Título: Anarquia anti-civilização
Autor: Contraciv
Data: 28/04/2017
Fonte: https://contraciv.noblogs.org/anarquia-anti-civilizacao/
Notas: Baseado na leitura de três obras anarquistas recentes, Violência, Democracia e blackblocs (Nildo Avelino, 2013), Balaklava: Um Chamado à Guerra Nômade (Facção Fictícia, 2014) e Lutando no Brasil – Sobre grandes mobilizações e o que fazer quando a fumaça se dissipa (Facção Fictícia, 2015), esta publicação é uma tentativa de analisar as possíveis contribuições da crítica anarquista à civilização no atual contexto político.

A anarquia foi muitas vezes definida como a luta autônoma do povo contra o Estado, o Capital e toda forma de autoridade. A luta de povos nativos contra a opressão civilizadora pode ser considerada como uma luta anarquista. Criticar a civilização, porém, é mais do que criticar o colonialismo e seus efeitos. Enquanto anarquistas e comunistas do século XIX defendiam que “anarquismo é progresso”, a crítica à civilização é também uma crítica ao conceito de progresso. Os efeitos prejudiciais da civilização não atingem apenas os povos nativos, os próprios agentes do processo reduzem sua existência a condições precárias, embora chamem isso de progresso e sejam ensinados a amar sua própria escravidão. A civilização é um processo de domesticação humana e alienação da natureza. A luta contra a civilização vai além de uma luta por igualdade de acesso aos recursos ou aos meios de produção atuais. Ela questiona se os recursos e meios que se tornaram indispensáveis na civilização podem sequer existir sem alguma uma perda insubstituível para a humanidade, independente do modo como são produzidos e distribuídos.

A energia elétrica que alimenta nossos computadores e aparelhos celulares, por exemplo, pode ser produzida sem confinar e controlar as forças da natureza? Temos o direito de obter este poder? A resposta em todos os pontos espectro político tradicional é um sim omisso, pois nem sequer se fazem essa pergunta seriamente. Quando criticam o avanço tecnológico, é somente por alguns efeitos que atingem nossa própria capacidade de viver. Quando pensamos no impacto sobre outras formas de vida, é somente para nosso próprio interesse, e em geral acreditamos que o próprio avanço tecnológico pode solucionar todos os problemas criados pela civilização.

Os teóricos até hoje acreditam que a inovação tecnológica ou o desenvolvimento das forças produtivas, se aplicada sem interferência do Estado ou numa economia que não seja capitalista, poderia redimir a civilização. A ideologia que nega que a civilização em si possa ser um problema afirma que o processo civilizador pode corrigir a si mesmo e se tornar sustentável, desde que façamos do jeito certo. Em grande parte, a crítica à civilização se sustenta na denúncia de todos os equívocos por trás da ideologia do progresso e da redenção humana por meio das máquinas, demonstrando que a cultura civilizada tentou naturalizar uma dependência tecnológica extremamente nociva, tornando algo monstruoso em algo aceitável, desejável e até indispensável para a evolução humana.

No século XIX, contexto dos “primeiros” teóricos do anarquismo, não havia condições para uma crítica à civilização propriamente dita. Todas as análises pressuponham a sociedade civilizada como um padrão para a sociedade humana. Por causa disso também temos até hoje nas ciências humanas em geral uma grande dificuldade de definir o conceito de “civilização”. A maior parte dos teóricos está confortável com uma definição relativamente neutra ou positiva desse termo. O processo civilizador é tido como um amadurecimento natural do ser humano e não como um problema em si. Essa naturalização faz com que qualquer crítica a este processo pareça inviável. “Deveríamos nos focar em mudanças mais palpáveis”, é o argumento mais comum para dispensar a priori qualquer tipo de crítica fundamental à civilização.

Mas isso está mudando. O século XX trouxe à tona análises cada vez mais difíceis de ignorar, que demonstram o caráter irremediável da civilização ou colocam em xeque crenças de que este modo de vida pode ser corrigido ou reformado, o que para alguns é assustador, mas para outros é justamente o que dá força e sentido para a luta. Os mais entusiasmados com as teorias tradicionais temem que a força revolucionária seja desviada para questões inócuas, enfraquecendo a luta, e por isso tendem a tratar qualquer crítica desse tipo como sendo no mínimo ingênua.

Mas a mobilização política à moda antiga está em processo extinção. Os ortodoxos tentam esconder sua própria ortodoxia para poder continuar parecendo sensatos. Tentam parecer mais abertos à crítica, mas se entregam quando falam o que realmente pensam, por isso precisam permanecer calados na maior parte do tempo. Os que ainda insistem em falar abertamente sobre o que pensam geralmente acabam sendo motivo de chacota. A maioria das pessoas não está interessada nos conceitos fundamentais das teorias tradicionais. Elas são atraídas por novas demandas, que tendem a ser deslegitimadas pelo discurso da “única alternativa ao capitalismo”. Os mobilizadores da velha política preferem catequizar os mais novos a ter repensar seus velhos programas de mobilização e seu “trabalho de base”.

A velha política ainda acredita na democracia e na cidadania universal. Mas o que significa ser um cidadão? Discursos sobre “acesso à cidade” e “cidade sustentável” estão se tornando comuns entre jovens políticos e arquitetos urbanistas. O que eles têm em comum? Pode-se dizer que existe um discurso supostamente libertário conquistando espaço nos cursos de arquitetura e direito. Algo sobre construir cidades mais humanas, uma verdadeira mescla de utopias socialistas e liberais num só caldo.

Mas como a cidadania, mesmo que parcial, foi alcançada? Qual o custo real da cidadania universal? Mudar o plano diretor de uma cidade pode resolver nossos problemas? Urbanistas tratam questões políticas como se o mundo fosse um grande jogo de simulação estilo “Sim City”, onde basta alterar leis e o formato da cidade para resolver todos os problemas. Vemos um novo tipo de tecnocracia ganhando as mentes das pessoas que se preocupam com o futuro do mundo e apresentam certa crítica ao capitalismo. O problema não é exatamente o amor pela cidade, pela vida urbana, pelo centro, pelas novas tecnologias, com todas as suas contradições e complexidades. A questão é como esse sentimento pode ser usado como forma de controle social, exatamente como líderes religiosos se utilizam da crença das pessoas. Novas formas de religião secular apresentam propostas de economia baseada em recursos e outras fantasias racionalistas sobre como poderíamos organizar melhor as pessoas em “paraísos artificiais” chamados de cidades.

Mas o único futuro possível para as cidades é aquele previsto pela ficção ciberpunk: tecnologia e precarização avançando juntos. Os lugares onde se pode viver tranquilamente terão que se isolar cada vez mais do resto do mundo, que está caindo aos pedaços. Condomínios fechados tão grandes que parecem ser abertos, como gaiolas gigantes. Assim como a democracia não pode ser anarquista porque sempre resulta numa forma de hierarquia, a cidadania é incompatível com a anarquia. Não existem metrópoles anarquistas. O modo de vida urbano está condenado. Cidades são máquinas gigantescas que não podem existir sem estruturas hierárquicas e controle da natureza.

A crítica à cidade resume todas as críticas anteriores, considerando que a civilização começa com a domesticação, o excedente e o sedentarismo. A cidadania universal só é alcançada por meio de um tipo de globalização. Cidades só se tornam possíveis quando há dependência tecnológica, exploração comercial, trabalho escravo e leis positivas, que precisam passar por cima das peculiaridades inconciliáveis de cada cultura. As “cidades sustentáveis” se fundam no conceito de democracia e de legalidade. Este conceito reproduz tudo que há de errado com o atual discurso ecológico, que foi completamente assimilado pelo discurso econômico, mesmo quando não é exatamente o capitalismo à moda antiga que os marxistas dizem combater. Anarco-capitalistas e defensores do livre mercado também querem cidades acessíveis para todos, mas não são aliados nem sequer ocasionais. Eles demonstram apenas como boas intenções não são o bastante.

Teóricos da democracia acreditavam que a emancipação humana tinha alguma relação com uma educação cosmopolita. Quando se vai até o fundo da crença de que o modo de vida urbano pode ser corrigido e transformado em algo libertador e igualitário, percebemos que não se trata de um simples amor à cidade, mas de um fundamentalismo urbanista, que radicaliza o mito do progresso. Defensores do modo de vida urbano tendem a cair em comparações que diminuem o modo de vida de povos nativos para elevar o modo de vida urbano, como se tratasse de uma evolução humana. Eles criam novas versões do mito Hobbesiano que deu origem ao Estado moderno, e logo se percebe por que essa visão é incompatível com a anarquia.

Porém, criticar a cidade não é o mesmo que defender a fuga para pequenas comunidades agrárias, nem uma nova forma de urbanidade supostamente sustentável e mais “próxima da natureza”. Questionar a expansão urbana é complexo, considerando que as populações mais pobres são as que mais sofrem com qualquer ataque à estrutura da cidade. Mas assim como os velhos anarquistas criticaram o sufrágio universal e os fundamentos da democracia, apontamos agora para a crítica à cidadania universal e aos fundamentos do urbanismo. Podemos atacar estruturas urbanas como shoppings e hipermercados. Podemos ocupar lojas que vendem produtos gourmet e utilizá-las para gerar benefícios sociais. Existem muitas outras possibilidades esperando para serem descobertas quando eliminamos a naturalização da urbanização, quando não aceitamos mais conviver com estruturas urbanísticas supostamente igualitárias ou abertamente elitistas, quando não nos limitamos mais à moralidade civil que vê um ataque à indústria da carne bovina, por exemplo, como um ato de violência sem sentido. A existência dessa indústria é em si uma violência!

Avançamos para um novo nível de radicalidade quando percebemos que criar hortas urbanas comunitárias, barraquinhas de produtos orgânicos ou aprender agroecologia é inútil se não atacarmos as manifestações do Capital e do Estado, que inevitavelmente assimilam ou eliminam nossas iniciativas. Os discursos em que os termos “civilização”, “força civilizadora” e “ação civilizada” mais aparecem são justamente os dos inimigos da anarquia e das ações diretas. A anarquia e os movimentos sociais têm muito a ganhar com a crítica à civilização, ao progresso e à indulgência em relação às metrópoles, ao modo de vida em multidão. A tecnopolítica, a ciberdemocracia e o eco-urbanismo revelam novas formas de cooptação dos movimentos. Estamos nos aproximando do beco sem saída e sem retorno, as coisas vão explodir de um modo ou de outro. Precisamos conversar sobre o fim do mundo.