a descrever o poder na população das ilhas Trobriand ou a sociedades como a nilótica do Sudão como “embrionárias”, “nascentes” ou “subdesenvolvidas”. A história é vista como uma via de mão única, com a cultura ocidental como a imagem do “que se tornará, mais cedo ou mais tarde, sociedades sem poder”. Mas Clastres afirma que não existe sociedade humana sem poder. O que temos não é uma divisão entre sociedades com poder e sociedades sem poder (sociedades sem Estado) – pois “o poder político é universal, imanente ao social”[9] – mas sim uma situação em que o poder se manifesta de duas maneiras: coercitivo e não coercitivo. Assim, o poder político é inerente à vida social; O poder coercitivo é apenas um tipo particular de poder.
Clastres menciona como os primeiros exploradores europeus na América do Sul ficaram perplexos e desconcertados quando descreveram a vida política do povo indígena Tupinambá – “pessoas sem deus, sem lei e sem rei” – mas que se sentiam em casa entre os Estados hierárquicos dos astecas e incas, com seus sistemas políticos hierárquicos e coercitivos. Para Clastres, então, o poder político como coerção ou violência é a marca das sociedades históricas, e é a própria esfera política que constitui o primeiro motor da mudança social.
Examinando a filosofia da liderança tribal indiana, Clastres argumenta que os chefes carecem de autoridade real, e que a maioria das comunidades indígenas da América do Sul, exceto os incas, exceto os incas, eles são distinguidos pelo “senso de democracia e pelo gosto pela igualdade”[10]. Revendo a literatura etnográfica, Clastres sugere que existem quatro características que distinguem o chefe em todas as tribos da floresta da América do Sul. Primeiro, o chefe era um pacificador, responsável por manter a paz e a harmonia dentro do grupo, embora lhe faltasse poder coercitivo. Sua função era a da pacificação, e somente em circunstâncias excepcionais, quando a comunidade enfrentava uma ameaça externa, era adotado o modelo de poder coercitivo. Em segundo lugar, o chefe deve ser generoso com suas posses; Como Clastres cita do estudo de Francis Huxley sobre o povo urubu, você sempre pode reconhecer um chefe porque ele tem menos posses e carrega os ornamentos mais pobres. Em terceiro lugar, Clastres sugere que o talento para a oratória é tanto uma condição quanto um instrumento de poder político, disse que a oratória está centrada na necessidade fundamental de honestidade, paz e harmonia na comunidade. Em quarto lugar, na maioria das sociedades da América do Sul, o casamento poligâmico está intimamente associado principalmente ao poder, e é normal que o chefe tenha privilégios, embora os caçadores de sucesso também possam ter casamentos poligâmicos. Assim, a poligamia é encontrada nas sociedades nômades Guayaki e Siriono, sociedades caçadoras-coletoras nas quais o grupo raramente ultrapassa trinta pessoas, e também entre a sociedade de agricultores sedentários como os Guarani e os Tupinambá, cujos povos são muitas vezes compostos por várias centenas de pessoas, a poligamia não é uma instituição ligada à demografia, mas está ligada à instituição política do poder.
Todas essas características são expressões fundamentais do que constitui o tecido básico da sociedade arcaica, especialmente as da troca. O poder coercitivo, sugere Clastres, é uma negação dessa reciprocidade. Aceitando a opinião de Murdock de que o atavismo e a agressividade das comunidades tribais foram tremendamente exagerados, Clastres enfatiza a importância das alianças matrimoniais, especialmente as cruzadas (casamentos entre primos), para estabelecer estruturas multicomunitárias. Ele se refere a elas como “estruturas polidêmicas”[11]. Também enfatiza que entre os colecionadores de Guayaki (Aché) existe uma oposição fundamental entre homens e mulheres, cujas atividades econômicas pertencem a duas esferas distintas mas complementares: homens caçam e mulheres recoleta. Percebe-se, então, que surgem dois estilos de existência, focados na oposição cultural entre o arco (caçar) e o cesto (transportar), que evocam proibições recíprocas específicas. Fundamentalmente, para os caçadores de Guayaki existe um tabu básico que os proíbe categoricamente de se alimentarem da carne de suas próprias caçadas. Esse tabu, sugere Clastres, é o ato fundamental de uma troca de alimentos que forma a base da sociedade Guayaki.
Clastres enfatiza que o fato de que uma economia de subsistência não implica uma luta inesgotável contra a fome, mas sim uma abundância e variedade de coisas para comer, e que, como acontece com as sociedades de caçadores-coletores de Kalahari, elas gastam apenas três ou quatro horas por dia em tarefas básicas de subsistência – como trabalho -. Essas comunidades eram essencialmente igualitárias e as pessoas tinham um alto grau de controle sobre suas próprias vidas e atividades de trabalho. Ele argumenta que a diferença decisiva entre as sociedades arcaicas e históricas não foi a revolução neolítica e o advento da agricultura, mas sim os ares de uma “revolução política”, o surgimento do Estado. A intensificação da agricultura implica a imposição, em uma comunidade, de violência externa. Clastres argumenta que tal aparato estatal não deriva da institucionalização da liderança tribal, uma vez que nas sociedades arcaicas o chefe “não tem autoridade, não tem poder de coerção, não tem meios de dar uma ordem”[12]. A liderança tribal, portanto, não implica as funções da autoridade. De onde vem o poder político? Provisoriamente, Clastres sugere que a origem do Estado pode derivar de profetas religiosos, e conclui apontando que enquanto a história da sociedade histórica pode ser a história da luta de classes, para os povos sem história é “a história de sua luta contra o Estado”[13].
O ponto central da análise de Clastres, confirmada mais tarde por John Gledhill[14] (1994, 13–15), é que ela fornece uma crítica da teoria política ocidental, que tende a identificar o poder político como poder com violência e coerção, também destaca uma importante lição derivada da antropologia, a saber, que é possível que as sociedades se organizem sem qualquer divisão entre governantes e governados, entre opressores e oprimidos. Também sugere olhar a história não em termos de tipologias, mas sim como um processo histórico em que, em regiões específicas, sociedades cujos Estados coexistiram com populações sem Estado tentaram manter sua própria autonomia e resistir às intrusões centralizadoras e à explorações inerentes ao Estado (Gledhill 1994, 15). Também vale a pena mencionar que os anarquistas sempre fizeram uma distinção, muito antes de Deleuze, entre organização e ordem imposta de cima.
3. Sociedades sem governo
Uma tradição importante dentro da antropologia tem sido a interpretação dos sistemas políticos das sociedades não-capitalistas em termos de tipologias que são essencialmente taxonômicas e descritivas. Seguindo a abordagem neo-evolucionista anterior à política, associada a Service (1962) e Fried (1967), Lewellen[15] (1992) sugeriu quatro tipos de sistemas políticos, baseados em seu modo de integração política.
A organização política em forma de banda é característica de sociedades de caçadores-coletores, como o Kung do Kalahari, o Inuit do norte do Canadá e o Mbuti do Zaire[16], bem como de todos os coletores pré-históricos.
As tribos: embora Lewellen cite a natureza problemática do conceito de “tribo”, ele defende o uso do termo por razões lógicas e empíricas. Em termos evolutivos, deve haver algum termo político que esteja a meio caminho entre o nível da banda de organizações políticas associadas a sociedades de caçadores-coletores e sistemas políticos centralizados. Os sistemas interculturais também revelam certas características em comum com as sociedades tribais, embora também mostrem grandes variações no que diz respeito à existência de faixas etárias, fraternidades intertribais e associações rituais. Lewellen descreve a política em três contextos tribais, que são os Kpelle, os Yanomami e os Nuer, e também considera o povo iroquês como um exemplo desse tipo de sistema político.
Territórios tribais transcendem o nível tribal por terem alguma forma de sistema centralizado e uma maior densidade populacional que permite uma produtividade mais eficiente. Deve haver um sistema político de fileiras, mas sem uma diferenciação de classe real. Lewellen descreve a sociedade Kwakiutl e o havaiano pré-colonial como exemplos típicos de territórios tribais.
Finalmente, há integração política do tipo Estado, o que implica instituições especializadas e uma autoridade centralizada para manter, através de força coercitiva, um acesso diferenciado aos recursos. A principal característica do Estado é a sua permanência. Lewellen oferece um resumo descritivo dos Estados pré-coloniais incas e zulus.
4. Três contextos políticos
Aqui vamos examinar três contextos: colecionadores, horticultores de pequena escala que vivem em aldeias e territórios tribais.
Em uma grande revisão da literatura, Marvin Harris (1993) enfatiza a relevância das diferenças sexuais baseadas na biologia na compreensão da hierarquia de gênero nas sociedades humanas. Sugere que as diferenças básicas entre homens e mulheres, em termos de altura, musculatura e fisiologia reprodutiva, fornecem um “ponto de partida” para tentar entender o gênero. No entanto, o determinismo cultural não recomenda que ignoremos a biologia, e nem a ênfase na diferença biológica implicada por um simples determinismo biológico como “a anatomia é inevitável”.
Harris sugere que tais diferenças biológicas estão claramente relacionadas a uma das características mais difundidas das sociedades humanas primitivas – tanto as sociedades modernas de caçadores-coletores quanto as sociedades pré-históricas de forrageamento –, a divisão do trabalho pelo sexo. Com poucas exceções, como a da sociedade Agta de Luzon – onde as mulheres caçam javalis e veados com facas, arcos e flechas – (ver Dahlberg 1981), nas sociedades de caçadores-coletores, os homens são os principais fornecedores do grande jogo. Eles se especializaram na criação de armas de caça, como arcos e flechas, lanças, arpões, bumerangues e gravetos, armas que eles poderiam usar para ferir ou matar outros seres humanos. Mas a associação de homens à caça e ao controle de armas não implica necessariamente uma hierarquia de gênero. Há muitas evidências que sugerem que entre muitos colhedores (e alguns agricultores de subsistência) a divisão sexual do trabalho é complementar, e as relações de gênero são essencialmente igualitárias, como sugere Clastres. Além disso, nas primeiras comunidades humanas, a busca por comida e as caçadas de grupo de todos os membros da comunidade provavelmente eram uma prática estendida (Ehrenreich, 1997).
Harris cita os estudos de Eleanor Leacock (1983) sobre as sociedades exploratórias Montagnais-Naskapi de Labrador, os estudos de Colin Turnbull (1982) sobre os Mbuti do Zaire e a biografia de Nisa de Marjorie Shostak, uma mulher !Kung, que indica que as mulheres nas sociedades de gestão coletiva têm um alto grau de autonomia e que as relações igualitárias entre os sexos são a norma. Mas Harris acredita que os papéis de gênero nas sociedades de gestão coletiva não são completamente complementares ou igualitários, porque os homens, por seu papel como curadores e na esfera da tomada de decisões públicas, eles tendem a ter uma “vantagem significativa” sobre as mulheres em quase todos os contextos das sociedades de coleta (1993, 59). Embora não haja violência organizada entre a sociedade !Kung del Kalahari, Harris argumenta que eles não são de forma alguma “modelos pacíficos”, conforme descrito por Elizabeth Marshall Thomas em seu livro The Harmless People, 1958 [O povo inofensivo]. Disputas frequentemente ocorreram e os assassinatos não eram desconhecidos.
Significativamente, Richard Lee descobriu que em trinta e quatro casos de conflito interpessoal durante um período de cinco anos – metade dos quais eram disputas domésticas entre maridos – foi o homem que iniciou o ataque na maioria dos casos, e dos vinte e cinco casos de homicídio, as vítimas eram principalmente homens, todos os assassinos também eram homens (Lee 1979, 453). Citando um estudo comparativo (Hayden et al., 1986), Harris sugere que, onde as condições implicam confrontos entre sociedades de caçadores-coletores, há uma correlação com uma crescente ênfase na dominação dos homens – é por isso que a importância cultural é dada à ética dos guerreiros e à agressão masculina -.
A guerra é um conflito organizado que envolve duas equipes de combatentes armados; no entanto, entre os !Kung, esse conceito de guerra não existia e havia uma ausência virtual até de ataques. Isso está de acordo com uma situação em que a igualdade de gênero é a norma. Além disso, como Harris sugere, muitas sociedades semelhantes a bandas participam de guerras intergrupais de diferentes graus, e é por isso que elas têm formas bem desenvolvidas de hierarquia de gênero. Ele também cita os testemunhos etnográficos dos aborígines australianos, embora ele também indique que nessas sociedades as mulheres tinham um considerável grau de independência.
Além da filosofia de compartilhar, ritos complementares de gênero e um nível geral de igualdade de gênero entre as sociedades de gestão coletiva (ver Woodburn 1982, Kent 1993), há também uma ênfase importante no consenso. George Silberbauer destaca isso claramente em seu artigo sobre a sociedade bosquimana g/wi[17] (1982).
Silberbauer estudou, entre 1958 e 1966, o g/wi Bosquímanos do Kalahari Central, em Botswana, quando eles ainda eram uma sociedade autônoma, principalmente caçadores e coletores. Desde então, as incursões dos pastores Tswana e Kgalagadi na região aumentaram.
A comunidade social e política do g/wi é a banda, que é conceituada em termos de um grupo de pessoas que vivem em um território específico e controlam o uso de seus recursos. Pertencer à banda deriva principalmente do parentesco e do casamento, mas a adesão é aberta e não exclusiva, de modo que as pessoas que não são g/wi podem se tornar parte dela. Na banda há movimento e fluxo, e um padrão contínuo de separação e integração entre os diferentes chefes de família que o constituem. Isso faz com que o grupo local explore com sucesso os recursos naturais. Silberbauer sugere que, para isso, os processos políticos devem ser “integradores sem enfraquecer a dependência domiciliar interna, o que enfraqueceria a autonomia” de cada domicílio – já que a sobrevivência do povo depende de sua autonomia -. O parentesco, que tem propriedades universalistas, é importante para ordenar os relacionamentos no grupo.
As decisões que afetam o grupo, como tudo o mais, são tomadas através de discussões, que incluem todos os membros adultos. Tais discussões tendem a ser informais e raramente tomam a forma de debates públicos. As disputas e discussões são tratadas em público, mas são feitas indiretamente, uma vez que o confronto direto entre indivíduos de posições opostas é visto como uma violação das normas de etiqueta. Durante o verão e o outono, campos conjuntos são criados, mas são agrupamentos instáveis, e sua composição é sempre baseada na preferência das companhias umas das outras. Esses grupos – ou “gangues”, como Silberbauer os chama – formam uma segmentação passageira da banda.
A liderança da banda é evidente em todas as fases da tomada de decisão, que é iniciada por alguém que identifica ou comunica um problema que precisa de uma solução. A liderança é apropriada para o grau em que a sugestão ou opinião de alguém atrai o apoio público e muda de acordo com o contexto ou a experiência relevante. As decisões públicas abrangem um vasto campo, que vai desde disputas domésticas até a localização do próximo local a ser montado. As decisões são tomadas, principalmente, quando se chega a um consenso, o que não implica de forma alguma a unanimidade de opiniões ou decisões. Pelo contrário, implica uma situação em que não há oposição significativa a uma proposta. Todos os membros do grupo têm a oportunidade de participar da decisão. Como o consenso implica um elemento de consentimento, isso nega a noção de coerção – e a franqueza geral do grupo como unidade social evita o surgimento de facções coercitivas -.
Desta forma, Silberbauer conclui que o estilo da política da banda é mais propiciador do que coercitivo, e a liderança é mais autoritativa[18] do que autoritária, um esforço individual para a cooperação de outros nas atividades que eles desejam realizar. Distingue entre políticas de consenso e democracia – o que envolve acesso igual a posições de autoridade legitimada, e é essencialmente uma estrutura organizacional para a tomada e execução de decisões -. Silberbauer sugere que a definição comum de ação política, em termos de poder coercitivo ou força física, proposta por Weber (1947, 154) e Radcliffe-Brown (1940, xxiii), citada acima, é muito limitado e seletivo, e inadequado no contexto da política de consenso. Ele sugere que isso nos leva “ao paradoxo de que, como não há lugar de poder, a comunidade não tem autoridade. Isso, é claro, não faz sentido, mas é o fato do consenso que dá autoridade a uma decisão”(1982, 33).
Um segundo contexto discutido por Harris é a sociedade organizada nas aldeias, onde a subsistência deriva em parte de formas rudimentares de agricultura, e nas quais as incursões armadas são quase endêmicas. Os dois contextos clássicos são a sociedade Yanomami da Venezuela – assunto de importantes estudos de Chagnon 1968 e Lizot 1985 – e as comunidades dos povos das terras altas da Nova Guiné. O povo Yanomami, descrito por Chagnon como “povo feroz”, treina as crianças pequenas para transformá-las em guerreiras, ser corajoso, cruel e vingativo. Os jovens cultivam sua agressividade e crueldade praticando com animais. Ao amanhecer, incursões armadas são feitas em cidades rivais, e mulheres são tomadas como cativas. Os homens bem-sucedidos são polígamos e há um comportamento generalizado de maus-tratos em relação às mulheres, que são espancadas e assediadas. Aproximadamente um terço das mortes em algumas aldeias Yanomami é resultado de combates armados, e a taxa geral de homicídios é alta – cinco vezes maior que a do !Kung (Knauft 1987, 464).
O abuso e maus-tratos das mulheres é igualmente evidente entre muitas comunidades da Nova Guiné, que, segundo Harris, são os “homens mais fervorosamente chauvinistas do mundo” (1993, p. 65). A instituição central dessas sociedades é nama, um culto de iniciação masculina; em essência, ele treina homens para serem guerreiros ferozes e subordinar mulheres. Entre os Sambia, como descrito por Gilbert Herdt (1987), há uma segregação sexual rígida, homens estão engajados em brigas e caçadas, as mulheres atendem os suínos ou estão engajadas no que Herdt descreve como cultivo “rotineiro”. Os homens evitam qualquer contato com meninos e meninas e temem a intimidade com as mulheres, suas principais atividades são focadas nos clubes secretos dos homens. Por meio de iniciações complexas, as crianças se tornam membros do que Herdt chama de “fraternidade guerreira baseada no clã”, centrada em uma aldeia local. Através do ritual da felação[19], o sêmen passa de homens para filhos, e a perda de sêmen é temida através de atividades heterossexuais – já que o contato com mulheres é considerado um contaminante -. O antagonismo sexual é, portanto, uma característica das relações da comunidade Sambia e constitui uma realidade psicológica para ela. A instituição que coordena essa sociedade patrilinear é uma sociedade secreta de homens; É a força dominante na vida social da comunidade de Sambia e um instrumento de controle político e ideológico dos homens sobre as mulheres.
No entanto, nem todas as comunidades organizadas em aldeias que praticam a horticultura – com a caça como uma atividade subsidiária importante – são caracterizadas pelo domínio do homem e pela ética da violência. Em contraste, vale a pena, portanto, destacar dois ensaios interessantes de Societes at Peace compilados por Joanna Overing e Clayton Robarchek, respectivamente.
Enquanto Marvin Harris tende a conceber, como análogo, a aldeia dos trópicos, baseada em comunidades essencialmente focadas em torno de uma ética guerreira, e relações coercivas e domínio masculino, a descrição de Pierre Clastres das tribos da floresta da América do Sul enfatiza sua filosofia igualitária e sua aversão à coerção e hierarquia. Joanna Overing (1989) expõe simultaneamente essas duas perspectivas opostas em sua descrição dos Xavante e dos Piaroa em Styles of Manhood [Modos de masculinidade].
Maybury-Lewis (1971) também estudou a comunidade Xavante do Brasil central, baseado em uma economia de coleção, complementada com caça e horticultura. Mas a caça é mais do que uma simples atividade econômica, a caça implica a sexualidade masculina, dando ao caçador “um palco público” para uma representação estilizada de sua masculinidade. A masculinidade é definida, portanto, em termos de autoafirmação, violência e temperamento beligerante – tal beligerância é instilada em crianças desde tenra idade -. O antagonismo de gênero ou “beligerância sexual” é, portanto, intrínseco à definição de masculinidade da comunidade Xavante, bem como à violência ritual em relação às mulheres. Os homens têm supremacia política e a violência ocorre tanto na comunidade quanto em confrontos com populações fora da comunidade. De acordo com Maybury-Lewis, grande parte da vida da comunidade Xavante tem uma função política, e esta política é baseada em uma competição entre grupos de homens (1971, 104).
Overing enfatiza que esta descrição da sociedade Xavante está de acordo com a representação que Collier e Rosaldo (1981) fazem da cultura de uma “sociedade de serviços de esposas”, em que caça, assassinato e sexualidade masculina são ideologicamente unidos – uma descrição que, segundo Overing, se baseia em um exame bastante seletivo de material etnográfico.
Overing sugere que o estilo de masculinidade da comunidade piaroa está em “extremo contraste” com a vida xavante do sul da Venezuela. Os piaroa, como os Xavante, combinam a colheita com a caça e o cultivo do jardim – assim como a pesca -. Eles são, comparativamente, muito igualitários, embora cada território tenha um líder político-religioso (Ruwang), mas sua autoridade é limitada. Nem a comunidade como um coletivo nem qualquer indivíduo “possui” terra, todos os produtos florestais são compartilhados igualmente entre os membros da família. A vida social da comunidade piaroa, segundo Overing, é muito informal, colocando grande ênfase na autonomia pessoal. Eles vêem grande virtude na vida pacífica e tranquila, e em ser “calmos”, e sua vida social é quase livre de formas de violência física. A coerção não tem lugar em sua vida social, e qualquer expressão de violência é focada em pessoas de fora. As relações de gênero não são hierárquicas nem antagônicas, e o ideal de amadurecimento social é o mesmo para homens e mulheres – uma “tranquilidade controlada”. O retrato da sociedade piaroa coincide, portanto, com o sugerido por Clastres.
Dentan (1968) fez um primeiro e importante estudo sobre o povo Semai da Malásia – eloquentemente descrito como um povo “não-violento” -. Nos últimos anos eles foram retratados, sugere Robarchek (1989), como as duas imagens descritas anteriormente – como a quintessência do “nobre selvagem” e como assassinos sanguinários -. Robarchek, em seu julgamento etnográfico sobre esta cidade, cuja vida social é vista como “relativamente livre de violência”, ela se move entre esses dois extremos e vê a semai como um exemplo de uma “sociedade pacífica” – junto aos mbuti da floresta Ituri, os bosquímanos do Kalahari, os taitianos, os inuit e os haluk (Turnbull 1961, Thomas 1958, Levy 1973, Briggs 1970, Spiro 1952). Mas a ênfase na não-violência não implica necessariamente uma ausência de egoísmo ou individualismo, e Robarchek sugere que entre os semai há uma ênfase psicocultural no individualismo e na autonomia, bem como na não-violência, cuidado e dependência – um tema que eu explorei em meu estudo de outra comunidade florestal asiática, o Hill Pandaram (Morris 1982).
As questões de perigo e dependência, segundo Robarchek, são onipresentes na vida social dos semai. O perigo é sentido em todo lugar – do mundo natural, dos espíritos, dos estranhos à comunidade -. No entanto, Robarchek não explora o contexto sócio-histórico da sociedade semai; encapsulado como se estivesse em um sistema econômico mais amplo, é um povo que tem sido, ao longo dos séculos, assediado e explorado por grupos fora da comunidade. A dependência tem uma ênfase igual, e há importantes imperativos morais para compartilhar alimentos e evitar conflitos e violência. A ênfase primordial é dada, então, aos valores do cuidado, generosidade e pertencimento ao grupo. A proteção e o cuidado da família de parentes são descritos como “o único refúgio” em um mundo hostil – embora Robarchek explique os perigos em termos de imagem cultural, em vez de vir de uma realidade política -.
Exceto por essa veemência de compartilhar, a dependência e a não-violência coexistem com uma ênfase igualmente importante na autonomia individual. Desde os primeiros anos da infância, está implícito um senso de individualidade, de autonomia pessoal e de liberdade em relação às limitações interpessoais – e, em casos extremos, isso pode envolver isolamento emocional para a população Semai, fragilidade nos relacionamentos conjugais e falta de empatia em relação aos outros -.
Outros povos das florestas asiáticas foram descritos como “sociedades pacíficas” e exemplificam um padrão cultural semelhante ao da sociedade Semai. Signe Howell (1989), em suas histórias sobre o Chewong, sugere que para essas pessoas “ficar com raiva não é humano, mas ter medo é”. Baseado em dados etnográficos, Howell questiona se a agressão é uma parte intrínseca da natureza humana. Gibson, no entanto, em seu debate sobre o cultivo das Filipinas – também agricultores itinerantes como a população Semai e Chewong – indica que esta cidade é uma sociedade “pacífica”, porque eles consideram “tranquilidade” de alto valor moral e dão a ela um valor baixo para “agressão”. Mas Gibson vê essas atitudes morais como o produto do processo histórico pelo qual a comunidade Buid era constantemente vítima de forças externas. Sua cultura não pode, portanto, ser vista apenas como um efeito das capacidades psicobiológicas inatas, nem em termos de sua adaptação ao ambiente florestal (1989, 76).
Entre as sociedades de caçadores-coletores e aquelas baseadas em aldeias ou na agricultura de pequena escala, como os Yanomami, Semai e Sambia, há uma estreita correlação entre o grau de incursões internas de luta armada e o grau em que hierarquias de gênero são desenvolvidas, isto é, o grau de dominância masculina sobre as mulheres. Mas Harris ressalta que essa correlação não se sustenta quando falamos de sociedades com sistemas políticos mais complexos, aquelas que constituem “quartéis-generais”. Esses sistemas tribais são tipicamente associados a guerras com inimigos distantes, e isso, escreve ele, “Isso melhora, mais do que piora, o status das mulheres, porque resulta em uma organização doméstica avunculocal[20] e matrilocal[21]” (1991, 66).
Em sistemas mais complexos, as sociedades tribais multi-aldeias, onde os homens fazem longas estadias com o objetivo de caçar, negociar ou travar a guerra, a matrilocalidade tende a prevalecer. Nesse contexto, as mulheres assumem o controle de todas as esferas da vida doméstica. Harris sugere que os combates externos estão, portanto, associados à linhagem matrilinear e com um alto grau de igualdade de gênero.
O exemplo clássico dessa associação de confrontos externos e igualdade de gênero – Harris enfatiza mais o confronto do que a caça ou o comércio externo – é a comunidade dos iroqueses. Esta cidade matrilocal e matrilinear residia em grandes casas comunais cujas atividades eram dirigidas por mulheres mais velhas. Os maridos tinham muito pouco controle sobre assuntos domésticos, a agricultura estava principalmente nas mãos das mulheres. O sistema político da comunidade dos iroqueses consistia em um conselho de anciãos, eleito entre as cabeças dos diferentes povos. As mulheres idosas das casas grandes indicaram os membros deste conselho, mas não participaram do conselho. No entanto, elas poderiam evitar a participação de qualquer homem a quem se opusessem e, como controlavam a economia doméstica, tinham considerável influência nas decisões do conselho. Na esfera pública, elas tiveram, indiretamente, quase tanta influência quanto os homens (Brown, 1975). No entanto, Harris afirma que esta situação não implica um estado matriarcal, uma vez que as mulheres não humilharam, exploraram ou perseguiram os homens. Isso, no entanto, pouco teve a ver com a natureza feminina: há amplas evidências da participação das mulheres no combate armado e de serem defensoras entusiastas da guerra e da tortura. Harris escreve que “havia falta de poder e ausência de masculinidade”, o que impedia as mulheres de sociedades pré-industriais de estabelecer sistemas matriarcais (1993, 69).
Em seu animado e inteligível texto Cannibals and Kings[22] (1977, 92–93), Harris sugere que as formas de organização matrilinear foram uma fase de curta duração no desenvolvimento de Estados primitivos. Escreve:
“Como a matrilocalidade é um método repetido de superar a capacidade limitada dos grupos de aldeias patrilineares de formar alianças militares multinacionais, parece provável que as sociedades à beira do Estado frequentemente adotem formas matrilineares de organização social[23]” (92).
Ele cita Robert Briffault e vários autores clássicos que sugerem que muitos Estados primitivos na Europa e na Ásia experimentaram uma fase matrilinear, um contexto em que o matrimônio era matrilocal, as mulheres tinham um status relativamente alto, e havia um culto de antepassados. Nesta fase, como mencionado, foi curto, e poucos Estados, antigos ou modernos, têm sistemas de linhagem matrilineares. Como ele aponta: “Com o surgimento do estado, as mulheres novamente perderam a influência ... o velho complexo da supremacia masculina foi plenamente reafirmado”[24] (1977, 93).
Embora a linhagem matrilinear tenha praticamente deixado de ser um tema de interesse entre os antropólogos (ver Moore 1988, Ingold 1994), tem sido uma questão central para muitos acadêmicos afrocêntricos (Diop 1989) e ecofeministas, que nos deliciaram com histórias líricas sobre um “matriarcado” igualitário e universal que existia antes do patriarcado e da formação das cidades-estados, que está ligado às incursões dos pastores nômades da estepe eurasiática. Harris sugere que, dado que a linhagem matrilinear está fortemente ligada, com o surgimento de sistemas chefes tribais, este ensaio deve ser concluído com uma discussão crítica de sua literatura.
5. Matrilinidade e a religião da deusa mãe
A noção de que o “matriarcado” era a principal forma de organização social era a doutrina central de muitos antropólogos primitivos. Os escritos de Jakob Bachofen (1967) sobre mitologia clássica e religião foram particularmente influentes. Bachofen sugeriu que “toda civilização e cultura são essencialmente baseadas no estabelecimento e adorno do lar”[25], e que o “matriarcado” era um período cultural intermediário no desenvolvimento da sociedade humana, entre as sociedades de caçadores-coletores e a ascensão das cidades-estados. O matriarcado (que não implica necessariamente a dominação política das mulheres) estava associado ao desenvolvimento da agricultura, com reciprocidade, em vez de uma atitude prometéica[26] em relação à natureza, e um sistema religioso que enfatizava a dependência da humanidade em relação à Terra, expressa em divindades ctônicas[27]. Mas embora Bachofen tenha sugerido que nessa era da evolução humana as mulheres eram “o arquivo de toda a cultura”, ele também enfatizou que em todas as civilizações clássicas – Egito, Grécia, Roma – havia uma relação intrínseca entre deuses “fálicos” como Osíris (associado à água como elemento fertilizante) e divindades femininas como Ísis, que foram equiparados a mitos da terra, embora o último tenha recebido maior importância. Bachofen escreve que, sempre que encontramos o matriarcado, descobrimos que ele está ligado às “religiões ctônicas”, centradas em torno de divindades femininas (88). Ele também faz uma observação interessante dizendo que, quando a fugacidade da vida material anda de mãos dadas com a linhagem matrilinear, o patriarcado está ligado à imortalidade de uma vida supramaterial pertencente às “regiões de luz”. Com o desenvolvimento do patriarcado nas civilizações clássicas do Egito e da Grécia, “o princípio criativo está dissociado do tema terreno”, e ele está associado a divindades como os deuses do Olimpo (129). Com o “triunfo da paternidade”, os seres humanos se veem como aqueles que quebram as “correntes do telúrguer” (vida terrena), e uma vida espiritual se eleva acima da “existência corpórea”. Bachofen vê o “progresso” do matriarcado para o patriarcado como um grande retrocesso na história das relações de gênero (109).
Os escritos de Bachofen tiveram uma enorme influência. Engels[28] considerou sua descoberta da linhagem matrilinear – as “gens primitivas do direito materno”[29] – como uma fase crucial na evolução humana; juntamente com as teorias de Darwin na biologia. Em uma frase que costuma ser citada, Engels sugeriu que “a derrubada do direito materno foi a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo”[30] (1968, 488). As Antropólogas feministas influenciadas por Engels – como Reed, Leacock e Sacks – criticaram fortemente a ideia de que a subordinação das mulheres é universal. Elas sugerem que as mulheres têm sido produtoras importantes em virtualmente todas as sociedades humanas, e que em muitas dessas sociedades – especialmente nas sociedades matrilineares – as mulheres têm compartilhado poder e autoridade com os homens. Suas atividades não foram necessariamente desconsideradas, e as mulheres frequentemente tinham um bom grau de autonomia social, ou seja, elas tinham poder no processo de tomada de decisão sobre suas próprias vidas e atividades (Sacks 1979, 65–95, Leacock 1981, 134).
Estudos antropológicos e históricos nas últimas décadas indicaram a complexidade e a diversidade das culturas humanas, e questionaram se a matriarcada (como queira que seja concebida) pode ser vista simplesmente como uma fase cultural na evolução das sociedades humanas. Mas, de várias maneiras, a concepção bipolar de Bachofen da história humana ainda é válida. Por exemplo, Bachofen tem uma presença inconfundível nos escritos do acadêmico senegalês Cheikh Anta Diop (1989), embora Diop dê uma estranha guinada à tese de Bachofen, dando uma interpretação geográfica e racista. Deste modo, acredita-se que o matriarcado emergiu apenas no Sul (África), e corresponde a um modo de vida sedentário e agrário, um estado territorial, com igualdade de gênero, sepultamento dos mortos e o princípio do coletivismo social.
Patriarcado na África está ligado ao surgimento do Islã. Apesar de suas bolsas de estudo e seu esforço para oferecer uma antropologia mais autêntica, o trabalho de Diop mal capta a complexidade da história e da cultura da África e da Eurásia. Mas aqui quero enfatizar os escritos de algumas eco-feministas, especialmente aquelas que defendem a “sabedoria da espiritualidade das deusas” (Spretnak, 1991). Elas também apresentam uma atualização e reinterpretação da concepção simplista e bipolar de Bachofen da história humana.
Enquanto os primeiros acadêmicos clássicos, como Bachofen, Harrison e Murray, viram as divindades ctônicas coexistindo com deuses masculinos associados ao sol ou ao céu – Ra, Apollo, Zeus, Amun – e sugeriram que as últimas divindades passaram a ter primazia apenas com o desenvolvimento das estruturas patriarcais e estatais, muitas ecofeministas agora veem as deusas como uma “mãe cósmica”, uma divindade universal que existiu em todas as culturas antes do patriarcado. As divindades masculinas parecem se identificar, não com as estruturas estatais – os cultos da deusa mãe encontram sua apoteose nos Estados teocráticos do Egito e de Creta –, mas com um período posterior da história por causa do surgimento dos Estados imperialistas e/ou capitalistas. Os cultos da deusa mãe são vistos como um fenômeno universal, uma expressão da “cultura das anciãs” que existiu em toda parte (Sjöö e Mor 1987, 27).
Enquanto os defensores da hipótese da caça, como Ardrey (1976), sugerem que todos os aspectos da vida humana – linguagem, inteligência, sociabilidade, cultura – derivam do sistema de “caça ao vivo”, agora, com Ecofeministas, temos a antítese exata disso, e eles sugerem que a vida cultural é essencialmente a criação de mulheres. Como Sjöö e Mor proclamam, “as mulheres criaram a maior parte da primeira cultura humana” (1987, 33). Ao contrário de Ardley e das ecofeministas, talvez as primeiras comunidades humanas não estivessem obcecadas com a divisão de gênero e, portanto, é provável que as tarefas mais básicas da vida fossem compartilhadas e, portanto, a cultura humana é criação tanto dos homens como das mulheres.
Ao contrário de Bachofen, que enfatiza a “materialidade” do matriarcado – baseado na vida orgânica – e associa a “espiritualidade” com o patriarcado, as ecofeministas contemporâneos invertem essa diferenciação e proclamam em voz alta a “espiritualidade” do matriarcado.
Conscientes, no entanto, de que parece não haver evidência histórica de matriarcado (regulação por mulheres), acadêmicas feministas usaram termos como “sistemas comunitários matrifocais” ou “matrísticos” para descrever as comunidades mais ou menos igualitárias que existiam no período Paleolítico (caçadores-coletores) e no Neolítico (agricultura). Em geral, as ecofeministas tendem a ignorar a antropologia e se concentraram mais em arqueologia e estudos clássicos, especialmente mitologia. Como Diop, elas apresentam uma concepção bipolar muito simplista da história humana. Esta última é descrita em termos de uma oposição entre “antigos matriarcados” e sistemas patriarcais centrados nos homens. Temos o mesmo tipo de dualismo gnóstico que Diop apresentou em seu postulado de dois berços da humanidade.
Sjöö e Mor (1987) enfatizaram de forma convincente esse dualismo, e ele pode ser resumido como detalhado abaixo:
Matriarcados Antigos
-
religião baseada em divindades associadas à mãe/terra
-
associação de igualdade de gênero
-
não há inveja sexual
-
harmonia com a natureza
-
parentesco matrifocal
-
comunalismo
-
holismo
-
concepção cíclica do tempo
-
cuidados
-
Cálice
Patriarcado Moderno
-
religião baseada em divindades masculinas
-
hierarquia de gênero e dominação
-
inveja sexual
-
controle sobre a natureza
-
família nuclear
-
propriedade privada
-
individualismo
-
concepção linear do tempo
-
ganância e violência
-
Espada
O interessante, porém, é que embora Diop iguale o matriarcado com a África negra, muitos acadêmicos clássicos parecem seguir seus ancestrais vitorianos, combinando raça, cultura e linguagem – as ecofeministas contemporâneos examinam a dialética histórica entre os dois sistemas sociais que ocorrem no próprio contexto europeu –. Sjöö e Mor consideram que a “religião antiga” da deusa mãe ocorre principalmente na Europa e nas culturas da antiguidade clássica – Egito, Grécia, Creta e Suméria. A teoria da evolução cultural de Riane Eisler, que ele expressou em The Challice and the Blade[31] (1987), foca quase inteiramente no contexto europeu e não menciona a África. A tese de Eisler é bastante simples e apresenta o retrabalho e a popularização das ideias propostas por Bachofen há muito tempo. Isto sugere que as culturas da Europa antiga eram baseadas na agricultura sedentária, eram matrifocais, pacíficas, ecocêntricas e centradas nos cultos da deusa mãe que marcavam a geração de vida e alimentavam os poderes do universo. A igualdade de gênero era a norma. Foi simbolizado pelo cálice, a taça para beber.
Esta idade de ouro de uma sociedade orientada para as mulheres, que existia na “velha Europa” (que Diop afirmava basear-se no pastoreio e no patriarcado), poderia ser, ou gradualmente transformada, ou rapidamente destruída – segundo a arqueóloga Marija Gimbutas (1974) – pelos pastores migrantes da estepe asiática por volta de 4.000 a. e. c. ou poderia ser o patriarcado que levou ao surgimento da ditadura militar, como na Babilônia e no Egito (como argumentado por Sjöö e Mor, 1987; 253). Ambas as teorias afirmam que a cultura neolítica europeia foi radicalmente transformada de uma sociedade pacífica, sedentária, igualitária e matrilinear, para uma baseada no patriarcado. Houve uma “mudança patriarcal” na velha Europa, e a sociedade patriarcal que emergiu foi baseada no pastoralismo, com seus princípios guerreiros. Suas histórias sócio-culturais foram: o culto dos deuses masculinos do céu, a dessacralização do mundo natural e uma atitude de dominação em relação à natureza, a hierarquia social e de gênero, a propriedade privada e o Estado. Neste processo, os cultos à deusa mãe foram suprimidos. Essa transição, segundo Eisler, representa um “ponto de virada catastrófico” na história europeia, e a nova cultura patriarcal que emergiu é simbolizada pela espada. Uma sociedade baseada na associação entre homens e mulheres foi substituída por outra baseada na dominação – incluindo a dominação das mulheres pelos homens –. Eisler apresenta isso como uma nova teoria da evolução cultural. Mas não é novidade: é uma atualização eurocêntrica da teoria de Bachofen e Engels.
Além disso, quando examinamos os dados etnográficos sobre a religião de caçadores-coletores, ou mesmo de algumas sociedades agrícolas de pequena escala, nem a linhagem matrilinear nem os cultos da deusa mãe eram significativos. A ideologia religiosa das sociedades khoisan de caçadores-coletores na África do Sul e dos aborígines australianos dificilmente oferece qualquer suporte para a universalidade das formas espirituais da deusa mãe. Embora haja uma identificação íntima com o mundo natural, particularmente com animais (através de espíritos totêmicos), ou através de espíritos da morte, entre as sociedades de coleta há pouca evidência de que eles deificarão a terra, por si só, como mulher, muito menos o universo inteiro.
Da mesma forma, embora exista uma ênfase matrifocal entre muitas sociedades de caçadores-coletores (Morris, 1982), tem havido pouco impacto nos grupos ascendentes, e que a chave para os grupos sociais é a família e a banda. Os grupos familiares podem ser importantes para fins rituais ou de casamento, e podem ter significado totêmico, mas muitas vezes, como nas comunidades aborígenes australianas, tendem a ser mais patrilineares do que matrilineares. Entre as comunidades agrícolas de pequena escala na Melanésia e na Amazônia, como mencionamos anteriormente, a linhagem patrilinear tem uma importância ideológica, os ataques e o homicídio são endêmicos, e a iniciação masculina coloca o foco no treinamento para que as crianças se tornem ferozes guerreiros e dominem as mulheres. Mary Mellor (1992, 141–150) utilizou esse material etnográfico para questionar a suposição de que as sociedades baseadas em clãs são necessariamente pacíficas ou exibem igualdade de gênero. Mesmo a matrilinearidade, observou ela, “não era garantia contra a violência masculina”(47).
Há uma suposição infundada, entre muitas acadêmicas feministas, de que a linhagem matrilinear, a igualdade de gênero e os cultos de deusa-mãe andam juntos, e que alguns necessariamente assumem os outros. O interessante é que os cultos se concentraram na deusa mãe e na mãe terra, não têm sua elaboração mais rica entre os caçadores-coletores, nem entre os pequenos agricultores, nem, é claro, entre as sociedades baseadas principalmente na linhagem matrilinear – como os iroqueses e os bemba –, mas sim entre os Estados teocráticos baseados na agricultura avançada, como sugeriu Bachofen.
Em um estudo importante sobre política e gênero entre as sociedades de caçadores-coletores e pequenos agricultores, Collier e Rosaldo (1981), para sua surpresa, descobriram uma pequena celebração ritual sobre as mulheres como cuidadoras, não relacionadas à sua capacidade única de dar a luz. A maternidade sempre foi uma fonte natural de satisfação emocional entre as mulheres, e tem sido culturalmente valorizada, mas entre essa população a fertilidade não foi enfatizada, e a deificação da mãe como fonte de toda a vida estava normalmente ausente. Onde temos Estados complexos encontramos governantes divinos – como no Antigo Egito e nos Incas – onde encontramos governantes divinos como o Faraó e o Inca, que incorporam divindades associadas ao sol, vemos que a terra é deificada e a maternidade é ritualmente destacada. Foi precisamente entre essas sociedades teocráticas, baseadas na agricultura intensiva, onde havia uma ênfase necessária na terra e na reprodução da força de trabalho. Nem a Babilônia nem o Egito foram “paraísos de igualdade” para a comunidade pastoral-nômade hebraica, porque em ambos os lugares eles foram escravizados e foram submetidos a trabalhos forçados.
Então, em um sentido importante, a deificação da terra como mulher e a ênfase na fertilidade – tanto da terra quanto da mulher –, é um elemento central, não de sociedades matrilineares, como os iroqueses, mas da ideologia patriarcal dos Estados teocráticos. Essa ideologia foi claramente expressa nos escritos de Francis Bacon, que identifica as mulheres com a natureza e defende o conhecimento e a dominação de ambas. Sherry Ortner (Is Female to Male as Nature is to Culture?,[32] 1974) sugere uma explicação para a suposta dominação universal dos homens (patriarcado), ligando essa dominação a uma ideologia que iguala as mulheres à natureza. Para Ortner, então, os cultos da deusa mãe são um reflexo do patriarcado, não de uma cultura matricial. Uma antropóloga feminista argumentou que, na verdade, o “mito matriarcal” é uma ficção e é usado como uma ferramenta para manter as mulheres “ligadas ao seu lugar” (Bamberger, 1974).
Quando examinamos os primeiros Estados teocráticos de Creta e do Egito (por exemplo), que são planejados como paraísos matriciais, que exibem igualdade de gênero e um ambiente social pacífico, o que encontramos? De acordo com Janet Biehl (1991), o que encontramos são civilizações altamente desenvolvidas da idade do bronze, que, como os Estados teocráticos, eram hierárquicas, exploradoras e opressivas. Biehl acredita que a teoria de Gimbutas – que a hierarquia emergiu quando um grupo de simples pastores atingiu a estepe eurasiana e conquistou antigas sociedades agrícolas neolíticas – é uma simplificação ingênua da história europeia, e estudiosos como Renfrew e Mallory parecem concordar com isso. (Biehl 1991, 43, Renfrew 1987, 95–97, Mallory 1989, 183–5).
Quanto à igualdade de gênero em relação à propriedade, como no Egito, ela poderia ter sido restrita apenas à elite política; mas, de qualquer modo, coexistia, como assinala Biehl, com uma estrutura social extremamente hierárquica centrada no faraó e numa enorme teocracia. A guerra expansionista, a pena de morte e os sacrifícios rituais que caracterizaram a maioria desses Estados teocráticos – tanto no Crescente Fértil como nas Américas –, são geralmente negligenciados ou mesmo rejeitados por muitas estudiosas ecofeministas. Da mesma forma, Diop é um apologista dos Estados africanos e do sistema de castas como uma forma de organização social.
O matriarcado tem dois “focos” diferentes de significado, que Bachofen tendia a vincular. Uma é essa conexão com as divindades ctônicas que associam a terra à maternidade; a outra é a linhagem matrilinear, que é um grupo social ou categoria cuja composição é determinada por laços através da linha feminina. Em termos sociais, os dois significados não são próximos, pois cultos à deusa mãe estão associados a Estados teocráticos e agricultura avançada, e que a linhagem matrilinear está ligada a sociedades agrícolas nas quais nem animais domésticos nem a agricultura baseada em arados existem. Das 564 sociedades incluídas no Estudo Etnográfico Mundial, David Aberle descobriu que havia apenas 84 (15%) onde a matrilinearidade era a forma predominante de parentesco. É por isso que ele acha que a matrilinearidade é um “fenômeno relativamente escasso” (1964, 663). Ao contrário da teoria de Diop, que argumenta que a linhagem matrilinear é encontrada em todo o mundo, mas é encontrada principalmente em sociedades hortícolas que desenvolveram sociedades tribais. Elas não são encontradas onde há agricultura intensiva, geralmente não entre pastores, ou onde estruturas estatais foram desenvolvidas – o patriarcado está intrinsecamente ligado ao Estado –. Bachofen achava que o matriarcado “concordava plenamente” com uma situação em que a caça, o comércio e os ataques externos enchiam a vida dos homens, mantendo-os a longos períodos longe das mulheres, que então se tornaram os principais responsáveis pelo lar e pela agricultura. Portanto, pode-se concluir que a matrilinearidade – e não os cultos da deusa mãe – parece estar particularmente associada às sociedades hortícolas que carecem de lavoura, em que encontramos sistemas políticos desenvolvidos sob a forma de territórios tribais e onde há o que Poewe (1981) descreve como um dualismo complementar entre homens e mulheres. Nestas situações, a agricultura de subsistência é o domínio das mulheres, e os homens estão ativamente engajados na caça e no comércio que os afastam de sua casa por um longo tempo. Dada a sua dominação no nível de subsistência, as mulheres não são necessariamente excluídas do domínio público e podem participar ativamente em rituais públicos e na tomada de decisões políticas. Todas as sociedades matrilineares clássicas que foram descritas pelos antropólogos seguem essencialmente esse modelo – o bemba, yao e luapula da África Central, os ilhéus dos trobriandos, os ashanti de Gana, os iroqueses e os ojibwa da América do Norte –. Todas mostram um alto grau de igualdade de gênero, a sexualidade é valorizada positivamente e há uma ênfase na partilha e na reciprocidade, mas, significativamente, há pouca evidência de cultos “à deusa-mãe”. Tais cultos estão ligados ao Estado e à hierarquia, de modo que continuaram a florescer como parte intrínseca do cristianismo latino e do hinduísmo. De fato, parece haver uma correlação clara, como Harris sugere, entre igualdade de gênero, linhagem matrilinear e o surgimento de territórios tribais entre sociedades hortícolas.
[1] Mikhail Bakunin, Escritos sobre filosofia política. Compilação de G.P. Maximoff, Alianza, Madri, 1978. Citação na página 313.
[2] Meyer Fortes e Evans-Pritchard, Sistemas Políticos Africanos, Centro de Pesquisa y Estudios Superiores en Antropología Social, Universidad Autónoma Metropolitana, Universidad Iberoamericana, México, 2010. [Citas en págs. 47 y 59].
[3] Max Weber, Economía y sociedad, Fondo de Cultura Económica, Madrid, 2002. [Las citas en la página 43].
[4] Op. cit., página 67.
[5] Ibídem, página 74.
[6] Pierre Clastres, La sociedad contra el Estado, Virus editorial, Barcelona, 2010.
[7] Op. cit., págs. 19–20.
[8] Ibídem, página 25.
[9] Op. cit., página 31
[10] Ibídem, página 38.
[11] Op. cit., página 77.
[12] Op. cit., página 217.
[13] Ibidem, página 230.
[14] J. Gledhill, El poder y sus disfraces. Perspectivas antropológicas de la política, Bellaterra, Barcelona, 2000.
[15] Ted C. Lewellen, Introducción a la antropología política, Bellaterra, Barcelona, 1994.
[16] Atualmente, República Democrática do Congo.
[17] Véase G. Silberbauer, Cazadores del desierto. Cazadores y hábitat en el desierto de Kalahari, Editorial Mitre, Barcelona, 1983.
[18] Que tem autoridade ou estabelece uma relação de subordinação com outra coisa ou pessoa. Que expressa essa autoridade de maneira participativa, não repressiva, admitindo o diálogo: pais autoritativos conversam com seus filhos. N.T.
[19] Sexo Oral. N.T.
[20] A filiação é transmitida através da mãe, portanto, uma vez que nessas sociedades a figura de autoridade de uma família é muitas vezes o irmão da esposa, a nova família passa a morar na mesma residência dessa autoridade.
[21] A nova unidade doméstica move-se para a residência da linhagem da consorte feminina.
[22] Marvin Harris, Caníbales y reyes, Alianza Editorial, Madrid, 1997.
[23] Op. cit., página 120.
[24] Ibídem, página 122 (cita modificada).
[25] Véase J.J. Bachofen, El matriarcado. Una investigación sobre la ginecocracia en el mundo antiguo según su naturaleza religiosa y jurídica, Akal, Madrid, 1987.
[26] Em referência a Prometeu, que roubou o fogo (conhecimento) dos deuses para dar aos mortais, considerado o criador e benfeitor da humanidade.
[27] Na mitologia e religião, e em particular no grego, o termo ctônico (pertencente à terra, da terra) designa ou faz referência aos deuses ou espíritos do submundo, por oposição às divindades celestes. Identifica-se com os ciclos da natureza, os da vida e da sobrevivência após a morte.
[28] F. Engels, El origen de la familia, de la propiedad privada y del Estado, Endymión, Madrid, 1988.
[29] Op. cit., página 16.
[30] Ibídem, página 56.
[31] Riane Eisler, El cáliz y la espada, Cuatro Vientos, 2003.
[32] Sherry Ortner, ¿Es la mujer con respecto al hombre lo que la naturaleza con respecto a la cultura? En: Harris, Olivia y Kate Young (Compiladoras). Antropología y feminismo. Editorial Anagrama, Barcelona, 1979. pp. 109–131.