#title Resposta ao “Civilização, primitivismo e anarquismo” de Andrew Flood #author Contraciv #LISTtitle Resposta ao “Civilização, primitivismo e anarquismo” de Andrew Flood #SORTauthors Contraciv #SORTtopics crítica à civilização, Anarquismo, anarco-primitivismo #date 2019 #source https://contraciv.noblogs.org/resposta-ao-civilizacao-primitivismo-e-anarquismo-de-andrew-flood/ #lang pt #pubdate 2019-07-13T02:19:05 O artigo “Civilização, primitivismo e anarquismo”, escrito por Andrew Flood[1] em 2004 e traduzido recentemente por Rafael V. da Silva[2], é provavelmente a crítica ao primitivismo mais discutida na internet. Apesar de ter sido respondida diversas vezes[3], ela ainda atrai pessoas em busca de uma refutação fácil ao primitivismo. O seguinte artigo tem o objetivo de rever essa discussão e expressar uma posição eco-anarquista anticivilização em relação à crítica de Flood. Apesar da afirmação no resumo da tradução brasileira, o artigo de Andrew Flood não refuta o primitivismo nem demonstra que logicamente este exige a morte de 90% da humanidade, e isso pode ser demonstrado de modo relativamente simples. Na verdade, essa crítica é tão rasa que ela só tem servido para divulgar a crítica à civilização, já que basta ler as respostas mais sérias para perceber que Flood cria um espantalho. Então, agradecemos ao esforço do Rafael pela possibilidade que abre para a crítica à civilização. Apesar de o argumento ser raso, ele serve para iniciar o debate sobre civilização, já que é uma abordagem típica de pessoas que acabaram de tomar contato com essa crítica, e promover esse debate é o nosso objetivo. Do nosso ponto de vista, o artigo responde a um espantalho. Parte de premissas equivocadas e faz saltos argumentativos, além de falsas bifurcações. Toda crítica é bem-vinda. Mas o artigo não chega a entrar de fato na questão da civilização que é feita pelo anarcoprimitivismo e pela anarquia verde. Flood descreve o argumento central do primitivismo assim: a civilização, em si mesma, é um problema, e precisa ser abolida. É um bom resumo, mas impossível de compreender sem que se defina exatamente o que é civilização e como ocorreria sua abolição. Essas questões fundamentais não são trabalhadas no artigo, o que nos leva a pensar que o autor não compreendeu de fato a crítica primitivista. * Notas antes de começar Em primeiro lugar, é preciso notar que o artigo não está respondendo especificamente ao primitivismo, mas tentando demonstrar a inviabilidade de uma crítica à civilização em si. Embora os primitivistas sejam conhecidos por fazerem uma crítica radical à civilização, tal crítica não é exclusiva do primitivismo ou da anarquia verde. A seguinte resposta ao artigo parte de uma perspectiva eco-anarquista anticivilização que não é propriamente primitivista. Muitos eco-anarquistas rejeitam o termo “primitivismo” justamente para evitar essa carga ideológica que o associa à idealização do selvagem e simples rejeição do aparato técnico civilizado. O termo “primitivismo” é um rótulo pejorativo criado pelos críticos de determinada perspectiva anticivilização (especificamente no periódico anarquista Fifth State) e adotado de modo irônico por alguns deles, especialmente por John Zerzan. Em segundo lugar, é preciso notar o contexto dessa tradução no Brasil: as notícias sobre atentados em Brasília, realizados por um grupo que se autodeclara eco-extremista. Se a intenção do tradutor era divulgar um artigo que respondesse a isso, ela falha em vários sentidos: O grupo em questão não é anarquista nem primitivista, nem possui uma crítica radical à civilização. Ele faz uma crítica superficial, individualista, niilista e amoral à civilização, e se utiliza de alguns conceitos anticivilização (principalmente domesticação) para justificar ataques violentos a pessoas. De fato o grupo rejeita o primitivismo e declara em seus escritos que “estamos nessa por motivos diferentes”. O eco-extremismo rejeita a esperança numa mudança social, defendida por primitivistas como Zerzan, e adota táticas violentas que não são endossadas pelo primitivismo. O artigo agrava a situação ao sugerir uma relação entre anarquistas anticivilização e ecoterrorismo, o que é injusto com ativistas que não tem nada a ver com essas ações. O que se segue é uma resposta ao artigo de Andrew Flood, parte a parte. * Introdução Segundo Flood, o problema do primitivismo é que alguns de seus adeptos o usam como base para “atacar todas as outras propostas de mudança da sociedade”. Como eles fazem isso? Criticando radicalmente a sociedade de massas, ou seja, afirmando que uma sociedade anarquista não poderia ser uma sociedade de massas. Para Flood, o anarcoprimitivismo é uma contradição de termos, pois o anarquismo é a luta por uma sociedade de massas sem Estado e sem capitalismo, não sem civilização. Ele diz que, se fosse verdade que há uma incompatibilidade entre liberdade humana e sociedade de massas, seria impossível a proposta anarquista de um mundo de “federações livres de cidades, vilas e campos”. A seguir, Flood cita Bakunin: “Estamos convencidos de que toda a riqueza do desenvolvimento intelectual, moral e material do homem, bem como sua aparente independência, é o produto de sua vida na sociedade (…) a combinação de inteligência e trabalho coletivo foi capaz de forçar o homem a sair daquele estado selvagem e brutal que constituía sua natureza original, ou melhor, o ponto de partida para seu desenvolvimento posterior”. Aqui fica evidente que Flood não se deteve na distinção entre sociedade e civilização. Ele pega um trecho em que Bakunin defende o desenvolvimento humano, que para ele levava a graus mais elevados de organização social, distanciando-se do “estado selvagem” ou original, e o toma como uma defesa da civilização. Para Bakunin, o estado original do homem é solitário ou egoísta, ele se move para a vida comunitária ou solidária na medida em que se desenvolve. A implicação de tal argumento seria que o modo de vida civilizado seria necessariamente superior aos modos de vida de povos originários. O homem civilizado é o homem coletivo, mais evoluído que o homem individualista. Negar tal superioridade seria, nessa visão, negar o próprio desenvolvimento humano. Logo, se um povo não avançou do mesmo modo e não desenvolveu as mesmas instituições e tecnologias, deveríamos supor que faltou inteligência e trabalho coletivo, e que o homem está condenado à pobreza intelectual, moral e material em qualquer modo de vida que não se assemelhe ao nosso. Não pode haver harmonia pré-estabelecida entre o comportamento humano, desenvolvido na interação com seu habitat original, e algo que não existiu durante cerca de 90% do tempo em que existem seres humanos. Se o desenvolvimento humano ocorre desde sempre ele não pode ser algo tão recente quanto a civilização. A civilização pode ser considerada como um desenvolvimento cultural específico. Considerar esse modo de vida como aquilo que nos torna humanos ou mais desenvolvidos é um erro antropológico. Sem a distinção entre o que é propriamente humano e o que é especificamente civilizado, não entramos propriamente na crítica à civilização. * Que nível de tecnologia Flood acerta ao afirmar que os problemas, para os primitivistas, começam com o desenvolvimento da agricultura e da sociedade de massa. Ele também parabeniza John Zerzan por identificar a raiz do problema na “evolução na linguagem” e no “pensamento abstrato”. Mas responde isso com um truísmo: obviamente ninguém pode criticar a linguagem em si, nem o pensamento abstrato em si. Não podemos nos compreender enquanto humanos sem essas coisas. Por um lado, a crítica à cultura simbólica talvez não seja tão alucinada quanto parece. Ela pode ser interpretada não como uma crítica à “evolução” da linguagem, mas sim ao empobrecimento da linguagem devido à alienação e padronização imposta pela dominação de classe. O problema não é ao pensamento abstrato, e sim à crescente virtualização e abstração da vida concreta, num modo de pensamento em que a representação simbólica substitui a experiência direta e afasta o humano de sua materialidade ou naturalidade. De qualquer modo, a crítica à civilização não implica necessariamente numa crítica radical à linguagem, como demonstra o primitivista Jesus Sepulveda em Jardim das peculiaridades[4]. Infelizmente, Flood não problematiza o conceito de “nível tecnológico”, que pode implicar em considerar nossa cultura como mais elevada numa escala hierárquica de avanço técnico. Como Flood aponta, a tecnologia de uma sociedade primitivista futura provavelmente se parecerá bastante com a de sociedades pré-agrícolas de 12.000 anos atrás. Mas tais sociedades não são o único exemplo que temos. As sociedades que ainda vivem de modo semelhante às sociedades pré-agrícolas de 12.000 anos atrás não estão desaparecendo porque estão se desenvolvendo naturalmente para um nível tecnológico mais avançado. Elas estão sendo convertidas ou dizimadas por um processo político e histórico que também podemos chamar de civilização ou colonização. O primitivismo não retorna a um estágio anterior porque não existem estágios progressivos de avanço técnico. Não existe “mais avançado” quando se compara duas culturas diferentes, porque o avanço técnico não é neutro e varia de acordo com os valores de cada cultura. * Uma questão de números Para Flood, o problema central da ideia primitivista é que 6 bilhões de pessoas não poderiam viver como caçadores-coletores, pois não existe comida suficiente nos ecossistemas naturais nem sequer para mais de 100 milhões de pessoas. Ele quer saber como alimentar tanta gente sem civilização. Esse é o seu argumento central. Mas só teria sentido se primitivismo estivesse de fato propondo o fim da técnica civilizada num mundo com 6 bilhões de pessoas. Mesmo considerando que somente as atuais técnicas agrárias poderiam produzir comida suficiente para tanta gente, isso não significa que tais técnicas não possam ser um problema. Um trabalhador anticapitalista sabe que ele é forçado a vender sua força de trabalho ao dono dos meios de produção enquanto o capitalismo existir. Aceitar esse fato não é mesmo que se conformar ao capitalismo e rejeitar qualquer crítica a ele. Ele sabe que simplesmente ser seu próprio patrão (ser empreendedor), sem atacar o capitalismo em si, não é uma solução. Um anarquista anticapitalista sabe que o Estado é um problema ainda que compreenda que simplesmente acabar com o Estado aos moldes do libertarianismo (privatizando tudo e eliminando impostos) não é uma solução. Por que diabos um anarquista anticapitalista e anticivilização não saberia que a civilização se impõe como única opção para uma população elevada? Este fato por si só não significa que a civilização não possa ser um problema em si. E sabemos que simplesmente atacar ou rejeitar a infraestrutura civilizada não é a solução. Em todos os casos, enquanto houver capitalismo, não há solução. Estamos de comum acordo com esse ponto, certo? A questão para Flood parece ser: “Se não assim, então como?”. Se não destruindo a agricultura aqui e agora, sem alterar nossa relação com este meio de produção, então como? A resposta para isso aparece na própria pergunta. Apesar de não ser um objetivo simples, mudar nossa relação com o modo como produzimos alimentos não parece ser impossível. Assumir que necessariamente não há outro jeito é reduzir qualquer proposta ao absurdo. A literatura anticivilização oferece bons pontos de partida para essa questão. Em termos simples, a questão é “dependência tecnológica”. Atualmente, dependemos da tecnologia civilizada pra viver, mas isso não é necessariamente uma coisa boa. A dependência tecnológica civilizada não é apenas aceita como um fato para Flood. Ela não é problematizada, sua postura é de conformidade em relação ao sistema técnico. Ele supõe que o que precisa ser mudado é interno a essa estrutura técnica, é o controle sobre essa estrutura, e não ela em si. Na lógica de Flood, se não há como alimentar tanta gente sem civilização, então rejeitá-la significa que bilhões de pessoas precisam morrer. Mas Flood vai mais além. Ele não apenas subestima a inteligência das primitivistas, como as acusa de desonestidade. É como se as primitivistas estivessem fugindo da questão lógica da população (como alimentar 6 bilhões), como se qualquer crítica à civilização implicasse simplesmente em fazer desaparecer num passe de mágica o sistema que atualmente alimenta 6 bilhões de pessoas. Seria como dizer que criticar o capitalismo é largar seu emprego, ou que criticar a domesticação é soltar seu cachorro e não alimentá-lo mais. A tentativa de contextualizar corretamente a crítica à civilização é tratada por Flood como pura retórica, puro jogo de palavras. É um fato que a agricultura totalitária (controle exclusivo sobre o solo) fornece muito mais comida para humanos por metro quadrado de solo. É um fato que, sem desenvolver tais técnicas, certamente não teríamos o crescimento populacional exponencial que tivemos na civilização, e certamente não poderíamos mantê-lo. O ponto é: o que produziu esse crescimento? Qualquer proposta de decrescimento da população necessariamente implica em defender algo semelhante a “deixar bilhões de pessoa sem comida”? Agora que temos 6 bilhões, necessariamente teremos que passar o resto de nossa existência no planeta com pelo menos 6 bilhões? A população humana não pode decrescer sem que necessariamente se condene pessoas à fome ou à morte? Superpopulação é um tema complexo, eu admito. Principalmente porque não é uma questão de números, é uma questão política. É uma questão de modo de produção. Este modo baseado na produção massiva de recursos para uso exclusivo de habitantes de cidades é sequer viável na comunidade da vida terrestre? Quais são seus custos reais? Para Flood, questionar a viabilidade ecológica da sociedade de massas é o mesmo que desejar a morte de bilhões de pessoas. Este apelo emotivo blinda seu ideal político de qualquer crítica. A questão fica assim reduzida a uma falsa bifurcação: ou o primitivista diz como alimentar bilhões de pessoas sem agricultura civilizada, ou sua perspectiva política exige que elas morram. Caberia aos primitivistas explicar como 6 bilhões de pessoas podem ser alimentadas sem tecnologia ou então admitir que o primitivismo não é realista. Flood repete insistentemente que o primitivismo exige que bilhões de pessoas morram porque não pode solucionar o não solucionável. Assim, contribui para que o primitivismo seja associado ao catastrofismo. Esse argumento parte de uma concepção totalmente infundada: de que o primitivismo implicaria em destruir repentinamente a tecnologia civilizada, ou negar acesso a ela, deixando as pessoas sem qualquer modo de se sustentar, como um valentão chutando a bengala de uma senhora que está com a perna quebrada, ao invés de ajudá-la a se recuperar e caminhar sem o auxilio da bengala. Ambas as hipóteses são absurdas: não podemos simplesmente fazer desaparecer o sistema tecnológico da noite para o dia, isso seria irrealista. Também não podemos fazer a população sumir em curto em prazo, para que então o modo de vida não civilizado seja novamente viável para todos. A proposta realista é lutar contra capitalismo e o Estado, e ao mesmo tempo reduzir nossa dependência tecnológica e construir as condições para que a civilização possa ser abandonada, que se torne desnecessária antes que seu dano se torne irreversível. Flood não leva em consideração a possibilidade de o processo civilizador ser reversível. Ele trata tal processo como determinado pelo próprio desenvolvimento histórico do homem. Acabar com a tecnologia civilizada num passe de mágica não é uma boa proposta primitivista. Se algumas pessoas acreditam que os fins justificam os meios, e que matar algumas pessoas agora é necessário para evitar algo pior, não é pelo fato de serem anticivilização, mas pelo fato de terem desistido de lutar contra a civilização pela via política. São extremistas, se renderam ao desespero e à crença de que não há saída pelo debate público, pela análise do problema e pela mudança social. Esse modo de pensamento é criticável, independente da perspectiva no qual ele se manifesta. Alguns anarquistas anticivilização estão convencidos que o processo civilizatório pode ser revertido pela mudança de mentes ou pela desconstrução de uma determinada cultura, ainda que muito arraigada, sem que isso implique em ações desesperadas. Há muita discussão sobre isso entre os anarcoprimitivistas. O avanço técnico pode ser revertido? Podermos diminuir nossa dependência tecnológica ao invés de aumentá-la? Podemos fazer isso gradativamente? Existe transição pacífica? Quanto tempo nós temos? A população pode retornar a uma margem sustentável na medida em que nós desconstruímos o sistema econômico que possibilita o aumento populacional? Tudo isso depende que não se naturalize o aumento populacional, que ele seja compreendido como um fenômeno social que também pode ser criticado, não como algo um fenômeno evolutivo ou natural. E numa coisa podemos concordar totalmente: o primitivismo não substitui a luta anarquista pela libertação. Há muitos tipos de primitivismo, e não vejo nenhuma incoerência insuperável entre anarquia e crítica à civilização. Qual princípio anarquista seria ferido ao admitir que a sociedade de massas talvez seja insustentável? Ainda podemos criar federações de cidades. E podemos nos mover para o abandono dessas cidades na medida em que resgatamos as condições para modos de vida menos complexos. Anarcaprimitivistas em geral possuem uma crítica elaborada à civilização e se identificam politicamente com as propostas anarquistas, feministas, antirracistas e indigenistas. Flood afirma que há uma contradição entre anarquismo e anticivilização porque o anarquismo, como qualquer luta política, envolve a adoção da tecnologia atual. O que tem isso a ver? Adotar a tecnologia atual para nossas ações não implica em deixar de criticar a tecnologia. A crítica primitivista não se trata de boicote ou demonização, assim como a crítica anticapitalista não se trata simplesmente de produzir seus próprios bens de consumo. Deixar de usar tecnologia civilizada individualmente não é uma crítica radical à tecnologia, é um mero escapismo ou anarquismo de estilo de vida. A anarquia anticivilização não pode ser reduzida ao individualismo “primitivo”. “O problema é que os primitivistas gostam de atacar os próprios métodos de organização de massas que são necessários para derrubar o capitalismo”. Para Flood, a crítica à civilização inviabiliza os métodos de organização anarquistas porque estes dependem da estrutura civilizada para se realizarem. Ele enxerga a crítica à civilização como um ataque aos grupos anticapitalistas porque estes estão obviamente inseridos na civilização e dependem dela para existir. Mas assim como anarcafeministas não estão atacando o anarquismo ao criticar o patriarcado, anarquistas anticivilização não estão atacando o anarquismo ao criticar a civilização. A não ser que você ache que a anarquia necessariamente defenda a civilização. Anarquistas que não compreendem a crítica ao patriarcado ou à civilização simplesmente ficam defensivos porque perdem sua referência. Basta conversar pra entender que não é bem assim. “Qual é afinal de contas o sentido de se lutar por uma sociedade justa hoje se amanhã ou no dia seguinte 98% de nós morrermos e tudo o que construímos vai desmoronar?”. Essa é a pergunta que um primitivista poderia fazer. Qual o sentido da sua luta se a civilização em si ameaça destruir tudo que os seres humanos construíram nos 200 mil anos que antecedem a civilização? E o que dizer de tudo que as outras formas de vida terrestres construíram nos milhões de anos que antecedem esse curto e recente experimento que chamamos de civilização? Cabe ao defensor da civilização mostrar que não há problema nenhum num espantoso e relativamente recente rampante populacional e na dominação totalitária de territórios por parte de sociedades civilizadas. A crítica à civilização é exagerada? Desnecessária? Absurda? Talvez. Mas certamente não pelos motivos que Flood aponta. * Estamos todos condenados? Não importa quantos dados apresentemos sobre os problemas inerentes de uma sociedade de massas, é sempre possível dizer que não passa de alarmismo com a intenção de assustar as pessoas e forçar adesão a uma doutrina. Infelizmente, o alarmismo é um problema real, e não é exclusivo do primitivismo. Mas Flood rejeita dados que não podem ser descartados assim tão fácil. O fim do petróleo barato, por exemplo. Críticos da civilização não negam necessariamente que a civilização possa encontrar um meio para se perpetuar. Isso apenas implicaria num cenário ainda mais distópico. É verdade que a elite capitalista pode lucrar com uma crise do capitalismo, e pode até criar crises com a intenção de lucrar. Isso significa que o capitalismo sempre vai dar a volta por cima e resolver qualquer crise? O capitalismo é perfeitamente capaz de sobreviver a uma crise bastante destrutiva. A civilização também. Isso significa que os alertas sobre aquecimento global e extinção em massa são pura bobagem? A questão é no que as pessoas estão engajadas. O que mantém as pessoas engajadas no capitalismo e na civilização? * E se? Flood desenha um cenário de colapso infraestrutural em que há manutenção do sistema. A morte de pessoas ou destruição de estruturas materiais realmente não é suficiente para mudar a sociedade pra melhor. Menos pessoas ou máquinas não é o mesmo que menos civilização. Mas Flood parece sugerir que o primitivista de algum modo depende de tal colapso. Como se a tática primitivista implicasse em destruição em grande escala da infraestrutura civilizada. Ele também afirma que independente do que aconteça o conhecimento civilizado irá permanecer ou se desenvolver novamente; e a civilização será reconstruída sempre, de novo e de novo. Isto é verdade somente se as pessoas ainda preservarem os valores da cultura civilizada. Assim como modos de governo autoritários irão ressurgir enquanto as pessoas preservarem os valores conservadores e autoritários. Se elas ainda acreditam nesse modo de vida, se acreditam que ele é necessário e superior e deve ser perseguido a qualquer custo, então significa que a crítica anticivilização falhou. A tecnologia não foi imposta por uma força externa misteriosa, mas também não é neutra. Quem realmente desenvolveu a tecnologia civilizada? E qual seu custo real? O autor sugere que a crítica à tecnologia é uma mera negação do sistema tecnológico. Em nenhum lugar ele parece considerar a filosofia da crítica à tecnologia. Ele simplesmente aponta para a impossibilidade de abandonar tal sistema no momento atual, mas não comenta nada sobre as razões para abandoná-la. Simplesmente repete o truísmo de que a tecnologia civilizada será sempre preferível. Supondo que uma população de até 100 milhões seja uma condição material necessária para um mundo sem civilização, nada implica que essa condição precise ser alcançada à força, independente de uma conscientização ou discussão sobre o problema da civilização e do estouro populacional. Se não acreditássemos que é possível que as pessoas compreendam que a civilização pode ser um problema, e que a população provavelmente precisa diminuir muito se quisermos voltar a viver num modo de vida mais próximo do originário, mais igualitário e ao mesmo tempo com menos dependência tecnológica, não faria sentido escrever sobre isso. Dizer que precisamos que bilhões de pessoas simplesmente desapareçam é como dizer que os anarquistas precisam que bilhões de pessoas desapareçam: aquelas que morreriam caso os governos e forças do Estado atualmente estabelecidos simplesmente desaparecessem, sem serem substituídas por outra organização social. * Por que argumentar contra isso? Para Flood o primitivismo nega o racionalismo e o troca por um misticismo baseado na conexão com natureza. O que Flood ataca é realmente uma ideologia irracionalista. As conclusões lógicas do espantalho de Flood seriam realmente reacionárias. O “primitivista” de Flood não critica de fato a civilização, não eleva essa crítica por meio de debates informados, dados científicos e argumentos. Não traz uma compreensão do problema fundamental da civilização. Ele simplesmente odeia a civilização e procurá-la destruí-la a qualquer custo, quer as pessoas concordem com isso ou não. Esse “primitivismo” é uma caricatura grotesca que não se encaixa no que a maioria dos teóricos produzindo uma crítica à civilização está fazendo. Se tal figura de fato existe, se há pessoas se considerando primitivistas e defendendo absurdos desse tipo, nenhuma anarcaprimitivista quer ser confundido com eles. Embora críticos da civilização como Daniel Quinn não sejam de fato anarquistas ou primitivistas, eles são lidos por anarquistas pelo mesmo motivo que se leem George Orwell, Aldous Huxley, Ray Bradbury e tantos outros autores que não são anarquistas, mas que fizeram críticas interessantes aos mesmos aspectos da sociedade que os anarquistas criticam. A crítica à civilização e a ecologia profunda podem trazer elementos novos para a esquerda em geral, tanto quanto o feminismo e a luta LGBT. Anarquistas em geral têm recebido essas influências de modo mais aberto, por isso é natural que haja mais pessoas se identificando como anarcoprimitivistas do que como comunistas anticivilização. * Precisamos de mais não menos tecnologia Flood admite que a civilização tem muitos problemas, mas parte do pressuposto que este modo de vida é o melhor que temos disponível, logo esses problemas DEVEM ser superáveis. “O desafio para os anarquistas é transformar a civilização em uma forma sem hierarquia”. Como isso seria possível? Uma “civilização” sem hierarquia ainda seria algo que um primitivista chamaria de civilização? Seu argumento, basicamente, é que precisamos de tecnologia porque somos muitos. Ou seja, somos obrigados a isso por um fator populacional. O que isto quer dizer? Ele está concordando com a crítica anticivilização, mas dizendo que infelizmente a civilização é um mal necessário, por pior que sejam seus efeitos? Ou está simplesmente dispensando a crítica à civilização antes de considerá-la realmente, simplesmente por sua suposta inaplicabilidade? Como nos tornamos muitos? Devemos, necessariamente, continuar sendo muitos, para todo sempre? Flood parte do imperativo moral de manter a população atual viva para o imperativo de que a civilização permaneça existindo indefinidamente, o que é um salto argumentativo, porque pressupõe que sempre dependeremos de civilização para nos manter vivos. Ignora que podemos gradualmente diminuir nossa dependência da civilização e nossa população se esse for nosso objetivo político. Não que isso seja fácil, mas nada indica que seja impossível ou indigno. Descivilizar é um árduo processo político de longo prazo, tal como desconstruir o patriarcado. Desfazer o fetiche por civilização é tal como desconstruir a cultura do mercado. Se uma pessoa acredita que a civilização elevou o nível de vida das pessoas, ela automaticamente está afirmando o contrário do que os primitivistas. Flood reafirma por princípio justamente aquilo que a crítica à civilização procura questionar. Evitando entrar propriamente na crítica, ou compreender o ponto de vista do primitivismo, o resultado não poderia ser outro senão este. Qualquer proposta é maluca até que ela seja devidamente considerada no seu devido contexto. Somente a partir daí ela pode ser seriamente criticada. Antes disso, está sendo simplesmente rejeitada a priori. Flood sustenta que a sociedade só pode se tornar mais igualitária com apoio do desenvolvimento tecnológico. A razão para isso é que, no atual contexto, nenhuma mudança social é possível sem o apoio do desenvolvimento tecnológico. O argumento de Flood tem a mesma estrutura de um argumento comum contra o anarquismo: no atual contexto, as pessoas não estão preparadas para viver sem o Estado. Logo, o anarquismo é irrealista. Todos sabemos que isso é uma falácia. Que tipo de igualdade pode ser produzida a partir do sistema técnico civilizado, e que tipo de igualdade não pode? Qual o custo real deste desenvolvimento tecnológico tipicamente civilizado? É isso que a anticivilização questiona. Flood dá um bom exemplo de como é impossível uma sociedade baseada em carros para todos. Sua conclusão é que precisamos de transporte público, substituir carros por bicicletas, motos, trens, ônibus, caminhões e micro-ônibus… A lógica parece ser essa: carros são insustentáveis, mas ônibus são sustentáveis. Que tipo de problema exatamente o transporte público resolve? Se você troca os carros por bicicletas, isso certamente implica numa redução do impacto. Resolve-se um problema que a própria civilização criou. Mas o carro também foi, em algum momento, a solução de outro problema civilizado. A crítica à civilização não é uma mera crítica ao tamanho do impacto da atividade civilizada, e sim à natureza desse impacto. Para onde essas bicicletas nos levam? Elas reproduzem a lógica domesticadora da urbanidade, nos conduzido “ecologicamente” do trabalho para a casa e da casa para o trabalho? Não importa em que veículo nós estamos seguindo, e sim para onde estamos indo. A “solução” de flood para os carros não questiona o problema inerente ao modo de vida urbano. Se esse problema não existe e não precisa sequer ser considerado, então a crítica à civilização é inútil, poderia ser substituída por um ambientalismo convencional. A desculpa para desconsiderar a priori qualquer crítica fundamental à civilização é que isso impediria qualquer forma de luta contra o sistema capitalista. É como dizer que não precisamos sequer considerar a crítica ao especismo porque criticar uma dieta com base em derivados de animais implicaria na impossibilidade de um movimento anticapitalista, que é composto basicamente por pessoas que comem carne. A ênfase de Flood em transformar o primitivismo numa impossibilidade lógica é absurda. Seu argumento não se sustenta de modo algum. Embora possamos concordar que a civilização pode perpetuar-se por muito mais tempo, a questão não é a simples insustentabilidade do modo de vida civilizado. A questão fundamental é qual o custo desse modo de vida? O que perdemos ao embarcar nele? As necessidades humanas deveriam realmente ser consideradas a partir do acesso a bens, transporte, saúde e educação dos países escandinavos, por exemplo? A civilização é em si uma sociedade idealizada. Ela é uma “idade de ouro” artificial, na qual o ser humano alcança patamares nunca antes imaginados. Enquanto Flood acusa primitivistas de sonharem com uma era perdida (que não é uma era, e nem está perdida, são modos de vida que foram e ainda estão sendo dizimados pela civilização) em que a população mundial era baixa o suficiente para permitir um modo de vida diferente da civilização, ele sonha com uma era em que a civilização finalmente realizará suas promessas, entregar os benefícios de uma vida moderna sem nenhum dos seus custos históricos. Isso é realmente possível? A civilização pode permitir a existência de outros modos de vida? Ela pode devolver as terras que roubou dos indígenas? Pode devolver as florestas para as espécies que alienou? O ponto é justamente esse: se há problemas com a civilização, quais exatamente são esses problemas? Seriam todos problemas técnicos, cuja solução é mais ou menos como substituir carros por bicicletas? Ou há algum problema fundamental, filosófico, ético, político, social, mais profundo que um simples problema econômico? Haveria uma contradição interna, que dialeticamente leva à superação desse modo de vida? Quais são as razões dos primitivistas para criticar a civilização? Sim, eles acham que ela é um problema em si e que nos afasta de nossa realização plena enquanto seres humanos. Mas POR QUE pensam isso, e com BASE EM QUE pensam isso? Uma boa crítica ao primitivismo precisaria partir de uma boa resposta a essas perguntas. Sem isso, o alvo da crítica será sempre taxado de louco, como é loucura falar de comunismo para um neoliberal convicto de que o livre mercado é estado original do homem e implica no máximo de liberdade humana, e que o contrato social que funda o Estado é uma opressão ao indivíduo e deve ser rejeitada a qualquer custo. Se você força a sua interpretação dos fatos em toda construção teórica que toma contato, é impossível que você concorde com qualquer proposta política diferente da que já concorda. O primitivismo não oferece nenhuma ameaça aos que estão construindo movimentos de massa para derrubar o capitalismo. As anarcaprimitivistas também participam desses mesmos movimentos. Flood entende que é preciso reverter os processos de destruição ambiental que o capitalismo está gerando. Eco-anarquistas simplesmente apontam que a extensão e talvez a natureza dessa destruição seja diferente do que a ecologia convencional sugere. O buraco pode ser muito mais embaixo, e pode implicar no fim das condições de possibilidade de algumas estruturas fundamentais para a manutenção da sociedade de massas. Há diversos argumentos contra e a favor disso. Nenhum deles foi realmente analisado por Flood e pela maioria dos críticos do primitivismo. Eles perdem tempo criticando contradições lógicas simplórias, fazendo reduções ao absurdo, como o fato de que o primitivismo não tem uma proposta para manter 6 bilhões de pessoas vivas hoje sem a civilização. Supõem assim que o primitivismo é a simples rejeição absurda e sem sentido ao sistema técnico do qual estamos completamente dependentes. Seria como criticar a reintrodução de animais criados em cativeiro ao seu habitat natural dizendo que eles iriam morrer se forem soltos na floresta. Sim, iriam, mas a renaturalização nunca defendeu simplesmente soltar animais que passaram a vida inteira numa jaula e esperar que eles sobrevivam. Renaturalização é um processo de readaptação ao meio, e a crítica à civilização defende algo semelhante. Nas palavras de Flood, “o primitivismo é uma alucinação – não oferece um caminho adiante na luta por uma sociedade livre”. A partir de um ponto de vista que desconsidera por princípio as premissas primitivistas, é necessário que este não ofereça caminho, porque nenhum caminho fora da civilização pode parecer válido para quem considera a civilização como a grande criação humana. Não há um caminho que pessoas como Flood, plenamente convictas da superioridade da civilização, sejam capazes de reconhecer. Se a civilização pudesse ser vista por eles como um mal atualmente necessário devido ao excesso populacional, e não como um estágio superior e irreversível do desenvolvimento humano, talvez tal caminho fosse visível. Quando se funda uma proposta política na necessidade de permanência e expansão indefinida do projeto civilizador, qualquer proposta de crítica a esse modo de vida não pode ser vista senão como um ataque a qualquer proposta de mudança. Sua premissa inegociável é a exigência de mais civilização para conquistar o fim do capitalismo. Sem problematizar essa premissa, como compreender a crítica à civilização? [1] https://libcom.org/library/civilisation-primitivism-anarchism-andrew-flood [2] https://ithanarquista.wordpress.com/2018/12/04/andrews-flood-civilizacao-primitivismo-e-anarquismo [3] https://theanarchistlibrary.org/library/nihilo-zero-a-primitivist-response-to-andrew-flood-s-question-is-primitivism-realistice https://theanarchistlibrary.org/library/lawrence-jarach-why-i-am-not-an-anti-primitivist [4] https://contraciv.noblogs.org/files/2016/04/JardimDasPeculiaridades3_LIMPAR.cleaned.pdf