Claudia Mayer
queer no Brasil
resistência e empoderamento na (re/a)presentação de si
Durante minha trajetória dentro e fora da academia, quando mencionamos a palavra queer a primeira pergunta que aparece é “o que é queer?” É uma identidade? Uma posição política? Um termo guarda-chuva que abrange várias marginalizações – especialmente aquelas relacionadas às sexualidades e aos gêneros? É provável que se vocês perguntarem a alguém que estuda teoria queer, a pessoa vá lhes responda que queer é um não-conceito, um conceito que, necessariamente, não pode ser definido. Demorou um tempo para que eu mesma me acostumasse à possibilidade de não atrelar um significado estável e único às coisas, principalmente ao conceito chave para desenvolvimento da minha pesquisa. Mas quando não fixamos um significado, mantemos como possibilidade uma infinidade de manifestações que de outra forma ficam de fora. Afinal, não somos seres estáveis, imutáveis; não cabemos propriamente nas caixas disponíveis para a organização e controle das pessoas, seus corpos e ideias. De tão impróprias que somos, as regras precisam ficar se repetindo e reinventando constantemente, a fim de se manterem como o pensamento dominante.
É muito comum associarmos a ideia queer às sexualidades não-heterossexuais e gêneros não-binários. E sim, a queeridade constitui-se também por aí e é por esse meio que a ideia queer entrou, através da academia, no Brasil no início dos anos 90. É importante ressaltar, todavia, de que assim como sexualidades e gêneros não se constituem isoladamente em relação a outros fatores sociais, políticos e epistemológicos; de fato, a queeridade assume seus contornos dentro de contextos sociais, políticos e epistemológicos. Por causa disso, ao invés de pensar o queer como perspectiva identitária, escolho, junto a outras pessoas que fazem estudos queer, pensar o queer como perspectiva crítica: um modo de fazer aberto e atento ao que nos constitui – tanto às partes que nos são violentamente impostas pelos sistemas hegemônicos quanto às partes que nós mesmas construímos à medida que resistimos e constantemente (re)afirmamos nossas identificações e associações. O queer se constitui entre fazeres críticos contra as hegemonias, contra o controle, contra as violências epistemológicas, contra a precarização e patologização de nossas vidas; o queer se constitui como produção de coisas novas, imprevistas pelos sistemas binários. Resistência e criação, reinvenção constante.
Com isso em mente, podemos começar a pensar o queer especificamente no Brasil nos perguntando como se estabelecem, em nosso contexto, as diferentes marginalizações que experimentamos por aqui. Mais que isso: quando nos perguntamos sobre essas marginalizações, precisamos ter em mente que os processos marginalizatórios se cruzam, formando intersecções – isto é, no encontro entre dois eixos de marginalização, por exemplo “gênero” e “raça” existe um local de encontro sobre o qual muitas vezes não se fala. Então, quando as feministas negras apontam a diferença entre as experiências das mulheres brancas e das mulheres negras, elas apontam para uma intersecção no feminismo. Como comentamos, é preciso que estejamos atentas e abertas a perceber quando não estamos falando de algo. E sobre o que nós não estamos falando quando discutimos os processos marginalizatórios específicos do Brasil?
Hoje, várias intersecções são abordadas por coletivos de militância, e há grandes ganhos para inúmeros grupos em termos de adoção e prática de políticas públicas. O sistema de cotas nas universidades públicas têm sido uma alternativa de curto e médio prazo que, mesmo não solucionando o problema histórico do racismo, tem diminuído a dificuldade de acesso de estudantes não-brancas ao ensino superior. Também podemos mencionar os avanços nos programas sociais desde 2002, a ampliação das vagas nas universidades públicas, os projetos de moradia popular, o financiamento de pesquisas acadêmicas, e a ampliação das estruturas básicas para atendimento à saúde. Essas políticas públicas, mesmo apresentando problemas em sua execução e plena efetividade conforme as diretrizes de atendimento às populações e comunidades que são mais atingidas pelos abismos da desigualdade social representam grandes melhorias sociais.
Experimentamos, porém, neste período pós-Golpe de 2016, inegáveis retrocessos em políticas públicas voltadas às populações marginalizadas e também reações violentas à contínua luta por nossos direitos, como é o caso da prisão de Rafael Braga, do assassinato de Marielle Franco, da não-delimitação dos territórios indígenas, bem como o contínuo massacre dessa população, e também as reformas trabalhistas e educacionais em curso. Com isso podemos perceber que, sendo as políticas públicas um conjunto de ações praticadas pelo Estado, elas estão sujeitas aos interesses das forças governantes. Por causa disso, gostaria de dizer hoje para vocês que talvez nós estejamos deixando de falar sobre os problemas da instância de manutenção do poder hegemônico que é o próprio Estado.
Sabemos que atrelada à ideia de Estado há a noção de identidade – identidade cultural, identidade de gênero, identidade nacional, etc. E quando se delimita uma identidade única para toda uma nação, há uma forçosa, violenta e falaciosa homogeneização das pessoas sob a égide de um Estado Nacional que se impõe como entidade gestora de nossas existências, delineando e limitando nossas possibilidades de existir no mundo. É o Estado que nos impõe a necessidade de declarar quais são os nossos gêneros; é o Estado que policia e autoriza nossas sexualidades através do controle das ligações emocionais através do matrimônio; o Estado regula os corpos com útero no que diz respeito à procriação; o Estado fiscaliza intimamente a configuração física das pessoas a fim de classificá-las e determinar como elas devem ser tratadas, quais suas possibilidades de mobilidade, emprego, entre outras, seja na questão das pessoas transgênero ou não-binárias, seja na questão das chamadas deficiências físicas. Controla (ou descontrola) nossa saúde através das decisões sobre o uso de agrotóxicos e dos alimentos transgênicos, na dispensa de fármacos psicoterápicos. Reivindica um suposto dever de controlar o uso de drogas recreativas. Ele nos diz como, onde e quando devemos morar, trabalhar, amar, comer, cuidar de si; o que, como e para quem produzir e o que vamos receber em troca pela nossa força de trabalho. Além disso, nos obriga a vender nossa força de trabalho por nossa própria sobrevivência.
É por isso que chamo a atenção de vocês hoje para a ideia de Estado, de governo e, finalmente, de políticas públicas. Tudo isso é muito importante, já que vivemos em um Estado Democrático que, por um lado, nos diz que a democracia dá voz a todas as pessoas, mas, por outro lado, determina quem é pessoa e quem não é, quais vozes serão ouvidas e quais não, através do que o estudioso, jornalista e ativista anarquista Paul Z. Simons chama de Tirania da Maioria: o voto. Para Simons, a democracia se coloca entre os indivíduos e as decisões, pois o voto faz com que as decisões sejam tomadas de forma a parecerem finais e têm efeitos homogeneizantes. Em outras palavras, a minoria acaba sendo forçada a seguir o que é decidido pela maioria, mesmo que a decisão lhes seja profundamente desfavorável. Esse é o grande problema de quando há a fusão entre o processo democrático e do processo de administração pública. A participação da base para a formação do consenso coletivo, que seria uma alternativa mais “democrática” que a própria democracia como é praticada hoje no Brasil, é soterrada nas urnas e as multidões queer – isto é, as multidões que são chamadas de minorias mas que são extremamente numerosas são deixadas de fora.
Nós, quando votamos dentro do processo democrático da maneira como o experimentamos hoje, elegemos quem falará por nós às instâncias governamentais superiores, supostamente representando nossos desejos e necessidades. Notem que a manutenção das relações hierárquicas é bem importante nesse processo, e que em momento algum representantes por nós eleitas são ignorantes do processo de cooptação dentro da cooptação pelos sistemas políticos governamentais. O que acaba acontecendo é que existem tantas forças nesse palco – como o neoimperialismo, o liberalismo econômico, as bancadas que defendem interesses do agronegócio e de certos grupos religiosos (isso, é importante ressaltar, em um Estado que se diz laico) – que quem elegemos fica engessada em jogos políticos necessariamente complexos para que, ao invés de atender aos interesses das populações, comunidades, ou organizações populares, sejam atendidos os interesses do mercado. No final, quem fala mais alto são os interesses do Capital. E, no sistema capitalista, somos constantemente re-apresentadas a nós mesmas em projeções do que supostamente deveríamos ser ou querer que já estão tão arraigadas em nossas concepções de si que fica difícil identificá-las como forças externas a nós.
Neste quadro, a adoção e prática de políticas públicas têm papel muito importante por estas cumprirem o papel de chamar a atenção a (algumas) multidões que são constante e necessariamente deixadas de fora do processo democrático para a manutenção “das coisas como são”. As políticas públicas representam grandes ganhos dentro de um sistema que promove alienações e falsas homogeneidades, reforça exclusões e fortalece invisibilidades interseccionais. Entretanto, por funcionarem através de um sistema excludente, é possível que acabem promovendo exclusões similares àquelas permitidas e advogadas pelo sistema dominante.
A economia da precariedade, ou seja, a maneira como se distribuem os graus de vulnerabilidade da vida das pessoas, é parte fundamental da manutenção dos poderes hegemônicos. Em outras palavras, como vivemos em um regime fortemente hierárquico, por mais que nos digam que todas as pessoas são iguais perante a Constituição, para que esse regime se sustente é preciso que haja diferenças, que muitas vezes são verdadeiros despenhadeiros que nos separam, em último e mais grave grau, da própria existência biológica (ou seja, nos levam à morte). O atrelamento indissolúvel das políticas públicas às instituições de controle estatais constitui, possivelmente, um dos maiores desafios que nós, que lutamos todos os dias pelo direito de decidirmos sobre nossas próprias vidas, enfrentamos.
É neste ponto, portanto, que volto ao que foi dito antes sobre o que é ou se faz queer. Se queer se constitui entre fazeres críticos contra as hegemonias e os sistemas de controle, temos como perspectiva queer a análise de conjunturas políticas de forma abrangente, sem nos impor limites, de maneira a estranhar – aqui recorrendo ao significado da palavra queer em inglês, que é “estranho” – aquilo que vem sendo construído e disseminado como normal, que é estabelecido como natural. Estranhamos a política, isto é, abordamos a política de maneira a negar sua normalidade. Negamos a normalidade do Estado, da Democracia; negamos a normalidade do trabalho, da ética da produção. Nos negamos a aceitar a normalização de nossos corpos; lembramos sempre que o “normal” tem indesatável relação com a norma, a regra, com o autoritarismo. As coisas não “são como são”, mas são feitas ser de certas maneiras, segundo certos interesses. É nosso papel questioná-las e estranhá-las, recuperar saberes subalternizados e silenciados, dialogar com nossos passados e questionar, inclusive, como chegamos às conclusões do que nos define como pessoas e o que compreendemos como futuro.
O poder que temos, como multidão queer, como levante de corpos indóceis, é tão grande que os sistemas hegemônicos precisam, para se manter, constantemente tentar nos controlar e nos re-apresentar da maneira como lhes é mais útil ou aprazível. Por causa disso, nós devemos retomar e reafirmar o poder que já está em nossas mãos e nos apresentarmos publicamente como seres impertinentes e irredutíveis, cientes de nossas demandas e de como nossas demandas se relacionam e re-constroem a sociedade ao nosso redor. Assim como o termo queer se propõe a estar em constante reconstrução a fim de que não recaia em limitações e silenciamentos, nós também devemos nos propor a estar em constante mudança e movimento, em luta constante por nosso direito de existir e resistir.
Na atualidade, a ideia de desenvolvimento e de progresso nos mais diversos setores mostra, no mínimo, dois lados. Em um deles, vislumbramos os muitos benefícios do desenvolvimento nos mais variados setores: temos máquinas mais eficientes, medicamentos cada vez mais especializados, sistemas digitais mais poderosos, trocas de informação cada vez mais rápida. Do outro lado, vemos crescer os números da ansiedade, da destruição ambiental, da exploração trabalhista, o empobrecimento e extinção de grandes populações humanas e não-humanas, a preocupação com a manutenção das fronteiras nacionais. Renascem falas racistas e sexistas, renascem a xenofobia e as intolerâncias. Em nome de um desenvolvimento exploratório e massacrante, somos levadas a nos tornar autômatas em busca de ideais de sucesso que necessariamente nunca atingiremos, ou a Grande Máquina do Progresso estagnaria. Há de haver o não-desenvolvido para que haja, por contraste, o desenvolvido. Há de haver o sub-desenvolvido para que haja a ilusão de que um dia chegaremos “lá” – lá, o paraíso utópico do progresso.
Dizer que os aspectos negativos do desenvolvimento suprimem os aspectos positivos é reduzir demasiadamente a questão do progresso. É evidente que ganhamos muito em termos de tecnologia e conhecimento científico; contamos com mais eficazes meios para a manutenção da vida biológica, podemos trocar conhecimentos com mais pessoas; as distâncias diminuem na velocidade digital e, assim, ampliamos nossas possibilidades de ser. É importante, contudo, exercitarmos nossa capacidade crítica e analisarmos como esses benefícios são distribuídos e quais os seus custos ambientais, humanos e não-humanos (animais, vegetais, fungos, protozoários, procariontes). É importante levarmos em conta a distribuição dos privilégios trazidos pelo desenvolvimento e quem é deixada às margens; quem passa a viver mais e melhor à custa de quem. Sem dúvida, as coisas não são tão bem-definidas como este texto pode sugerir. Por isso, hoje procuro guiar o meu trabalho de pesquisa para o questionamento das ideias de progresso e desenvolvimento, a fim de expandir a crítica ao heteropatriarcado, ao capitalismo, ao neoliberalismo econômico e, especialmente, às alternativas a esses sistemas que apenas nós podemos construir coletivamente quando tomamos para nós mesmas a responsabilidade representarmos e reapresentarmos a nós mesmas.