À EMANCIPAÇÃO DOS CORPOS TRANS: CONCEITUANDO TRANS-ANARQUISMO

Bruno Latini Pfeil

Psicólogo (CRP 05/71525). Mestrando em Filosofia (PPGF/UFRJ). Pesquisador do Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertárias (CPDEL/UFRJ). Membro do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT). Coordenador da Revista Estudos Transviades.

Cello Latini Pfeil

Doutorando em Filosofia (PPGF/UFRJ). Pesquisador do Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertárias (CPDEL/UFRJ). Coordenador do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT). Coordenador da Revista Estudos Transviades.

Almejamos, neste ensaio, refletir sobre os entrelaçamentos entre transexualidade, anarquismo e crítica à cisnormatividade. Longe de nos embasarmos em um suposto essencialismo sobre ‘ser trans’ ou ‘ser anarquista’, concentramos nosso estudo em uma crítica, trans e anarquista, à patologização e marginalização da transexualidade e à naturalização da cisgeneridade. Apontamos que organizações trans se valem de estratégias políticas alinhadas a princípios anarquistas – tais como ação direta, autodeterminação, apoio mútuo, violência revolucionária e indivisibilidade da liberdade –, e que movimentos anarquistas comumente reproduzem violências racistas/sexistas, em desacordo com os fundamentos de solidariedade e negação da autoridade. Apesar de tal postura contraditória, defendemos que os conceitos anarquistas fundamentais mostram-se necessários em lutas por emancipação trans. Assim, reforçamos a conceituação do trans-anarquismo, a partir da identificação do viés inerentemente libertário dos movimentos trans por despatologização da transexualidade, desnaturalização da cisgeneridade, combate à opressão intelectual e oposição à dominação do Estado e suas instituições.

TRANS-ANARQUISMO COMO CRÍTICA DA OPRESSÃO INTELECTUAL

É o reconhecimento de um incômodo, raramente designado enquanto tal, que motiva a escrita deste ensaio. É o incômodo diante de certa postura, que precede o conteúdo e o determina, que gera conforto ou deslocamento. O deslocamento que suscitamos gira em torno da cisnormatividade[1] e seus atravessamentos em corporalidades trans e gênero-dissidentes[2]. Por meio da institucionalização da cisnorma, ocorre a disciplinarização da transexualidade, seu histórico de patologização e suas revoltas diante da autoridade institucional.

Em tal institucionalização, destacamos a operacionalização da autoridade científica, bem apontada por Paul B. Preciado (2019) em seu célebre discurso “Eu sou o monstro que vos fala”. Neste, o autor convidou um auditório lotado de psicanalistas a reconhecer as atrocidades defendidas em psicanálise e psiquiatria sobre o tratamento, ou a clínica, da transexualidade; conduziu uma tradicional escola francesa de psicanálise a reconhecer as violências institucionais que atravessam corpos trans em suas possibilidades discursivas:

Eu, como um corpo trans, como um corpo não binário, ao qual nem a medicina, nem a lei, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar com conhecimento especializado sobre minha própria condição, nem a possibilidade de produzir um discurso ou uma forma de conhecimento sobre mim mesmo. (PRECIADO, 2019, s.p.)

Preciado enfrentou o conservadorismo psicanalítico que ainda compreende a transexualidade como traço narcísico, ou como característica da psicose, ou como expressão contemporânea de histeria. Apesar de se contrapor a postulações da ciência moderna, a psicanálise é cunhada no seio da mesma, de modo a reproduzir muitos de seus discursos universalistas. Trazemos o exemplo de Preciado pois é justamente nessa posição discursiva em que nos encontramos: ao se contrapor às ‘verdades’ da ciência moderna, e ao identificar a construção histórica da monstruosidade, do ‘Outro’, Preciado inverte os papéis – se compreende no lugar da figura patologizada pelos manuais diagnósticos, e elabora uma crítica à modernidade e suas artimanhas. O corpo diagnosticado, patologizado e silenciado se coloca em posição de enunciador, se autodetermina e reduz o diagnóstico a um aglomerado de palavras cuja relação de sentido denuncia seu caráter [cis]normativo.

Assim, a crítica de Preciado à psicanálise não se limita a um único campo de saber, mas se amplia ao saber biomédico legitimado pelas universidades ocidentalizadas (GROSFOGUEL, 2016), as referidas máquinas de produção de conhecimento da modernidade. Tal saber biomédico institucionaliza uma dicotomia entre sujeito-pesquisador e objeto-pesquisado, pautando uma hierarquia de saberes; ou, como define Santos (2007), uma monocultura do saber.

“Eu sou o monstro que vos fala”, enunciou Preciado, e aqui enunciamos: eu sou o monstro que vos escuta. Indivíduos trans tiveram, durante a recorrente história do diagnóstico ‘transexual’, de escutar sujeitos cis, em sua maioria brancos e heterossexuais, em suas elaborações sobre a ‘verdade’ da transexualidade. A cisgeneridade historicamente ocupa espaços onde se elaboram diagnósticos, categorizações clínicas sobre dissidências sexuais e de gênero, dentre as quais destacamos a transexualidade. Tal como Preciado, nos sentimos inclinados a esse lugar de monstruosidade, pois é essa posição que a transexualidade, enquanto categoria diagnóstica, ocupou e atualmente ocupa. Tal é o cenário oferecido a corpos gênero-dissidentes na academia, e é por nos posicionarmos contra essa e qualquer outra forma de violência institucional que adotamos, como referencial teórico, o pensamento político anarquista.

A ‘anarquia’ contraria o imaginário de que as sociedades exigem naturalmente um regimento estatal que as organize. Todo Estado, independentemente de sua configuração, opera por meio da imposição da autoridade. A preocupação primordial de qualquer organização governamental é a preservação de sua soberania. Contrapondo-nos a qualquer imposição de autoridade, questionamos o papel de instituições que se voltam, em determinados momentos, a grupos sociais marginalizados no que tange à gênero-dissidência – ou, como consta na décima primeira edição do Código Internacional de Doenças, à ‘incongruência de gênero’.

Assim, por meio de um referencial teórico anarquista, demonstramos a interseção entre o anarquismo e as críticas à cisnormatividade, de modo a elaborarmos o que compreendemos como trans-anarquismo.

Elis L. Herman (2015), em seu artigo Tranarchism: transgender embodiment and destabilization of the state, estuda ‘tranarchist literature’ [literatura tranarquista, em tradução livre], que seriam estudos associando transgeneridade com anarquia. Herman discorda de uma associação essencialista entre ser trans e ser anarquista, argumentando que, para tanto, seria necessária uma definição única de transgeneridade – algo inviável diante das plurais existências trans. Contudo, há que se reconhecer o caráter transgressor e disruptivo da gênero-dissidência, assim como da histórica resistência às violências do Estado. Como escreve Herman (2015, p. 78) “gender non-conforming people have a rich history of resisting state oppression”[3]. Nossa associação de anarquia com transexualidade não se reduz a um essencialismo, pois parte da identificação, na materialidade de organizações trans e de saberes trans contra-hegemônicos, de importantes princípios anarquistas – tais como ação direta, autodeterminação, apoio mútuo, defesa invariável da liberdade e oposição à opressão intelectual.

Em uma crítica anarquista à ciência institucionalizada, temos que o apontamento da cisnormatividade, dentro ou fora da academia, toca no cerne da rejeição libertária à opressão intelectual (BAKUNIN, 1975). Ao adentrarmos a academia e nos reconhecermos como sujeitos de pesquisa; ao produzirmos um saber que reconhece a cisgeneridade e a constrange, nos valemos inerentemente de um posicionamento libertário, de disrupção da norma. Elaboramos, então, o trans-anarquismo como uma ampliação da abrangência do saber libertário, como o reconhecimento dos movimentos trans que se posicionam contrariamente a toda forma de violência institucional e a combatem cotidianamente.

Para conceituarmos trans-anarquismo, é importante que se compreenda nosso objeto de crítica – qual seja, o saber institucionalizado sobre transexualidade –, assim como nossa proposição – que se reconheça a naturalização da cisgeneridade dentro do pensamento anarquista, assim como a atuação de movimentos trans autônomos em nosso contexto histórico e territorial. Buscamos identificar uma lacuna nas teorizações anarquistas em relação aos saberes trans, e propomos que tal lacuna seja preenchida pela elucidação de um trans-anarquismo.

A DESIGNAÇÃO INSTITUCIONALIZADA DA TRANSEXUALIDADE

Ao início do século XX, inúmeros sexólogos, psiquiatras e psicanalistas europeus e norte-americanos adotam os termos transexualismo, travestismo, transexualidade para se referirem a expressões de gênero não-cisgêneras. A partir da década de '60, nomeia-se o fenômeno transexual, isto é, uma suposta emergência de quadros diagnósticos de transexualidade. Colocados como objetos de estudo, indivíduos trans tinham suas narrativas reduzidas à “condição transexual”; suas angústias, seus sofrimentos psíquicos e demais conflitos seriam atribuídos à transexualidade. Critérios para o diagnóstico da transexualidade, ou para sua categorização, se estabeleceram por meio de tais premissas.

Em outro trabalho, apresentamos uma historicização deste conjunto de critérios diagnósticos (PFEIL & PFEIL, 2022b). A patologização da transexualidade teve um percurso bastante datado e localizado: em 1978, é fundada, nos EUA, a Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association, responsável por publicar o Standards of Care (SOC). Em 1980, a transexualidade é incluída no Código Internacional de Doenças (CID), assinado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e atualmente em sua décima primeira versão. Neste mesmo período, a transexualidade é incluída no Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM), assinada pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) e atualmente em sua quinta versão. Há diferenças entre os três documentos: o SOC trata de questões protocolares, defendendo cirurgias transgenitais como forma de tratamento, assim como procedimentos terapêuticos intensos; o CID-11 pensa a transexualidade como uma incongruência de gênero, contrastando com suas versões anteriores, em que constava o diagnóstico de ‘transexualismo’; o DSM-IV a aborda como um ‘Transtorno de Identidade de Gênero’ e trata da identificação da transexualidade na infância.

Em sua décima versão, o CID apresentava a transexualidade como o “desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto”. Esse desejo deveria possuir datação. O indivíduo deveria senti-lo por ao menos dois anos para, então, ser considerado verdadeiramente trans. Atualmente, a definição não sofreu tantas modificações, mas a transexualidade deixou de ser um transtorno para ser uma incongruência. De todo modo, a gênero-dissidência, compreendida como incongruência, continua a contrastar com uma suposta gênero-convergência, isto é, aquilo de que a dissidência está divergindo.

É interessante pensar que à heterossexualidade, à endonormatividade e à cisgeneridade jamais se atribuiu um lugar no SOC, no CID ou no DSM. Tais categorias não necessitam ser nomeadas. Os códigos e manuais de medicina/psiquiatria produzem a generificação na medida em que estipulam quais corpos devem ser generificados, demarcados, e quais não necessitam ser mencionados, pois se camuflam como natureza. Os vínculos firmados entre sexo e natureza, heterossexualidade e função reprodutiva, cisgeneridade – jamais mencionada ou assumida – e biologia seriam tão somente “um conjunto arbitrário de regulações inscritas nos corpos que asseguram a exploração material de um sexo sobre o outro” (PRECIADO, 2014, p. 26). Naturaliza-se o corpo cisgênero e heterossexual, e as variações que deste derivam devem ser submetidas à regulação institucional – comumente por meio de patologização. Transforma-se o corpo contra-normativo em aberração, em monstruosidade.

A designação monstruosa da transexualidade pode ser percebida em ambulatórios trans. Ainda que funcionem como dispositivos de acesso à saúde especializada, espaços coordenados exclusivamente por profissionais cisgêneros, sem participação dialógica com pessoas trans, reproduzem invariavelmente transfobias institucionais. O imaginário monstruoso da transexualidade se reproduz em discursos médicos, sendo forçosamente imposto aos pacientes: aqueles que não o corroboram enfrentam empecilhos para serem aceitos em processos transexualizadores; e aqueles que o corroboram são acusados de reproduzir as normas com as quais desejam romper. Os protocolos que regem ambulatórios trans são tanto visíveis quanto invisíveis (BENTO, 2006); se exprimem em burocracias e etapas avaliativas, de modo explícito, como também em olhares, comentários sutis, humilhações e constrangimentos. Somos caracterizados como pessoas “[...] portadoras de um conjunto de indicadores comuns que as posicionam como transtornadas, independentemente das variáveis históricas, culturais, sociais e econômicas” (BENTO & PELÚCIO, 2012, p. 572).

De modo bastante frustrante, mas não imprevisível, tais espaços de saúde se transformam em espelhos da cisnorma; ambulatórios trans se figuram como laboratórios da cisgeneridade (PFEIL, 2019) – o transexual verdadeiro é aquele que reflete, no máximo de instâncias possível, o que preconiza a cisnormatividade. O imaginário social desenvolvido em torno da transexualidade é de ambiguidade, ao passo que o imaginário em torno da cisgeneridade é de congruência

A caracterização enquanto transtorno acompanha a história da transexualidade. Da mesma forma, a não-nomeação da cisgeneridade acompanha seu percurso de naturalização. Percebe-se, nesse cenário, uma dinâmica de nomeação: quem pode nomear quem? Quem detém o poder institucional, a autoridade científica e política, para nomear?

Esse sujeito moderno se incumbe da autoridade de determinar a si mesmo como universal e de elaborar a figura do Outro, ou, segundo Kilomba (2019), da Outridade. A Outridade se insere na monstruosidade referida por Preciado. Podemos compreendê-la como formada pela outremização, processo observado por Toni Morrison (2019) em sua obra A Origem dos Outros. Tal dinâmica de nomeação ocorre concomitantemente a uma dinâmica de não-nomear. Sendo assim, a conceituação da transexualidade em CID-11 e DSM-IV, manuais que corroboram institucionalmente discursos médicos fomentados há tempos pelas universidades ocidentalizadas, é respaldada por um imaginário social recheado de cultura, detido nas mãos de uma branquitude cisgênera e heterossexual. Eis a tradução de norma em naturalização, acompanhada pela produção de relações de poder institucionalizadas.

A academia que define o que é transexualidade e a patologiza é a mesma que se recusa a reconhecer o conceito de cisgeneridade – tendo em vista que sua emergência se deu como iniciativa de despatologização, para anular o falacioso antagonismo (PFEIL & PFEIL, 2022b) entre transexualidade e normalidade.

Marcam a nomeação de ‘transexualidade’ e ‘cisgeneridade’ dois processos históricos: a nomeação do Outro pelo sujeito universal, e a nomeação do sujeito universal pelo Outro (PFEIL; PFEIL, 2022a). Ao passo em que a cisgeneridade nomeia a transexualidade, seja enquanto patologia, traço perverso ou comorbidade delirante, a transexualidade, em contrapartida, se propõe a nomear a cisgeneridade. É algo que não ocorre mediante legitimação acadêmica e institucional, mas mediante a revolta de movimentos trans diante da patologização. É nesse ponto que identificamos nosso viés libertário.

TRANS-ANARQUISMO COMO ESTRATÉGIA EMANCIPATÓRIA

Para uns, o Estado é a representação do bem coletivo, do direito universal, a coisa pública. A submissão ao Estado, a disposição de morrer por ele, significaria um ato sublime de devoção ao coletivo, à nação ou a um ideal de “defesa dos valores”. A liberdade de um indivíduo não dependeria da liberdade dos outros, pelo contrário – a liberdade dos outros anularia a liberdade de um. O Estado submeteria a sua autoridade os indivíduos de uma sociedade para preservar sua liberdade e garantir-lhes segurança. Essa perspectiva reproduz uma idolatria ao Estado, que De Moraes (2020b) nomeia estadolatria: a incapacidade de se conceber a vida sem o Estado, sem uma instância que nos governe. Contudo, como escreve De Moraes (2020a, p. 08), “todos os Estados funcionam a partir do direito de matar”, incluindo aqueles que adotam um sistema de governo representativo, que se camufla por trás da defesa da democracia. A estadolatria, segundo o autor, se propagaria nas universidades ocidentalizadas, consolidando-se como uma verdade não assumida – idolatramos o Estado, mas não sabemos disso.

O anarquista italiano Errico Malatesta compreendia que o anarquismo se sustenta fundamentalmente na defesa da liberdade, impulsionando-nos a combater tudo que a cerceie. É anarquista aquele que se revolta contra a imposição da autoridade – algo presente no ato de se autodeterminar, como vivenciam pessoas trans. Para nos dizermos anarquistas, devemos unir a intolerância frente à opressão com “o amor pelos homens e com o desejo de que todos os demais tenham igual liberdade” (MALATESTA, 2009, p. 7). A defesa da abolição do Estado e do princípio de autoridade está diretamente ligada ao fato de que os anarquistas “são contra todas as formas de opressão de classe, sexual e racial, bem como toda a manipulação política por parte do Estado” (ERVIN, 2015, p. 129), e se entendem favoráveis “da ampla diversidade sexual, racial, cultural e intelectual, em vez de chauvinismo sexual, repressão cultural, a censura e a opressão racial” (ERVIN, 2015, p. 147).

Cabe-nos realizar, todavia, um apontamento sobre a cisnormatividade reproduzida dentro de movimentos anarquistas. Anarquistas queer tecem críticas fortes em relação à reprodução de violências de gênero dentro desse campo prático e teórico. Jeppesen & Nazar (2012) investigam as relações históricas entre anarcofeministas, anarcoqueers e o movimento anarquista, e percebem três movimentos: no interior do anarquismo, feministas e queers desafiam as normas de gênero vigentes e a reprodução de racismo, misoginia, transfobia; no interior de grupos feministas e queer, denunciam a devoção ao Estado, a estadolatria (DE MORAES, 2020a); em grupos antirracistas e anticoloniais, anarcofeministas e anarcoqueer comumente enfrentam discriminação. Assim, as narrativas produzidas por movimentos anarquistas feministas e queer experimentam uma cisão – e menor disseminação – em relação a narrativas anarquistas cisnormativas, masculinas e brancas. Ainda que não se possa tratar do anarquismo como algo hegemônico, devemos assumir que, internamente aos movimentos anarquistas, produz-se uma hegemonia – de pensadores homens, brancos, cisgêneros e heterossexuais que comumente reproduzem normatividades e violências racistas/sexistas. A despeito de sua oposição veemente à autoridade do Estado e suas instituições, reproduzem-se, no seio de movimentos libertários, dominações alinhadas à manutenção racista e patriarcal do Estado moderno. O anarquismo queer surge, então, nas décadas de ‘60 e ‘70 como alternativa a esse direcionamento contraditório. Em suas produções artísticas e literárias, ativistas do anarquismo queer apontam, dentre outras questões, para a consolidada narrativa histórica da transexualidade.

Ao identificarmos a história da transexualidade como forjada sob miradas cisnormativas, por psiquiatras e sexólogos cisgêneros cujas teorizações possuíram aporte e legitimação institucional, fica nítida a relação entre os movimentos por despatologização e as críticas anarquistas ao saber institucionalizado; entre a nomeação da cisgeneridade e a nomeação da violência. Não por acaso, é comum que a reação de acadêmicos cisgêneros diante da nomeação da cisgeneridade seja como a reação a uma ofensa: negação, rebaixamento do conceito como ‘não científico’. Como mencionamos em outro trabalho (PFEIL & PFEIL, 2022a), essa reação se assemelha a uma recusa em abdicar da universalidade, ou de um aspecto naturalizado de si. Da mesma forma, ao se nomear a estadolatria percebemos reação similar, posto que indivíduos estadolátricos comumente sentem-se ofendidos ao terem sua posição posicionada. A esse fenômeno, nomeamos ofensa da nomeação[4].

A pretensão acadêmica de se produzir um saber imparcial esbarra nas narrativas trans que escancaram a parcialidade dos diagnósticos produzidos sobre nós. Cabe, portanto, uma crítica anarquista à ciência institucionalizada. Em sua definição do que é ser anarquista, Rocker se distancia de uma utopia, do sonho de uma realidade perfeita, e se aproxima da necessidade de se buscar constantemente pela melhora das condições de vida. Para ele, o anarquista é “[...] uma interpretação do pensamento que se encontra em constante progressão, que não se pode encerrar em qualquer círculo, a não ser que se queira renunciar a ele” (ROCKER, 2009, p. 4). Do mesmo modo, a produção de conhecimento não pode se encerrar a um círculo fechado de indivíduos.

A ciência universalista que forja a legitimidade da autoridade governamental direciona o modo como pessoas trans são tratadas em ambulatórios e hospitais, em processos transexualizadores, em tribunais e outras instâncias. Se os governantes legitimam sua posição de poder por meio de uma legislação baseada em viés científico, inferimos então que os profissionais de saúde também legitimam sua posição de poder por meio de um viés científico. A defesa anarquista de liberdade é, assim, contrariada, assim como de igualdade – como escreve De Moraes (2020b, p. 68), “a plena liberdade é incompatível com o racismo, a discriminação e a sociedade patriarcal, com o projeto da modernidade, com o capitalismo e a colonialidade”.

O viés científico legitima outras violências institucionais, tais como as burocracias em processos de retificação de nome e gênero, ou operações policiais de caça a travestis. Até 2018, por exemplo, para que um indivíduo trans brasileiro retificasse nome e gênero em seus documentos civis, deveria apresentar legalmente laudos psiquiátricos e psicológicos que atestassem sua transexualidade. O Estado somente reconheceria como trans os indivíduos enquadrados nos critérios da patologização. Em relação à violência policial, temos a Operação Tarântula que, em 1987, se destinou a caçar travestis nas ruas de São Paulo, sob alegação de que estariam contribuindo para a proliferação do HIV (CAVALCANTI et al., 2018). A utilização do crime de “contágio venéreo de HIV” para acusar travestis e caçá-las demonstra o entrelaçamento entre a ciência institucionalizada e o poder do Estado. Ou seja, o que é verdadeiro para a ciência também o é para a legislação. É a partir da legitimação desse saber falacioso sobre transexualidade que demais instituições governamentais se posicionam.

Em ambos os cenários citados, opera a Necrofilia Colonialista Outrocida (DE MORAES, 2020a) por meio do Estado e de suas instituições. De Moraes conceitua a Necrofilia Colonialista Outrocida (NCO) em três tempos: necrofilia sendo o amor pela morte; colonialista como herança do colonialismo; e outrocida como o desejo pelo aniquilamento do ‘outro’ - que se designa pelo corpo negro, indígena, trans, com deficiência. A outremização (MORRISON, 2019) produz a Outridade (KILOMBA, 2019), sendo o outrocídio (DE MORAES, 2020a) a operacionalização do extermínio do outro. O objetivo de se nomear a cisgeneridade é exatamente escancarar esse movimento outrocida. Somente o Outro possui um nome: o trans, o negro, o indígena, a pessoa com deficiência etc; somente o Outro é marcado como alvo. O sujeito da branquitude e da cisgeneridade, por outro lado, não é visto pelas instituições genocidas; não é transformado em alvo. E se a NCO caracteriza, na atualidade, o poder do Estado moderno, podemos afirmar que o Estado é inerentemente anti-trans, anti-negro, anti-indígena, anti-deficiência, produtor de Outridades e praticante de outrocídios.

A NCO seria, então, aquilo que movimenta o poder do Estado moderno: um anseio colonial e, portanto, racista e patriarcal, pela morte do Outro. É comum condenar reações populares à violência do Estado como terroristas ou práticas criminosas. Anarquistas compreendem o uso da força, todavia, por outro viés: “Queremos emplear la fuerza contra el gobierno porque éste nos tiene dominados por la fuerza” (MALATESTA, 2007, p. 56). A violência revolucionária é uma forma de autodefesa contra as cotidianas investidas institucionais contra nossos corpos, tal como ocorreu nas revoltas da Cafeteria Gene Compton (1966) e de StoneWall (1969) nos Estados Unidos. Essas duas revoltas de pessoas gênero-dissidentes contra forças policiais desencadearam inúmeros movimentos trans revolucionários ao redor do mundo. Se o Estado é a negação da liberdade, toda violência que lhe é direcionada se constitui como autodefesa. Eis a expressão da violência revolucionária, organizada com base em ação direta e apoio mútuo, e efetuada para garantir a autodeterminação frente à deslegitimação institucional.

Em relação a corporalidades trans, a morte social precede a morte física, na medida em que o irreconhecimento de nossas identidades, legitimado pelo viés científico, desconsidera nossas existências. Somos aniquilados na medida em que lutamos para existir, para sermos e construirmos um lugar que não seja um não-lugar. E essa luta se pauta em ação direta – pois o Estado não se organiza de modo a reconhecer nossas existências – e apoio mútuo (KROPOTKIN, s.d.). As tentativas de burlar esse mecanismo raramente são individuais; são perpassadas por redes de cooperação (PFEIL, 2020). A dupla origem da ideia anarquista, segundo Kropotkin, se debruça na crítica à hierarquia e ao autoritarismo, acompanhada do elogio a organizações sociais e movimentos que nitidamente rejeitam ambos os fatores criticados.

É nesse sentido que observamos a atuação do anarquismo queer, que denuncia a categorização de certas inclinações como normais (JEPPESEN & NAZAR, 2012). Na complexificação teórica das vertentes anarquistas, organizações anarquistas cresceram muito em virtude de movimentações de mulheres que, embora comumente não se considerassem feministas, contribuíram fortemente tanto para o anarquismo como para as ideias radicais de emancipação feminina.

Em encontros anarquistas da década de ’80 e posteriormente, houve a disseminação de materiais associados ao pensamento queer radical, alinhados à perspectiva política anarquista (JEPPESEN & NAZAR, 2012). Percebe-se, assim, que os movimentos de pessoas queer, trans e LGBTI+ de maneira geral surgem de fora dos muros do Estado, fora de instituições, de aparelhos governamentais coercitivos. Os dispositivos institucionais que atualmente se voltam a pessoas trans, como, no Brasil, ambulatórios trans regidos pelo Processo Transexualizador, não operariam sem a pressão destes movimentos, e não teriam se aprimorado, no sentido de reproduzirem menos violências institucionais, não fossem as denúncias coletivas de usuários e ativistas.

Nosso direcionamento libertário nos conduz ao confronto do domínio do Estado, das normatividades que cerceiam nossas liberdades, com a reivindicação contínua da autodeterminação. Pois que, como escrito em outro trabalho (PFEIL, 2020), se a liberdade de um povo é sua capacidade de se autogovernar, a liberdade de um corpo é sua capacidade de se autodeterminar. A elaboração de trans-anarquismo não se trata, portanto, de identificar algo como uma essência trans, ou uma essência anárquica; trata-se de identificar o aspecto anárquico das estratégias de movimentos trans em confrontar o Estado – considerando que ser trans significa ter de se deparar com violência do Estado e suas instituições, em maior ou menor intensidade, invariavelmente. Essa violência institucional se traduz, no cenário acadêmico, em apagamento histórico e exclusão. Ou em algo que Santos (2007) nomeia como epistemicídio. Em nosso caso, silenciam-se narrativas trans sobre transexualidade, e exaltam-se narrativas cisnormativas. As consequências disso se espraiam desde a elaboração de leis anti-trans até a demonização de corpos trans.

Compreendemos, assim, que o viés científico a respeito da transexualidade produz silenciamento. Os movimentos por despatologização denunciam esse silenciamento. Não é de nosso almejo ‘pedir’ por liberdade a sujeitos incapazes de concedê-la e de compreendê-la; sujeitos embrenhados na normatividade de tal forma que consideram ameaçadora qualquer incidência de desvio – “aquele que amarra é tão preso quanto aquele cujos movimentos são dificultados pelas cordas atadas” (PRECIADO, 2019, s.p.). É incoerente pedir por liberdade àqueles que a repartem – Bakunin (1975, p. 26) explicitamente defende a indivisibilidade da liberdade: “A liberdade é indivisível: não se lhe pode suprimir uma parte sem a destruir por inteiro”. A liberdade de um depende da liberdade dos outros. Nossa liberdade de autodeterminação depende da liberdade de qualquer pessoa trans em se autodeterminar. Não é possível que uma pessoa seja plenamente livre em sua expressão e identidade de gênero enquanto todas as outras não forem capazes de se autodeterminar em relação a seus corpos e expressões de gênero. E isto abarcando não somente a transgeneridade, como a qualquer marcador de sexualidade, territorialidade, identificação étnico-racial e corporalidade.

Bakunin argumenta que uma academia revestida de soberania não possui outro destino senão a corrupção moral e intelectual. A opressão intelectual, que toma o saber como posse e privilégio, é uma das mais cruéis, pois determina que ou se possui saber ou não se possui, e o que decide quem possui ou não saber é um poder institucionalizado. É contrapondo-se a essa academia, revestida de soberania, que nomeamos a cisgeneridade, a branquitude, a corponormatividade, e demais artificialidades institucionalizadas como ‘natureza’. É no sentido do trans-anarquismo que tais nomeações carregam consigo a potência da desnaturalização, até mesmo internamente aos movimentos anarquistas.

Sugerimos, então, que corpos trans, ao se posicionarem contra as normatividades sistematizadas e institucionalizadas em forma de natureza, transgridem a Lei e a moralidade e demonstram sua fragilidade. Ao nomearmos a cisgeneridade em espaços de produção de conhecimento – especialmente nos espaços que serviram como berço da patologização –, confrontamos a opressão intelectual que nos empurra para fora dos muros institucionais. Do ponto de vista teórico, se partimos do princípio de que a cisnormatividade, como componente fundamental da branquidade, se sustenta em práticas de opressão e violência, percebemos não haver ideologia que melhor contribui para a emancipação dos corpos trans do que o anarquismo, este método para se alcançar a liberdade. Malatesta (2009, p. 04) define anarquismo como “o método para realizar a anarquia por meio da liberdade e sem governo, ou seja, sem organismos autoritários que, pela força, ainda que seja por bons fins, impõem aos demais sua própria vontade”. Eis a expressão da cisnorma em ambulatórios trans, no histórico de patologização e violência policial contra corpos gênero-dissidentes.

Se, como afirma Preciado, somos colocados em lugar de monstruosidade, que nos apropriemos de tal designação; que nos valhamos do traço monstruoso para orientar nossas elaborações teóricas; que a monstruosidade sirva como evidência de singularidade, e que denuncie a artificialidade das identidades modernas. É nesse sentido que defendemos a importância prática e teórica de um viés trans-anarquista: que se oriente pelo desmantelamento das naturalizações modernas/coloniais não somente em relação à cisgeneridade, como aos demais posicionamentos que se recusam a se nomear.

Tal como o anarquismo queer, insurgente primeiramente em Europa e Estados Unidos, o trans-anarquismo reitera as críticas realizadas sobre o próprio movimento anarquista, ao identificar, no cerne desta filosofia política, a reprodução de discursos cisheteronormativos. Considerando a impossibilidade prática de se defender vidas trans e, concomitantemente, a autoridade do Estado como necessária à organização social, compreendemos que há, em movimentos trans, inclinações inerentemente libertárias, categorizadas, em teoria política anarquista, sob os conceitos de ação direta, ajuda mútua, federalismo, violência revolucionária; e compreendemos que ocorre, em movimentos anarquistas, a reprodução de violências institucionais que, embora pareçam excluir corpos trans da ‘cena revolucionária’, contribuem somente para fragmentar os movimentos emancipatórios – eis o separatismo observado por Jeppesen e Nazar.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BENTO, B. A Reinvenção do Corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

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[1] Cisnormatividade é o termo criado para designar a naturalização da cisgeneridade; sua transformação em uma norma tida como ideal. Cisgeneridade é um termo criado para designar aqueles que se identificam com a identidade de gênero que lhes foi designada ao nascimento, ao contrário de pessoas transgêneras.

[2] Designamos como gênero-dissidência qualquer experiência de gênero que divirja da cisnormatividade e da heteronormatividade.

[3] Tradução livre: “pessoas gênero-inconformes têm um rico histórico de resistir às opressões do Estado”.

[4] Pfeil, B. L., & Pfeil, C. L. (2022a). A CISGENERIDADE EM NEGAÇÃO: APRESENTANDO O CONCEITO DE OFENSA DA NOMEAÇÃO. Revista De Estudos Em Educação E Diversidade - REED, 3(9), 1-24. https://doi.org/10.22481/reed.v3i9.11170