Quando se fala em anarquia como prática imediata e presente, muitos anarquistas contemporâneos caem na armadilha de pensar que isso significa apenas ausência de governo ou desobediência à autoridade estatal. Essa leitura é simplista e perigosa, porque desloca a questão do campo material para o campo estético, como se bastasse proclamar “a anarquia já!” para que as estruturas de opressão se dissolvessem no ar. O problema é que as condições materiais da vida permanecem as mesmas: a concentração da riqueza nas mãos de poucos, a dependência da massa em relação ao trabalho alienado e a fragilidade social causada pela propriedade privada dos meios de produção. Nesse cenário, a chamada “anarquia” é apenas uma farsa, uma liberdade de fachada que só serve aos que já são privilegiados economicamente. A ausência de um processo socioeconômico comunista que redistribua e socialize os recursos significa que o que se chamaria de anarquia é, de fato, a liberdade do rico contra o pobre, a liberdade de explorar, comprar, controlar e subjugar, enquanto o despossuído permanece limitado pela falta de condições mínimas para viver. Essa “anarquia” é, portanto, caos, mas não no sentido emancipador da palavra, e sim no sentido do desamparo social. É uma anarquia do privilégio, do mercado sem freios e da violência econômica travestida de espontaneidade.
É justamente por isso que se insiste que a anarquia não pode anteceder o comunismo. Não se trata de uma disputa semântica nem de uma polêmica acadêmica, mas de uma constatação material e histórica. A anarquia como princípio político só pode florescer quando as bases econômicas que sustentam as desigualdades forem desfeitas. O comunismo, entendido aqui não como estatismo burocrático, mas como o processo de socialização radical da riqueza e das condições de vida, cria o terreno fértil onde a anarquia surge como consequência natural. Só depois de abolir a propriedade privada dos meios de produção, de organizar coletivamente a produção e de garantir igualdade e equidade material para todos é que a anarquia deixa de ser apenas um desejo e passa a ser prática viva, sustentada por condições reais. Sem isso, o que alguns chamam de “anarquia” é apenas liberalismo travestido, um laissez-faire atualizado, que garante liberdade total para acumular, mas nenhuma para sobreviver dignamente. A anarquia sem comunismo é a anarquia dos ricos. E, por outro lado, o comunismo sem anarquia é o comunismo do Estado, do Partido, do controle centralizado que substitui o burguês pelo burocrata. Essa simbiose necessária mostra que um não existe sem o outro: comunismo é a condição material da anarquia, e anarquia é a expressão política inevitável do comunismo.
O que isso revela é que grande parte dos discursos anarquistas contemporâneos – especialmente aqueles que surgem no Ocidente marcado pelo hiperindividualismo – acabam soando como slogans esvaziados de conteúdo. Falar em anarquia “agora”, enquanto o capitalismo segue firme com suas bases, é apenas reforçar a desigualdade, porque significa decretar uma suposta liberdade geral em um campo de jogo radicalmente desigual. É como abrir os portões de uma arena e dizer “todos estão livres” enquanto um entra armado até os dentes e outro sequer tem o que comer. Essa liberdade, evidentemente, só é liberdade para o mais forte, para o mais rico, para o mais preparado dentro das regras injustas já estabelecidas. Por isso, não basta dizer que a anarquia é possível no presente sem considerar as condições econômicas: é preciso compreender que ela só será possível como prática coletiva quando houver um processo de transformação que dissolva as desigualdades que o capitalismo cristalizou. E esse processo só pode ser comunista, porque apenas o comunismo – entendido como socialização radical antipolítica de ação direta econômica expropriadora, autogestão, equidade, e igualdade material – tem condições de romper a base econômica da opressão. Não existe anarquia verdadeira enquanto houver salários, patrões, acumulação privada e dependência econômica. Não existe anarquia antes do comunismo, porque seria como plantar flores em um deserto de cinzas sem água.
A ideia de uma anarquia “antes do comunismo” parte de uma confusão recorrente: a de acreditar que a anarquia é um modelo político, como se fosse uma alternativa de governo, uma configuração institucional a ser aplicada sobre qualquer sociedade. Essa visão é uma distorção porque transforma a anarquia em algo equivalente ao liberalismo político, reduzindo-a a uma simples “falta de governo” enquanto as relações materiais de exploração seguem intactas. Só que a anarquia não é ausência de governo por decreto, mas a prática social de igualdade e equidade que só pode se sustentar se houver base material que garanta essa igualdade e equidade. Sem a dissolução das desigualdades econômicas, sem a socialização dos recursos e sem a coletivização dos meios de vida, a chamada anarquia é apenas um vazio institucional, uma suspensão temporária do Estado que, em pouco tempo, é ocupada pelo poder econômico dos mais fortes. E aqui entra a armadilha: se a anarquia se afirma antes do comunismo, ela não é anarquia, mas sim a barbárie liberal do mercado absoluto, onde reina a lei do mais forte. Isso já aconteceu historicamente: momentos de “vácuo de poder” sempre foram aproveitados pelas elites econômicas, que emergiram reforçadas. É por isso que a insistência na necessidade do comunismo não é dogmática, mas histórica. A anarquia só pode ser a consequência viva da socialização radical da riqueza.
É preciso também compreender que a própria noção de “comunismo” aqui não é a caricatura estatista com a qual se acostumou a atacá-lo. O comunismo que se coloca como condição para a anarquia não é o socialismo burocrático, tampouco o centralismo autoritário que simplesmente troca o capitalista privado pelo administrador estatal. Esse comunismo não é o do “partido que guia o povo”, mas o da socialização autogestionária, horizontal e direta da vida social. Nesse sentido, ele já contém em si a anarquia, porque elimina o fundamento econômico das classes sociais e cria as condições para a autodeterminação coletiva. Só que ao contrário da visão imediatista, esse processo não pode ser reduzido a uma proclamação. Ele exige prática econômica concreta: expropriar, ocupar, coletivizar, redistribuir, construir redes produtivas autônomas, suprimir a propriedade privada como princípio social. É nesse terreno que a anarquia deixa de ser uma palavra bonita e vira prática cotidiana, porque a igualdade e equidade material dissolve a necessidade de poder coercitivo. Nesse sentido, comunismo e anarquia são simultaneamente meios e fins: não se pode separar um do outro sem destruir ambos.
A consequência dessa análise é dura para muitos que se identificam como anarquistas contemporâneos. A anarquia, tomada como postura estética ou estilo de vida individual, pode até produzir gestos de resistência simbólica, mas não produz transformação estrutural. Um punhado de indivíduos vivendo de forma “anárquica” dentro do capitalismo não muda o fato de que sua sobrevivência depende de estruturas capitalistas: alimentação produzida em massa, infraestrutura privatizada, dependência tecnológica, dinheiro como mediador universal. A autogestão restrita a pequenos nichos não rompe com a lógica global do capital, apenas cria ilhas vulneráveis que facilmente são esmagadas ou absorvidas. Isso não é anarquia no sentido revolucionário, mas apenas sobrevivência alternativa dentro do mesmo sistema. Pior: ao se proclamar como “anarquia já”, esses gestos dão a ilusão de que a transformação já está acontecendo, quando na verdade reforçam o atraso estratégico. É como se contentar com o verniz da liberdade enquanto as correntes seguem firmes. O resultado é uma anarquia impotente, sem lastro material, incapaz de romper o ciclo de dominação.
O capitalismo, por sua vez, adora essa versão caricata da anarquia. Nada interessa mais ao sistema do que um discurso que proclame “façamos anarquia agora, sem esperar mudanças estruturais”, porque isso significa exatamente manter tudo como está, apenas com a população dispersa em pequenas experiências marginais que não ameaçam a lógica de acumulação. O capital é mestre em assimilar estéticas e slogans, e a palavra “anarquia” sem base comunista vira facilmente produto cultural, tatuagem, moda, hashtag. Essa neutralização simbólica é funcional ao sistema, porque canaliza a energia de resistência para campos inofensivos, desviando-a da organização socioeconômica real. É assim que se chega à contradição atual: muitos se proclamam anarquistas, mas, na prática, defendem apenas formas atualizadas de liberalismo, onde a liberdade se restringe ao indivíduo consumidor, e não à coletividade emancipada. A “anarquia” do capitalismo é só mais um produto, domesticado e vendido em embalagens coloridas.
Por isso, quando se diz que “não existe anarquia antes do comunismo”, não se está excluindo a possibilidade de resistência cotidiana, mas lembrando que resistência não é o mesmo que emancipação. Resistir é necessário, mas confundir resistência fragmentada com anarquia é cair na armadilha ideológica. O comunismo, entendido como socialização material, é o único processo capaz de tornar a anarquia viável como estrutura de vida. Sem essa transformação econômica, a anarquia não passa de um esqueleto vazio, facilmente apropriado pelo mercado. A verdadeira anarquia não é ausência de governo decretada no vazio, mas a forma política natural que emerge quando o fundamento material das classes sociais é abolido. O comunismo é a raiz, a anarquia é o florescimento. Tentar inverter essa ordem é plantar flores no deserto e esperar que elas sobrevivam sem água, como se o desejo fosse suficiente para gerar a vida.
Se olharmos pela lente da história, percebemos que os grandes momentos de autogestão e de prática anárquica sempre coincidiram com processos de socialização radical. A Comuna de Paris, as coletivizações da Revolução Espanhola, os sovietes antes de sua burocratização, o Território Livre da Ucrânia – em todos esses casos, a anarquia se manifestou não como estética individual, mas como consequência direta da socialização econômica. Onde havia coletivização da terra, das fábricas, das condições de vida, havia anarquia real, sustentada pela igualdade e equidade material. E onde esse processo não se consolidou, a anarquia foi esmagada ou degenerou. Essa lição histórica é incômoda, mas inevitável: não há atalhos. O caminho para a anarquia passa necessariamente pela prática comunista, porque só ela dissolve a base econômica da opressão. Quem ignora isso acaba defendendo, sem perceber, a versão mais grotesca e liberal da anarquia: a liberdade do capital de subjugar ainda mais a vida.
Quando se fala que a anarquia só pode florescer sobre o comunismo, isso se torna ainda mais claro se consideramos a dinâmica dos bens posicionais e do consumo conspícuo. Dentro do capitalismo, o valor não está apenas no uso de um objeto, mas na posição social que ele sinaliza. O carro não vale apenas pela locomoção, mas por marcar status, hierarquia, distinção; a roupa, a marca, o bairro, tudo é um código simbólico de poder. Esse mecanismo cria uma lógica de emulação permanente, onde cada indivíduo é pressionado a imitar os padrões de consumo da classe imediatamente acima, gerando uma corrida sem fim por prestígio e reconhecimento. Essa é a raiz do consumo conspícuo descrito por Veblen, mas também uma das engrenagens centrais que mantêm a desigualdade viva: não se trata apenas de possuir recursos, mas de mostrar que se tem mais que os outros. Em um contexto assim, qualquer “anarquia” decretada sem dissolver a lógica econômica não passa de reforço dessa corrida desigual.
O rico sempre será mais “livre” para consumir e exibir sua liberdade, e o pobre sempre será mais prisioneiro da necessidade de emular ou, quando não pode, de sentir-se excluído. É nesse sentido que a anarquia no capitalismo não é anarquia, mas apenas caos social com a desigualdade como norma. A suposta ausência de governo vira apenas mais espaço para o governo invisível da mercadoria e do prestígio.
Se olharmos a questão a partir do emergentismo e da teoria da complexidade, percebemos que a anarquia não pode ser entendida como algo que se implanta por decreto, mas como resultado emergente de um sistema que se autorregula a partir de interações múltiplas e interdependentes. Sociedades são sistemas complexos adaptativos, não máquinas simples. Portanto, não é possível forçar a anarquia de cima para baixo nem proclamá-la no vazio material. O que pode ser feito é criar as condições iniciais, os “atratores” que permitem que um novo padrão emergente surja: igualdade material, equidade social, redes cooperativas, dissolução de hierarquias econômicas e políticas, garantia de condições de vida, seguridade e integridade social. Quando essas bases estão presentes, a anarquia surge como propriedade emergente do sistema, assim como a consciência emerge de interações neuronais ou a vida de interações químicas[1]. É nesse sentido que a anarquia não é “o ponto de partida”, mas a consequência de um processo complexo que exige a reorganização da base econômica. A teoria da complexidade reforça a tese: sistemas só mudam quando as condições críticas se acumulam, e sem o comunismo como reorganização material, a anarquia é apenas instabilidade sem estrutura, incapaz de se sustentar.
E aqui entra a necessidade do ecossistema libertário como base material comunista. Não se trata apenas de dividir bens ou abolir a propriedade formalmente, mas de criar ecossistemas de vida que sustentem coletivamente a autonomia. Esse ecossistema libertário reorganiza alimentação, moradia, energia, cultura e relações afetivas de modo a eliminar a dependência das estruturas capitalistas. É nesse ambiente que o expossoma – o conjunto de todas as influências ambientais sobre o organismo humano – começa a operar em outra direção. O capitalismo, com sua lógica de exploração e precariedade, molda epigeneticamente corpos e mentes para a docilidade, para o estresse crônico, para a competição destrutiva. Já um ecossistema libertário, fundado na autogestão e na igualdade material, gera expossomas que reduzem a violência cotidiana, criam segurança, ampliam a cooperação e provocam mudanças epigenéticas reais no comportamento humano. Essa é a chave: não se trata de um idealismo abstrato, mas de perceber que o ambiente material molda biologicamente a nossa forma de existir. Assim, um comunismo libertário não é apenas a base econômica da anarquia, mas também o campo de transformação dos próprios corpos e subjetividades humanas. A liberdade, nesse sentido, não é só política ou econômica, mas biológica, epigenética, existencial.
Se o comportamento humano é produto não apenas de intenções individuais, mas de campos de forças nos quais os sujeitos estão inseridos, então é óbvio que a anarquia não pode florescer em um terreno social moldado pela lógica da escassez e da competição capitalista. O ambiente, como totalidade concreta de pressões, hábitos, normas e necessidades, condiciona as ações humanas muito mais do que proclamações ideológicas. Um sujeito pressionado por dívidas, insegurança alimentar, ameaças de desemprego e competição desenfreada age dentro de um campo de forças que não permite a emergência da cooperação e da solidariedade em escala ampla. Já em um campo material reorganizado – comunista libertário – o comportamento humano é atraído por novos vetores: a segurança coletiva, a abundância relativa, a garantia de meios de vida. Assim, a anarquia não surge do nada, mas do reposicionamento das pressões ambientais que formam o campo social. Não se trata de “educar” para a anarquia em abstrato, mas de modificar o ambiente para que a prática anárquica se torne a resposta natural e imediata dos indivíduos. A liberdade, neste sentido, não é ideal, mas função do campo.
Outro ponto que se torna central nessa análise é o papel do trabalho como categoria de distinção. Dentro do capitalismo, o trabalho não é apenas meio de subsistência, mas também de hierarquização social. Quem exerce trabalhos manuais ou considerados “inferiores” é relegado ao desprezo, enquanto profissões intelectuais, artísticas ou de comando são elevadas a símbolos de status. Essa distinção cria camadas de prestígio que perpetuam a desigualdade, porque o trabalho passa a ser, ao mesmo tempo, exploração e sinal de posição. E aqui entra a limitação do marxismo, seja ortodoxo ou heterodoxo: ao colocar o trabalho como categoria central e até mesmo como potencial princípio emancipador, acaba por reforçar a mesma lógica que deveria superar. O marxismo não consegue escapar do fetiche do trabalho, seja exaltando o operariado como sujeito histórico, seja buscando apenas redistribuir o valor produzido. Isso significa que, mesmo quando crítico, o marxismo permanece preso à categoria que deveria abolir. A anarquia comunista, ao contrário, não sacraliza o trabalho, mas dissolve sua centralidade: não se trata de glorificar a produção, mas de reorganizar a vida de modo que o trabalho deixe de ser distinção, opressão ou identidade compulsória, e se torne apenas uma atividade entre tantas, livre e socialmente compartilhada.
Essa crítica é essencial porque mostra que o comunismo libertário não é apenas uma variação do socialismo estatal, nem uma simplificação marxista. É um processo distinto, que compreende que a luta não é apenas contra a exploração econômica, mas também contra a estrutura simbólica que coloca o trabalho como centro da vida social. Enquanto o marxismo, mesmo heterodoxo, ainda acredita que é preciso “valorizar” o trabalho, o comunismo anárquico propõe justamente o contrário: desvalorizar o trabalho como categoria social, dissolver a distinção entre atividades produtivas e improdutivas, abolir o prestígio que o cerca e liberar os indivíduos para viverem em um ecossistema onde o valor não é medido pela quantidade de suor ou pela posição hierárquica no processo produtivo. Isso é fundamental, porque só assim se rompe o ciclo da emulação, dos bens posicionais e da corrida por prestígio. Sem essa dissolução, qualquer “anarquia” permanece refém da lógica do reconhecimento e da distinção social, que é apenas outra face da dominação capitalista.
Consolidando esse percurso, pode-se dizer que a anarquia não é um ponto de partida, mas um ponto de chegada emergente. Ela depende da socialização comunista como base material e ambiental, que gera não apenas novas relações econômicas, mas também novos corpos e subjetividades, moldados por expossomas libertários e modificações epigenéticas em favor da cooperação e ajuda mútua. Depende da dissolução do trabalho como categoria central, substituída pela pluralidade de atividades humanas sem hierarquia de prestígio. Depende da transformação do campo social, de modo que as pressões que hoje forçam a competição passem a incentivar a solidariedade. E depende, acima de tudo, de compreender que comunismo e anarquia não são alternativas separadas, mas faces inseparáveis de um mesmo processo. Sem comunismo, a anarquia é apenas caos liberal. Sem anarquia, o comunismo é apenas estatismo burocrático. Só na fusão orgânica dos dois é que se torna possível falar em liberdade real, sustentada por condições materiais, biológicas e sociais.
O que sobra, no fim das contas, são duas caricaturas igualmente patéticas. De um lado, os marxistas, que seguem tratando o “trabalho” e o desenvolvimento das forças produtivas, como se fosse o sacramento universal, repetindo a ladainha da centralidade da classe operária enquanto ignoram que a própria categoria de trabalho e a própria dinâmica da produção entrópica e irracional do capital é a corrente que nos prende. Eles imaginam que basta redistribuir o produto e administrar o capital sob nova bandeira para que a emancipação aconteça, sem perceber que isso não passa de estatismo burocrático reembalado. De outro lado, os anarquistas de boutique, que confundem anarquia com estilo de vida, tatuagem ou playlist, e acham que basta proclamar a ausência de governo enquanto pedem comida por aplicativos exploradores ou fazem cancelamentos estéticos em redes controladas por bilionários. Uns são devotos da Bíblia de Marx, outros da Bíblia do Instagram, mas ambos permanecem cativos do mesmo altar: o capitalismo e sua lógica de distinção.
A anarquia real não é isso. Ela não é pose nem dogma, mas resultado emergente de uma transformação profunda, ecológica, epigenética e material. É comunismo ou nada. É socialização e expropriação radical das condições de vida, dissolução da distinção do trabalho, fim da corrida dos bens posicionais e criação de um ecossistema libertário que faça da solidariedade um reflexo espontâneo. Fora desse caminho, só há caricatura: ou o marxismo que sonha em administrar a desigualdade, ou a anarquia de boutique que sonha em estetizar a desigualdade. Ambos são fracassos disfarçados de alternativa. Quem quiser liberdade de verdade precisa aceitar o óbvio incômodo: não há anarquia sem comunismo, e não há comunismo sem anarquia. Todo o resto é marketing ideológico.
A anarquia, desde suas primeiras fagulhas, respirou como quem abre os pulmões depois de séculos de sufocamento. Foi atmosfera viva, oxigênio ardente que incendiou a imaginação e a coragem de milhares, mulheres e homens que viram no gesto da revolta o milagre de reencontrar a própria dignidade. Mas logo, esse mesmo oxigênio foi envenenado, transformado em gás carbônico, pesado e mórbido, incapaz de sustentar a chama que libertava. A anarquia brilhou como aurora, mas não construiu o dia; incendiou corações, mas não ergueu raízes. Viveu como relâmpago, e o clarão se perdeu nas sombras. A metáfora é simples e cruel: tivemos fôlego, mas não criamos pulmões. A liberdade respirou, mas não encontrou organismo capaz de sustentar a respiração. E sem corpo, a ideia se torna lembrança, mito, arqueologia de um fogo que ardeu, mas não se multiplicou.
Essa transição de oxigênio a veneno não é acidente. É a lei da ausência de um corpo vivo capaz de se autorreproduzir. A anarquia foi um sopro, não um pulmão. Um momento, não uma estrutura. Um gesto, não um organismo. As revoltas, as comunas, os levantes, as barricadas, todos nasceram do ímpeto puro, mas pereceram na mesma intensidade que os fez nascer. Faltava-lhes o que o capital possui em excesso: um ecossistema. E sem ecossistema, nenhuma vida resiste além do instante. Não se trata de desmerecer as insurreições, elas são faróis, gritos, erupções que nos ensinam que o impossível pode ser tocado. Mas sem um campo fértil, sem raízes subterrâneas, toda erupção se dissolve no ar. A liberdade sem ecossistema é sempre um incêndio que ilumina a noite, mas amanhece em cinzas.
A história já nos mostrou os lampejos: a Comuna de Paris devorada pelo canhão; a Ucrânia makhnovista dissolvida pelo pacto do poder; a revolução espanhola esmagada por dentro e por fora, traída pelo stalinismo e esmagada pelo fascismo. Não faltou bravura, nem fé, nem solidariedade. Faltou o metabolismo. Faltou o ciclo de nutrientes sociais que alimenta e retroalimenta. Enquanto as outras ideologias sugam as veias abertas do capitalismo, a anarquia tentou viver com respiração autônoma, mas sem pulmões. A anarquia, órfã de um bioma próprio, respira pelo inimigo e morre com o inimigo. Não foi a ausência de vontade, mas de solo; não foi a ausência de amor, mas de corpo. Somos memória de auroras abortadas, de alvoradas sufocadas antes de erguer o sol.
É preciso nomear o vício mortal: o movimento anarquista, ao nascer e renascer em cada esquina da história, nunca construiu sua rede de nutrientes, nunca gerou sua própria atmosfera. Vive como hóspede em ambiente hostil, depende do aparato que combate. Quando não consegue resistir, apela ao tribunal, pede socorro às leis, exige da polícia que puna os fascistas, pede ao Estado que impeça o fascismo de matar. É o absurdo: recorrer ao veneno para curar o envenenamento. É o fracasso ecológico de uma ideia que queria ser vida, mas ainda rasteja como abstração. Não adianta se vestir de rebeldia e ajoelhar diante do carcereiro. Não adianta sonhar com a liberdade e pedir sua autorização. A ausência de ecossistema transforma o rebelde em cliente do inimigo.
Enquanto isso, o capitalismo floresce como erva daninha: cada crise é húmus, cada catástrofe é fertilizante, cada guerra é expansão. O capitalismo transforma o veneno em semente, a miséria em lucro, a desgraça em negócio. É um ecossistema entrópico, mas autoalimentado. Ao contrário, o que resta da anarquia se dissolve em grupismo, em vaidades, em igrejinhas que se proclamam centrais da pureza. A fragmentação é o ácido interno que corrói por dentro o que o inimigo já ataca por fora. Cada coletivo vira ilha, cada grupo se fecha em seita, cada militância se perde em slogans. A incapacidade de se pensar como bioma faz com que nos devoremos em competições mesquinhas, enquanto o capital devora o mundo em silêncio.
Não há mistério: um ecossistema libertário não pode nascer como cópia invertida do capital. Não pode ser apenas um conjunto de coletivos, conselhos ou associações. Não se trata de reproduzir fórmulas: sindicalismo, conselhismo, assembleísmo – que já mostraram suas insuficiências. Não se trata de palavras mágicas como “acordo livre” ou “democracia direta”. É preciso pensar em termos de metabolismo: como circulam os nutrientes da vida – comida, moradia, educação, cuidado, comunicação, memória, desejo? Sem isso, nenhuma rede resiste além do romantismo de barricada. Um bioma não se sustenta com conceitos, mas com fluxos. E fluxos precisam ser contínuos, subterrâneos, invisíveis se preciso, mas vitais.
Um ecossistema libertário deve ser como a floresta: autopoietico, regenerativo, interdependente. Se um galho quebra, outros se inclinam para absorver a luz. Se um tronco cai, seu apodrecimento alimenta o solo. A ação direta não é apenas ataque, mas metabolismo. Cada ataque precisa gerar nutrição. Cada defesa precisa fortalecer o ciclo. Cada gesto precisa ser semente. O capital nos ensina isso ao modo de um monstro: ele devora e se regenera. Nós precisamos aprender ao modo da vida: cultivar e se expandir. A anarquia só será vital quando puder se regenerar como uma mata densa: ataques que nutrem, defesas que florescem, solidariedade que aduba. Não basta resistir, é preciso respirar com pulmões próprios.
O perigo é claro: qualquer bioma libertário, ao florescer, será atacado como praga. A propaganda já nos chama de parasitas, fungos, vírus. E, de fato, do ponto de vista do capital, somos. Mas eis o segredo: um fungo pode matar uma floresta inteira, e uma raiz subterrânea pode atravessar continentes. A força de um ecossistema não está na sua visibilidade, mas na sua capacidade subterrânea de resistir e se expandir. A anarquia não precisa de palácios: precisa de rizomas. Não precisa de cúpulas, mas de micélios. A vida que cresce por baixo é a vida que não pode ser extinta. O bioma libertário será subterrâneo ou será aniquilado.
Isso exige, sim, abandonar as palavras gastas. Não porque sejam inúteis, mas porque foram reduzidas a caricaturas. Associação livre, conselho, sindicato – tudo isso pode continuar a existir, mas precisa deixar de ser dogma.
O que importa não é o conceito, mas o metabolismo. O que importa é que cada espaço libertário seja capaz de respirar por si, alimentar-se por si, defender-se por si, e ainda assim manter o ciclo aberto para todos os demais. Sem essa autonomia ecológica, toda rebelião acaba dependente da energia do inimigo. O dogma é prisão. O metabolismo é vida.
Não se trata de pequenas ilhas de utopia, mas de tecer uma rede subterrânea internacional. É por isso que Cafiero estava certo: hoje a anarquia é ataque contra todas as instituições; amanhã será defesa contra o retorno delas. Mas essa defesa só será real se houver bioma, se houver ecossistema. Do contrário, será apenas retórica, apenas indignação, apenas pólen ao vento sem raiz no solo. Internacionalizar não é bandeira, é necessidade vital: ou crescemos como bioma global, ou apodrecemos como jardim isolado.
O movimento anarquista está morto enquanto permanecer como memória romântica, como lembrança nostálgica, como palavra sem metabolismo. Só renascerá quando criar seu próprio bioma, quando aprender a transformar ataques em nutrientes, quando construir redes autônomas capazes de resistir à tempestade. É preciso compreender que liberdade não é conceito, é atmosfera; mas atmosfera não se sustenta sozinha, precisa de ecossistema. A anarquia será ecossistema ou não será nada.
[1] Dizer que a anarquia surge como “propriedade emergente” não deve ser entendido no sentido mecânico de que basta somar condições econômicas e sociais como peças de uma máquina para que, de forma automática, ela apareça. Esse raciocínio mecanicista seria tão frágil quanto reducionista, porque colocaria a anarquia no mesmo plano de uma reação físico-química previsível, bastando reagentes e catalisadores. A vida social não se comporta como laboratório isolado, mas como campo aberto de interações instáveis, plásticas e historicamente situadas. Falar em emergência, portanto, não é falar em linearidade causal, mas em um processo em que novas formas se tornam possíveis a partir da saturação de condições, sem que haja garantias de sua efetivação. A consciência não emerge apenas porque neurônios se conectam; ela emerge porque há um campo dinâmico, histórico e relacional em que conexões se reforçam, modulam, reorganizam, e criam uma totalidade qualitativamente distinta. O mesmo vale para a vida: moléculas não geram organismos por mera soma, mas por redes de interdependência que produzem propriedades não dedutíveis de seus elementos isolados. Assim também com a anarquia: ela não “brota” porque existe cooperativa X ou comuna Y, ou porque tal recurso foi socializado. Ela se torna possível e tende a se consolidar quando as interações sociais entram em um regime de complexidade no qual as hierarquias perdem sentido prático, a autogestão se torna funcional e a igualdade material sustenta fluxos coletivos. Portanto, a anarquia não é pré-programada, tampouco um destino inevitável. Ela é um potencial que se realiza quando as redes de vida e de produção atingem um estado crítico de densidade e interdependência, em que a cooperação é mais eficiente e vital que a dominação. A emergência não é linear nem garantida; é frágil, reversível, dependente do modo como o campo social se estabiliza diante de pressões externas e internas. Isso significa que a anarquia só pode ser pensada como metabolismo vivo – nunca como algoritmo, nunca como mecânica, mas como ecologia complexa.