Coletivo de Ex-Trabalhadores Crimepensar
Contra o Coronavírus e o Oportunismo do Estado
Anarquistas na Itália Relatam a Disseminação do Vírus e da Quarentena
Introdução
De um lado, nossas vidas são ameaçadas por um novo vírus; do outro, nossa liberdade é ameaçada por nacionalistas e autoritários que pretendem usar essa oportunidade para estabelecer novos precedentes para a intervenção e controle do Estado. Se aceitarmos essa dicotomia — entre vida e liberdade — continuaremos pagando o preço ainda por muito tempo depois que essa pandemia em específico tiver passado. De fato, uma está ligada à outra, é dependente da outra. No relatório a seguir, nossos camaradas na Itália descrevem as condições prevalecentes lá, as causas da crise crescente e como o governo italiano aproveitou a situação para consolidar o poder de uma forma que só irá agravar as futuras crises.
Nesse momento, a estratégia das autoridades não visa proteger as pessoas do vírus, mas controlar o ritmo em que ele se espalha para não sobrecarregar a infraestrutura estatal. O gerenciamento de crises está na ordem do dia, como em muitos outros aspectos de nossas vidas. Nossos governantes não pretendem preservar a vida de todas as pessoas — eles já descartaram a preocupação com as mais necessitadas muito antes da crise começar. Pelo contrário, eles estão determinados a preservar a estrutura atual da sociedade e sua sensação de legitimidade.
Neste contexto, devemos ser capazes de distinguir entre dois desastres diferentes: o desastre do próprio vírus e o desastre causado pelas formas pelas quais a ordem existente responde — e não responde — à pandemia. Será um erro grave nos lançarmos à mercê das estruturas de poder existentes, confiando cegamente que elas existem para nos salvar. Pelo contrário, quando governantes dizem “saúde”, se referem muito mais à saúde da economia do que à saúde de nossos corpos. Caso em questão: a Reserva Federal dos EUA prometeu injetar US$ 1,5 trilhão para estabilizar o mercado de ações — US$ 500 bilhões para os bancos — mas a maioria dos cidadãos dos EUA ainda não pode fazer o teste de coronavírus.
Para ficar claro: embora Trump e outros nacionalistas em todo o mundo pretendam aproveitar essa oportunidade para impor novos controles a nossos movimentos, essa pandemia não é uma consequência da globalização. As pandemias sempre foram globais. A peste bubônica se espalhou pelo mundo centenas de anos atrás. Ao introduzir uma proibição de viajar vindo da Europa, enquanto continuam tentando preservar a saúde da economia dos Estados Unidos — em vez de direcionar recursos para a preservação da saúde dos seres humanos nos EUA — Trump está nos dando uma lição explícita sobre como o capitalismo é fundamentalmente perigoso para a nossa saúde.
Vírus não respeitam as fronteiras inventadas do Estado. Esse já está dentro dos EUA, onde o serviço de saúde é muito menos abrangente e uniformemente distribuído que na maior parte da Europa. Todo esse tempo, enquanto o vírus se espalhava, pessoas que trabalham no setor de serviços foram forçadas a continuar colocando a si mesmas em risco a fim de pagar suas contas. Para eliminar as pressões que coagem pessoas a tomar essas decisões difíceis, primeiro teríamos que acabar com o sistema que cria uma desigualdade tão drástica. Pobres, sem teto, e outras pessoas que vivem em condições insalubres ou sem acesso a um sistema de saúde decente são sempre as mais atingidas por qualquer crise - e o impacto nelas coloca todo mundo em um risco maior, espalhando ainda mais o contágio, e com maior velocidade. Nem os mais ricos entre os ricos podem se isolar completamente de um vírus desse tipo, como demonstra a circulação do vírus no escalões mais altos do Partido Republicano. Resumindo: a ordem vigente não é benéfica pra ninguém, nem para quem mais se beneficia dela.
Esse é o problema com o que Michel Foucault chamou de biopoder, onde as mesmas estruturas que sustentam nossas vidas também as restringem. Quando esses sistemas param de nos sustentar, nos vemos em uma armadilha, dependentes da mesma coisa que está nos ameaçando. Numa escala global, a mudança climática produzida industrialmente já tornou essa situação bem familiar. Algumas pessoas até sugeriram que, ao reduzir a poluição e acidentes em locais de trabalho, a desaceleração industrial que o vírus causou na China está salvando vidas, ao mesmo tempo que as está tirando.
A resposta de progressistas e esquerdistas é criticar as falhas do governo Trump, efetivamente pedindo mais intervenção governamental e controle centralizado — o qual Trump, ou seus sucessores, com certeza irão exercer em benefício próprio, não apenas como resposta a pandemias, mas também como resposta a qualquer coisa que percebam como ameaça.
Fundamentalmente, o problema é que não temos um discurso sobre saúde que não parta da premissa do controle centralizado. Ao longo do espectro político, toda metáfora que temos para segurança e saúde é baseada mais na exclusão da diferença (por exemplo: fronteiras, segregação, isolamento, proteção) do que na busca por desenvolver uma relação positiva com a diferença (por exemplo: ampliar os recursos do sistema de saúde para todas, incluindo aquelas fora das fronteiras dos EUA).
Precisamos de uma forma de conceber o bem-estar que compreenda a saúde física, os laços sociais, a dignidade humana e a liberdade como estando todas conectadas. Precisamos de uma forma de responder a crises baseada em apoio mútuo - que não conceda mais poder e legitimidade para tiranos.
Ao invés de colocar fé cega no Estado, precisamos focar no que podemos fazer com nossa própria agência, olhando para os precedentes anteriores para nos orientar. Não vamos deixar ninguém atacar a forma de organização anarquista como não sendo “disciplinada” ou “coordenada” o suficiente para tratar de um assunto como este. Já vimos diversas vezes que as estruturas capitalistas e estatais são, na melhor das hipóteses, “disciplinadas” e “coordenadas” exatamente de formas que impõem crises desnecessárias sobre nós — pobreza, mudanças climáticas, o complexo industrial prisional. Anarquismo, como o vemos, não é um projeto hipotético para um mundo alternativo, mas a necessidade imediata de agir fora e contra os ditames do lucro e da autoridade de forma a reagir às suas consequências. Enquanto os modelos atuais de se “gerenciar a pandemia” que os Estados estão pondo em prática são baseados no controle vertical que sempre falha em proteger as pessoas mais vulneráveis, uma abordagem anarquista se focaria principalmente em direcionar os recursos, como cuidados médicos, para todas as pessoas que precisam deles, ao mesmo tempo em que empodera indivíduos e comunidades a serem capazes de limitar a quantidade de risco a que escolhem se expor sem enormes consequências negativas.
Existem precedentes pra isso. Lembramos de Malatesta voltando a Nápoles em 1884, apesar de uma condenação a três anos de prisão pendendo sobre ele, para tratar de uma epidemia de cólera em sua cidade natal. Com certeza nossos antepassados teorizaram sobre isso e realizaram ações com as quais poderíamos aprender hoje. Apenas alguns anos atrás, algumas anarquistas encararam o desafio de analisar como responder a um surto de ebola de uma perspectiva anarquista. Pedimos que vocês pensem, escreva e conversem sobre como criar um discurso sobre saúde que se distinga do controle estatal — e que tipos de ações podemos realizar juntas para ajudarmos umas às outras a sobreviver a esta situação de forma que preserve nossa autonomia.
Enquanto isso, apresentamos este relato de nossas camaradas do norte da Itália, que estão lidando com esta crise por algumas semanas a mais que nós.
Diário da Pandemia, Milão: Amor Nos Tempos de Corona
1918-1920: Já abalado pela Primeira Guerra Mundial, o mundo encarou um inimigo ainda mais traiçoeiro: a Gripe Espanhola, uma pandemia catastrófica que infectou 500 milhões de pessoas, matando 50 milhões de pessoas ou mais — o dobro do número de mortes da Guerra.
2020: COVID-19, uma nova pandemia, está se espalhando pelo mundo. No momento em que escrevemos este texto, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, mais de 125 mil casos foram confirmados, com mais de 4.600 mortes. Na Itália, existem 12.000 infecções, com pelo menos 827 mortes.
Aqui focaremos na Itália, formulando algumas questões sobre como enfrentar o COVID-19. O primeiro passo é recusar tomar a narrativa da mídia corporativa como certa e — acima de tudo — não ceder às prescrições e imposições vindas de cima, todas elas cada vez mais e mais opressivas.
Começamos com os fatos mais óbvios. Essa eclosão enfatiza a necessidade da solidariedade e cooperação internacional para que as pessoas juntem forças para lidar com as dificuldades e atinjam objetivos comuns. Mas no sistema atual — no qual todas as nações se beneficiam das tragédias de outras e toda “crise” prepara o caminho para obter lucros — isso não é possível.
De qualquer forma que abordemos a questão, chegamos na mesma conclusão: capitalismo e imperialismo apontam a necessidade de uma mudança radical no estado atual das coisas.
Mas vamos dar um passo atrás e nos concentrar na Lombardia, voltando ao dia em que o governo italiano assinou o primeiro decreto tentando controlar a disseminação da infecção.
Lombardia, 16 de Fevereiro
Nesse dia, o governo italiano assinou o primeiro decreto tentando controlar a disseminação da infecção.
Milão, 19:00h. A preocupação que todas as escolas e espaços de encontro iriam fechar se espalhou rapidamente, junto com o pânico entre as pessoas, criando momentos pseudo-apocalípticos. Supermercados foram invadidos como se estivéssemos à beira da guerra, com pessoas comprando grandes quantidades de máscaras respiratórias e higienizadores para as mãos (máscaras finas de papel se tornaram um totem representando segurança), escutamos gritos, vemos pessoas chorando aos prantos, experienciamos pânico em massa.
Seguindo os rumores quanto às restrições, Milão, a grande Milão, a cidade que nunca para, foi paralisada com medo. Mas demorou apenas poucas horas para retornar à sua vivacidade. De fato, na manhã seguinte do anúncio, o que causava alvoroço por toda a cidade não era medo do vírus, mas medo de não poder ser capaz de viver a “Milano da bere”. Bares e pubs foram fechados das 18h ás 6h — claramente, o vírus bate ponto pra trabalhar de noite como proletários no turno da madrugada. Restaurantes não foram fechados — aparentemente, você fica doente se beber, por outro lado, se você comer, o vírus respeita você. Ao mesmo tempo, vimos o fechamento de escolas, universidades e outros espaços de encontro.
Final de Fevereiro
Uma semana passa e Milão, essa aspirante provinciana a Nova Iorque, ainda não para. Da mesma maneira, o vírus avança, causando mais pânico. Existem mais infecções, mais mortes — mesmo se, garantidamente, as vítimas incluem muitas pessoas idosas sofrendo de doenças cardiovasculares existentes. Mais uma vez, tudo é interrompido — escolas, cinemas, teatros, beijar e abraçar — mas não os bares, restaurantes, shoppings, ou o transporte público. Enquanto isso, Beppe Sala, o prefeito da cidade, tenta dar força aos pobres milaneses afetados por esse terrível vírus que ataca de noite e somente se você encontrar alguém para beber. Utilizando suas amadas redes sociais, ele posta um vídeo com a hashtag #MilanoNonSiFerma (Milão Não Para).
Tecnicamente, o vídeo é impecável — fotos com cores vivas, músicas cativantes —, mas é tão falso quanto uma nota de três dólares. Sem dúvida, foi promovido pela Unione dei Brand della Ristorazione Italiana (União das Marcas Italianas de Restauração). Milão não para. Mas neste vídeo, não vemos realmente Milão, a verdadeira Milão — a Milão que eu amo, não porque é o centro da movida, mas porque é atravessada por arrepios revolucionários, mesmo que eles tentassem derrubá-la através do fascismo e da xenofobia, mesmo que tenha adormecido politicamente nos últimos vinte anos. O vídeo apresentado por Sala parece sair da década de 1980, quando foi veiculado o anúncio de um licor muito popular: Amaro Ramazzoti, o licor do “Milano da bere”.
A verdadeira Milão não está representada nessas imagens. A verdadeira Milão é aquela expressa de maneira grosseira, mas sincera, pelo coletivo Zam em um vídeo que reproduz o de um prefeito que — em poucos dias — retira a afirmação que ele mesmo fez, recorrendo a uma narrativa falsa na mídia; uma narrativa falsa em que a retórica de classe xenofóbica é constante e continuamente difundida, fazendo que a cidade viva da exploração da classe trabalhadora precarizada e de imigrantes que todos os dias precisam lutar contra o racismo, o patriarcado, a gentrificação, os subúrbios negligenciados e o capitalismo.
O vírus não é o coração da emergência. A verdadeira emergência, paciente zero desta cidade “cosmopolita”, é a precariedade econômica que causa desespero aos trabalhadores e trabalhadoras forçados a lutar contra o aumento do custo de vida e exploração que, nas últimas semanas, ocorreu no novo modelo de “trabalho inteligente” (“smart working”), nunca usado antes na Itália e que, certamente, se tornará a tendência do próximo ano de escravizar ainda mais através de subcontratos e terceirização. Muitos empregadores nas zonas vermelhas do norte da Itália estão forçando seus funcionários a tirar licenças médicas ou administrativas sem levar em conta que isso desestabilizará ainda mais um sistema estatal já precário e, acima de tudo, atingirá todos os trabalhadores precários que precisam lutar todos os dias para colocar comida na mesa, que passam sufoco aceitando empregos mal remunerados, que sofrem terríveis cargas horárias em locais de trabalho sem nenhum tipo de medida de segurança. Só para se ter uma ideia, de 1 de janeiro a 6 de fevereiro deste ano, ocorreram 46 mortes no local de trabalho.
Se analisamos os dois vídeos, notamos que, não por acaso, a mídia continua focando a responsabilidade por tudo o que acontece no indivíduo, desde o trabalho ao deslocamento de pessoas e à movimentação de mercadorias.
Resumindo, houve três etapas que podemos resumir da seguinte forma. A primeira etapa agora impossível de manter, é ocultar o problema. A segunda etapa é o chamado “terrorismo da mídia” que ainda está em andamento, variando e oscilando entre o pânico em massa e a calma ilusória. Na terceira etapa, a atual, mudanças dramáticas são impostas na sociedade, sob a cobertura de uma combinação de pânico e consenso social. Enquanto isso, decretos são introduzidos de maneira a impactar consideravelmente nosso futuro, negando-nos o direito de protestar, entrar em greve e nos reunir em nossos próprios termos.
O que acontecerá agora que o decreto assinado pelo Primeiro Ministro Giuseppe Conte foi publicado no Diário Oficial? Restrições e medidas adicionais para conter o vírus na Lombardia serão prorrogadas até o dia 3 de abril. Precisaremos de autorizações especiais para sair e entrar em uma região e para circular dentro dela; pede-se às pessoas que se autoisolem; todas as escolas e universidades estão fechadas — todas sabemos que estudar não é importante, então por que não aproveitar a oportunidade para arrastar pais e alunos, já exaustos de anos e anos de cortes orçamentários, para o meio da confusão? Bares e restaurantes podem ficar abertos das 18h às 6h da manhã, contanto que clientes mantenham uma distância de pelo menos um metro entre si, teatros, academias, estações de esqui e boates foram fechadas, mas todos os principais eventos esportivos ainda podem acontecer a portões fechados (é a Itália — onde não se pode viver sem futebol); todos encontros públicos estão proibidos; nenhum casamento ou funeral; shopping centers de grande e médio porte foram fechado, mas só nos finais de semana e feriados.
Resumindo, o medo do contágio está difundindo o pânico generalizados, em nome de uma suposta segurança, essas novas restrições limitam perigosamente a liberdade, justificando o estado de emergência indiferente dos impactos que trará aos pequenos comércios e empresas familiares. Mas o verdadeiro perigo, aquele com o qual deveríamos nos preocupar, não é tanto o risco de contágio, mas aquele ligado à ignorância de um governo que vazou o rascunho de um decreto que, como ressaltou o virologista Roberto Burioni, “apavora as pessoas”. Basicamente, essas medidas drásticas proíbem as pessoas de trabalhar e impõem o “trabalho inteligente” a um número maior de pessoas trabalhadoras, limitam a velocidade de movimento em algumas áreas, pressionam as pessoas a ficar em casa e proíbem todos “encontros” públicos (internos ou externos). Todo direito é cada vez mais restrito ou negado. Tudo isso, em meio ao consequente pânico em massa e isolamento social de milhões de pessoas.
E agora, dois dos maiores problemas “sociais” despontam no horizonte. O primeiro, a esfera na qual todos nós italianos somos indiscutivelmente soberanos, é a abundância de “experts”, resultando na saturação de informações, como resultado de todo mundo ser “o maior expert”, frequentemente ignorando assuntos como o quão rapidamente o vírus se espalha. Este é claramente o resultado que a mídia e a autoridades querem alcançar. A segunda questão é a consequência de vários especialistas — médicos, virologistas, biólogos — enfurecidos na televisão, no rádio, nos jornais e, principalmente, na internet. Essas pessoas são apresentadas, de má ou de boa-fé, como capazes de fornecer algum tipo de resolução, na medida em que são especialistas “neutros” — como se a ciência fosse neutra e os especialistas que a analisam, inclusive os médicos, não tivessem preconceitos pessoais. Mas isso é política, de qualquer forma! Se não mantivermos esse aspecto em mente, chegaremos a conclusões errôneas, mesmo se fizermos o melhor possível.
O que o italiano médio faz para lutar contra esses controles e restrições à sua liberdade? Ele não percebe que já está limitado por uma ampla gama de restrições impostas pelo controle — através da mídia, câmeras de vigilância e similares — e é obrigado a se apressar constantemente para acompanhar os mais ricos, mesmo com o custo de contrair empréstimos e passar fome apenas para comprar um iPhone, pagar taxas de juros por meses apenas para se sentir “digno”, babando após influenciadores digitais que se recusam a tomar uma posição na hora de abrigar “desamparados”, mas que estão sempre prontos para postar uma selfie usando o modelo mais recente de sapatos. Ele age como Pulcinella, em pânico porque não pode voltar para o sul; ele corre para embarcar em trens e ônibus; ele não se importaria se esse comportamento pudesse espalhar o vírus para Apúlia, Calábria, Sicília — todas as regiões que ainda eram consideradas “seguras” até 8 de março — junto com a quarentena em vigor no norte da Itália. Hoje à noite [9 de março], centenas de pessoas invadiram estações de trem e ônibus tentando escapar da zona vermelha, obrigando a polícia ferroviária (POLFER) a intervir para manter as pessoas calmas. Incapaz de entender como isso era possível, Giuseppe Conte diz: “A publicação de um rascunho criou incerteza, insegurança, confusão, não podemos aceitá-lo”.
Então, por que não dar poderes especiais à polícia, permiti-los parar as pessoas e exigir saber de onde estão indo, enquanto os bares e restaurantes ainda permanecem abertos? Uma causa leva a um efeito; nesse caso, levará, obviamente, à intensificação da raiva reprimida e do racismo. E quem sabe — mais cedo ou mais tarde, não seria uma surpresa ler que alguém começou a atirar em chineses, marroquinos ou romenos, ou em qualquer outra pessoa, com o pretexto de tentar vingar a morte por COVID-19 de seu primo ou vizinho ou conhecido. Já houve ataques a alguns europeus do leste que vivem na Itália.
O italiano médio não pensa nos outros; ele apenas se concentra em se sentir bem, porque o que realmente conta é a busca de sua própria satisfação. Quem se importa se o mundo ao seu redor desmorona? O fruto não cai longe da árvore; um excelente exemplo de por que o italiano médio não dava a mínima é personificado pelo ex-ministro do Interior Matteo Salvini, o populista de direita e político anti-imigrante que lidera o partido Lega. Parece que foi ontem, mas quase um mês se passou desde que ele estava rosnando, como sempre, que o governo não bloqueou barcos carregados de imigrantes, se perguntando se o governo havia subestimado o coronavírus ao “permitir que os migrantes desembarcassem”. Ninguém se importa que ele queira fechar as fronteiras italianas, deixando as fronteiras abertas apenas para o Reino Unido. Poucos dias antes da assinatura do decreto, ele pôde ir a Londres, desafiando todo o senso comum, espalhando seus pensamentos nacionalistas e racistas por toda a Europa — a praga que precede o coronavírus.
Agora devemos nos fazer outras perguntas que podem ser difíceis de responder. A primeira é como devemos reagir ao que está acontecendo, levando em conta todas as dificuldades objetivas conectadas às proibições (por exemplo, punições a quem violá-las incluindo até três meses de prisão ou multas de mais de mil reais), o “bombardeamento midiático” ininterrupto, o sentimento constante de incerteza.
Por um lado, vemos uma superênfase na responsabilidade individual, especialmente para quem está doente com o corona vírus, por outro, o Estado está usando a desculpa de uma emergência para impor novas regras. Eles não falam sobre os cortes em hospitais públicos (45 mil nos últimos dez anos), sobre a situação das trabalhadoras nas linhas de frente (especialmente médicas, enfermeiras e outras), sobre os efeitos negativos no setor da saúde — como a interrupção dos exames médicos agendados regularmente, inclusive diálise e o tratamento de pessoas diabéticas e outras com condições médicas sérias, que tiveram seu direitos mais básicos negados pelo desvio de recursos econômicos para esta “emergência” sem jamais levar isso em conta. Contradizendo a si mesmos, os políticos italianos — os mesmos que atacaram a saúde pública e quem trabalha nela — estão louvando o sistema público de saúde, sem jamais mencionar a privatização em busca de lucro.
Então, o que vai acontecer agora? Quais serão as consequências históricas dessas “emergências”? Nos últimos anos, pudemos ver claramente que um conjunto de medidas repressivas foram criadas na Itália e que não desapareceram mesmo quando cada “emergência” terminou, seja qual tipo de emergência for.
Neste país, a criação e exploração da emergência tem criado sérios problemas para nós. Sob o pretexto da guerra conta a Máfia e o chamado “terrorismo”, as autoridades passaram “leis especiais” como a que estabelece a pena máxima de 30 anos (porque, mesmo na hipocrisia formal burguesa, a punição deve ser “reeducatuva” e ter como objetivo a reintegração social); mas em 1992, foi introduzida a prisão perpétua sem condicional. Este talvez seja o exemplo mais óbvio das tendências autoritárias cada vez mais agressivas da democracia burguesa. Para ampliar a nossa análise, devemos estudar como, ao longo das últimas décadas, tem sido possível criminalizar e reprimir as pessoas pobres, as que lutam, e todas que se opõem ao status quo de alguma forma. Isso levou a punições pesadas, com exceções somente quando somos capazes de repelir os ataques do Estado.
Por exemplo, terremotos serviram como oportunidade para introduzir leis antissociais sob o pretexto de combater os “saques”. O terremoto em L’Aquilas ilustra isso — mesmo se, naquele caso, ele tiveram que encarar uma resistência popular muito combativa.
Da mesma forma, as “leis especiais anti-hooligans” que, desde 2006, começaram a tratar da parte “menos apresentável” do movimento (do ponto de vista da polícia), a organização de jovens dos subúrbios mais pobres, frequentemente inclinados a lutar contra a polícia e quebrar as leis que ela impõe. Essas leis supostamente deveriam mirar nos “perigosos hooligans” de torcidas organizadas mas, nos anos seguintes à sua aprovação, têm sido usadas para reprimir greves, mobilizações e piquetes também. Podemos ver a consequências nas lutas políticas que são alvo de multas e do bem conhecido “daspo”, uma ordem proibindo o acesso a eventos esportivos que também tem sido imposta de maneira “preventiva” contra outros alvos sem jamais passar pelo tribunais, com a pura arbitrariedade da polícia. As ações de muitas torcidas organizadas podem ser resumidas como uma forma de protesto contra o futebol moderno (ou sejam contra a privação da socialidade com o objetivo de maximizar o lucro) e como uma organização mobilizada que reconhece o perigo que as “leis especiais anti-hooligans” representam para todos os movimentos organizados. O slogan anti-repressão, “leis especiais: hoje para os hooligans, amanhã pra toda a cidade!”, também é relevante aqui. Primeiro estarão focados em nós, mas eventualmente estenderão seu controle sobre todo mundo.
Isso nos leva de volta ao decreto que passou quase em silêncio, o já mencionado “Decreto Conte” que apressadamente implementou uma lei reduzindo os direitos trabalhistas referentes ao “trabalho inteligente” (“smart work”) enquanto limitam a responsabilidade legal dos patrões. Mesmo de formas que não estão claramente conectadas à emergência do coronavírus, eles estão botando suas mãos nos direitos de milhões de pessoas por meio de tais “decretos”.
Mas essa forma de repressão também pode gerar revolta. Em resposta ao governo tirando vários direitos de pessoas nas prisões (incluindo visita e recreação), elas se rebelaram. Em 9 de Março, mais de 50 escaparam de um presídio durante as rebeliões, apesar de mais 6 terem sido mortas. Julgamentos penais estavam continuando mesmo durante a eclosão, apesar de prisioneiros serem proibidos de comparecer, supostamente pelo medo de fossem contrair o vírus e espalhar para aqueles dentro no sistema prisional.
Apesar de todas ameaças e riscos, no primeiro dia de interrupção nacional, algumas dezenas manifestantes se juntaram nas ruas vazias do centro de Roma do lado de fora do Ministério da Justiça para levar as reivindicações das pessoas presas pelo país que estavam em rebelião.
11 de Março
Novas medidas restritivas foram impostas sobre quem falsifica o auto-certificado para sair: você pode ser presa em flagrante delito e passar até 6 anos na cadeia. Além disso, aquelas que violam a quarentena podem ser acusadas de “homicídio culposo contra a saúde pública”, enquanto quem viola a quarentena exibindo os sintomas do COVID-19 como febre e tosse, causando a morte de pessoas idosas ou sujeitas a risco, podem ser acusadas de homicídio culposo com dolo eventual e encarceradas por até 21 anos. O mesmo se aplica para aquelas em contato com quem testou positivo para COVID-19 e mantém relações sociais ou trabalham com elas sem tomar as precauções necessárias ou informar as outras pessoas.
12 de Março
Tudo, exceto shopping centers, farmácias e lojas de conveniência, estão fechados por duas semanas. Estamos em isolamento e a quarentena nos isola do mundo. Pode me chamar de catastrofista, mas o que me vem a mente é o destino do Príncipe Próspero se escondendo em sua abadia fortificada:
“E agora era reconhecida a presença da Morte Escarlate. Ela entrava como um ladrão na calada da noite. E, um a um, tombaram os festivos convivas nos salões orvalhados de sangue de sua festa, e morreram um a um na posição de desespero em que tombaram. E a vida do relógio de ébano se extinguiu junto com a do último folião. E as chamas dos tripés expiraram. E as Trevas e a Dissolução e a Morte Vermelha estenderam seus ilimitados domínios sobre eles todos”
— A Máscara da Morte Vermelha, Edgar Allan Poe.
Mas nós vamos sobreviver, apesar da quarentena imposta sobre nós.
13 de Março
A Itália inteira, posta de joelhos, finalmente parece se afetar com um espírito de revolta. Não estamos falando sobre o flashmob cantante marcado para hoje às 18h — o chamado para ir para às varandas e cantar e tocar música, pra deixar o mundo saber que “nós podemos fazer isso” e que tudo vai ficar bem. É algo pra além disso. “Greve irresponsável” dizem os patrões. Medidas de segurança estão faltando nos espaços de trabalho, dizem trabalhadores. “Nós não somos dispensáveis” — “Não somos bucha de canhão”. Esses são cantos vindo das fábricas italianas. De norte a sul, sindicatos e trabalhadores estão fazendo uma demonstração de força e agitando as coisas com greves espontâneas reivindicando medidas para garantir a saúde. Isso, pelo menos, é alguma coisa.
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coview.info — um esforço autônomo de monitoramento com foco no COVID-19, com sede na Áustria.