Contraciv
Civilização e preconceito
A civilização possibilita o avanço dos direitos de pessoas marginalizadas?
“A história da civilização é a história da superação dos preconceitos” – Luís Roberto Barroso, procurador do Estado, advogado no Rio de Janeiro, professor de Direito Constitucional da UERJ, mestre em Direito pela Universidade de Yale.
Afirmações como essa expressam a crença no avanço moral da humanidade como característica central da civilização. Segundo este raciocínio, o progresso humano pode ser medido pelo grau de respeito à diversidade e pelo aperfeiçoamento dos mecanismos que garantem direitos individuais. Isso significa que a civilização avança na mesma medida em que os preconceitos são superados. E isto implica em afirmar que se o preconceito cresce num dado contexto, é porque ali o processo civilizador está sendo substituído pela “barbárie”.
As boas intenções desse discurso são compreensíveis. Ele porém é extremamente problemático a partir de uma perspectiva anticivilização. Se as sociedades originárias não eram civilizadas, então elas estariam no máximo do preconceito, aceitando somente os iguais e rejeitando os diferentes. O conceito de “tribalismo” muitas vezes é usado nesse sentido. A luta contra o preconceito seria então a luta contra o estado primitivo do homem, um estado que não permitia a integração de diferentes culturas. Graças à sociedade industrial, nunca tantos preconceitos foram superados de modo tão rápido, porque nunca antes pessoas de tantas culturas diferentes foram forçadas a conviver num mesmo lugar (os centros urbanos) e cooperar com um mesmo fim (o enriquecimento das elites). Ou seja, é preciso tomar cuidado quando se avalia o avanço moral considerando-se apenas aspectos isolados.
O fundamento teórico da ideia de avanço moral é o conceito de civilização enquanto soma do progresso material e espiritual do ser humano. A civilização levaria à superação do preconceito porque enquanto ela se expande há cada vez mais cooperação e convivência entre indivíduos diferentes em espaços compartilhados e regidos por leis gerais. O império romano percebeu que para permitir a expansão e a coesão era preciso educar as pessoas vindas de diferentes culturas e religiões a serem tolerantes com a diversidade, aceitando o direito romano como um direito “igual para todos”. Este tem sido o sentido da luta pela igualdade na civilização, a inclusão num sistema que universaliza a ação moral humana. As tradições de cada povo e expressões de cada modo de vida particular precisam ser podadas para possibilitar um modo de vida de massas: elas não podem se realizar plenamente. O pluralismo é, antes de uma conquista da humanidade, uma exigência do processo de globalização.
A identidade de um indivíduo só pode ser construída no interior de um conjunto de relações sociais. Sem relações não há identidade. O que o pós-moderno pede é justamente que tenhamos a liberdade de não nos prender a uma identidade definida por relações. A tolerância, reduzida a uma questão jurídica, não preserva a dignidade da pessoa humana. Realmente, “o que faz a beleza de uma democracia, de uma sociedade plural e aberta, é a possibilidade de convivência harmoniosa de pessoas que pensam de maneiras diferentes”, como disse Luís Roberto Barroso. Mas quando essa “convivência harmoniosa” é também condição para o avanço de um processo domesticador, trata-se de uma harmonia relativa que sustenta uma desarmonia com o meio.
Qual é o contexto em que ocorrem os avanços dos direitos individuais? A mesma cultura que nos reprimiu é aquela que agora nos libera para o consumo irrestrito, contanto que tenhamos dinheiro. Há uma certa esquizofrenia na concepção histórica que culpa o passado por atrocidades contra os indefesos e ao mesmo tempo glorifica o avanço. A história da humanidade não começa com a repressão e o preconceito. Foi a nossa própria civilização que criou a doença para a qual ela agora pretende vender o remédio.
“Civilização é o mundo sem explorados ou exploradores, sem oprimidos ou opressores, sem fronteiras e uma só humanidade; onde o impossível não existe e onde o bem-estar de todos é o objetivo derradeiro do universo; onde a igualdade significa o direito de ser diferente sem sofrer tratamento desigual; onde liberdade significa viver como se achar melhor, sem impedir os outros de proceder como bem entenderem; onde o fim nunca é superior aos meios postos em prática para atingi-lo; onde a prática é mais importante que o discurso ou a crença; onde nenhuma causa é justa quando se alia à morte; onde cada ser humano é um fim em si mesmo; e onde o melhor dos seres é o mais solidário dos seres.” – Georges Bourdoukan, jornalista e escritor.
Em praticamente todas as culturas encontramos mitos descrevendo um mundo assim. Mas em nossa cultura, o acesso a tal mundo seria feito por meio do avanço histórico. A civilização tem uma pretensão humanista que indica uma dificuldade de lidar com a realidade e o mito. Parece querer deslocar o mito para a história, fazendo com que este perca seu sentido.
Ao invés de ser a história do fim dos preconceitos, a história da civilização é a história do fim de tudo que atrapalha a expansão de um único modo de vida. Isso inclui modos de controle baseados em violência e também desperdício de energia com resolução de conflitos por causa de diferenças entre indivíduos e grupos. Resolver o preconceito nunca foi uma necessidade porque o preconceito nunca havia sido um problema. Ele se tornou um problema quando as condições sociais específicas da sociedade de massas surgiram. O que temos agora não é o fim do preconceito, mas uma nova necessidade de conviver em multidão. As ferramentas da convivência humana foram construídas para meios sociais muito menores. Ao mesmo tempo em que difunde a tolerância jurídica, a civilização intensifica a intolerância à vida humana. Quanto mais o processo civilizador avança, maiores as atrocidades que somos capazes de cometer. O avanço moral é uma farsa. O que avançou foram os métodos de controle social.
As sociedades que foram destruídas para dar espaço à civilização já tinham sua dinâmica de convivência entre grupos otimizada para humanos. O modo de vida não-expansivo possibilitou uma gigantesca diversidade cultural humana. Pense em quantas sociedades completamente diferentes umas das outras existiam somente no Brasil, antes da colonização. Eram mais de mil povos diferentes. Hoje a maioria vive sob uma única cultura global consumista, que universaliza tudo por meio do dinheiro. Foi justamente quando vivíamos em agrupamentos pequenos que menos se interferiu na cultura dos “outros”.
Porém, o problema é bem mais complexo porque não se limita à convivência entre culturas. A grande questão é a convivência entre indivíduos com diferenças de gênero, de credo e de corpo. Esta tensão pode aproximar perigosamente os defensores do “primitivismo” de uma linha de raciocínio fascista e machista. Os avanços do feminismo na modernidade são inegáveis: a liberdade e segurança da mulher aumentaram, não há dúvidas. A nova convivência entre culturas possibilitou a miscigenação e o sincretismo religioso. Temos também avanços médicos e tecnológicos que possibilitam que pessoas com condições debilitantes possam viver de modo mais confortável, integrando-se à sociedade. Defender o retorno a pequenas comunidades isoladas a primeira vista parece negar tais consequências, e de fato existem ideais racistas e patriarcais que fazem uso desses conceitos. A crítica eco-anarquista à civilização precisa evitar essas armadilhas e combater essas distorções. É preciso lembrar que a crença na superioridade racial é um atributo de sociedades imperialistas, que o patriarcado começa nas sociedades agropecuárias totalitárias (com domesticação de animais e plantas, conquista de território e acúmulo de excedente), e que o abilitismo ou capacitismo (exclusão de pessoas com necessidades especiais) tem origem nas sociedades marcadas pelo paradigma econômico da eficiência ou produtividade individual.
Essa discussão encontra inevitavelmente certa tensão, porque se trata de um assunto muito delicado. Ela não pode ser resolvida com uma simples exposição teórica. É preciso diálogo empático e audição atenciosa. Não reagir defensivamente a acusações contra o primitivismo, pois afinal desconfiar de defensores do primitivismo, considerando a complexidade desse termo, é compreensível e aconselhável até. Temos produzido reflexões sobre anarquia anticivilização sem fugir das questões e críticas mais contundentes, e a última coisa que desejaríamos é que nossa discussão diminua ou invalide as lutas contra o fascismo, o racismo, o patriarcado e outras formas de opressão.
Uma vida humana e livre é o objetivo, e a questão da civilização é o último tabu das questões sociais. Fazemos coro com aqueles teóricos que, mesmo reconhecendo a importância dos avanços nos direitos humanos, reconhecem os limites e os contextos desses avanços, e principalmente, sabem que isto por si só não pode ser usado como argumento em defesa do processo colonizador civilizado ou para invalidar uma teoria crítica mais radical. Toda essa complexidade deve ser considerada para que se compreenda melhor a realidade.