Contraciv
De volta ao básico
Então, quando as coisas mudaram?
Quais são as mudanças relevantes?
Este resumo foi baseado nos textos “Por que Civilização?”, de T.H.U.G. (Tree Huggin’ Urban Guerrillas), e “As Origens da Civilização”, de Green Anarchy Collective & Coalition Against Civilization, ambos traduzidos pelo Coletivo Erva Daninha. O objetivo deste livreto é apresentar a crítica à civilização enquanto ruptura radical do ser humano com a natureza, expondo sua origem e suas características principais de modo simplificado.
“Com tudo o que está acontecendo no mundo, por que estes fanáticos selvagens, estes refugos do anarquismo, estes ecologistas que vão ao último extremo, estes anunciadores do caos mascadores de granola precisam gastar tanto tempo atacando a civilização?”
Eu sei que parece loucura criticar a civilização em si. A maioria das pessoas não chega a criticar nem sequer o capitalismo. Muitas pessoas de esquerda não compreendem nem mesmo a teoria marxista, quanto mais a teoria anarquista, e pior, uma vertente totalmente marginal do pensamento anarquista... As coisas não parecem boas para os críticos da civilização, mas as coisas podem mudar muito mais rápido do que imaginamos. E não saberemos se esse debate vale a pena ou não a não ser que ao menos o iniciemos de modo sincero e responsável.
Nós lutamos por uma realidade completamente diferente, porém já experimentada pelos nossos ancestrais: uma realidade não tecnológica, não industrial, não colonial, não fascista, não patriarcal, não capitalista, não civilizada. Sentimos que essas coisas nos afastam de nossa humanidade e queremos voltar a ser humanos. Sentimos que é necessário voltar a algumas questões fundamentais: Onde nós estamos? Como chegamos aqui? De onde viemos? E para onde estamos indo?
Nós acreditamos na autonomia e na saúde como condições naturais da vida humana. Longe da influência da civilização, os seres humanos vivem num modo de vida que podemos chamar de anárquico, por falta de palavra melhor. Durante a maior parte de nossa história nós vivemos em agrupamentos de pequena escala, onde as decisões eram tomadas cara-a-cara, sem mediação ou representação. Nós sabíamos o que podíamos comer e o que podia nos matar, o que nos curava e o que nos adoecia. Sabíamos onde e como conseguir tudo que precisávamos e sabíamos viver em comunidade. Nós éramos parte do mundo à nossa volta, nós sabíamos como viver. Não havia a separação artificial que a civilização cria entre nós e o resto da vida.
A civilização é muito recente em relação à história humana como um todo. Tudo começou quando alguns agrupamentos começaram a confiar menos na terra como provedora de vida, e começaram a criar uma distinção entre eles mesmos e a terra. Esta separação é o fundamento da civilização. A civilização não é tanto uma coisa material, apesar manifestar-se materialmente, ela é uma orientação, uma mentalidade, um paradigma. Ela é a crença de que podemos e devemos obter controle sobre a natureza para viver melhor.
O principal mecanismo de controle da civilização é a domesticação. A domesticação é o amansamento, a reprodução seletiva e a modificação da vida para o benefício exclusivamente civilizado. O processo de domesticação afastou os humanos de um modo de vida nômade, em direção a uma existência sedentária, criou a propriedade da terra e as primeiras formas de poder centralizado. A domesticação cria um relacionamento totalitário com as plantas e os animais e, finalmente, com os outros humanos. Esta é a base para a escravidão humana. A domesticação é uma força colonizadora, criadora de doenças físicas e mentais, degradante a alienante.
Um passo fundamental no processo civilizatório é o movimento em direção a uma sociedade agrária. A dependência de agricultura cria uma paisagem domesticada e um modo de vida baseado em produção e consumo. O agricultor é o primeiro a trabalhar contra os ciclos da natureza, destruindo tudo que se coloca em seu caminho. A agricultura também dá origem ao patriarcado. A noção de propriedade da terra e a produção de excedentes cria uma dinâmica de poder nunca antes experimentada, que conduz à hierarquia institucionalizada e à guerra organizada.
Este modo de vida se espalhou pelo mundo por meio da pregação moralista e da violência. Os resistentes são chamados de selvagens, bárbaros, vândalos... Muros são levantados entre eles e nós. Acreditamos que as coisas sempre foram assim, mas de alguma forma sabemos que isto não está certo. A luta contra a civilização sempre existiu. Onde houver civilização, haverá resistência.
A civilização declara guerra às mulheres, aos pobres, aos povos indígenas e aos animais selvagens. Aos olhos da civilização, essas coisas precisam ser controladas, são recursos a serem usados e descartados depois. O patriarcado é a imposição da razão e da ordem sobre a vida natural.
O processo civilizatório se tornou mais refinado e eficiente com o passar do tempo. O capitalismo se tornou o seu modo de operação preferencial. O planeta inteiro foi mapeado e as terras foram cercadas. A dominação do Estado e da agora menos poderosa Igreja substituiu parte da violência civilizatória por uma benevolência de fachada e conceitos como cidadania e democracia. Tudo isso dependeu da expansão do sistema tecnológico.
A tecnologia, tal como a civilização, pode ser vista mais como um processo ou um sistema complexo do que como algo material. Ela depende de divisão do trabalho e exploração de recursos. Um dos resultados do desenvolvimento tecnológico é o aumento da dependência tecnológica e da mediação da experiência, ou seja, da alienação. A tecnologia não é neutra. Os valores e objetivos daqueles que produzem e controlam a tecnologia estão sempre embutidos nela. Diferente das ferramentas simples, a tecnologia é um processo mais amplo que é propelido por seu próprio ímpeto, tornando-se incontrolável. O avanço cria necessidades próprias e se torna um fim em si mesmo. O sistema tecnológico não pode existir sem genocídio, ecocídio e controle centralizado. A padronização imposta pela tecnificação da vida objetifica e mercantiliza a vida, transformando-a por fim numa morte-vida.
Faz parte dos mecanismos de controle domesticador permitir que escapemos temporariamente dessa realidade, pois afinal ela em si é insuportável. A civilização produz momentos controlados de contato com a natureza, de rebelião e de aparente liberdade. Não é uma questão de boicotar a civilização. Nós não podemos reformar a civilização, torná-la mais ecológica ou mais justa. Ela está podre até a raiz.
O aperfeiçoamento moral, intelectual ou tecnológico não irá nos salvar. Temos que tornar a civilização dispensável ou nossa própria humanidade se tornará descartável para o avanço civilizatório.
Para expressar em termos simples, a civilização é uma guerra à vida.
É quase impossível perceber o quanto perdemos na civilização. Nossos sentidos foram anestesiados, fomos treinados para não confiar em nós mesmos, subjugados pela hierarquia e pela automatização, vivendo em caixas dentro de caixas dentro de caixas... Nós passamos a vida inteira sendo empurrados para um futuro linear que foi cientificamente projetado para produzir consumidores mais eficientes.
A fim de compreender o quanto a civilização é degradante, é necessário que comecemos olhando para suas origens. Não há um “paraíso perdido” no passado da humanidade. Mas o fato é que vivemos a maior parte de nossa existência numa relação intrínseca com a vida natural, num estado de “anarquia”. Quando isso mudou, e por quê?
Quem nós somos?
Nós vivemos de caça e coleta por mais de 99,9% de nossa existência. A humanidade surgiu e assumiu suas características físicas e mentais nesse modo de vida. Hoje, nós nascemos dentro de hospitais, crescemos à base de agrotóxicos, somos formados por um processo de escolarização degradante, formatados para o trabalho sem sentido, e nossas vidas são definidas pelo lugar que ocupamos no grande projeto civilizatório. Cada aspecto de nossa vida mental foi usado contra nós mesmos para nos manter na linha. Estamos entorpecidos e não é por coincidência que todos nos sentimos perdidos e confusos.
Antes do status social, antes do valor individual ser definido pela posição de poder político que se ocupa, havia abundância de reconhecimento social. A base do reconhecimento é a capacidade de se sustentar ou de cooperar com o grupo. Imagine um mundo onde todos são igualmente capazes de obter tudo que se deseja obter, acesso comum a todos os meios disponíveis para a vida. Isto é quase impossível de imaginar hoje. Seria um mundo onde ninguém é menosprezado, todos recebem o mesmo respeito que qualquer outra pessoa dentro da comunidade. Todos, incluindo crianças, velhos e “deficientes” podem ser reconhecidos pelo que são, foram ou poderão ser.
As implicações disto são extremamente radicais, porque indica que perdemos acesso a um bem essencial. Consequentemente, precisamos pagar qualquer preço por um substituto para o que perdemos. Nenhum substituto, porém, parece saciar nossa necessidade profunda por reconhecimento.
Então, quando as coisas mudaram?
Uma vez que a civilização não é uma coisa material, é muito difícil identificar onde exatamente ela começa somente por meio dos vestígios materiais. A civilização talvez tenha sua raiz na origem da representação simbólica. A cultura simbólica substitui a experiência direta pela experiência mediada. O modo como estruturamos nossa percepção, nossa linguagem, nossa expressão, nossa compreensão, tudo isso aponta para uma súbita valorização da representação e da mediação da experiência.
A cultura simbólica idealiza e normatiza o pensamento, alterando o modo como definimos o que significar pensar, e consequentemente o que significa ser humano. Vai além de simplesmente dar nomes às coisas, reflete-se sobre todo nosso relacionamento com o mundo, com nosso corpo e com nossos sentidos. A cultura simbólica produz a sociedade do espetáculo, da alienação e da racionalização desprovida de emoção. A cultura simbólica é tanto resultado quanto causa da civilização, um processo que nos transforma em máquinas e o ponto inicial para qualquer processo de domesticação.
Quais são as mudanças relevantes?
Em resumo, produção de excedente, sedentarismo e domesticação.
Excedente: Nas sociedades anteriores ao excedente, não havia conceito de propriedade. Em um mundo sem excedente, não há necessidade de propriedade, uma vez que todos são capazes de fazer as mesmas ferramentas e todos têm igual acesso ao que desejam e precisam. O excedente causou uma ruptura com esta condição natural, tirando-nos do ciclo de fartura e fome no qual vivem todos os seres vivos, e criando tanto a escassez artificial como a abundância artificial.
O principal excedente é a estocagem de alimentos para o consumo futuro. Sociedades onde a comida é armazenada criam uma massiva ruptura com a satisfação direta. A criação de excedentes também requer um método de distribuição dos bens armazenados. Ao passo que um abismo cresce entre a aquisição e o consumo de alimentos, um abismo também cresce entre aqueles que têm acesso aos recursos e aqueles que não têm. Mudanças sociais radicais ocorrem neste ponto, colaborando na hierarquização artificial de poder.
Sedentarismo: O sedentarismo tende a estar intimamente ligado ao excedente, uma vez que o nomadismo impunha por si só uma limitação ao armazenamento. O sedentarismo se refere ao processo se estabelecer numa mesma área por períodos prolongados ou em definitivo.
Nômades ocupam uma ou mais regiões sem degradá-las, pois se movem de acordo com a disposição de alimentos, que varia de acordo com as estações do ano, outras mudanças climáticas ou outros ciclos naturais.
O problema do sedentarismo é a tendência de destruir o relacionamento de dádiva com uma região, onde tudo que é dado e recebido é um presente. Surge no seu lugar um relacionamento autoritário que exige controle, produzindo desconfiança, possessividade e exigência constante de eficiência. Como num relacionamento abusivo, o grupo sedentário simplesmente extrai tudo que pode de uma região até ela não ter mais utilidade, e então se muda, impedindo a criação de um verdadeiro laço afetivo. Social e politicamente, o sedentarismo propicia o aumento populacional e a exigência de controle social, poder centralizado e estratificação social.
Em todas as espécies de mamíferos, notamos que o deslocamento geográfico exerce um papel fundamental no equilíbrio ecológico das populações. A adoção do sedentarismo é mais que uma simples mudança de modo de vida. Ela representa a ruptura com o ritmo e com os ciclos vitais que até então moldaram a vida. O sedentarismo é a base para o excedente material, mas também para o excesso de estímulos, da degradação de nossa capacidade de selecioná-los, o que provoca a desorientação cognitiva dos seres civilizados. Enfim, quando as pessoas se tornaram totalmente sedentárias, elas começaram a se afastar dos ciclos vitais que nos guiaram por milhões de anos.
Domesticação: Há muitas teorias sobre as origens da domesticação de plantas, de animais e de nós mesmos. Alguns aceitam um ou dois lugares onde a domesticação foi iniciada de modo independente, enquanto outros apontam para cinco ou mais. A relutância em aceitar um ou dois pontos de origem parece estar relacionada com a dificuldade de aceitar que as civilizações antigas tinham a habilidade de percorrer longas distâncias ou cruzar oceanos, o que parece ter sido o caso. A questão é politicamente motivada, pois a noção de muitas domesticações independentes implica na ideia de que a civilização seria um resultado inevitável do avanço da história humana.
A domesticação é amplamente aceita como tendo se originado na área do Crescente Fértil, no Oriente Médio, cerca de 13.000 a 10.000 anos atrás. A domesticação foi um processo relativamente lento. Ela não ocorre simplesmente por se adubar sementes com esterco ou estimular o crescimento de plantas específicas, mas pela direta e intencional modificação de uma espécie por meio de seleção artificial, o que necessariamente substitui características naturais por características que seguem um critério valorativo ou cultural, enfim, um critério de utilidade. A engenharia genética é a consequência lógica da domesticação.
Isso representa uma mudança radical no nosso relacionamento com outros seres vivos. Tal como ocorre no sedentarismo, a amizade é substituída pelo interesse. Nosso relacionamento com outros seres se torna abusivo.
Onde surge domesticação, surgem também cultos a representações de forças da natureza. Essas representações justificam a dominação humana sobre os elementos da natureza ao mesmo tempo em que a condenam, servindo tanto como fonte de culpa como de redenção. A dinâmica de culpa e redenção é necessária para reciclar a angústia inerente à deturpação e torná-la suportável por um processo de catarse. A domesticação também transforma o simples excedente num sistema de produção, que será tratado como dever moral ou mesmo como a função da humanidade, sua missão na terra, o próprio sentido da vida.
Quais são as implicações sociais disto?
Dentro do campo da antropologia há cinco categorias de subsistência generalizadas: coletores-caçadores, horticultores, pastores, agricultores intensivos e agricultores industriais. A forma de subsistência está diretamente relacionada com a forma sociopolítica que a sociedade assume.
Coletores-caçadores vivem num mundo pré-político. As decisões são tomadas por consenso e não há instituições através das quais uma ação legal possa ser tomada. Os problemas são resolvidos pela confrontação direta. Os meios de subsistência são adquiridos de acordo com a satisfação direta. Tipicamente nômades, são organizados em grupos pequenos.
Horticultores são uma ampla gama de pessoas que obtêm boa parte de sua subsistência do cultivo de vegetais. A horticultura é complementada pela caça, coleta e pesca. Ela se refere mais especificamente ao cultivo, embora animais domesticados apareçam em muitas sociedades horticultoras. Eles tendem a viver em regiões mais tropicais e são semi-sedentários, vivendo em determinadas áreas por longos períodos de tempo e em seguida mudando-se outra vez. A tecnologia é relativamente simples, usando enxadas, desmatando e queimando áreas para o cultivo.
Este modo de vida é atormentado pelo crescimento contínuo e suas consequências. A guerra é uma reação à remoção de um limite populacional natural inerente ao nomadismo, e em muitas sociedades horticultoras ela tem sido aceita como “o modo como as coisas são”. O que é importante aqui, afora as questões do excedente, do sedentarismo e da domesticação, são questões como a especialização que começa a surgir na medida em que as pessoas ficam menos envolvidas com a subsistência direta. A esta altura, há um enorme aumento do papel do tabu, bem como a centralização do poder. O que emerge em resposta a isto a desconfiança geral entre as pessoas. Há uma guinada em direção ao sedentarismo, à institucionalização de certas funções sociais e ao patriarcado.
A introdução dos “meios de produção” torna muito importante ter uma linhagem firmemente definida. Este foi um fator fundamental na origem do patriarcado. O que começa como a passagem do status político por meio da linhagem masculina se transforma em um sólido sistema de controle patriarcal.
Pastores são pessoas que vivem de e para seus animais domesticados. De modo geral, os pastores atuam quase como uma especialização das sociedades de cultivo. Estando centrados em padrões animais muito específicos, eles migram sazonalmente em busca de pastagens. Por causa deste processo, eles são, em certo sentido, os primeiros mercadores. Eles negociavam e movimentavam mercadorias de um extremo ao outro da área de pastagem.
A organização social tende a ser muito próxima a dos horticultores. Eles também desenvolvem muito o patriarcado, na medida em que suas sociedades são baseadas na propriedade e na herança. Contudo, tal como os horticultores, muitos mantiveram algum mecanismo contrário à formação do Estado em sua cultura.
Agricultores intensivos são aqueles que intensificam o controle sobre a natureza em relação aos horticultores ou pastores. Eles são definidos tecnologicamente pelo uso de fertilizantes, arados, irrigação... Outra caraterística é a mudança de campos de policultura para a monocultura. Este é o ponto onde a civilização realmente começa a tomar forma visível e surgem os grandes impérios, precursores diretos da agricultura industrial.
Agricultores industriais conduzem a agricultura como qualquer outra indústria, usando máquinas cada vez maiores e mais complexas para alimentar a sociedade estratificada que as produz.
Conclusões?
O que podemos constatar ao observarmos este padrão de desenvolvimento é a mudança de sociedades abertas para sociedades fechadas que tendem ao aumento do controle e da escravidão. O primeiro passo é a ideia de propriedade, que surge em uma época razoavelmente recente e que sempre se deparou com alguma resistência. Além da natureza inerentemente autoritária da domesticação, vemos a ascensão das guerras, o desenvolvimento da tecnologia, a criação de cidades e impérios e o colapso eminente dessas sociedades.
A guerra de conquista e aniquilação é inerente ao desenvolvimento da civilização. A guerra total é tanto uma consequência da necessidade de expandir o domínio de terras produtivas para aumentar a produção, como uma medida para limitar artificialmente a população na ausência das limitações naturais. O cultivo dá origem à guerra. O militarismo foi criado primariamente para defender e proteger a propriedade de terras, e posteriormente usado para manter a ordem nas cidades, protegendo também a propriedade individual.
Guerras de conquista e colonização são as condições de existência do Estado. Na medida em que exércitos profissionais se desenvolvem, também aumenta a potencialidade da concentração de poder. Do mesmo modo, quanto mais a tecnologia se desenvolve, mais eficientes são as armas de guerra, e maior a possibilidade de concentração de poder.
Os seres humanos, como muitos animais, sempre usaram ferramentas. Uma ferramenta pode ser feita por uma pessoa com relativa facilidade e não implica num custo a ser pago por gerações ou por outros seres. A tecnologia surge com o sedentarismo, na medida em que as pessoas podem se dedicar produzir coisas com custos materiais, sociais e ecológicos cada vez maiores. Tecnologia é um sistema, ela requer uma fonte abundante de recursos materiais e uma mentalidade específica para ser continuamente produzida. Longe de ser neutra ou de poupar trabalho, a tecnologia apenas aumenta a destrutividade da sociedade e possibilita praticamente todos os problemas sociais que conhecemos.
As cidades são uma ocorrência bastante recente e definem de forma completa o que é a civilização. Elas são a concretização do sedentarismo, da hierarquia artificial, da institucionalização da divisão de trabalho, da expansão do controle sobre a natureza. Elas são uma imposição não só sobre a terra, mas também sobre aqueles que vivem dentro e fora delas. A expressão “cidade sustentável” é uma autocontradição. Cidades dependem de exportação de recursos, não podem viver apenas dos recursos locais, e necessariamente estão em expansão constante. A vida urbana jamais será sustentável, nem materialmente e nem mentalmente.
Parece apropriado concluir uma breve análise das origens da civilização com um olhar para seu destino aparentemente inevitável: o colapso. Aconteceu em Roma, Mesopotâmia, Egito, Mesoamérica, América do Norte, América do Sul... Cada império cresce e cresce até que se torne fisicamente dependente de outros para sobreviver. A agricultura que estabelece as bases para o crescimento do império degrada a terra até que as necessidades só possam ser supridas através de vastas redes de comércio, tributação e roubo, e tal império só pode durar até aí. É nesse momento que surge o fascismo, como tentativa desesperada de manter o controle.
Nossa civilização atual se tornou verdadeiramente uma civilização global e todos os tentáculos da civilização estão se fundindo em um só. A civilização, em sua totalidade, é agora dependente de uma sociedade global e industrial que está sistematicamente destruindo a terra, o ar, a água e as condições de vida humana. Por mais que estudemos história, nós nos esquecemos das lições mais básicas, e só tendemos a nos lembrar delas quando nos deparamos com a catástrofe inevitável.
O que se pode aprender com tudo isso não é apenas que nossos corpos e mentes anseiam por um modo de vida diferente e que já existiu, mas que podemos encontrar formas de resistir à civilização. Nada dura para sempre e a civilização será apenas uma “idade das trevas” na linha de tempo humana. A mineração, as barragens, o desmatamento, cultivo de grãos e a pecuária são uma verdadeira guerra contra a vida, e são inerentes à civilização. Essas atividades das quais dependemos totalmente destroem os seres vivos e as pessoas que sempre souberam viver na natureza. Podemos olhar para as origens da civilização para descobrir como ela se desenvolveu, e combinar este conhecimento com nossos sonhos de liberdade. Outro mundo existiu, e outro mundo é possível!
E agora, o que acontece?
Esperamos que essas considerações ofereçam oportunidades importantes de reflexão, e não resultem na imposição de uma nova ideologia ou de um dogma sobre como devemos viver. Nesta época atemorizante, a questão da prática está em aberto. Podemos concordar que uma mudança é necessária. Parece-nos que um exame das origens desse desastre em andamento é um exercício digno. Precisamos nos encontrar e pensar juntos.
“Nós habitamos a fábrica e a fábrica nos habita. As roupas que vestimos, a comida que ingerimos, os prédios nos quais vivemos, trabalhamos e morremos, os livros que lemos, a mídia que introjetamos, as ideias que pensamos – tudo produzido em fábricas. E, ainda assim, o caos está por toda parte. Até mesmo quando ando pelo terreno estéril do Shopping Center, eu olho para cima e vejo o sol fervendo, as nuvens deslizando, uma revoada de pássaros mudando de direção no céu – e eu sinto os intensos pulsos, fluxos e correntes que fluem através de meu corpo.” – John Moore