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Camilo Berneri
Marxismo, Classes e Estado
1. O Marxismo e a abolição do Estado
No ambiente da emigração italiana, faz algum tempo, e com frequência, se ouve os anarquistas, durante as reuniões públicas, ou em discussões amistosas, atribuir ao marxismo uma tendência de estadolatria, que se encontra com efeito em algumas das correntes da social-democracia que se reclamam do marxismo, mas que não se constata, sem dúvida, quando se vai diretamente à origem do socialismo marxista.
Marx e Engels profetizaram claramente a desaparição do Estado, e isto explica a possibilidade que existiu no seio da Primeira Internacional de uma convivência política entre socialistas marxistas e socialistas bakuninistas, convivência que teria sido impossível sem aquela coincidência básica. Marx escrevia em A miséria da filosofia:
“A classe trabalhadora substituirá no curso de seu desenvolvimento a antiga sociedade por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo. Já não haverá poder político propriamente dito, pois o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil”.
Engels, por sua parte, afirmava no Anti-Dühring que:
“O Estado desaparecerá inevitavelmente junto com as classes. A sociedade, que reorganiza a produção sobre a base da associação livre de todos os produtores em pé de igualdade, relegará a máquina governativa ao posto que lhe corresponde: o museu de antiguidades, junto à roda e o machado de bronze”.
E Engels não diferia a extinção do Estado de uma fase final da civilização, senão que a apresentava estreitamente vinculada a revolução social, e como sua inevitável consequência. Em 1847 escrevia em um de seus artigos:
“Todos os socialistas estão de acordo em pensar que o Estado e a autoridade política desaparecerão como resultado da futura revolução social, o que significa que as funções públicas perderão seu caráter político e se transformarão em simples funções administrativas, de supervisão dos interesses locais”.
Os marxistas identificam o Estado com o governo, e frente a eles antepõem um “sistema em que o governo dos homens será substituído pela administração das coisas”, sistema que para Proudhon constitui a anarquia.
Lenin, em O Estado e a Revolução (1917), volta a confirmar o conceito da desaparição do Estado, quando afirma: “Quanto a supressão do Estado como meta, nós (os marxistas) não nos diferenciamos, neste ponto, dos anarquistas”.
É difícil descriminar o caráter tendencioso, da tendência desta afirmação, dado que Marx e Engels estavam em luta com a forte corrente bakuninista, e que Lenin em 1917 considerava necessária politicamente uma aliança entre bolcheviques e socialistas de esquerda revolucionária, influenciados pelo maximalismo e os anarquistas. Parece certo, contudo, que não excluindo a tendenciosidade da forma e do momento em que se formula dita afirmação, esta respondia a uma tendência real.
A afirmação referente a extinção do Estado está unida, muito intimamente a concepção marxista da natureza e a origem do Estado, e incluso deriva necessariamente dela como para lhe atribuir um caráter absolutamente oportunista.
O que é o Estado para Marx e para Engels? Um poder político ao serviço da conservação dos privilégios sociais da exploração econômica. No prefácio da terceira edição da obra de Marx A guerra civil na França, Engels escrevia:
“Segundo a filosofia hegeliana, o Estado é a realização da ideia, esta, em linguagem filosófica, o reino de Deus sobre a terra, o domínio onde se realiza ou deve se realizar a verdade eterna, e a eterna justiça. Daí o respeito supersticioso frente ao Estado e de tudo o que se refere a ele, respeito que se instala mais facilmente nos espíritos que estão habituados a pensar que os assuntos e interesses gerais de toda a sociedade não podem ser regulados de forma distinta como se tem feito até o presente, isto é, por obra do Estado e sob suas ordens, devidamente instrumentalizadas. E já se acha haver feito um progresso verdadeiramente audaz quando se liberta da crença na monarquia hereditária para jurar sob a república democrática. Mas, na realidade, o Estado não é outra coisa que uma máquina de opressão de uma classe sobre outra, seja em uma república democrática, como em uma monarquia, e o mínimo que pode se dizer é que é um flagelo, que o proletariado herdará em sua luta para chegar a seu domínio de classe, mas o qual deverá, como tem feito a comuna, e na medida do possível, atenuar seus efeitos mais nocivos, até o dia em que uma geração crescida em uma sociedade de homens livres e iguais poderá se desembaraçar do fardo do governo”.
Marx (Miséria da filosofia) diz que, realizada a abolição das classes, “já não haverá poder político propriamente dito, pois o poder político é precisamente a expressão oficial do antagonismo na sociedade burguesa.”
Que o Estado se reduza ao poder repressivo sobre o proletariado, e ao poder conservador frente a burguesia, é uma tese parcial, seja que se examine o Estado estruturalmente ou em seu funcionamento. Ao governo dos homens se associa, no Estado, a administração das coisas, e esta segunda atividade é a que lhe assegura sua permanência. Os governos mudam, mas o Estado permanece. E o Estado não tem sempre funções de poder burguês, como quando impõe leis, promove reformas, cria instituições contrárias aos interesses das classes privilegiadas e sua clientela, mais favoráveis aos interesses do proletariado. O Estado além do mais não é só o gendarme, o juiz, o ministro. É também a burocracia, potente, muito mais que o governo. O Estado fascista é na atualidade algo mais complexo que um órgão de polícia e que um gerente dos interesses burgueses, porque ligado por um cordão umbilical ao conjunto dos quadros políticos e corporativos tem interesses próprios, nem sempre e nunca inteiramente coincidentes com a classe que tem levado o fascismo ao poder, e a quem o fascismo serve para conservar o poder.
Marx e Engels estavam enfrentados com a fase burguesa do Estado, e Lenin tinha frente a si o Estado russo, em que o jogo democrático era inexistente. Todas as definições marxistas do Estado dão uma impressão de parcialidade e o quadro do Estado contemporâneo não pode entrar no marco das definições tradicionais.
Incluso é parcial a teoria sobre a origem do Estado, formulada por Marx e Engels. Exposta com palavras de Engels: “Ao chegar a certa etapa do desenvolvimento econômico, que está ligada necessariamente a divisão da sociedade em classes, esta divisão fez necessária o Estado. Agora nos aproximamos a grandes passos de uma fase de desenvolvimento da produção, em que, a existência destas classes não só deixa de ser uma necessidade, senão que se converte positivamente em um obstáculo para a produção”. As classes desaparecerão de um modo tão inevitável como um dia surgiram, com as classes desaparecerá assim mesmo o Estado.
Engels retoma a filosofia do direito natural de Hobbes, cuja terminologia adota, substituindo somente a necessidade de domesticar o homo homini lupus, pela necessidade de regular o conflito entre as classes.
O Estado teria surgido, segundo Marx e Engels, quando já haviam se formado as classes e sua função é ser um órgão de classe. Arturo Labriola (Mais além do capitalismo e do socialismo, Paris, 1931) expressa sobre este ponto: “Estes problemas das ‘origens’ são sempre muito complexos. O bom senso aconselharia lançar sobre eles alguma luz e reordenar os materiais que lhes dizem respeito, sem nunca conseguir chegar ao fim”.
A ideia de possuir uma teoria das “origens” do Estado é meramente fabulosa. Tudo o que pode se pretender é indicar alguns elementos que na ordem histórica provavelmente tenham contribuído a gerar o fato. Que surja das classes ou tenha com elas uma relação é evidente, mas se deve recordar as funções predominantes que o Estado teve no nascimento do capitalismo.
Segundo Labriola, o estudo científico da gênese do capitalismo “confere um caráter de realismo, verdadeiramente insuspeito à tese anarquista sobre a abolição do Estado”. Ademais: “Parece com efeito muito mais provável a extinção do capitalismo como efeito da desaparição do Estado, que a extinção do Estado como consequência da desaparição do capitalismo.”
Isto resulta evidente dos estudos dos mesmos marxistas, quando se trata de estudos sérios como de Paul Louis Le travail dans le monde romain (Paris, 1912).Deste livro surge claramente que a classe capitalista romana se formou como um parasita do Estado e protegida por ele. Dos generais saqueadores aos governadores, dos agentes de impostos as famílias de tesoureiros (argentari), dos empregados de aduana aos abastecedores do exército, a burguesia romana se criou mediante a guerra, o intervencionismo estatal na economia, a fiscalização estatal, etc…muito mais que de outro modo.
E se examinamos a interdependência entre o Estado e o capitalismo vemos que o segundo tem se beneficiado amplamente do primeiro por interesses estatais, e não precisamente capitalistas. Tão certo é isto, que o desenvolvimento do Estado precede ao desenvolvimento do capitalismo. O Império Romano já era um vastíssimo e complexo organismo quando o capitalismo romano era apenas uma prática familiar.
Paul Louis não vacila em proclamar: “O capitalismo antigo nasceu da guerra”. Os primeiros capitalistas foram, com efeito, os generais e os publicanos. Em toda a história da formação da fortuna privada está presente o Estado. E desta convicção de que o Estado tem sido e é o pai do capitalismo e não somente seu aliado natural, derivamos a convicção de que a destruição do Estado é a condição sine qua non da desaparição das classes e da irreversibilidade dessa desaparição.
Em seu ensaio O Estado moderno Kropotkin observa:
“Reclamar de uma instituição que representa um desenvolvimento histórico que destrua os privilégios que deve desenvolver, é como se reconhecer incapaz de compreender o que significa na vida da sociedade um desenvolvimento histórico. É como esquecer aquela regra geral da natureza orgânica: As novas funções exigem novos órgãos surgidos das mesmas funções”.
Arturo Labriola, no livro antes citado, observa por sua vez:
“Se o Estado é um poder conservador com respeito a classe que o domina, não será a desaparição desta classe o que fará desaparecer o Estado, e neste ponto a crítica anarquista é muito mais exata que a crítica marxista. Enquanto o Estado conserva as classes, dita classe não desaparecerá. Quanto mais forte é o Estado mais forte é a classe protegida pelo Estado, isto é, mais poderosa se faz sua energia vital e mais segura será sua existência. Uma classe forte é uma classe mais fortemente diferenciada das outras classes. Nos limites em que a existência do Estado depende da existência das classes, o próprio fato do Estado – se a teoria de Engels é verdadeira – determina a existência indefinida das classes e, portanto, de si mesmo como Estado”.
Uma grande, decisiva, confirmação da exatidão de nossas teses sobre o Estado gerador do capitalismo está dada pela URSS na qual o socialismo de Estado favorece o surgimento de novas classes.
9 de outubro de 1936.
Publicado no primeiro número de Guerra di classe.
2. O Estado e as classes
Em 1921, Lenin definia o Estado soviético russo como “um Estado operário com uma deformação burocrática, em um país formado por uma maioria de camponeses”.
Essa definição hoje deve se modificar na seguinte forma: “O Estado soviético é um Estado burocrático em que está se desenvolvendo uma burguesia média burocrática e uma pequena burguesia trabalhadora, enquanto sobrevive a classe média agrária”.
Boris Suvarin, em seu livro Stalin (Paris, 1935), traça o seguinte quadro do aspecto social da URSS:
“A sociedade chamada soviética, repousa, de um modo que lhe é próprio, sobre a exploração do homem pelo homem, do produtor por parte do burocrata, técnico do poder político. A apropriação individual da mais-valia será substituída por uma apropriação coletiva a cargo do Estado, fraude feita pelo consumo parasitário do funcionalismo … A documentação oficial não deixa dúvida alguma: sobre o trabalho da classe submetida, obrigada a um sistema extenuante e inexorável, a burocracia retira uma parte indevida que corresponde mais ou menos ao antigo benefício capitalista. Tem se formado pois, ao redor do partido, uma nova categoria social interessada na manutenção da ordem constituída e na perpetuação do Estado, Cuja extinção, junto a desaparição das classes sociais, predicava Lenin. Se o bolchevismo não tem a propriedade jurídica dos instrumentos de produção e dos meios de troca, detém a máquina estatal que lhe permite a espoliação mediante vários procedimentos. A possibilidade de impor os preços de venda, muito mais altos que os de preços de custo, encerra por si só o verdadeiro segredo da exploração técnico-burocrática, caracterizada, por outra parte, pela opressão administrativa e militar”.
O bonapartismo não é outra coisa que o reflexo político da tendência desta nova burguesia, a conservar e acrescentar sua própria situação econômica-social. No chamado do bolchevique-leninista Tamboy, dirigido ao proletariado mundial em 1935, pode se ler o seguinte:
“A tarefa da burocracia do partido consiste somente em isolar e torturar os opositores enquanto estes não tenham se destruído publicamente, isto é, até quando não tenham se convertido em desgraçados apolíticos. Os burocratas, com efeito, não desejam que sejas um autêntico comunista. Não tem necessidade disto. Para eles é nocivo e mortalmente perigoso. Não querem comunistas independentes, querem servos miseráveis, egoístas e cidadãos de última categoria…
Seria então possível, que, sob um verdadeiro poder proletário, a luta ou um simples protesto contra a burocracia, contra os ladrões e os bandidos que se apoderam impunemente dos bens soviéticos, e que são os causantes da perda, pelo frio e a fome de centenas de milhares de homens, seja considerada como um delito contrarrevolucionário?”
A formidável tragédia da luta entre a oposição “revolucionária”</em> e a “ortodoxia conservadora”</em>, é um fenômeno completamente natural no quadro do socialismo de Estado. A oposição leninista tem razão em assinalar ao proletariado mundial, as deformações, as desviações e a degeneração do stalinismo; mas se o diagnóstico da oposição quase sempre é preciso, a etiologia, em troca, frequentemente é insuficiente.
O stalinismo não é outra coisa que o resultado de se ter posto em prática o leninismo no problema político da revolução social. Se lançar contra os efeitos sem remontar-se à causa, ao pecado original do bolchevismo (ditadura burocrática em função da ditadura do partido), significa simplificar arbitrariamente a cadeia causal que da ditadura de Lenin passa à ditadura de Stalin, sem maior solução de continuidade.
A liberdade interior de um partido que nega o livre jogo da maioria (da pluralidade) entre os partidos de vanguarda no seio do sistema soviético, seria hoje um espetáculo milagroso. A hegemonia operária, o absolutismo bolchevique, o socialismo de Estado, o fetichismo industrialista: todos estes germes corruptores só podiam dar frutos envenenados tais como o absolutismo de uma fração e a hegemonia de uma camada social. Trotsky, na atitude de São Jorge em luta contra o dragão stalinista, não impede recordar o Trotsky de Kronstadt. A responsabilidade do atual stalinismo se remonta a formulação e a prática da ditadura do partido bolchevique, assim como a ilusão da extinção do Estado como fruto da desaparição das classes a cargo do socialismo de Estado.
Quando Trotsky escrevia, em 6 de setembro de 1935: “O absurdo histórico da burocracia autocrática em uma sociedade sem classes não pode se sustentar e não se sustentará indefinidamente</em>”, dizia uma coisa absurda no que se refere ao “absurdo histórico”. Na história não há absurdos. Uma burocracia autocrática é uma classe e consequentemente não é absurdo que ela exista em uma sociedade na qual persistem as classes: a burocrática e a proletária. Se a URSS fosse uma “sociedade sem classes”, seria também uma sociedade sem autocracia burocrática e essa autocracia é a resultante da subsistência do Estado.
É por sua qualidade de partido dominante da máquina estatal que o partido bolchevique tem se convertido em um centro de atração para os elementos pequenos burgueses arrivistas e para os operários preguiçosos e oportunistas. A praga burocrática não se iniciou, nos fatos, com o stalinismo, pois é simultânea a ditadura bolchevique. Basta ler as notícias de 1918 e 1919, publicadas na imprensa bolchevique.
O Wecernia Isvestia de 23 de agosto de 1918, falando da desorganização do serviço postal, constata que apesar da diminuição em uns 60% da correspondência, o número de empregados, comparado ao período anterior da revolução, havia aumentado uns cem por cento.
Pravda de 11 de fevereiro de 1919 assinala a contínua criação de novas oficinas, de novas instituições burocráticas, para as quais têm se nomeado e estipendiado os empregados antes que as novas organizações começaram a funcionar. “Se todos estes novos empregados – diz Pravda de 22 de fevereiro de 1919 – invadem e ocupam palácios inteiros, por seu número efetivo seriam suficientes algumas poucas estâncias”.
O trabalho se faz lento e obstrucionista, incluso nas oficinas com funções industriais. “Um encarregado do Comissariado de Lipetzk – conta Isvestia de 29 de novembro de 1918 – para comprar nove ‘pud’ de pregos ao preço de 417 rubros tem que expedir vinte escritos, obter cinco ordens e 13 firmas, para conseguir isso teve que fazer antessala de dois dias, pois os funcionários que deviam assinar eram ‘inencontráveis’”. Pravda (número 281) denunciava “a invasão em nosso partido de elementos pequeno-burgueses” que faziam expropriações “para uso pessoal”. No número de 2 de março de 1919 o mesmo periódico constatava:
“É necessário reconhecer que nos últimos anos alguns companheiros, que não eram membros do PC nos primeiros tempos, começaram a recorrer a métodos de trabalho que são inadmissíveis em nosso partido. Admitir como sistema o costume de não se considerar atado a opinião das organizações locais, enquanto tem ordens de atuar pessoalmente, em base de um mandato bastante limitado, e ordenar a torto e a direito, por exemplo. Daí se origina uma tensão latente entre o centro e a periferia, impondo com sua ditadura individual, vários vexames”.
Falando da província de Pensa, o Comissário do Interior, dizia:
“Os representantes locais do governo central se conduzem, não como os representantes do proletariado, mas como verdadeiros Sátrapas[1]. Uma série de feitos e de provas atestam que os únicos representantes do Governo se apresentam armados diante de gente mais pobre, levando presa e com ela todo o necessário, ameaçando de morte no caso de protestos, castigando a golpes. Os objetos roubados são revendidos, e com esse dinheiro se organizam bebedeiras e orgias”. (Wecernia-Isvestia, 12 de fevereiro de 1919).
Outro bolchevique, Mescerikov, escrevia:
“Cada um de nós vê todos os dias infinitos casos de violência, vexames, corrupções, ócio, etc. Todos sabemos que em nossas instituições soviéticas têm entrado em massa, vagabundos e folgados. Todos nós lamentamos sua presença nas fileiras do partido, mas não podemos fazer nada para nos limparmos dessa impureza”.
“… se uma instituição expulsa um vagabundo, se encontra logo outra que o toma e lhe dá um posto de responsabilidade. Em vez de ser castigado, termina por ser promovido”. (Pravda, 5 de Fevereiro de 1919).
Em um discurso pronunciado no Oitavo Congresso do Partido Comunista russo (11–12 de março de 1919), Lenin confessava:
“Vemos por todas partes carreiristas, aventureiros, que tem se introduzindo entre nós. Eles se chamam comunistas, mas na realidade buscam nos enganar sobre suas verdadeiras ideias. Isso sim, estão colados a nós, porque nós somos o poder e porque os elementos burocráticos mais honestos recusam colaborar com nós por causa de suas ideias atrasadas, enquanto eles não tem nem ideias e nem honestidade: São exclusivamente de reclame”.
O governo bolchevique se demonstra impotente frente a burocracia, pletórica, parasitária, prepotente e desonesta.
De cinco milhões de burocratas se passou a dez milhões. Em 1925 eram 400.000 funcionários nas cooperativas (Pravda, 20 de abril de 1926).
Em 1927 a Federação russa de operários da alimentação tinha 4.287 empregados para seus 451.720 sócios e o sindicato de metalúrgicos de Moscou chega a 700 funcionários para 130.000 carnês sindicais (Trud, 12 de junho de1928).
Esta pletórica burocracia não responde a uma intensa e eficaz atividade administrativa.
“A direção do aparato soviético, da base ao mais alto grau, tem um caráter papeleiro. O comitê provincial manda habitualmente uma ou duas circulares por dia sobre todas as questões imagináveis, e estima haver assim esgotado suas obrigações.”
“O número das circulares que dão as diretivas recebidas nas células, oscila, em certos lugares, de 30 a 100 por mês” (Pravda, 7 de junho de 1925).
Um alto funcionário, Dzerginsky, escrevia:
“Se solicitam das empresas as mais diferentes informações, informes, dados estatísticos, formando em conjunto uma torrente de cartes que obriga a manter um excessivo pessoal e asfixia o trabalho mais vital: Se cria um mar de cartas em que se enredam centenas de pessoas; A situação da contabilidade e da estatística é simplesmente catastrófica; as empresas suportam com desgosto o fardo de prover informações sobre dezenas e centenas de formas diferentes. Se mede agora a contabilidade ao peso”. (Pravda, 23 de Junho de 1926).
Uma oficina florestal reclama um cálculo das perdizes, das lebres, ursos, lobos, etc., habitantes no setor do funcionário consultado, e isto no prazo de uma semana (Krasnaia Gazeta, 14 de maio de 1926).
A direção provincial da agricultura de Viatka prescreve ao comitê executivo do cantão contar os vermes da terra encontrados no campo (Pravda, 1° de março de 1928).
O informe do Comissariado de Comércio, contém 27.000 solicitudes; um informe agrícola ucraniano contém 20.000 (Isvestia, 11 de dezembro de 1927).Um comitê executivo local envia ao soviet do povo um questionário com 348 perguntas, e isto, durante a colheita do grão (Pravda, 18 de abril de 1928). O instituto de agronomia experimental publica uma folha de pesquisa de seis metros de comprimento e totalmente cheia de interrogações sobre tratores (Diednota, 1 de abril de 1929).
No XV Congresso do Partido, Stalin citou o caso, entre outros muitos, de um mutilado que teve que esperar sete anos um aparelho de prótese. Um operário que deve fazer uma reclamação contra a administração de uma empresa, deve passar por 24 formalidades burocráticas (Trud, 14 de janeiro de 1928). Uma oficina processa 210 contratos por operário admitido, e isto apesar de que o pessoal é muito instável (Trud, 5 de agosto de 1928). Um relógio importado na URSS passa na aduana através de 142 formalidades (Isvestia, 9 de dezembro de 1928). Um inventor, chegado a Moscou para experimentar um descobrimento, deve fazer um trâmite para obter uma habilitação. Depois de um ano e meio ainda não a tem obtido, mas tem reunido um conjunto de folhas burocráticas relativos a dito trâmite: 400 documentos (Vetchernaia Moska, junho de 1929).
Os funcionários do partido estão sobrecarregados de tarefas. Kamenev, antes de ser despedido, era membro do Comitê Central e do Bureau político do Partido, presidente do Conselho do Trabalho e da Defesa, presidente do Soviet de Moscou, vice-presidente do Conselho de Comissários do Povo, membro da presidência coletiva do Conselho Econômico Superior, membro do Comitê Centralexecutivo da União e do Comitê executivo do Soviet da República, diretor do Instituto Lenin, co-diretor de Bochevik, revista oficial do Partido, e certamente a lista de suas tarefas ou cargos não está completa. Até os pequenos dirigentes estão sobrecarregados de tarefas e de todo tipo de cargos. Um jovem comunista declarava ocupar sozinho dezesseis cargos (Pravda, 21 de março de 1925).
Com uma burocracia tão pletórica, com um mecanismo administrativo tão complicado, com um controle tão mínimo e natural, se explica que o roubo seja uma das características da vida burocrática da Rússia. Um alto funcionário sindical, Dogadov, referia ao Conselho Central dos sindicatos em 1925, que quase a metade (47%) do orçamento da confederação sindical russa (700 milhões de rublos) devoravam os funcionários (Pravda, 9 dezembro de 1926). Em um ano 5.323.000 rublos eram dilapidados nas cooperativas (Torgovo-Promychlenaia Gazeta, 23 de maio de 1926). Toda a imprensa bolchevique dos anos seguintes está cheia de notícias das dilapidações burocráticas nas cooperativas. Tomsky, agora presidente da confederação dos sindicatos russos, dizia no VIII Congresso da central sindical:
“Onde se rouba … Por todas partes: nos comitês de fábricas, nas caixas de mútuo socorro, nos círculos, nas seções regionais, departamentais e distritais; por todas as partes, em uma palavra.
Existe incluso uma rubrica com o título: ‘Desconhecido’, se é roubado em alguma parte, mas não sabemos onde. E quem rouba? Para maior vergonha de nossa entidade, devo dizer que os presidentes são capitalistas. Como repartem os roubos do ponto de vista político? De maneira desigual entre comunistas, e também entre pessoas das queias é ‘desconhecida’ sua orientação política. No que concerne a juventude, a situação é angustiosa. O ativo sindical não compreende, em nenhum nível, mais de 9% dos jovens, mas quanto aos ladrões, chega a 12.2%”.
Em novembro de 1935 Il Risveglio de Genebra publica a carta de um empregado de hotel no qual, entre outras coisas, se lê:
“Em 1925, em março, durante uma feira internacional de Lyon, me encontrava no Nouvel Hotel, onde o proprietário, fascista cem por cento, tinha recebido com as honras correspondentes a missão soviética. Ocuparam as melhores habitações, que o proprietário cobrava 120 francos ao dia por pessoa, preços que naquela época eram exorbitantes, mas que os bolcheviques pagavam sem discutir. E bem, pude constatar que eles tinham os mesmíssimos vícios da nobreza russa. Na janta, na mesa, se embriagavam de conhaque, e em nome da ditadura do proletariado faziam servir os melhores vinhos de Burdeos”.
O “decoro” conduz aos costumes luxuosos e viciosos, e esses costumes conduzem a corrupção.
Pravda do 16 de outubro de 1935, denunciava dois casos de corrupção burocráticas dignas de ser assinaladas:
“A indústria florestal, órgão do comissariado do povo para a indústria florestal, havia recebido dinheiro, de forma ilícita, do truste Ucrânia, do departamento de combustíveis do comissariado de vias e comunicações, e de outras organizações econômicas. A ‘Indústria ligeira’, órgão do comissariado do mesmo nome, havia recebido dinheiro, sempre de Kiev, do departamento algodoeiro do comissariado de agricultura, do truste de algodão e do truste de coro e da pele”.
Os diários russos estão cheios de notícias relativas a corrupção da burocracia, e de informações sobre “a depuração do partido”. Efetivamente a depuração consiste na eliminação dos elementos que “não estão na linha”. Tem aqui alguns casos típicos, extraídos de Bolchevistskaia Petchat (números 13 e 14 de 1935). O editor-chefe da Kommunist de Seratov, secretário da seção local do partido comunista, foi revogado, não porque – segundo o periódico – seguia uma “linha política equivocada”, mas porque o chefe de pessoal Davidovov tinha dado provas de sua “criminal negligência”, admitindo corretores e redatores de origem não proletária ou suspeitosa: Goverdovski “cujos pais tinham sido expulsos de Moscou”, a cidadã Znamenskaia “filha de um oficial branco morto no curso da guerra civil”, a cidadã Gonciarenev, expulsa de Moscou como contrarrevolucionária, o literato Lardi “expulso do partido por decomposição completa (sic), ex-nobre, com uma tia na Polônia”, o fotógrafo Kruscinski expulso do partido por ter estado na Letônia sem autorização e tendo parentes nesse país, a cidadã Rounguis, parente de uma mulher condenada por participar em uma associação de bandidos.
Os funcionários um pouco independentes e que são mais honestos e capazes, são eliminados sistematicamente, enquanto permanecem em seus postos os oportunistas, quase todos venais e incapazes.
Inclusive os cargos do partido se converteram em sinecuras estáveis. A rotação dos elementos dirigentes está atualmente abolida. Enquanto os estatutos do partido comunista russo estabeleceram que a cada ano se mudariam os dirigentes do partido, dos sindicatos e dos soviets, certo Kakhiiani foi durante oito anos seguidos secretário do Comitê Central do partido comunista georgiano.
Todo este estado de coisas favorece a consolidação da burocracia e da tecnocracia como classe.
Em seu livro Vers l´autre flamme (Até a outra chama), aparecido em Paris em 1929, Panait Istrati expunha com dados esta situação, descrevendo as diversas proporções nas quais as distintas classes do povo russo haviam poupado e depositado suas poupanças nas caixas durante o ano 1926: 12% eram poupanças de operários, 3,6% camponeses, enquanto os funcionários e outras categorias não especificadas haviam depositado 56,7 %.
A nova categoria dos chefes operários e dos operários especializados “stajanovistas” vem sustentar a nova burguesia tecno-burocrática. Os operários não especializados constituem o verdadeiro proletariado industrial. Em 1935 o salário médio daquela categoria, se se consideram os preços da alimentação nesse mesmo ano era um salário de fome, porque estava em 100 e 150 rublos mensais. Em Moscou por exemplo, um quilo de pão branco custava de 2 a 6 rublos, a carne custava de 10 a 15 rublos o quilograma, e um quilograma de manteiga de 28 a 30 rublos. Uma passagem de bonde de 10 a 25 copeques (isto é um quarto de rublo), e uma passagem de metro 50 copeques (isto é, meio rublo).
“Isvestia” de 9 de maio de 1935 anunciava que um chefe de oficina dos altos-fornos de Krivoirog (Ucrânia) tinha recebido por salário (mês de abril) 3.300 rublos. “L´Humanité”, cotidiano bolchevique de Paris, em seu número de 16 de dezembro de 1935 falava de um operário que recebia 4.361 rublos em 24 dias e de um operário que tinha recebido 233 por um só dia de trabalho.
Em 15 de dezembro de 1935 L´Humanité anunciava que as caixas de poupança da URSS tinham uma reserva de 4.256.000 rublos superiores a 1° de dezembro de 1934. Em 1936 (de 1° de janeiro a 11 de maio) o total da poupança aumentou 403 milhões de rublos contra 261 milhões pelo período correspondente a 1935. Os senhores Lewis e Abramson, que estiveram na Rússia por conta do BIT (Bureau Internationale du Travail) de Genebra, recentemente publicaram um informe que confirma a acentuação da diferenciação nos salários industriais.
“Na indústria metalúrgica – informam – a escala de salários mais frequentemente aplicada compreende oito classes (ou categorias). A taxa do operário menos qualificado está representada pelo coeficiente 1, e o da classe seguinte pelo coeficiente 1,15 e progressivamente 1,32, 1,51, 1,83, 2,17, 2,61 e finalmente 3,13”.
Trabalho por serviço, escala de salários, sistema de prêmios: tudo isto está criando uma pequena-burguesia que sustenta a burguesia média técnico-burocrática e retarda a “terceira revolução”, preconizada pela opinião revolucionária, consolidando a ditadura de um clã.
Este fenômeno de reconstituição das classes “mediante o Estado” foi previsto por nós, e denunciado claramente. A oposição leninista não consegue aprofundar o exame etiológico do fenômeno e é porque não chega a revisar a posição leninista frente ao problema do Estado e a revolução.
17 de outubro de 1936. Publicado no segundo número de Guerra di classe.
3. A abolição e extinção do Estado
Enquanto nós, os anarquistas, queremos a extinção do Estado mediante a revolução social e a constituição de uma nova ordem autonomista-federal, os leninistas querem a destruição do Estado burguês, mas assim mesmo a conquista do Estado pelo “proletariado”. O “Estado do proletário” – dizem – é um semi-Estado porque o Estado integral é o burguês, destruído pela revolução social. Inclusive este semi-Estado, segundo os marxistas, deve a sua vez morrer de morte natural.
Esta teoria da extinção do Estado, básica no livro de Lenin “O Estado e a revolução” foi tomada de Engels, que em A subversão da ciência pelo senhor Eugen Duhring, diz:
“O proletariado toma o poder do Estado e transforma imediadamente os meios de produção em propriedade do Estado. Por este ato destrói a si mesmo enquanto proletariado. Elimina as diferenças de classes e todas as contradições de classes, e ao mesmo tempo incluso o Estado enquanto Estado.
A antiga sociedade, que existia e existe, através dos antagonismos de classe, tinha necessidade do Estado, quer dizer de uma organização da classe exploradora de cada período histórico para manter as condições externas de produção. Em particular, o Estado tinha como tarefa manter pela força a classe explorada em condições de opressão necessárias para o modo de produção existente (escravidão, servidão, trabalho assalariado).
O Estado era representante oficial de toda a sociedade e sua expressão sintetizada em uma realidade visível, mas só porque era o Estado da classe que, em cada época, representava a totalidade real da sociedade: Estado antigo dos cidadãos proprietários de escravos; Estado medieval da nobreza feudal; Estado moderno da burguesia de nossa época, ao menos desde o século passado.
No entanto, se chegasse a representar a realidade de toda a sociedade, se tornaria supérfluo. Desde que não era mais necessário manter nenhuma classe social oprimida, a partir do momento em que a luta pela existência individual, determinada pela velha desordem da produção e pelos conflitos e excessos que resultaram, a repressão se torna desnecessária e o Estado não é mais necessário.
O primeiro ato pelo qual o Estado se manifesta realmente como representante da sociedade inteira, ou seja, a apropriação dos meios de produção em nome da sociedade, é ao mesmo o último ato do próprio Estado. A intervenção do Estado na vida da sociedade se volta supérflua em todos os campos, um depois de outro, e cai por si mesmo em desuso. O Governo dos homens é substituído pela administração das coisas e a direção do processo de produção. O Estado não é “abolido”, senão que morre. Nesta perspectiva é necessário situar a palavra de ordem “Estado livre do povo”, em um sentido de agitação que, ao mesmo tempo, tinha direito à existência e, em última análise, é cientificamente insuficiente. É necessário, igualmente, situar-se sobre esta perspectiva para examinar as reivindicações dos chamados anarquistas, que querem abolir o Estado de um dia para outro”.
Entre o Estado de hoje e a Anarquia de amanhã, estaria o semi-Estado. O Estado que morre e “o Estado enquanto Estado”, ou seja, o Estado burguês. E é neste sentido que se toma a frase, que a primeira vista parece contradizer a tese do Estado socialista. “O primeiro ato em que o Estado se manifesta realmente como representante de toda a sociedade, ou seja, a tomada dos meios de produção em nome da sociedade, é ao mesmo tempo o último do Estado”.
Tomada literalmente, e arrancada de seu contexto esta frase poderia significar a simultaneidade temporal da socialização econômica e da extinção do Estado.
Desta maneira inclusive, tomada literalmente, a frase referente ao proletariado destruídor de si mesmo como proletariado no ato de se apoderar do poder do Estado, viria a significar a não necessidade do “Estado proletário”. Na realidade Engels, sob a influência do “estilo dialético”, se expressa muito pouco felizmente. Entre o hoje burguês-estatal e o amanhã socialista-anárquico, Engels reconhece uma cadeia de etapas sucessivas, em que Estado e proletariado coexistem. Para lançar uma luz nessa obscuridade … dialética, e a alusão final aos anarquistas “que querem abolir o Estado de um dia para outro”, ou seja que não admitem o período de transição com respeito ao Estado, cuja intervenção –segundo Engels – se volta supérflua “em todos os campos, um depois de outro”, ou seja gradualmente.
Creio que a posição leninista frente ao Estado coincide estreitamente com a assumida por Marx e Engels, quando se interpreta o espírito dos escritos destes últimos, sem se deixar enganar pela ambiguidade de alguma formulação.
Para o pensamento político marxista-leninista, o Estado é o instrumento político transitório da socialização, transitório pela essência mesma do Estado, que é a de um organismo de domínio de uma classe sobre outra. O Estado socialista, ao abolir as classes, se suicida. Marx e Engels eram metafísicos, aos quais ocorria com frequência esquematizar os processos históricos por fidelidade ao sistema que haviam inventado.
“O proletariado”, que se apodera do Estado, ao que encomenda toda a propriedade dos meios de produção, destruindo-se a si mesmo como proletariado e o “Estado enquanto Estado”, é uma fantasia metafísica, uma hipótese política das abstrações sociais.
Não é o proletariado russo quem se apoderou do poder do Estado, mas o partido bolchevique, que não destruiu inteiramente o proletariado, e que criou, em troca, um capitalismo de Estado, uma nova classe burguesa, um conjunto de interesses vinculados ao Estado bolchevique, que tendem a se conservar na medida que se conserva aquele Estado.
A extinção do Estado está mais longe que nunca na URSS, onde o intervencionismo estatal é cada vez mais vasto e opressivo, e onde as classes não tem desaparecido.
O programa leninista de 1917 compreendia estes pontos: supressão da polícia e do exército permanente; abolição da burocracia profissional; eleições para todas as funções e cargos públicos; revogabilidade de todos os funcionários; igualdade das remunerações burocráticas com os salários operários; máxima democracia; pluralidade pacífica dos partidos no interior dos Soviets; derrogação da pena de morte. Nenhum destes pontos programáticos foram cumpridos.
Na URSS há um governo que é uma oligarquia ditatorial. O Bureau Político do Comitê Central (19 membros) domina o partido comunista russo, que por sua vez domina a URSS. Toda cor política que não pertença aos súditos, é tachada de contrarrevolucionária. A revolução bolchevique gerou um governo saturnino, que deporta Riazanov, fundador do Instituto Marx-Engels, enquanto está dirigindo a edição integral e original de O Capital; que condena a morte Zinoviev, presidente da Internacional Comunista, assim como Kamenev e muitos outros entre os mais altos expoentes do leninismo, que exclui do partido, para em seguida expulsá-lo da URSS um “chefe” como Trotsky, que em suma castiga sem consideração e se enfurece contra oitenta por cento dos principais militantes leninistas.
Lenin escrevia em 1920 um elogio da autocrítica no seio do Partido Comunista, mas falava dos “erros”, reconhecidos pelo “partido”, e não do direito do cidadão a denunciar os erros, ou o que lhe parece como tais, do partido do governo.
Ainda sendo Lenin ditador, qualquer um que denunciasse oportunamente aqueles mesmos erros que o próprio Lenin reconhecia retrospectivamente, arriscava, ou suportava, o ostracismo, a prisão ou a morte. O sovietismo bolchevique era uma atroz burla, também da parte de Lenin, que glorificava o poder demiúrgico do comitê central do Partido Comunista russo em toda a URSS dizendo: “Em nossa república não se decide nenhum assunto importante, seja de ordem pública, ou relativo a organização de uma instituição estatal, sem as instruções diretivas que emanam do comitê central do partido”.
Quem diz “Estado proletário”, diz “capitalismo de Estado”. Quem diz “ditadura do proletariado”, diz “ditadura do partido comunista”.
Leninistas, trotskistas, bordiguistas, centristas, só estão divididos por diferentes concepções táticas. Todos os bolcheviques, qualquer que seja a fração a que pertençam, são partidários da ditadura política e o socialismo de Estado. Todos estão unidos pela fórmula “ditadura do proletariado”, forma equívoca, correspondente ao “povo soberano” do jacobinismo. Qualquer que seja o jacobinismo está condenado sempre a desviar a revolução social. E quando esta se desvia se perfila a sombra de um Bonaparte.
Se necessita ser cego para não ver que o bonapartismo stalinista, não é mais que a sombra do ditatorialismo leninista.
24 de outubro de 1936. Publicado no terceiro número de Guerra di classe
4. A ditadura do proletariado e o socialismo de Estado
A ditadura do proletariado é um conceito marxista. De acordo com Lenin, “marxista é só aquele que estende o reconhecimento da luta de classes ao reconhecimento da ditadura do proletariado”.
Lenin tinha razão porque a ditadura do proletariado não é, para Marx, mais que a conquista do Estado por parte do proletariado que, organizado em classe politicamente dominante, chega mediante o socialismo de Estado a supressão de todas as classes.
Em na Crítica do programa de Gotha, escrita por Marx no ano 1875 se lê:
“Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista existe um período de transformação revolucionária de uma na outra. A este período corresponde também um período de transição política no qual o Estado não pode ser outra coisa que a ditadura revolucionária do proletariado”.
No Manifesto Comunista (1847) diz:
“O primeiro passo da revolução operária é a ascensão do proletariado a classe dominante …
O proletariado utilizará seu domínio político para arrancar pouco a pouco da burguesia todo o capital e concentrar todos os instrumentos de produção em mãos do Estado, ou seja, do proletariado organizado em classe dominante”.
Lenin, em O Estado e a Revolução confirma a tese marxista:
“O proletariado tem necessidade do Estado só por um certo tempo. Quanto a supressão do Estado como meta, não nos diferenciamos nesse ponto completamente dos anarquistas. Afirmamos que para alcançar esta meta, é indispensável utilizar temporalmente contra todos os exploradores, os instrumentos, os meios e os procedimentos do poder político, assim como é indispensável, para suprimir as classes instaurar a ditadura temporária da classe oprimida …
O Estado se extingue na medida que deixamos de ser capitalistas, não temos mais classes, e não existe mais, por consequência, a necessidade de ‘aniquilar’ nenhuma classe”.
“Mas o Estado não está todavia inteiramente morto, porque ainda o salvaguarda o ‘direito burguês’, que consagra, de fato, a desigualdade. Para que o Estado pereça completamente, é necessário o advento do comunismo total”.
O Estado proletário é concebido como uma forma política transitória destinada a destruir as classes. O gradualismo na expropriação e a ideia de um capitalismo de Estado são as bases desta concepção. O programa econômico de Lenin, na véspera da revolução de Outubro, termina com esta frase: “O socialismo não é outra coisa que um monopólio socialista estatal”.
Segundo Lenin, “a diferença entre os marxistas e os anarquistas consiste no seguinte: 1) Os marxistas, incluso propondo-se a destruição completa do Estado, não a acham realizável senão depois da destruição das classes por obra da revolução socialista, como um resultado do advento do socialismo, que terminará com a extinção do Estado; os anarquistas querem a completa supressão do Estado de um dia para outro, sem compreender quais são as condições que a possibilitam. 2) Os marxistas proclamam a necessidade para o proletariado da apropriação do poder político, de destruir inteiramente a velha máquina estatal e substituí-la por uma nova, consistente na organização dos trabalhadores armados, ao estilo da Comuna: os anarquistas, reclamando a destruição da máquina estatal, não sabem exatamente ‘com que coisa’ será substituída, pelo proletariado, nem ‘que uso’ fará este do poder revolucionário; chegam até a repudiar qualquer uso do poder político por parte do proletariado revolucionário e rechaçam a ditadura revolucionária do mesmo. 3) Os marxistas buscam preparar o proletariado para a revolução empregando em seu benefício o Estado moderno, e os anarquistas rechaçam este método”.
Lenin deforma a coisa. Os marxistas “não se propõem a destruição completa do Estado”, e sim preveem a extinção natural do Estado como consequência da destruição das classes, realizada pela “ditadura do proletariado” ou pelo socialismo de Estado, enquanto os anarquistas querem a destruição das classes, mediante uma revolução social que suprima o Estado junto com as classes. Os marxistas, além do mais, não propugnam a conquista armada da Comuna por parte de todo o proletariado, senão a conquista do Estado por parte do partido que presume representar o proletariado. Os anarquistas admitem o uso de um poder político pelo proletariado, mas tal poder político é entendido como o conjunto dos sistemas de gestão comunista, dos organismos corporativos, das instituições comunais, regionais e nacionais livremente constituídas fora e contra o monopólio político de um partido, e tendendo à mínima centralização administrativa. Lenin, aos efeitos polêmicos, simplifica arbitrariamente os termos das diferenças correntes entre os marxistas e nós.
A fórmula leninista “os marxistas querem preparar o proletariado para a revolução utilizando em seu proveito o Estado moderno”, se encontra na base do jacobinismo leninista, o mesmo que no parlamentarista e no ministerialismo social reformista. Nos congressos socialistas internacionais de Londres (1896) e de Paris (1900), se estabeleceu que podiam aderir a Internacional Socialista só os partidos e as organizações operárias que reconheceram o princípio da “conquista socialista do poder público por parte do proletariado organizado em partido de classe”. A cisão se produziu sobre este ponto, mas efetivamente, a exclusão dos anarquistas do seio da Internacional, significou o triunfo do possibilismo, do oportunismo, do “cretinismo parlamentar” e do ministerialismo.
Os sindicatos parlamentares, assim como algumas frações comunistas reclamando-se marxistas, rechaçam a conquista socialista pré-revolucionária ou não revolucionária do poder público.
Qualquer dia uma mirada retrospectiva da história do socialismo, depois da separação dos anarquistas, não poderá deixar de constatar a gradual degeneração sofrida pelo marxismo como filosofia política através das interpretações e a prática social-democrata.
O leninismo constitui, sem dúvida, um retorno ao espírito revolucionário do marxismo, mas também significa um retorno ao sofisma e a subtração da metafísica marxista.
5 de novembro de 1936. Publicado no quinto número de Guerra di classe
[1] Pessoa que abusa de sua autoridade ou poder para conseguir o que quer.