Coletivo Planètes

Uma leitura anarquista da interseccionalidade

22/06/2019

  O nascimento da interseccionalidade na teoria feminista

  O anarquismo sempre foi interseccional…

      Emma Goldman

      Voltairine de Cleyre

      Zoé Samudzi

  Repensando classe

      Simone de Beauvoir

A palavra “interseccionalidade” têm sido utilizada com frequência em meios de Esquerda, muitas vezes sem reflexão apropriada em relação aos seus significados, e sem uma relação real com a prática diária de construção de emancipações. Atestando à incrível capacidade de Recuperação/cooptação do Capitalismo contemporâneo, o termo é amplamente utilizado em vertentes liberais do feminismo para fazer referência a uma suposta equivalência das opressões. Esse conceito é, muitas vezes, utilizado de maneira superficial e errônea – acompanhando o apagamento do protagonismo de mulheres negras e trans, e uma definição vazia de lugar de fala que é compreendida como “só eu posso falar disso”, ao invés de uma leitura materialista dos marcadores sociais da diferença. Essa discussões emergem em um momento em que a Esquerda – inclusive os anarquistas – parecem mergulhados em um debate sem fim sobre “economicismo” vs. “identitarismo”. O que propomos aqui é um retorno à história do anarquismo – e, principalmente, do anarcafeminismo -, bem como a incorporação de conceitos e estratégias produzidas pelo anarquismo decolonial, para buscarmos a ressignificação (desvio?) do conceito de interseccionalidade.

O nascimento da interseccionalidade na teoria feminista

As teorias associadas à interseccionalidade nascem dentro de discussões ocorridas durante o que se chama de “segunda onda” do feminismo nas décadas de 1960 e 1970 – principalmente a partir das tensões dentro do próprio movimento entre feminismo liberal, por um lado, e da “teoria dos sistemas duplos”, por outro:

Como suas antecessoras históricas burguesas as feministas liberais não viam necessidade de uma ruptura revolucionária com a sociedade existente. Em vez disso, seu foco estava em quebrar o “teto de vidro”, colocando mais mulheres em posições de poder político e econômico. As feministas liberais assumiram que os arranjos institucionais existentes eram fundamentalmente não problemáticos. Sua tarefa era ver a igualdade das mulheres acomodada no capitalismo […].

Um produto do que veio a ser chamado de feminismo socialista, a teoria dos sistemas duplos argumentou que as feministas precisavam desenvolver ‘um relato teórico que desse tanto peso ao sistema do patriarcado quanto ao sistema do capitalismo’ […]. Embora essa abordagem tenha feito muito para resolver alguns dos argumentos sobre qual luta deveria ser ‘primária’ (ou seja, a luta contra o capitalismo ou a luta contra o patriarcado), ainda deixava muito a desejar. Por exemplo, feministas negras argumentaram que essa perspectiva deixava de fora uma análise estrutural da raça […]. Além disso, onde estava a opressão baseada na sexualidade, habilidade, idade, etc. nesta análise? Todas essas coisas foram redutíveis ao patriarcado capitalista?

-Deric Shannon & Jen Rogue, “Refusing to wait: Anarchism and intersectionality“

Assim, tensões originadas dentro de todas as vertentes do feminismo durante a “segunda onda” criaram as condições para repensar a ideia de uma experiência universal, monolítica, compartilhada da “feminilidade” como costuma ser expressada nas lutas feministas:

No coração da interseccionalidade está o desejo de destacar a miríade de maneiras pelas quais categorias e localizações sociais como raça, gênero e classe se cruzam, interagem e se sobrepõem para produzir desigualdades sociais sistêmicas; dada essa realidade, falar de uma experiência universal de mulheres obviamente se baseia em premissas falsas (e tipicamente espelhava as categorias mais privilegiadas de mulheres – ou seja, brancas, sem deficiência, “classe média”, heterossexual e assim por diante).

-Abbey Volcano & Jen Rogue, “Insurrections at the intersections: feminism, intersectionality and anarchism“

O conceito de interseccionalidade surgiu com a tríade “raça / gênero / classe”, mas foi depois expandido por autoras importantes como Patricia Hill Collins para incluir lugares sociais como nação, orientação sexual, idade, e etnicidade.. Entretanto, está claro que o conceito de interseccionalidade está diretamente associado à identidade, e é por isso que é uma chave importante para resolver as intermináveis discussões “classistas x identitaristas”. De fato, Patricia Hill Collins mostra pra gente que o conceito de interseccionalidade é muito mais complexo do que parece transparecer por algumas das discussões que são feitas hoje no movimento:

Segundo Patricia Hill Collins é possível compreender a interseccionalidade enquanto uma marco teórico crítico, enquanto uma ferramenta analítica para analisar identidades, enquanto contribuição teórica e enquanto paradigma de conhecimento. Também podemos compreender a interseccionalidade enquanto perspectiva, enquanto conceito e enquanto método. Ou seja, há inúmeras construções a respeito de interseccionalidade, e reduzi-la a ideia de uma vertente feminista ou a partir de uma noção que compreende a interseccionalidade como uma forma de identificar como as opressões se aprofundam em determinadas experiências é reduzir o potencial político e crítico que a interseccionalidade apresenta.

-Winnie Bueno, “Repensando a interseccionalidade“

Assim, não há um único sentido para a palavra “interseccionalidade”, dado que esta categoria pode ser usada para diferentes fins. Ainda que as teorias da interseccionalidade sugiram que as hierarquias e sistemas de opressão estejam imbricadas umas nas outras, mutuamente constituindo umas às outras – e até mesmo contradizendo umas às outras -, o termo é utilizado muitas vezes de maneira superficial – o que chamaremos de “interseccionalidade liberal” – para “nivelar” hierarquias e opressões estruturais:

Por exemplo, “raça, classe e gênero” são frequentemente vistos como opressões que são experimentadas em uma variedade de formas / graus por todos – isto é, ninguém está livre das atribuições forçadas de identidade. Este conceito pode ser útil, especialmente quando se trata de luta, mas as três “categorias” são frequentemente tratadas apenas como identidades, e como se fossem similares porque são “opressões”. Por exemplo, é apresentado que todos nós temos uma raça, um gênero e uma classe. Como todos experimentam essas identidades de forma diferente, muitos teóricos que escrevem sobre a interseccionalidade se referiram a algo chamado “classismo” para complementar o racismo e o sexismo.

Isso pode levar à noção gravemente confusa de que a opressão de classe precisa ser corrigida por pessoas ricas que tratam os pobres “mais gentis” enquanto ainda mantêm a sociedade de classes. Essa análise trata as diferenças de classe como se fossem simplesmente diferenças culturais. Por sua vez, isso leva à estratégia limitada de “respeitar a diversidade” em vez de abordar a raiz do problema. Este argumento impede uma análise de luta de classes que vê o capitalismo e a sociedade de classes como instituições e inimigos da liberdade. Nós não queremos “nos dar bem” sob o capitalismo abolindo o esnobismo e o elitismo de classe. Em vez disso, queremos derrubar o capitalismo e acabar com a sociedade de classes. Nós reconhecemos que há alguns pontos relevantes levantados pelas pessoas que estão falando sobre o classismo – nós não pretendemos encobrir a estratificação da renda dentro da classe trabalhadora.

-Abbey Volcano & Jen Rogue, “Insurrections at the intersections: feminism, intersectionality and anarchism“

Uma crítica da interseccionalidade liberal é necessária, portanto, para romper com a dicotomia classe X identidade que atrapalha o discurso atual da Esquerda. Se, por um lado, o conceito de interseccionalidade “compreende a mesma enquanto um conjunto de ideias e práticas que sustentam que gênero, raça, classe, sexualidade, idade, etnia, status de cidadania e outros marcadores não podem ser compreendidos de forma isolada, sendo que estes articulam dinâmicas de poder que produzem realidades materiais desiguais e experiências sociais distintas coletiva e individualmente” (Winnie Bueno), por outro é preciso compreender que a classe não é uma identidade como qualquer outra – o termo “classismo” não explica a exploração, tornando o próprio conceito de classismo inútil na análise.

O objetivo final da luta socialista é a abolição de todas as hierarquias e mediações, e isso passa por uma sociedade sem classes. Essa questão é muitas vezes ignorada por muitos teóricos que utilizam o conceito de interseccionalidade como uma forma de superar o classismo. As interpretações liberais da interseccionalidade nivelam todas essas relações sociais em uma matriz única de análise.

O anarquismo sempre foi interseccional…

Emma Goldman

Apesar da misoginia do assim-chamado “pai” do anarquismo, Pierre-Joseph Proudhon, mesmo durante seus primeiros movimentos os anarquistas já insinuavam o feminismo e o anti-racismo. Bakunin, em contraste com Proudhon, opunha-se à autoridade patriarcal. Em seu ensaio sobre educação integral, ele denuncia a autoridade do pai sobre seus filhos; em seus programas e manifestos revolucionários, defende consistentemente direitos iguais para as mulheres. Em seu Catecismo Revolucionário de 1866, ele escreveu: “a mulher, diferente do homem, mas não inferior a ele, inteligente, trabalhadora e livre como ele, é declarada seu igual nos direitos bem como em todas as funções e deveres políticos e sociais”. Kropotkin escreveu contra as esterilizações forçadas.

Voltairine de Cleyre

Emma Goldman e Voltairine de Cleyre são, certamente, as mais famosas anarco-feministas, e representam de fato uma aproximação do anarquismo com outras pautas, identificada como “vertente aberta” por Tadzio Mueller. Se Bakunin e Kropotkin identificavam no Estado, no Capital, e na Igreja as fontes de opressão, ao final do século XIX o anarquismo passa a introduzir, de maneira mais intensa, outras fontes, incluindo o Patriarcado.

É interessante notar, no entanto, que as primeiras mulheres a se associarem ao anarquismo costumavam rejeitar o rótulo de feministas. Isso pode ser facilmente entendido se considerarmos que a primeira onda do feminismo tinha duas características fundamentais: 1) o foco na luta pelo sufrágio universal – isso é, o direito ao voto; e 2) a participação intensa de mulheres burguesas, mas não da classe trabalhadora. Goldman escreveu: “Exijo a independência da mulher, seu direito de se sustentar; viver para si mesma; de amar quem ela quiser, ou quantas vezes ela quiser. Eu exijo liberdade para ambos os sexos, liberdade de ação, liberdade no amor e liberdade na maternidade”. Sua defesa do amor livre e a crítica do casamento a colocou em choque com as feministas de sua época, que via como limitadas pelo escopo das forças sociais do puritanismo e do capitalismo.

Em uma demonstração do interseccionalismo antes que esse termo existisse, Emma Goldman foi uma ferrenha crítica da homofobia. Afirmava que a libertação deveria vir também para gays e lésbicas, o que era inédito em seu tempo, até mesmo entre anarquistas. Em uma carta enviada ao sexólogo alemão Marcus Hirschfeld, Emma Goldman escreveu: “É uma tragédia, eu sinto, que pessoas de um tipo sexual diferente são capturadas em um mundo que mostra tão pouca compreensão para os homossexuais e é tão grosseiramente indiferente às várias gradações e variações de gênero e seu grande significado na vida.”

O anarquismo é aberto às lutas “identitárias” por natureza. O anarquismo se estrutura no século XIX em uma estranha relação com o que depois chamou-se marxismo, e a tensão se deve ao fato de que enquanto o marxismo identifica nas relações de produção a origem das coerções, o anarquismo identifica mais de um “topo” da pirâmide:

Para o Marxismo, havia apenas um inimigo, uma luta, e uma vitória final e completa. Em resposta, os anarquistas argumentavam que a opressão fluía não somente do controle dos meios de produção, mas também do controle dos meios de coerção física – em outras palavras, o Estado era um centro de poder cujos interesses não eram totalmente redutíveis àqueles do “capital”. […] Face a isso, só há uma única alternativa à resposta dada pelos anarquistas clássicos – a saber, desistir das ideias de unidade de lutas (contra a opressão) e da revolução como um evento único e cataclísmico. Essa, entretanto, foi uma conclusão que poucos – ninguém, até onde sei – se dispôs a chegar, e então uma segunda linhagem “aberta” se preocupou com introduzir “novos” (ou ainda: recentemente reconhecidos) centros de poder/opressão.

-Tadzio Mueller, “Poder, hegemonia e a estratégia anarquista“

Essa “abertura” do anarquismo às múltiplas fontes de coerção é o que imprime uma radicalidade interseccionalista aos anarquistas, mas também corre o risco de se esvaziar em um conceito liberal de interseccionalidade e “horizontalizar” todas as fontes de opressão.

Zoé Samudzi

Não nos enganemos, entretanto: é só a partir das lutas antiracistas dos anos 1960 e 1970 – e, principalmente, a partir dos movimentos de Libertação Negra – que o anarquismo passa a incorporar a luta antiracista:

Acredito que os negros são oprimidos tanto como trabalhadores quanto como uma nacionalidade distinta, e só serão libertados por uma revolução negra, que é parte intrínseca de uma revolução social. Acredito que os negros e outras nacionalidades oprimidas devem ter sua própria agenda, visão de mundo distinta e organizações de luta, mesmo que decidam trabalhar com trabalhadores brancos.

-Lorenzo Kom’boa Ervin, “Anarchism and the Black revolution“

Reconhecer a necessidade de abraçar de maneira definitiva o conceito de interseccionalidade é, portanto, fundamental para que o anarquismo deixe de ser um movimento descolado da materialidade da vida do povo preto.

Repensando classe

Simone de Beauvoir

A política da identidade é a política de tornar-se o Outro. Isto é, através da socialização torna-se homem ou mulher, heterossexual ou queer, branco ou negro. A famosa frase de Simone de Beauvoir – “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” – resume bem a situação: a norma – homem/branco/heterossexual/cis – define o Outro por projeções que podem ser descritas como um “devir”: pólos mutuamente definidores de subjetificação multiplicam-se e proliferam na esfera social, combinando-se por conjunção:

Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.

-Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo“

No entanto, já sabemos que a classe social não é uma identidade como qualquer outra. Não há contradição na conjugação quando uma pessoa se identifica como mulher E negra E lésbica: entendemos que cada categoria não engloba totalmente nem exclui a outra, “que sua conjugação é um processo de definir a sobreposição desses conjuntos que estão inscritos no mesmo plano social que constrói identidades e opressões particulares através da operação de normatividades polarizantes em contraste com as outras”. Mas, porque essas “identidades” são definida por exclusão e por opressão, se assumirmos que a classe social é uma identidade, precisamos defini-la também por exclusão e opressão, e a experiência da classe fica reduzida ao “classismo” (a exclusividade esnobe da “classe média”, a opressão das privações econômicas).

Essa operação pode ser bastante identificada no discurso atual de grande parte da Esquerda que fala sobre os “pobres de Direita” ou sobre a “classe média que se acha capitalista”. Mas reduzir a classe a uma relação de opressão econômica pela pobreza é reduzir a vida econômica ao consumo. Nada surpreendente se considerarmos a “utopia” (distopia?) da “inclusão pelo consumo”. No entanto, se reduzirmos classe a pobreza, o conceito de classe perde sua relação com a exploração, a produção de mais-valia e a sobrevalorização do capital, e a produção ativa da totalidade das relações sociais!

Quando, por outro lado, voltamos a repensar a categoria de classe como associada à exploração econômica que acompanha e é implicada nas opressões políticas particulares – de gênero, de orientação e identidade sexual, de raça, etc. – então essa intersecção entre dominação e exploração se abre como fonte ativa para a recomposição de uma luta forte contra as hierarquias.

A sobreposição de identidades socialmente construídas não deve ser confundida com a interseção do plano de dominação com o plano de exploração. A interseção do plano de exploração com o plano de dominação descreve uma linha – a linha de classe. Essa linha de classe corta cegamente todas as identidades inscritas no plano da determinação política, sem exceção. Ainda não há identidade criada a partir da qual o capital não possa recrutar agentes para o seu lado para representar seus interesses àqueles do outro lado da linha de classe.

-Paul Bowman, “Rethinking class: From recomposition to counterpower“

Repensada nessa relação com a classe social, a interseccionalidade passa a ser mais útil para os anarquistas. Nós não somos apenas corpos que existem em identidades designadas como raça, classe, gênero, etc; somos também sujeitos políticos em uma sociedade governada por políticos, juízes, policiais, e burocratas de todos os modos. Nossa miséria está inserida dentro de instituições como o capitalismo e o estado que produz e é produzido e reproduzido pela rede de identidades usada para organizar a humanidade em grupos de opressores e oprimidos. Cabe-nos perguntar: como o racismo funciona para sustentar o Patriarcado? Como a sexualidade foi racializada de diferentes maneiras, tornando mais fácil que os senhores (históricos e contemporâneos) se livrassem da culpa do estupro, genocídio, e escravidão de populações negras e indígenas? Como gênero e raça tornam-se categorias para que o Estado crie um programa de extermínio de corpos negros?


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