#title A Máquina de Mastigar Gente
#subtitle Como o Sistema Cozinha a Desnutrição
#author Centro de Análise Sistêmica AnarcoComunista
#date 2025
#source [[https://emergentismoancom.wordpress.com/2025/06/23/a-maquina-de-mastigar-gente-como-o-sistema-cozinha-a-desnutricao/][emergentismoancom.wordpress.com]]
#lang pt
#pubdate 2025-08-20T14:43:01
#topics Luta de Classes, Alimentação, Agricultura Insurgente, Ultraprocessados, Comida é Política, Alimentação Consciente, Alimento é Direito
#notes por André Tunes @Centro de Análises Sistêmicas Anarco Comunista.
Ela não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.
Confesso que, entre a primeira mordida e o último suspiro, o prato virou tabuleiro de poder. O alimento deixou de ser sustento para se tornar dispositivo de controle: quem escolhe jejuar inscreve um gesto estético de resistência, enquanto quem jejua sem escolha encarna estatística sacrificada nos relatórios polidos da ONU e em campanhas filantrópicas de terno claro. Para essas agências humanitárias cristãs de fachada neoliberal, a fome tornou-se meta de desenvolvimento, número a ser reduzido em planilhas globais, espetáculo anual de conferências em que o corpo faminto serve de objeto de compaixão institucional, mas jamais de transformação real.
O que vale ali não é a comida, e sim a narrativa: apresentar progresso em percentuais para esconder o pacto silencioso com agronegócios e fundos multilaterais que mantêm a terra envenenada. Por que comemorar “avanços” se a miséria prossegue nas periferias invisíveis? A resposta se oculta em contratos amarrados que trocam sementes por dívidas e autonomia por programas de socialização da penúria. Entre uma foto de dignatários sorrindo e outra de cestas básicas etiquetadas, a fome se naturaliza como castigo inevitável, não como instrumento de dominação. E enquanto esse consórcio de salvação industrial ergue discursos de esperança, o Estado legitima sua função de mediador de caridade, loteando territórios e vidas num regime de escassez programada. Eis o paradoxo cruel: jejuar pode ser ato de liberdade, mas a fome exigida pelo sistema é aparelho de opressão.
Quem mastiga carne viva no Instagram repete, sem saber, o mantra da submissão; quem guarda silêncio diante das migalhas distribuídas assina contrato tácito com o mesmo mecanismo que fatura com a morte lenta. A refeição se transformou em rito de passagem entre a promessa de salvação e a punição enlatada. Quem recusa o banquete oficial abre fissura no discurso monocórdio de quem administração a miséria com selo de soluções globais.
A indústria de sabores manipula paladares como maestro de orquestra distorcida. Cada grão de açúcar, cada gota de óleo saturado, chega calibrado em laboratório para induzir vício crônico em escala massiva. Algoritmos vasculham dados de cliques e selfies fit para descobrir quando o consumidor está mais vulnerável ao chamado do ponto de prazer fabricado. As campanhas de marketing pintam as embalagens com promessas de saúde – “fortificado com vitaminas”, “sem gordura trans” – enquanto as mesmas empresas financiam think tanks que replicam esses discursos em relatórios da ONU e de fundações cristãs filantrópicas. Esses documentos vêm ilustrados por gráficos elegantes, exibindo percentuais de “redução da fome” que coincidem estritamente com a assinatura de contratos para fornecimento de sementes caras e insumos agrícolas controlados pelas próprias corporações transnacionais.
O Estado assume o papel de mediador técnico fingindo imparcialidade, mas segrega terras e populações para manter monoculturas lucrativas. O discurso humanitário rende medalhas e investimentos, nunca direitos reais.
A retórica de desenvolvimento sustentável reveste a lógica predatória de verniz verde e rende cliques de aprovação em redes sociais. Enquanto isso, a fome real permanece escondida sob pacotes de “fortificado com vitaminas” em prateleiras de supermercados. A dependência química do ultraprocessado gera doenças como diabetes tipo 2 e hipertensão, transformando corpos em laboratórios vivos de pesquisa para as empresas farmacêuticas que depois patrocinam mais programas de caridade.
A miragem da erradicação global da fome é sustentada pelo mesmo sistema que lucra com a doença crônica. É impossível separar quem produz o veneno de quem vende o antídoto. A cada dólar investido em campanhas de impacto social, bilhões circulam em bolsas de valores agrárias e em fusões de gigantes do agronegócio. Não há fim para essa engrenagem enquanto estiver calcada na lógica do lucro infinito. A crítica sistêmica mostra que o discurso de salvação alimenta a máquina de destruição metabólica. Em vez de redistribuir terra e conhecimento, promovem-se cursos rápidos sobre alimentação saudável financiados por anunciantes de ultraprocessados. A multidão se distrai aplaudindo memes que vendem uma falsa tolerância ao mercado enquanto ignora a chantagem geopolítica que determina o preço do quilo de arroz. Tecnocratas de esquerda falam em políticas de renda mínima sem tocar no cerne da apropriação da terra. É espetáculo de hipocrisia. E sob o verniz de soluções compactas continuam enchendo bolsos de acionistas e vazios os estômagos dos invisíveis.
Os grandes relatórios de combate à fome são um show de mágica para distração das massas. Gráficos coloridos e metas que soam como promessas milagrosas escondem o jogo real: acordos escusos com corporações que vendem sementes como ouro, tecnologias que aprisionam quem planta e um cardápio de soluções engessadas embaladas em marketing barato. Esse humanitarismo de fachada engorda ego e limpa consciências, enquanto populações inteiras se tornam peça num tabuleiro que define quem come e quem morre. A fome virou problema técnico, um “defeito de mercado” que se resolve com dólares e boa vontade, enquanto o sistema que a produz segue firme, invisível, sustentando a exploração global. No teatro dos interesses geopolíticos, o sofrimento é mercadoria e a ajuda humanitária, um controle de danos que mantém as hierarquias intactas. Falar em “guerra contra a fome” é rir na cara da história, enquanto a fome industrializada permanece um negócio lucrativo, um mecanismo para legitimar o Estado e o mercado como gerentes da escassez. O moralismo cristão com verniz progressista não passa de cortina de fumaça para criminalizar a insurgência e naturalizar a privação. No fim das contas, quem sustenta essa engrenagem suja são as corporações e os governos que sangram os territórios esquecidos, enquanto a mídia repete o mantra da caridade e da esperança vazia.
Contra esse sistema podre, a resistência vive nas bordas. As comunidades insurgentes desafiam a burocracia estatal e as tentações de cooptação progressista com ações concretas: hortas que brotam na cidade, feiras que fogem do lucro, trocas que não conhecem intermediários, redes que resistem à lógica da escassez fabricada. São práticas que reconfiguram o território do alimento, fazendo do cultivo e do compartilhamento um ato político e de autonomia. Mas resistir não é tarefa fácil. O Estado quer transformar essas experiências em vitrines, em modelos domesticados para aprovação pública, enquanto a cooptação tenta desarmar sua potência subversiva com regulamentações e discursos vazios de emancipação. A luta é dupla: garantir que a insurgência permaneça autônoma e, ao mesmo tempo, desmontar a máscara dos falsos progressismos que vendem controle como liberdade. Nessa disputa silenciosa, as comunidades tecem redes invisíveis, resistem ao cerco e apontam para uma radicalidade prática que desmonta os alicerces do poder. Solidariedade real é arma que desmonta sistemas, mesmo quando invisível aos olhos do poder.
Encarar o jejum voluntário ressoa como um chamado ancestral que atravessa as eras, despertando memórias profundas alojadas em cada célula. O corpo guarda em seu arquivo vivo um legado que antecede as primeiras plantações, uma resiliência moldada por ciclos selvagens de abundância e escassez, muito antes da domesticação da terra transformar a relação com o alimento[1]. Essa fome silenciosa, escolhida e controlada, contrasta brutalmente com o ruído ensurdecedor da fome imposta pela ordem econômica vigente, que se apresenta não como falta natural, mas como um mecanismo de controle estruturado. Não é apenas o vazio do estômago que mobiliza; é o despertar de processos bioquímicos que se recusam a sucumbir à austeridade alimentar programada por sistemas que lucram com a privação. Em vez de desespero, o jejum voluntário inaugura uma insurgência interna, uma reorganização metabólica que desafia protocolos médicos tradicionais, que insistem em patologizar a restrição. Essa resistência não é fenômeno isolado ou fruto do acaso; é uma resposta histórica inscrita no DNA, uma recusa silenciosa à submissão nutricional e à mercantilização do corpo.
O organismo, longe de se render, se adapta e resiste, ativando rotas de energia alternativas e otimizando recursos internos numa dança coordenada entre célula e sistema, em um movimento que questiona as bases do consumo compulsivo. Essa tensão entre silêncio e ruído revela a complexidade da luta pela soberania corporal, evidenciando que o jejum não é um simples gesto de fome, mas um manifesto bioquímico contra a fome fabricada e programada. O corpo se ergue como arquivo vivo da resistência, um testemunho de que a austeridade alimentar imposta não é destino inevitável, mas um campo de batalha onde a memória genética convoca à insurgência contra a lógica da escassez imposta. Essa genealogia do jejum ancestral emerge não como nostalgia, mas como ferramenta para reconstruir vínculos com a autonomia biológica e social.
A fome encenada como tragédia humana na vitrine da compaixão internacional esconde a verdade que a indústria do espetáculo não quer revelar. Organismos globais e fundações de fachada humanista agitam bandeiras de combate à escassez, mas seu papel real é sustentar um sistema onde a fome é estratégia e moeda de troca. Entre contratos de sementes caras e programas que “reduzem” a miséria só no papel, a fome opera como dispositivo de controle social e econômico, mais eficaz que qualquer exército ou polícia. A suposta “falha de mercado” não passa de cortina de fumaça para a perpetuação do domínio sobre corpos e territórios, onde o alimento se torna ferramenta de submissão em escala global. A esquerda, com sua retórica vazia e aparatos burocráticos, não desafia esse cenário; pelo contrário, reforça as estruturas que mantém os famintos longe da mesa e os excluídos longe do poder. O Estado funciona como gestor dessa pobreza programada, transformando a escassez em espetáculo a ser gerenciado e controlado, e os partidos de esquerda convertem-se em agentes que negociam migalhas enquanto ignoram a fome estrutural que devora vidas silenciosamente[2].
Denunciar a fome como simples acidente econômico é recusar ver a fome como mecanismo ativo da dominação, uma peça central do projeto que mantém as engrenagens do lucro girando à custa da miséria. Nesse palco onde a fome é ator e plateia, qualquer discurso humanitário que não desmonte essa arquitetura não passa de encenação para legitimar a ordem vigente. A fome é método e mensagem, forma cruel de poder que exige resistência radical e reorganização das bases que sustentam esse sistema insaciável.
O contraste entre o jejum voluntário e a inanição imposta não está apenas na escolha, mas na estrutura que a torna possível. Há quem controle sua alimentação por aplicativos caros e “nutricionistas comportamentais”, enquanto do outro lado da cerca invisível se mastiga vento, sem direito ao próprio silêncio digestivo. O jejum virou produto de prateleira, embrulhado em linguagem higienizada de bem-estar e performance, enquanto a fome real é tratada como ruído incômodo que atrapalha a narrativa positiva das nações emergentes. É fácil chamar de purificação o que se faz com água alcalina e cápsulas importadas, mas que nome se dá à ausência total de acesso ao básico? Quando o autocontrole alimentar vira símbolo de superioridade moral, a lógica da escassez ganha um verniz de virtude, e o abismo entre quem jejua por saúde e quem não come por exclusão se escancara com cinismo.
O corpo que controla sua fome por livre escolha é celebrado; o corpo que desaparece nos becos por falta de comida é estatística. A diferença não está no estômago vazio, mas no sistema que decide quem pode transformá-lo em estética e quem será engolido por ele. Enquanto se financia clínicas de detox, se criminaliza o furto de um pacote de arroz. A inanição como punição e o jejum como lifestyle são duas faces da mesma moeda que gira nas mãos de quem comanda as máquinas de distribuição, propaganda e repressão. A fome, aqui, não é ausência de comida, mas excesso de controle, e o jejum, quando cooptado pela lógica de mercado, perde sua força de ruptura e se torna apenas mais um espetáculo domesticado. Quem controla o próprio prato, hoje, não está apenas decidindo sobre o corpo, mas dizendo em voz alta quem tem o direito de escolher e quem deve continuar engolindo a poeira do asfalto.
O corpo privado de comida por decisão estratégica não se entrega à falência. Ao contrário do que dizem os discursos médicos formatados para manter o metabolismo sob vigilância constante, a ausência temporária de alimento aciona processos de reorganização interna que não dependem de supervisão técnica nem de receitas industriais. O jejum intermitente, fora do contexto higienizado das academias e dos aplicativos de bem-estar, opera como uma forma de reconfiguração autônoma, onde as células abandonam a passividade funcional e assumem um comportamento de improviso adaptativo. Não há crise, há resposta. A escassez passageira não fragiliza, ela convoca uma distribuição mais precisa de energia, reciclagem eficiente de resíduos internos e ativação de processos bioquímicos que ignoram hierarquias laboratoriais. O organismo não trava por falta de glicose. Ele pensa. Redesenha. Reativa circuitos que estavam anestesiados pelo fluxo constante de excesso[3].
Nesse estado de suspensão, o corpo se liberta, ainda que momentaneamente, do monopólio do consumo. A digestão contínua, imposta como norma, dá lugar a um tipo de gestão interna que expõe o absurdo de termos sido convencidos de que comer o tempo todo é sinal de saúde. O sistema alimentar contemporâneo, ao nos forçar a mastigar de três em três horas, não nutre: ele distrai, entorpece e sabota qualquer forma de escuta corporal profunda. O jejum intermitente rasga essa narrativa, não como fórmula de emagrecimento, mas como recusa prática ao condicionamento bioindustrial. Quando se interrompe a ingestão, o corpo revela que não precisa de consultorias farmacêuticas para se equilibrar. Ele rompe o ciclo de dependência e inicia uma reconfiguração que atinge não só a fisiologia, mas a própria política do viver. A recusa temporária do alimento não é fragilidade, é dissidência. É o momento em que o metabolismo para de obedecer à rotina do supermercado e começa a responder à lógica de um sistema que já sabia viver sem abundância plastificada.
Essa reorganização interna, ao contrário da propaganda institucional que nos infantiliza, não depende de protocolos nem de regimes certificados por selos verdes. O corpo, ao suspender a entrada externa, aciona suas reservas com precisão, sem pânico, sem colapso. Isso revela algo incômodo para o modelo atual de gestão dos corpos: a possibilidade de autossuficiência. Não como ideologia individualista, mas como instância biológica que desafia o modelo econômico que se alimenta do consumo permanente. A quebra do fluxo alimentar imposto pela indústria é também a quebra da lógica de servidão contínua. Quando o corpo aprende a se reorganizar sem alimento externo por algumas horas, ele começa a lembrar que sua existência não precisa ser inteiramente tutelada. E essa lembrança, por menor que pareça, é insuportável para um sistema que depende da vigilância contínua da fome domesticada.
O mito do alimento neutro é uma farsa tão antiga quanto as prateleiras das grandes redes de supermercado. Cada mordida carrega uma carga política que vai além da composição química, adentrando territórios de poder, controle e submissão. Não existe comida inocente quando o processo que a trouxe até a mesa está imerso em estruturas que privatizam terras, exploram trabalhadores e envenenam ecossistemas. As chamadas “lancheiras industriais” são embalagens de um consenso tóxico: a ideia de que o alimento pode ser apenas “nutrição”, desconectado da política que o atravessa. Nutricionistas transformados em porta-vozes do mercado aconselham a consumir versões light, enriquecidas e fortificadas, enquanto o bisturi farmacológico se mantém pronto para intervir nos corpos adoecidos pelos mesmos padrões alimentares que eles incentivam[4].
A dieta, nesse sentido, torna-se uma extensão da biopolítica que gere não só o que se come, mas quem pode comer, quando e como. O cenário não é de escolha livre, mas de condicionamento cruel, onde o cardápio é definido por lógicas que nada têm de naturais. O alimento, longe de ser neutro, é campo de batalha onde se travam disputas invisíveis – entre saúde e doença, autonomia e dependência, soberania corporal e controle mercadológico. Qualquer discurso que trate a comida como um objeto apolítico falha em capturar essa dimensão essencial. A neutralidade alimentar não passa de ideologia para disfarçar interesses econômicos, uma narrativa conveniente para silenciar a urgência de transformar as relações entre produção, distribuição e consumo. Desconstruir essa mentira exige mais do que receitas e tabelas nutricionais; exige abrir os olhos para as conexões profundas entre o que se ingere e o sistema que regula nossas vidas. A luta pelo alimento, assim, não é só por saciedade, mas por reconhecimento da comida enquanto território político, memória coletiva e espaço de resistência contra a mercantilização total do corpo.
A realidade das doenças crônicas modernas é o reflexo direto do ultraprocessado – um campo minado químico onde o corpo luta diariamente contra inimigos invisíveis e sintetizados em laboratórios que priorizam o lucro em detrimento da vida[5]. Não se trata apenas de escolhas individuais ou falta de educação alimentar, mas de uma guerra silenciosa travada em cada célula. O corpo, exposto a aditivos, conservantes, corantes e moléculas projetadas para maximizar o sabor e a vida útil, torna-se território de conflito entre o artificial e o orgânico. Doenças metabólicas, inflamatórias e neurodegenerativas são sintomas desse ataque constante. A enfermidade se insinua não apenas no tecido, mas na própria infraestrutura viva que conecta o organismo ao ambiente, mostrando como o modelo estatal-capitalista-industrializado contamina tanto o interior quanto o exterior. Cada consumo desenfreado representa mais do que excesso calórico: é uma adesão tácita à lógica da produção em massa que vê o corpo como depósito descartável.
A linguagem da indústria esconde a toxicidade atrás de rótulos e campanhas que prometem saúde, enquanto aceleram a cronificação de males silenciosos. Não se pode mais separar a alimentação da doença sem questionar o sistema que produz, distribui e regula o que chega ao prato. As moléculas sintéticas invadem as redes biológicas, fragmentam a harmonia interna e instauram uma guerra química em escala microscópica. É uma batalha desigual, pois o organismo é forçado a resistir sem trégua a um fluxo de agressões contínuas, enquanto o mercado lucra com a dependência farmacológica resultante. Essa condição cria um ciclo vicioso onde a doença é efeito e causa, mercadoria e prisão. O corpo adoecido revela a face oculta da modernidade: a industrialização que promete progresso e entrega destruição em doses controladas. Essa micropolítica da alimentação expõe que a luta contra o ultraprocessado é, na verdade, um combate à própria lógica do capital que se alimenta da deterioração do corpo para perpetuar seu ciclo insaciável. É um campo de batalha onde a resistência exige consciência, solidariedade e ruptura radical com os modos convencionais de produção e consumo que destroem as bases da vida.
A dimensão comunitária do alimento escapa à lógica individualista que tenta aprisionar cada escolha na jaula do consumo solitário. Plantar uma horta na calçada, trocar sementes entre vizinhos ou organizar redes locais de produção são gestos que se desdobram em práticas insurgentes contra o circuito fechado do mercado globalizado. Nessas ações cotidianas, o alimento deixa de ser mercadoria para virar vínculo – uma infraestrutura viva que atravessa laços de solidariedade e autonomia. Não é romantismo bucólico nem nostalgia, mas a tentativa concreta de retomar o controle sobre os próprios meios de existência, desafiando a hegemonia das cadeias industriais que engolem comunidades inteiras. A construção desses circuitos curtos é um ato político, mesmo quando não declarado, porque disputa território com um sistema que entende a comida apenas como fonte de lucro e controle. Na rotina desses espaços de resistência, o alimento ressignifica seu papel, passando a ser também memória e gesto de cuidado coletivo. A potência desse movimento está na capacidade de gerar autonomia material e cultural, reforçando redes que escapam à lógica do consumo massificado e da dependência econômica.
Assim, a dimensão comunitária do alimento se apresenta como um contraponto às dinâmicas destrutivas do agronegócio e das corporações globais, abrindo fendas para que novas formas de sociabilidade se manifestem. É aí que a comida se torna campo de luta e espaço de criação, onde o simples ato de plantar ou compartilhar torna-se insurgência contra a lógica da mercadoria e da dominação sistêmica. Essa resistência silenciosa produz efeitos que reverberam além dos muros da horta, alimentando não só corpos, mas também a possibilidade de outras formas de existência, em que o alimento se entrelace com o direito à vida digna e ao território.
A ideia de “liberdade de escolha alimentar” é, na prática, uma encenação cuidadosamente montada que mascara uma rede intrincada de vigilância e controle. Nas prateleiras das lojas, expõem-se opções que parecem diversas, mas são formatos calculados para encaixar-se perfeitamente nos algoritmos que mapeiam desejos e hábitos. Essa liberdade é uma ilusão reforçada por assinaturas digitais que acompanham cada compra, por big data que determina preferências e por agronegócios transnacionais que monopolizam a produção global. O consumidor, antes sujeito autônomo, transforma-se em objeto de monitoramento constante – uma proxy de consumo manipulada por sistemas invisíveis que não só definem o que pode comer, mas como deve pensar, sentir e agir em relação ao alimento. A vigilância dietética não fica restrita ao ato de comprar, ela se expande para a vida cotidiana, por meio de aplicativos, publicidade segmentada e políticas públicas que favorecem grandes corporações em detrimento da diversidade alimentar. O que se apresenta como escolha, na verdade, é uma cadeia de condicionamentos que limita a autonomia verdadeira. O controle da alimentação torna-se, assim, parte de uma infraestrutura sistêmica que regula corpos e mentes – um dispositivo de poder que atravessa o biológico e o social. Esse cenário revela a face tecnológica da dominação contemporânea, onde a comida deixa de ser apenas sustento para virar elemento de subjugação algorítmica.
Desconstruir essa farsa exige reconhecer que a soberania alimentar não pode ser delegada a sistemas que monetizam desejos e exploram vulnerabilidades. A resistência passa pela construção de espaços onde a alimentação se liberte do cerco digital, onde o ato de comer seja reapropriado como gesto de autonomia, solidariedade e insurgência contra a indústria da vigilância. Essa ruptura com a falsa liberdade é essencial para reconectar o indivíduo ao seu corpo, ao território e às redes vivas que sustentam a vida fora das grades do mercado.
O ato de comer, muitas vezes banalizado como mero processo fisiológico, é, na verdade, um ritual carregado de poder e dominação. Cada garfada, cada mesa posta, esconde um teatro onde se reproduzem relações sociais e hierarquias invisíveis. O banquete não é só celebração, mas cena onde se naturalizam desigualdades, quem come e o que come, quem é convidado e quem fica de fora. A cultura alimentar funciona como um mecanismo silencioso que legitima a exploração ao vestir a fome com roupas de tradição, festa ou normalidade. Esse jogo invisível se mantém porque poucos param para desconstruir o significado político do alimento nas suas vidas cotidianas. Revelar essa dimensão é um convite para enxergar além do paladar, questionar o que se consome, como e por quem.
O alimento deixa de ser neutro e vira parte do aparato de dominação, inscrevendo corpos numa cadeia de submissão que começa na terra e atravessa o sistema alimentar até chegar à mesa. Essa reflexão abre espaço para pensar que resistência pode começar não só na produção, mas no ato mesmo de comer, recusando os rituais impostos e reconfigurando a relação com o corpo e o coletivo. A mesa pode virar palco de insurgência quando reconhece a opressão que a sustenta e rompe com as regras do jogo que moldam os apetites e as exclusões. O que está em disputa é o direito de decidir o que se ingere e como isso interfere nas relações sociais, na saúde e na autonomia. Essa luta silenciosa, porém fundamental, é parte do projeto mais amplo de reconstruir vínculos políticos e afetivos com o alimento, rompendo com a naturalização da fome e da exploração. Comer, assim, é ato político, uma centelha de autonomia que pode tanto reforçar quanto desafiar as estruturas que nos governam.
A sociedade funciona como um organismo vasto e complexo, onde as dinâmicas políticas, econômicas e culturais se entrelaçam em processos de metabolização simbiótica e conflituosa. Esse “aparelho digestivo coletivo” absorve problemas e contradições, os transforma e devolve resíduos ideológicos que moldam comportamentos, crenças e práticas cotidianas. O sistema alimentar não é apenas um conjunto de processos técnicos ou econômicos, mas um fluxo contínuo de informações e energias que afeta a maneira como os corpos e as comunidades se organizam e se reproduzem. Essa visão ressalta que as crises da fome e da nutrição não podem ser compreendidas isoladamente, pois estão imbricadas na acumulação capitalista, que extrai valor não só da terra e do trabalho, mas também da própria vida.
A mercantilização do alimento revela um padrão onde a escassez se produz e se mantém para garantir o controle das massas e a perpetuação das desigualdades. Cada pedaço de comida é atravessado por essa lógica, funcionando como um ponto de convergência entre biologia e política, onde a dominação encontra um território fértil para se reproduzir. O metabolismo social opera simultaneamente em níveis micro e macro, articulando práticas individuais e estruturas globais numa complexa rede de interdependências. É nessa malha que surgem as infraestruturas vivas da alimentação, capazes tanto de reforçar sistemas de opressão quanto de abrir fendas para possibilidades emancipatórias. Compreender essa dialética exige romper com a ideia de que a alimentação é um ato neutro, enxergando-a como espaço de luta onde emergem tensões entre controle e resistência, devastação e regeneração. A crítica que se propõe é, portanto, uma abordagem integrada que incorpora a dimensão material e simbólica do alimento, revelando o papel central do sistema alimentar na reprodução das relações de poder. A disputa pela soberania alimentar torna-se um ponto nodal na transformação social, pois desafia as formas de dominação que se instalam tanto no corpo quanto no território. Assim, o metabolismo coletivo é o palco onde se encena a luta pela vida em sua forma mais concreta e visceral, mostrando que a revolução do alimento não é apenas possível, mas urgente e necessária.
Pequenas revoluções cotidianas ganham fama e espaço nas redes, mas frequentemente se tornam espetáculos vazios se não tocam na raiz do problema. Plantar uma semente na calçada pode parecer um gesto poderoso, até que se veja a fábrica de agrotóxico a poucos quilômetros despejando veneno sobre a mesma terra. O contraste entre a ação simbólica e a estrutura real evidencia o limite das práticas isoladas quando não desafiam o sistema que as cerca. A resistência fragmentada sem articulação crítica não passa de um alívio momentâneo, uma distração confortável que mantém a ordem intocada. O ceticismo prático é necessário para evitar o escapismo ingênuo e o voluntarismo simplista que fingem que mudar hábitos individuais basta para desmontar um modelo predatório e excludente.
O desafio está em conectar esses gestos à crítica profunda das infraestruturas que sustentam a fome, a desigualdade e a dominação. Sem isso, plantar sementes vira ato estético, não político. Reconhecer que o sistema é multifacetado e resistente às mudanças superficiais é o primeiro passo para evitar a frustração e a captura cooptativa. É preciso fomentar redes de solidariedade que sejam capazes de atuar de forma coordenada e estratégica, potencializando o impacto das ações e criando espaços de autonomia real. Essa articulação não é simples nem rápida, exige ruptura com paradigmas de competição e isolamento, construindo em seu lugar formas de cooperação e cuidado mútuo. Assim, a insurgência alimentar deixa de ser ato individual para virar movimento coletivo, capaz de enfrentar a lógica do capital e da indústria que, diariamente, devasta corpos e territórios.
Mudar de fato exige compreender a complexidade do problema e agir com plena consciência dessa realidade, rompendo com o simbólico para enfrentar o que realmente sustenta o sistema.
Encarar o jejum voluntário como parte de uma insurgência orgânica é reconhecer que o corpo não é apenas uma máquina biológica, mas uma infraestrutura viva em constante diálogo com os sistemas que o atravessam. Essa comunicação vai além da superfície do consumo para habitar camadas profundas, onde bioquímica e política se entrelaçam numa dança que desafia o controle centralizado. As células recusam a passividade programada, ativando circuitos alternativos que refletem as dinâmicas de resistência que emergem em comunidades insurgentes e redes de cuidado autônomo. Não se trata apenas de sobreviver a uma janela sem alimento, mas de instaurar um microcosmo de auto-organização, onde o metabolismo interno espelha a complexidade dos sistemas sociais que buscam autonomia em meio ao cerco. Nesse entrelaçamento, o corpo torna-se campo de batalha e laboratório experimental, um organismo que, em sua plasticidade, subverte as hierarquias que querem domá-lo e enquadrá-lo em padrões previsíveis. Essa insurgência bioquímica reverbera na macroescala, convocando a uma reconcepção das relações sociais que transcendem o individual e apontam para uma rede de autonomia resistente às imposições do capital e do Estado. A vitalidade que pulsa na reorganização metabólica não é dissociada da resistência coletiva; ela é sua expressão microscópica, sua sinfonia interna. Assim, cada jejum não é ato isolado de privação, mas um gesto de rebeldia que desafia o sistema que quer domesticar não apenas o corpo, mas a própria vontade de autonomia. Essa resistência integral propõe um salto de complexidade, onde a saúde do organismo e a saúde das redes insurgentes se entrelaçam em uma nova arquitetura de luta e reconstrução.
Se o corpo insurgente reprogride seu metabolismo, por que não estender esse modelo à organização social? A dinâmica bioquímica que desafia o excesso revela uma proposta transformadora para além do jejum voluntário. Se células podem se auto-organizar sem depender de instruções externas, comunidades insurgentes também podem operar sem a tutela do Estado ou a lógica de mercado. Mas para essa transição acontecer, é preciso enfrentar a vigilância tecnológica que transforma cada passo alimentar em dado previsível.
Pense nos aplicativos que registram hábitos alimentares e compartilham essas informações com empresas de marketing. Pense nas assinaturas de refeições prontas que se transformam em armadilhas algorítmicas: o mínimo deslize vira pretexto para propaganda personalizada. Essa simbiose entre vigilância e consumo revela que não há liberdade quando a autonomia metabólica é substituída por controle de dados. A mesma engrenagem que mapeia o padrão de jejum para recomendar mais pacotes de suplementos serve para espremer a resistência das periferias, ajustando preços, limitando acesso a sementes livres e regulando o que pode ser plantado.
Enquanto isso a ONU e seus aliados elevam o discurso da liberdade alimentar mas se calam diante da privatização dos recursos genéticos, legitimada por regulações que criminalizam práticas tradicionais. Eles falam em segurança alimentar mas ignoram o controle geopolítico sobre a biopirataria das sementes. A hipocrisia floresce quando programas de combate à fome anunciam apoio à inovação verde sem tocar o monopólio transnacional que transforma agricultura em patente rentável.
Nesse cenário, a insurgência não pode se limitar à horta ou ao jejum. Precisa atacar o cerne do controle: as plataformas digitais que monitoram o que comemos, os acordos comerciais que restringem os direitos coletivos sobre biodiversidade, as certificações que rotulam solidariedade enquanto legitimam exclusão. Confrontar o sistema exige não apenas plantar a própria comida, mas sabotá-lo onde ele opera melhor. É saltar da microeconomia da escassez para a economia política dos algoritmos, recuperando a autonomia em qualquer escala. Essa é a fronteira real da luta alimentar, onde o corpo que jejua e a comunidade que planta se combinam para formar um bloco de resistência que opera de dentro e de fora das estruturas de poder.
A cultura alimentar, antes de ser sabor ou tradição, é um manual social codificado que dita comportamentos, define pertencimentos e estabelece hierarquias com mais eficácia que qualquer decreto. Comer é se inscrever num sistema. Desde o modo como o alimento é servido até o que é considerado apropriado para cada ocasião, o gesto de levar algo à boca carrega uma coreografia de classe, raça, gênero e obediência. Não há neutralidade possível quando cada prato vem temperado com poder. A gramática invisível das refeições transforma o ato de comer em ritual de conformidade. É nesse cenário que a crítica precisa se infiltrar como fermento.
Não se trata de demonizar o prazer alimentar, mas de revelar como ele é domesticado. O prazer, nesse contexto, é monitorado, regulado, higienizado. Ele deve vir acompanhado de culpa calórica ou ser redimido pelo selo “orgânico certificado”. O problema não está na comida, mas na lógica que a enforma. Restaurantes de elite oferecem pratos “simples e naturais” por valores obscenos, enquanto cozinhas populares, que ainda guardam saberes autênticos, são vistas como atraso. O sistema performa autenticidade enquanto extermina suas raízes. E o comensal contemporâneo, cativo de likes e filtros, se satisfaz em mastigar uma imagem de liberdade, sem perceber que a dieta que segue foi desenhada por agências de publicidade em conluio com conglomerados industriais.
É nesse ponto que insurgem brechas. As cozinhas coletivas nas periferias, as receitas que resistem à pasteurização da cultura, os saberes que escapam aos manuais de nutrição padronizados. Elas são insurgências sensoriais, não porque são exóticas ou folclóricas, mas porque desafiam a narrativa dominante de progresso alimentar. A panela coletiva, o mutirão culinário, a partilha do que foi plantado a poucas quadras de onde se come, tudo isso reativa circuitos de autonomia que não dependem de subsídios ou aprovação institucional.
Essas práticas, no entanto, sofrem cerco constante. A tentativa de catalogá-las, regulamentá-las ou capturá-las em políticas públicas ditas inclusivas é uma estratégia de domesticação. A crítica precisa manter-se vigilante: há um risco real de que a insurgência alimentar seja transformada em vitrine multicultural, anestesiando sua potência transformadora em nome de uma celebração cínica da diversidade. O que está em disputa não é o cardápio, mas a soberania. Quem decide o que se come, como se come e com quem se come? Essas perguntas não são gastronômicas, são políticas. E sua resposta define se o alimento será instrumento de submissão ou ferramenta de libertação. Comer em comum, cozinhar em conjunto e resistir em rede se torna, nesse cenário, não apenas possível, mas necessário. Porque a cultura alimentar é campo de luta, e as bocas que hoje se abrem para se alimentar também podem se abrir para denunciar, organizar e derrubar a mesa do banquete excludente.
A palavra “fome” é usada como se tivesse um único significado, mas nada poderia ser mais desonesto. A fome do jejum voluntário e a fome como projeto político-econômico compartilham um nome, mas são radicalmente opostas em natureza, contexto e agência. Uma é escolha, a outra é condenação. Uma é adaptativa, a outra destrutiva. A primeira emerge de uma recusa à compulsão alimentar imposta pela lógica da abundância industrializada; a segunda é produzida por essa mesma lógica, como instrumento de controle e chantagem. A confusão entre elas é proposital, alimentada por campanhas publicitárias, discursos humanitários e políticas públicas que preferem moralizar o vazio do estômago do que encarar sua raiz material. A fome do jejum voluntário é um gesto de autonomia, um enfrentamento biopolítico onde o organismo toma para si a gestão de seus ciclos e ritmos. É uma prática que, quando desconectada do narcisismo neoliberal e reinserida na luta coletiva, pode se tornar ferramenta anticapitalista, pois desmonta o vício da dependência industrial e do estímulo constante. Já a fome como projeto, aquela que se espalha pelos corpos pobres como epidemia silenciosa, não resulta de escassez natural, mas de engenharia social. Ela é mantida por dispositivos econômicos, políticos e tecnológicos que distribuem acesso à comida segundo critérios de lucro e dominação.
Essa fome não cura, não reorganiza, não purifica. Ela degrada, enfraquece, silencia e mata aos poucos. Em um mundo organizado pela obscenidade da desigualdade, a fome seletiva cumpre a função de manter populações domesticadas, desmobilizadas, fragmentadas em torno da carência. Enquanto alguns praticam jejum intermitente como ritual de performance otimizada, outros sucumbem à inanição estrutural porque foram considerados descartáveis. Essa dicotomia não é responsabilidade do corpo, mas do sistema que transformou a comida em privilégio. A diferença entre um e outro não é biológica, é política. Um é expressão de autonomia, o outro é imposição de servidão. Um é ferramenta de vida, o outro é arma de morte lenta. E reconhecer isso é o primeiro passo para entender quem se alimenta do vazio alheio.
O engano mais eficaz do sistema é fazer parecer que, uma vez resolvido o problema da fome calórica, o mundo enfim terá superado seu dilema alimentar. Como se distribuir arroz e óleo vegetal fosse suficiente para encerrar a guerra silenciosa travada dentro dos corpos. A realidade escancara outra coisa: mesmo que todos tenham acesso pleno à ingestão energética básica, a enfermidade continuará avançando caso o que se coma seja majoritariamente ultraprocessado. E essa é a armadilha moderna mais eficaz – confundir saciedade com nutrição, encher o estômago enquanto se esvazia o organismo. É um truque bioquímico, um sequestro metabólico promovido por uma indústria que domina paladares, comportamentos e culturas. Em outras palavras: não basta não passar fome, é preciso parar de se envenenar. Não se trata de retórica alarmista, mas de diagnósticos constantes, visíveis em cada esquina, em cada corpo infantil com sobrepeso e anemia, em cada idoso inflamado e medicado até os ossos.
A fome tradicional, visível e aguda, cede lugar a uma fome camuflada, crônica e inflamatória. O corpo pode consumir três mil calorias por dia e ainda estar em colapso, exibindo sintomas de desnutrição funcional, microbiota devastada, ossos frágeis, insulina em guerra com o fígado, cérebro em declínio precoce. É o retrato da abundância degenerativa. Porque o problema não é apenas comer, é o que, como, por que e com quem se come. Os alimentos ultraprocessados, onde embalagens vistosas contendo o espectro zombeteiro da comida são desenhados por algoritmos de sabor, manipulados por laboratórios que otimizam o vício palatável e barateiam o custo da degradação. Sacrifica-se o alimento real para produzir um composto que estimula e engana, mas não nutre. O metabolismo não reconhece emulsificantes, aromatizantes ou óleos refinados como parte de sua história evolutiva. Ele entra em curto-circuito, reativo e inflamado, tentando decifrar o veneno com que foi instruído a conviver.
E não se trata de exagero metafórico. O paradoxo da fome por excesso é visível em corpos obesos e anêmicos, inflados e desvitalizados, encurralados em uma dieta que preenche mas não sustenta. É a transição de uma fome que mata rápido para uma fome que mata devagar. Uma transição tão silenciosa quanto cruel. Porque o sistema aprendeu a lucrar com ambas. A fome calórica gera comoção e doações; a fome metabólica gera consumidores vitalícios de suplementos, medicamentos e terapias. Ambas convergem no mesmo eixo: o alimento convertido em produto, o paladar colonizado, a autonomia alimentar substituída por pacotes, pontos de fidelidade e delivery. Vence quem vende a ilusão de nutrição, enquanto o organismo apodrece entre refeições. O ultraprocessado não é comida é um contrato de degeneração parcelada.
Nesse cenário, a utopia de “zerar a fome” torna-se mais um slogan publicitário do que uma proposta de emancipação alimentar. A erradicação da fome calórica sem a destruição do sistema alimentar industrializado é apenas a substituição de uma necropolítica evidente por uma biopolítica degenerativa. Não basta dar comida, é preciso descolonizar o gosto, desmercantilizar o prato, reaprender o que é alimento e reeducar o corpo para a autonomia nutricional. Isso exige um salto sistêmico: da lógica do estômago cheio para a lógica da vitalidade. A primeira é eficiente para manter a máquina funcionando; a segunda é inaceitável para um modelo que precisa de gente doente, exausta e dependente. Porque onde há corpos autônomos, há menos espaço para mercados que vendem a cura dos sintomas que eles mesmos cultivam[6].
Portanto, o problema da fome não é a ausência de comida, mas a presença organizada de veneno. A fome verdadeira não é apenas calórica, é simbólica, é cultural, é política. E a libertação só virá quando se reconhecer que o prato não é apenas um espelho do mercado, mas um campo de batalha onde se decide o futuro do corpo e da coletividade. Alimentar-se, nesse contexto, não é sobrevivência é insurgência bioquímica. Parar de alimentar a morte é, hoje, o gesto mais radical de vida.
O que está em jogo não é apenas o cardápio, mas o território — e, mais profundamente ainda, o metabolismo do território. A comida, ao ser transformada em mercadoria, arrasta consigo a terra, a água, o clima, os saberes, os ciclos e os corpos. Quando se fala em desmercantilização do alimento, não se fala apenas em preços justos ou acesso universal, mas em colapso da própria lógica que organiza a escassez para gerar lucro. Um sistema que transforma biodiversidade em commodities, culturas alimentares em “nichos gourmet” e a fome em “oportunidade de investimento social” não pode ser reformado: precisa ser desmontado em sua engenharia mais íntima. E isso não será feito por conselhos de segurança alimentar, ONGs com logotipo colorido ou plataformas progressistas que pedem comida por aplicativo enquanto citam Paulo Freire no Twitter. Será feito nas frestas: na insubordinação dos quintais, nas cozinhas clandestinas, nas feiras sem CNPJ, nos circuitos sem rastreabilidade institucional. A comida, para ser livre, precisa escapar da vigilância, do código de barras e da lógica de compliance. Precisa voltar a ser relação, não produto[7].
Essa desmercantilização radical implica em um reposicionamento total do papel do alimento. De insumo contabilizado em planilhas para vínculo entre corpos e territórios. De nutriente fragmentado em laboratório para organismo inteiro em simbiose com o ambiente. A autonomia alimentar não se alcança com políticas de incentivo a hortas escolares, nem com feiras semanais patrocinadas por bancos éticos. Alcança-se com recusa ativa à intermediação institucional. Alcança-se quando comunidades decidem plantar o que não dá lucro, colher sem escala, cozinhar sem cronograma, distribuir sem margem, comer sem relógio. É nesses gestos que o sistema treme. Porque um prato livre é uma recusa à chantagem da sobrevivência, é um grito contra a governabilidade dos estômagos. O capitalismo não teme quem discursa sobre reforma agrária, mas quem distribui banana fora da lógica do imposto e do código tributário. O Estado não se apavora com propostas de agricultura regenerativa em PDF institucional, mas com mutirões que não pedem permissão, não seguem o manual e ainda se alimentam melhor que o refeitório municipal.
E talvez seja por isso que todo projeto realmente autônomo de alimentação sofre a tentativa de ser absorvido, catalogado, certificado, neutralizado. A insurgência alimentar, quando rompe com a estética da “boa iniciativa” e se torna prática desobediente, vira ameaça à governança. Por isso a fiscalização cresce, os editais se tornam mais exigentes, os incentivos pedem contrapartidas, a narrativa do “empreendedor social” substitui o vocabulário da coletividade. Porque a comida livre não cabe num sistema que precisa prever, classificar, gerir. Ela flui, escapa, contamina. E isso é perigoso. Porque onde há liberdade alimentar, há memória do comum. Onde há cozinha sem patrão, há gesto de desobediência. Onde há partilha sem protocolo, há potência anticapitalista que o algoritmo não captura e a legislação não digere. É nesse território metabólico que se plantam as sementes do indesejável: autonomia, cuidado e insubordinação.
Essa insurgência que brota no território metabólico, marcada pela autonomia e pelo cuidado insubmisso, revela uma conexão fundamental entre o corpo e a rede social que o circunda, entre o que acontece nas células e nas relações cotidianas. O corpo não é apenas um objeto biológico, uma máquina de processos químicos isolados, mas um sistema complexo, adaptativo, onde a bioquímica dialoga e se entrelaça com as dinâmicas sociais. Quando o organismo responde ao jejum, por exemplo, ativando autofagia, reorganizando sua energia e desmontando resíduos internos, não está apenas realizando uma operação interna: está praticando um gesto de resistência que ecoa nas redes de solidariedade e na construção de autonomia coletiva. Essa resposta metabólica é uma metáfora viva e prática do que se passa em comunidades insurgentes que se recusam a ser reduzidas a unidades de consumo ou produtivas da economia capitalista. A autofagia celular, que desmonta o que é inútil para gerar novo funcionamento, espelha a dinâmica social da desobediência que desmonta estruturas opressoras para abrir caminho a formas mais saudáveis de sociabilidade e cuidado mútuo.
Por isso, compreender o corpo como infraestrutura viva e autorregulada é reconhecer que a insurgência alimentar não é só uma luta contra a fome material, mas uma contestação radical contra os sistemas que querem padronizar, domar e fragmentar tanto o metabolismo quanto as redes sociais. A reorganização metabólica do organismo e a construção de comunidades autônomas são processos emergentes que se alimentam mutuamente, uma prática integral de resistência e reconfiguração do comum que desafia o controle centralizado. A complexidade dessas redes, onde o micro e o macro se entrelaçam, precisa ser capturada não por discursos abstratos, mas por análises que reflitam as nuances dos sistemas vivos e sociais, suas interdependências e potências. Para além do que se come, importa como e por quem se decide comer. O corpo insurgente e a comunidade insurgente são, portanto, faces da mesma luta contra a lógica da escassez fabricada e do controle capitalista sobre a vida. Essa articulação entre o biológico e o social é o que dá força à insurgência alimentar como prática política, gesto de autonomia e construção de futuros que escapam ao domínio.
Em um mundo onde a comida é mercadoria, o corpo adoecido e a cultura depauperada são sintomas de uma dominação sistêmica que precisa ser combatida em múltiplas frentes simultaneamente. Não basta apenas reverter a fome quantitativa, é preciso recuperar a qualidade da alimentação e da vida, redimensionando a relação entre corpo, ambiente e sociedade. Isso implica pensar a insurgência alimentar como uma prática que se dá nos interstícios da governança, onde se inventam modos de existir e cuidar que não se submetem à lógica do mercado ou ao controle estatal. É essa capacidade de invenção autônoma que desafia o padrão hegemônico, que resiste à captura progressista e que constrói redes de cuidado e afeto como alternativa política concreta. A resistência metabólica, portanto, é também uma insurgência cultural que questiona os valores, hábitos e rituais que moldam nossas práticas alimentares e, por extensão, nossas formas de sociabilidade.
Por fim, essa conexão entre corpo e sociedade evidencia o alcance profundo da dominação capitalista que atravessa não apenas as relações econômicas, mas os processos biológicos, culturais e simbólicos. O gesto simples do jejum voluntário adquire assim um significado que transcende a saúde individual para se tornar uma metáfora potente da capacidade de autogestão e resistência coletiva. É na plasticidade metabólica que se espelha a plasticidade social necessária para imaginar e construir outras formas de existência que não sejam submetidas ao controle e à exploração. Essa consciência integrada desafia a fragmentação imposta pelos sistemas de poder e inaugura uma ética emergente baseada no cuidado mútuo, na autonomia e na cooperação, valores que se entrelaçam para tecer uma trama insurgente capaz de resistir e transformar. Essa é a potência escondida no corpo insurgente, essa é a força que alimenta a insurgência alimentar que não se resigna nem se domestica.
Desde que ficou claro que a insurgência metabólica é a fagulha do comum, instituições como ONU e fundações neoliberais cristãs intensificam seu show de benevolência para abafar qualquer ruptura genuína. O programa Purchase for Progress, por exemplo, promete acesso a mercados para pequenos agricultores, mas seu relatório final mostra que apenas cerca de 1 % dos contratos públicos efetivamente beneficia essas bases, deixando o grosso dos recursos nas mãos de grandes players como Bayer e grupos associados à Gates Foundation[8]. Já o escândalo do Oil‑for‑Food expôs claramente a cumplicidade institucional: a AWB pagou propinas para extrair trigo do Iraque, com a ONU fazendo vista grossa[9]. Enquanto isso, no Fórum Mundial da Alimentação, pequenos produtores saíram em protesto contra o discurso dominante que define a fome como mercado e os “beneficiários” como consumidores a serem integrados, não como sujeitos de autonomia. E quando a WFP distribui alimentos na Etiópia, ONGs locais mostram que parte dessa comida acaba sendo vendida por milícias, transformando ajuda internacional em subsídio para redes informais de poder[10].
No Brasil, o Fome Zero e o Bolsa Família (já sob gestão PT) reduziram fome extrema e pobreza, mas trouxeram também a expansão do consumo de ultraprocessados entre beneficiários, mesmo se a participação destes não tenha aumentado proporcionalmente o gasto em produtos industrializados, dados sugerem que o programa favoreceram redes consolidadas de distribuição[11]. Esse processo desembocou numa dependência de pacotes de ajuda, rodando o ciclo da caridade sem tocar na infraestrutura agrário-industrial. A interrupção de políticas como CONSEA, PNAE e PAA sob Temer e Bolsonaro levou cerca de 33 milhões de brasileiros de volta à insegurança alimentar, e a “retomada” em 2023 manteve uma lógica assistencialista sem questionar o sistema de comida industrializada.
Se o PT e a esquerda se apresentam como paladinos da redistribuição, na prática fomentam selos, certificados e pacotes de microfinanciamento que endossam grandes redes produtivas enquanto pequenas iniciativas comunitárias perdem visibilidade e autonomia, engessadas por compliance e burocracia. A retórica que enaltece food trucks, hortas escolares via edital e certificados de “empreendedor social” substitui a insurgência pela boa imagem. Ao rastrear e apoiar essas iniciativas, o Estado captura sua energia transformadora e acorrenta a autonomia a critérios de performance.
Sob esse verniz humanitário, comunidades insurgentes são invisibilizadas, esvaziadas e substituídas por estatísticas seguras, linhas de crédito controladas e consultorias corporativas que as empurram para o circuito ultraprocessado. Esse espetáculo revela o funcionamento da governança global, não para emancipar, mas para manter o controle. O desafio agora é deslocar o foco: não na obtenção de aval, mas na ruptura com ele. Soberania alimentar de verdade nasce fora dos holofotes, nas redes insurgentes e nos corpos insurgentes que insistem em respirar sem filtro.
Enquanto os holofotes do Estado e das grandes instituições se voltam para modelos de governança que confundem visibilidade com transformação, no terreno real a insurgência alimentar se faz nas margens, onde a burocracia estatal mal alcança e as tentativas de captura progressista perdem força diante da força bruta da prática cotidiana. São as hortas urbanas que brotam em terrenos abandonados, as cozinhas coletivas que fermentam resistência em bairros periféricos, as redes de troca direta que operam fora dos sistemas formais de controle. Em Porto Alegre, o coletivo Mães da Rua luta para alimentar crianças na ausência de políticas públicas efetivas, organizando doações, hortas e cozinha solidária, resistindo ao cerco institucional que busca regulamentar até o que nasce da urgência. Na Zona Leste de São Paulo, pequenos agricultores mantêm circuitos curtos e agroecológicos, fugindo das cadeias de supermercados e das licitações que favorecem grandes fornecedores. Essas iniciativas não só desafiam a lógica da escassez artificial como reenraízam práticas ancestrais de cuidado com a terra e com o corpo social.
O desafio desses coletivos vai além da luta por alimento; é uma batalha contra a tentativa constante de enquadramento. A fiscalização aumenta, os editais se tornam armadilhas e o discurso de “empreendedorismo social” tenta domesticar a potência insurgente transformando redes de solidariedade em projetos empresariais de impacto. Essa captura atravessa a América Latina e o mundo, das favelas do Rio de Janeiro às comunas urbanas do México, da agroecologia em Cuba às trocas solidárias na Catalunha. Em comum, a resistência diária de quem sabe que autonomia não cabe em formulário, que soberania alimentar não se delega nem se certifica, mas se pratica em gestos concretos de produção, partilha e cuidado.
A insurgência alimentar, assim, é prática viva, pulsante e em constante transformação. Ela evidencia que as sementes do comum germinam no solo infértil da exclusão, mas não se deixam domesticar, florescem na desobediência e crescem em redes invisíveis ao olhar dos aparatos de controle. É dessa vida periférica que nasce a força capaz de desafiar o sistema, que resiste às estratégias de captura e, sobretudo, que aponta para a possibilidade real de um mundo onde a comida é direito, cultura e revolução.
A revolução digital, que prometia emancipação e acesso democrático à informação, rapidamente se converteu em um mecanismo sofisticado de controle e dominação, especialmente no campo da alimentação. A captura algorítmica dos nossos hábitos alimentares revela um sistema que vai muito além da simples oferta e demanda; é uma teia intrincada onde dados pessoais, perfis de consumo e padrões metabólicos são coletados, analisados e explorados para moldar comportamentos, direcionar escolhas e garantir a perpetuação de mercados predatórios. Plataformas de delivery, aplicativos de dieta, redes sociais e até dispositivos vestíveis formam uma infraestrutura biopolítica que monitora o corpo em tempo real, transformando cada mordida num ponto de dados, cada fome numa oportunidade de lucro. Não se trata mais apenas do que comemos, mas de como a tecnologia intervém para predizer, antecipar e manipular nossos desejos, moldando o metabolismo social para se ajustar às demandas do capital.
Essa dominação algorítmica é um instrumento central do neoliberalismo contemporâneo, que abandona a coação explícita em favor de uma governança invisível, onde a autoexploração e o consumo compulsivo são encorajados como práticas de liberdade – ironicamente, uma liberdade sempre guiada pelos algoritmos que determinam o que é “normal”, “saudável” ou “desejável”. Por exemplo, os aplicativos de dieta que prometem controle metabólico e bem-estar se transformam em vigilantes digitais, reportando dados sobre alimentação, atividade física e até sono para corporações que vendem desde suplementos até planos de saúde. A monetização desses dados alimenta cadeias de valor que conectam indústria farmacêutica, alimentícia e de tecnologia em um ecossistema que lucra com a perpetuação da doença crônica e da insegurança alimentar. Essa tríade reforça o ciclo perverso: enquanto o algoritmo induz padrões de consumo de ultraprocessados e produtos industrializados, o sistema de saúde colhe os frutos do adoecimento metabólico, sempre amparado pelo discurso da “responsabilidade individual”.
Além disso, essa captura algorítmica influencia diretamente os modos de produção e distribuição alimentar. Plataformas digitais regulam preços, definem quais produtos são destacados, quais produtores têm acesso privilegiado ao mercado e quais regiões ficam excluídas, reproduzindo e aprofundando desigualdades territoriais e sociais. A chamada “economia da atenção” compete por cada fragmento do olhar e do tempo dos consumidores, condicionando escolhas alimentares a estímulos visuais, publicitários e narrativas que reforçam estereótipos e status quo. Essa governança algorítmica de consumo não apenas transforma o alimento em mercadoria líquida, facilmente descartável, mas também invisibiliza as cadeias produtivas reais, enfraquecendo os laços comunitários e as práticas de soberania alimentar. A lógica de plataforma reduz o alimento a um conjunto de dados manipuláveis, negociáveis, passíveis de otimização, desconsiderando a complexidade dos sistemas vivos e das relações sociais que a alimentação envolve.
Por fim, a interseção entre dominação algorítmica e biopolítica neoliberal revela um cenário onde o corpo, o metabolismo e a alimentação tornam-se campos estratégicos de intervenção e controle. O corpo não é mais apenas um organismo biológico, mas um nodo de informação e um objeto de governança, em que a tecnologia atua para disciplinar, normalizar e ajustar o metabolismo social às demandas de um sistema que lucra com a sua fragmentação e adoecimento. Resistir a essa captura significa, portanto, não só rejeitar o ultraprocessado ou os discursos vazios de saúde, mas romper com a lógica de vigilância, controle e mercantilização que invade o cotidiano alimentar. Trata-se de restabelecer espaços autônomos de produção, partilha e cuidado que escapem da governança digital e promovam a reconstrução das relações alimentares como práticas de liberdade e resistência concreta. Essa é a insurgência contra o algoritmo da fome, a insurgência que nasce da recusa do corpo em ser mais um dado à mercê do capital.
Os alimentos ultraprocessados não são meramente produtos prontos para consumo; eles funcionam como instrumentos refinados de um sistema econômico que transforma o corpo humano em terreno fértil para doenças crônicas e dependências químicas. Quimicamente, esses produtos são fabricados para serem hiperpalatáveis, saturados de açúcares refinados, gorduras trans e aditivos artificiais, uma verdadeira sopa química que engana os sensores metabólicos do organismo e sabota sua capacidade natural de autoregulação. Essa engenharia alimentar, apoiada em ciência aplicada para maximizar o lucro, desencadeia inflamação crônica, resistência à insulina, disfunções hormonais e desequilíbrios na microbiota intestinal – fatores que se convergem para alimentar uma cascata de doenças metabólicas como diabetes tipo 2, obesidade, hipertensão e certos tipos de câncer. O paradoxo é cruel: quanto mais adoecemos, maior a demanda por medicamentos, e assim se perpetua um ciclo vicioso que alimenta tanto a indústria da alimentação industrializada quanto o sistema de saúde.
A indústria alimentar, longe de agir isoladamente, mantém uma relação simbiótica com a indústria farmacêutica. A primeira cria e perpetua a doença, enquanto a segunda oferece tratamentos caros e crônicos que raramente atacam as causas estruturais, preferindo gerenciar sintomas que mantêm a dependência dos pacientes. Essa aliança estratégica se apoia numa complexa rede de marketing, lobby político e influência acadêmica que molda políticas públicas e padrões alimentares globais. Enquanto agrotóxicos e insumos químicos dominam a produção agrícola para garantir custos baixos e durabilidade, a medicalização da população se torna uma saída lucrativa e conveniente para manter o modelo intacto, sempre revestida por discursos de responsabilidade individual e prevenção que jogam a culpa no próprio corpo.
Essa epidemia silenciosa das doenças metabólicas é a expressão bioquímica da lógica capitalista predatória, que subverte a função nutritiva do alimento para transformá-lo em vetor de lucro e controle social. O impacto social é devastador: as populações mais vulneráveis sofrem duplamente, enfrentando insegurança alimentar e acesso restrito a serviços de saúde dignos. O ultraprocessado se torna um dispositivo de controle populacional, reduzindo a capacidade física e cognitiva dos corpos enquanto reforça a dependência de um sistema médico que não busca cura, mas sim a perpetuação do lucro. A convergência dessas indústrias configura uma máquina perversa de produzir doença e consumo perpétuo, que desafia qualquer política pública que não atue diretamente sobre as estruturas da produção e do mercado.
Reconhecer essa síntese bioquímica-política é o primeiro passo para desnaturalizar o discurso hegemônico que separa o que colocamos no prato da cadeia econômica e social que sustenta essa escolha. Paradoxalmente, a luta contra o envenenamento metabólico pode ser o fio que nos guia para a autonomia alimentar e social, mas só será possível se rompermos com essa engrenagem que lucra com a nossa fragilidade. Resta a urgência de promover práticas insurgentes que desafiem o sistema, não apenas para garantir saúde integral, mas para desmantelar o ciclo infinito de doença e lucro que se alimenta da nossa própria condição corporal. Talvez a verdadeira revolução esteja no ato de recusar o alimento que adoecemos, abrindo espaço para um corpo e uma sociedade realmente livres.
A alimentação não se reduz ao ato mecânico de ingerir nutrientes; é um complexo campo simbólico onde rituais e práticas cotidianas revelam as formas de poder que moldam a vida social. O ato de comer em conjunto, as receitas transmitidas por gerações e os momentos em torno da mesa são tecidos culturais que estabelecem identidades e pertencimentos. Porém, esse terreno sagrado é minado pela lógica capitalista que, por meio da padronização do gosto e da industrialização da comida, reconfigura esses rituais em espetáculos vazios, onde o consumo substitui a comunhão. O corpo deixa de ser sujeito sensível e ativo, tornando-se mero receptor passivo de estímulos criados para gerar dependência e lucro. O sabor autêntico e a diversidade são esmagados pela tirania do ultraprocessado, enquanto o tempo da refeição é roubado pelo apelo à rapidez e conveniência. O paradoxo é cruel: o que deveria ser fonte de prazer e vínculo se torna fonte de alienação e controle, uma celebração do vazio disfarçada de saciedade.
As práticas alimentares, assim, são cooptadas e instrumentalizadas para reproduzir padrões culturais que sustentam a ordem vigente. A imposição de dietas padronizadas, a medicalização da alimentação e a difusão de modismos alimentares nas redes sociais funcionam como mecanismos sutis de disciplinamento, onde o controle do corpo se dá pela governança do paladar. Os espaços da alimentação, do mercado à cozinha doméstica, tornam-se palcos de um jogo de poder que determina não só o que comer, mas quem pode comer, como deve comer e até se merece comer. A ironia amarga dessa dinâmica é que a busca por uma alimentação “saudável” frequentemente esconde interesses comerciais e políticas de exclusão, enquanto a verdadeira diversidade alimentar é invisibilizada, marginalizada ou convertida em nichos de consumo para uma elite. A resistência, portanto, não está só na comida que se escolhe, mas no gesto político de reclamar o direito de reinventar os próprios rituais e sentidos.
Esse campo simbólico e cultural não é terreno neutro; é um território onde se dá a disputa entre a dominação e a liberdade. As práticas insurgentes que resgatam o saber ancestral, valorizam o alimento como festa e criam redes de compartilhamento rompem com a lógica do mercado e da vigilância. A cozinha deixa de ser espaço doméstico para virar palco de insurgência, o ato de cozinhar junto transforma-se em gesto político e coletivo. Contudo, essa insurgência está longe de ser um fenômeno homogêneo ou isento de contradições internas, pois lida com tensões entre tradição e inovação, entre comunidade e individualismo. O poder simbólico da alimentação revela-se um campo de batalha onde a complexidade das relações humanas se manifesta em cada garfada, em cada partilha, em cada recusa silenciosa. O que resta é a pergunta: quem controla o sabor da vida, controla também a capacidade de sonhar, resistir e reinventar o mundo?
Essa máxima é a síntese cruel de um sistema que não apenas decide o que colocamos no prato, mas também define o alcance da nossa imaginação e liberdade. É preciso reconhecer que os processos que atravessam o corpo, a cultura e a política alimentar não são compartimentos estanques, mas um sistema complexo, dinâmico, onde cada peça se entrelaça em redes que resistem à simplificação e à captura. O capitalismo alimentar, a indústria da doença, a vigilância algorítmica, as burocracias institucionais e a cooptação progressista formam uma teia intricada que aprisiona corpos e desejos, ao mesmo tempo em que alimenta a ilusão de escolha e autonomia. Nessa lógica, o corpo insurgente emerge como uma exceção, um nó de resistência que resiste a ser reduzido a dado, mercadoria ou estatística.
O que nos chama atenção, e talvez nos desespere, é a profundidade dessa captura e o modo como ela se apresenta como natural, inevitável, até mesmo desejável para muitos. A complexidade dos sistemas não nos exime da responsabilidade de agir, mas exige que nossas práticas insurgentes não sejam reproduções acríticas de velhas fórmulas de revolução. A insurgência alimentar que propomos não é um retorno a um passado idílico ou a um purismo alimentar, mas a invenção constante de formas que desafiem o domínio corporativo, estatal e tecnológico sobre o alimento e o corpo. É no entrelaçamento do cuidado, da autonomia e da subversão que se encontra a potência emergente capaz de expandir possibilidades para além do circuito fechado da governança global. A insurgência é a vida que insiste em florescer nas frestas do controle, é a multiplicidade que escapa à monocultura do consumo e da vigilância.
No entanto, a insurgência não é um espetáculo para ser consumido, nem uma fórmula mágica. É um conflito constante, um jogo de forças que exige coragem para habitar a ambiguidade, o desconforto e a contradição. É paradoxal que na luta contra um sistema que fragmenta e homogeneíza, a resistência precise ser também plural, diversa e mutante, recusando receitas prontas e abraçando a complexidade. Talvez seja essa a lição mais dura: não há receita, não há manual de insurgência alimentar que garanta vitórias rápidas ou universais, apenas a persistência na luta diária contra a digestão do corpo e da cultura pelo capitalismo. Resistir é continuar comendo, compartilhando, cultivando sentidos e solidariedades apesar das máquinas de controle e dominação.
Assim, a pergunta final reverbera sem resposta simples. Quem controla o sabor da vida não apenas regula o que comemos, mas cultiva a submissão dos desejos e a diminuição dos sonhos. O alimento é, portanto, mais que matéria, é o palco onde se encena a luta pela liberdade, pelo comum e pelo inesperado. Resta, então, a inquietação: em um mundo onde até o mais íntimo dos prazeres é mercantilizado, será que o corpo insurgente ainda pode inventar novos sabores que escapem da lógica do capital, ou estamos condenados a mastigar sempre o mesmo banquete de ilusões e controle? A resposta está no silêncio das cozinhas rebeldes, no ritual coletivo que resiste à domesticação e na potência indomável de quem recusa ser só alimento para o sistema.
[1] A célula não é um relógio suíço. Ela é um sistema vivo, cheio de ruído, feedbacks, flutuações térmicas, estocasticidade genética e ruído bioquímico. Mas é nesse ruído, nessa quase-desordem, que surgem mecanismos capazes de manter o todo funcional. O corpo, ao jejuar, entra nesse ponto de instabilidade produtiva: não há energia sobrando para o excesso, mas também não há colapso. A célula é forçada a inovar, recalibrar, decidir o que mantém e o que destrói. Isso é operar na borda do caos: um ponto onde pequenas perturbações podem gerar grandes mudanças – ou evoluções.
A autofagia, nesse sentido, não é só um processo fisiológico; ela é uma metáfora viva para a resiliência adaptativa dos sistemas complexos. Ela mostra como a destruição, dosada e bem dirigida, é parte essencial da manutenção de qualquer sistema vivo – seja uma célula, um organismo, uma sociedade ou uma rede ecológica. O jejum, por sua vez, revela que menos é mais só quando o sistema é capaz de reorganizar internamente sua escassez em nova ordem. Não é o colapso, é o limiar fértil entre estrutura e entropia. Ou seja, vida dançando sobre o abismo, e saindo fortalecida disso.
[2] Não basta dizer que nos alimentamos mal. Isso é eufemismo higienizado para uma verdade muito mais brutal: a fome é projetada, a má nutrição é lucrativa e a indústria alimentícia moderna é uma máquina de reprodução de doença crônica em escala global, tudo sob o verniz do progresso, da conveniência e da liberdade de escolha, essa liberdade fictícia de escolher entre veneno A e veneno B embalados com slogans coloridos.
O que temos hoje é um sistema alimentar baseado na lógica do lucro, da dependência bioquímica e da desinformação deliberada. A maioria dos alimentos ultraprocessados é formulada não para nutrir, mas para viciar – literalmente. Combinações precisas de açúcar, gordura e sal são calibradas por algoritmos e testes sensoriais para atingir o que cientistas da indústria chamam de “ponto de bliss”: o nível exato de prazer palatável que induz consumo repetido sem saciedade. E enquanto isso, o agricultor real, o que planta alimento de verdade, é esmagado por cadeias de fornecimento predatórias, subsídios distorcidos e concorrência desleal. O agronegócio prospera não porque é eficiente, mas porque colonizou os governos, os parlamentos, os sistemas fiscais e a cultura alimentar das massas.
[3] A afirmação de que a escassez passageira ativa processos internos de reorganização bioquímica dialoga, ainda que implicitamente, com as descobertas do biólogo molecular Yoshinori Ohsumi, vencedor do Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 2016. Ohsumi foi responsável por comprovar, por meio de experimentos com leveduras, os mecanismos moleculares da autofagia – um processo fundamental pelo qual as células degradam e reciclam componentes danificados ou desnecessários. Durante períodos de jejum ou estresse celular, esse sistema é intensificado como forma de garantir a sobrevivência e manter a homeostase. Em outras palavras, na ausência temporária de nutrientes externos, as células ativam um modo de manutenção que envolve a digestão controlada de suas próprias estruturas internas, promovendo renovação, eficiência metabólica e resistência a doenças degenerativas. Ao demonstrar que a autofagia é um processo crucial para a saúde celular e que seu desbalanceamento está relacionado a doenças como câncer, Alzheimer e Parkinson, Ohsumi forneceu a base científica para compreender o jejum não como uma ameaça fisiológica imediata, mas como um gatilho natural de regeneração interna. As implicações de sua pesquisa extrapolam os limites laboratoriais e lançam luz sobre a inteligência adaptativa do corpo humano, frequentemente ignorada por modelos médicos convencionais que associam interrupções alimentares à disfunção, quando, na realidade, elas podem operar como formas evolutivas de reorganização e resistência.
[4] Significa retirar o poder das corporações agroalimentares, romper com monoculturas extrativistas, abolir o uso massivo de agrotóxicos, interromper a publicidade infantil de produtos ultraprocessados, e reeducar o paladar e a relação cultural com o alimento.
Mas isso não se resolve com selos verdes patrocinados por corporações ou campanhas educativas que ensinam a comer melhor sem questionar quem controla a terra e os fluxos do alimento. O que se exige é uma ruptura radical com a lógica de centralização e lucro: ecossistemas alimentares descentralizados, práticas agroecológicas autônomas, redes de produção e distribuição organizadas horizontalmente, por comunidades que não operam sob o comando de ministérios ou investidores, mas segundo as necessidades locais e vínculos de cuidado. A comida precisa deixar de ser tratada como cifra de mercado e reconquistada como vínculo, território, gesto coletivo. Isso não cabe no imaginário técnico do capitalismo alimentar, que fábrica dependência e lucra com doenças previsíveis. Ele não quer corpos saudáveis nem sujeitos autônomos. Quer consumidores recorrentes, girando entre fármacos, entregas rápidas, dietas monitoradas por aplicativos e uma sucessão de produtos embalados como soluções definitivas. Recuperar a soberania alimentar, nesse cenário, é afrontar o modelo inteiro: desmercantilizar o comer, romper a dependência de infraestruturas mortas e reerguer, com as próprias mãos, redes vivas que escapem ao controle algorítmico e estatal.
E sim, a fome é um projeto. Não um erro, não um acidente. É um instrumento de dominação, de chantagem política e de controle populacional. A escassez não é técnica, é política. Produzimos alimento suficiente para o dobro da população global, mas distribuímos com base em lucro, não em necessidade. Desperdiçamos um terço de tudo que é produzido, enquanto milhões passam fome, porque isso sustenta preços, especulação e lucros bilionários.
[5] A relação entre ciência, indústria e saúde pública revela um jogo sujo muitas vezes oculto sob a fachada da objetividade científica. Pesquisadores e instituições científicas, financiados e orientados por grandes corporações alimentícias, produzem estudos que minimizam os efeitos nocivos dos ultraprocessados, desviando o foco dos impactos reais para variáveis secundárias, numa estratégia que protege o lucro em vez da vida. O discurso oficial, revestido de rigor técnico, funciona como um escudo para a manutenção do status quo, reproduzindo um conservadorismo velado que culpa o indivíduo pela obesidade, diabetes e outras doenças crônicas, enquanto ignora as condições estruturais que engessam escolhas e impõem dietas tóxicas. Essa hipocrisia reacionária não só legitima a continuidade de práticas predatórias, como também criminaliza modos de vida alternativos, reduzindo a saúde a um problema moral e de responsabilidade pessoal. Assim, a ciência industrializada se torna cúmplice da necropolítica moderna, participando da perpetuação de um sistema que adoece para lucrar e lucra para adoecer, transformando corpos em territórios de exploração, dominação e morte lenta.
[6] A crítica sobre a autonomia corporal reduzindo o espaço para mercados que vendem “cura” não é paranoia antivacina nem fantasia conspiratória. Um crescente corpo de evidências aponta que a indústria alimentícia, não apenas a farmacêutica, está no centro da era das doenças crônicas. Metanálises envolvendo quase 900 000 pessoas mostram que o consumo de ultraprocessados aumenta significativamente o risco de obesidade (OR 1,51), síndrome metabólica (OR 1,81), diabetes tipo 2 e até depressão e câncer. Outro estudo recente revela que apenas cinco dias de dieta rica em ultraprocessados reduzem a sensibilidade à insulina no cérebro e acumulam gordura no fígado em homens saudávei. O impacto global é colossal: bebidas açucaradas sozinhas foram associadas a 2,2 milhões de casos de diabetes tipo 2, 1,2 milhões de doenças cardiovasculares e 340 000 mortes em 2020. Paralelamente, um artigo sobre a epidemia de doenças mentais e neurodegenerativas liga diretamente o excesso de ultraprocessados a inflamação crônica e desequilíbrios no microbioma, sugerindo que o modelo alimentar industrial custa ao planeta cerca de US$ 20 trilhões por ano.
A arquitetura industrial de comida sintética não só adoece – ela lucra com o adoecimento. A indústria alimentícia produz venenos de consumo fácil, enquanto a indústria farmacêutica vende os remédios para as doenças que ela mesma ajudou a criar . Esta é uma dinâmica real, documentada, complexa e sustentada por relações de poder econômico, nada tem a ver com discursos conspiratórios fantasiosos. Franquear espaço a corpos autônomos significa retirar desses mercados médicos o seu público cativo, algo que a indústria, fortemente baseada em lucros recorrentes da doença, certamente teme. [[https://www.foodandwine.com/sugary-drinks-diabetes-heart-disease-8776956][www.foodandwine.com]] ; [[https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32792031/][pubmed.ncbi.nlm.nih.gov]]
[7] A qualidade, o frescor e a responsabilidade na produção e distribuição de alimentos não podem ser reduzidos a protocolos, selos e certificações burocráticas impostas por órgãos reguladores como o Inmetro ou agências sanitárias. Essas instituições operam sob a lógica da padronização industrial, buscando uniformizar processos para atender a interesses mercadológicos e sanitários que frequentemente privilegiam grandes produtores e redes corporativas. A biodiversidade, o manejo agroecológico e as práticas comunitárias de cultivo e preparo, que garantem sabor, valor nutricional e respeito ambiental, escapam das métricas rígidas dessas regulações, muitas vezes incompatíveis com a natureza viva e mutável dos alimentos não industrializados. A hiperregulamentação cria barreiras que excluem pequenos produtores, criminaliza modos tradicionais e empobrece a diversidade alimentar. O frescor não se mede em certificados, mas no cuidado direto, no tempo natural da colheita, na observação empírica dos ciclos da terra e na relação de confiança entre quem planta e quem consome. Por isso, a resistência alimentar autônoma deve se afirmar nas frestas do controle, rejeitando o reducionismo técnico-jurídico que mascara o real significado da alimentação enquanto vínculo social, cultural e político.
[8] [[https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S2211912416300037][https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S2211912416300037]]
[9] O Comitê Volcker, instituído pela ONU, revelou que a AWB (Australian Wheat Board) pagou cerca de A$300 milhões em “taxas de transporte” para a Alia, uma empresa ligada ao regime de Saddam Hussein. Desse montante, a maior parte foi direcionada para o governo iraquiano, o que configurou suborno e violação de sanções humanitárias. Investigações posteriores na Austrália produziram relatório da Cole Inquiry, que confirmou a sistematicidade desses repasses e levou ao afastamento da AWB de seu monopólio estatal, além de punições civis a executivos ([[https://www.sbs.com.au/news/article/how-was-awb-enmeshed-in-iraqs-oil-for-food-scandal/4gqnoff20][https://www.sbs.com.au/news/article/how-was-awb-enmeshed-in-iraqs-oil-for-food-scandal/4gqnoff20]] ; [[https://www.psandman.com/articles/AWB-oil.htm][https://www.psandman.com/articles/AWB-oil.htm]])
[10] A reportagem da Reuters e da USAID revelou que o Programa Mundial de Alimentos (WFP) suspendeu toda ajuda à Etiópia após descobrir que alimentos humanitários estavam sendo canalizados, de forma organizada, para o exército e moinhos privados, numa “campanha coordenada” promovida por agentes estatais e militares. Levantamentos da USAID identificaram pelo menos 45 casos de desvio entre outubro de 2021 e meados de 2023, e a suspensão atingiu mais de 20 milhões de pessoas. Agências confirmam que o apoio cessou devido a falhas sistemáticas no monitoramento e na governança dessas distribuições. ([[https://www.reuters.com/investigates/special-report/famine-aid-ethiopia/][https://www.reuters.com/investigates/special-report/famine-aid-ethiopia/]])
[11] Estudos indicam que programas sociais como o Bolsa Família, embora tenham sido eficazes na redução da fome extrema e da pobreza, estão associados à maior exposição e consumo de alimentos ultraprocessados entre os beneficiários. Essa expansão do consumo não necessariamente reflete um aumento proporcional no gasto com esses produtos, mas sugere a consolidação de redes de distribuição dominadas por grandes cadeias alimentares industrializadas. Essa dinâmica aponta para um efeito colateral das políticas públicas que, ao ampliar o poder de compra das famílias, acabam favorecendo estruturas comerciais que perpetuam dietas não saudáveis e agravam os riscos de doenças crônicas relacionadas à má alimentação. ([[https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28614498/][pubmed.ncbi.nlm.nih.gov]])