#title Desertando da utopia digital #subtitle Computadores contra a computação #author Crimethinc #LISTtitle Desertando da utopia digital #date 2013 #source [[https://pt.crimethinc.com/2013/10/04/feature-deserting-the-digital-utopia][pt.crimethinc.com]] #lang pt #pubdate 2025-10-21T17:14:31 #authors CrimethInc #topics tecnologia, redes sociais, internet #notes Tradução: Contraciv “Há um mundo invisível conectado ao cabo de cada ferramenta. Use a ferramenta como pretendido, e ela te molda à forma de todos que fazem o mesmo; desconecte a ferramenta desse mundo, e você pode partir para traçar outros.” – Hunter/Gatherer O produto capitalista ideal derivaria seu valor do trabalho não remunerado incessante de toda a raça humana. Seríamos dispensáveis; ele seria indispensável. Integraria toda atividade humana em um único terreno unificado, acessível apenas via produtos corporativos adicionais, no qual fábrica exploratória e mercado se fundissem. Realizaria tudo isso sob a bandeira da autonomia e descentralização, talvez até da “democracia direta”. Certamente, se tal produto fosse inventado, alguns anticapitalistas bem-intencionados proclamariam que o reino dos céus estava próximo:bastaria apenas subtrair o capitalismo da equação. O hino dos comedores de lótus. Não seria a primeira vez que dissidentes extrapolam sua utopia da infraestrutura da ordem dominante. Lembrem do entusiasmo que Karl Marx e Ayn Rand compartilhavam pelas ferrovias! Em contraste, acreditamos que a tecnologia produzida pela competição capitalista tende a encarnar e impor sua lógica; se desejamos escapar dessa ordem, nunca devemos tomar suas ferramentas como garantidas. Quando usamos ferramentas, elas nos usam de volta. Segue nossa tentativa de identificar a ideologia embutida na tecnologia digital e estruturar algumas hipóteses sobre como engajar com ela. * A rede se fecha Em nossa era, a dominação não é apenas imposta por comandos emitidos de governantes para governados, mas por algoritmos que sistematicamente produzem e constantemente recalibram diferenciais de poder. O algoritmo é o mecanismo fundamental que perpetua as hierarquias de hoje; ele determina as possibilidades de antemão, enquanto oferece uma ilusão de liberdade como escolha. O digital reduz as infinitas possibilidades da vida a uma grade de algoritmos interconectados: a escolhas entre zeros e uns. O mundo é reduzido à representação, e a representação se expande para preencher o mundo; o irredutível desaparece. Aquilo que não computa não existe. O digital pode apresentar uma impressionante variedade de escolhas, de possíveis combinações de uns e zeros, mas os termos de cada escolha são estabelecidos de antemão. Um computador é uma máquina que executa algoritmos. O termo originalmente designava um ser humano que seguia ordens tão rigidamente quanto uma máquina. Alan Turing, o patriarca da ciência da computação, nomeou o computador digital como uma extensão metafórica da forma mais impessoal de trabalho humano: “A ideia por trás dos computadores digitais pode ser explicada dizendo que essas máquinas são destinadas a realizar quaisquer operações que pudessem ser feitas por um computador humano.” Nos cinquenta anos seguintes, vimos essa metáfora invertida e invertida novamente, à medida que humano e máquina se tornam cada vez mais indivisíveis. “O computador humano deve estar seguindo regras fixas,” Turing continuou; “ele não tem autoridade para desviar delas em nenhum detalhe.” Assim como tecnologias economizadoras de tempo apenas nos deixaram mais ocupados, dar o trabalho braçal de processar números aos computadores não nos libertou do trabalho braçal, mas tornou a computação integral a cada faceta de nossas vidas. Na Rússia pós-soviética, os números processam você. Desde o início, o objeto do desenvolvimento digital tem sido a convergência do potencial humano e do controle algorítmico. Há lugares onde este projeto já está completo. A tela “Retina” do iPhone é tão densa que um olho humano desarmado não consegue distinguir que é composta de pixels. Ainda há lacunas entre as telas, mas elas diminuem a cada dia. A Rede que fecha o espaço entre nós fecha os espaços dentro de nós. Ela cerca comuns que anteriormente resistiam à comodificação, comuns como redes sociais que só podemos reconhecer como tais agora que estão sendo mapeadas para cercamento. À medida que cresce para abranger toda a nossa vida, temos que nos tornar pequenos o suficiente para caber em suas equações. Imersão total. * As divisões digitais “Uma vez nos disseram que o avião havia ‘abolido fronteiras’; na verdade, é apenas desde que o avião se tornou uma arma séria que as fronteiras se tornaram definitivamente intransponíveis.” – George Orwell, Você e a Bomba Atômica Liberais bem-intencionados estão preocupados que há comunidades inteiras ainda não integradas na rede digital global. Daí laptops gratuitos para o “mundo em desenvolvimento,” tablets de cem dólares para crianças em idade escolar. Eles só conseguem imaginar o um do acesso digital ou o zero da exclusão digital. Dado esse binário, o acesso digital é preferível, mas o binário em si é um produto do processo que produz exclusão, não uma solução para ela. O projeto de computadorizar as massas recapitula e estende a unificação da humanidade sob o capitalismo. Nenhum projeto de integração jamais se estendeu tão amplamente ou penetrou tão profundamente quanto o capitalismo, e o digital logo preencherá todo o seu espaço. “Os pobres ainda não têm nossos produtos!”, esse é o grito de guerra de Henry Ford. Amazon.com vende tablets abaixo do custo, também, mas eles reconhecem isso como um investimento comercial. Trabalhadores individuais se depreciam sem acesso digital; mas estar disponível a um único clique, compelido a competir intercontinentalmente em tempo real, não fará o valor de mercado total da classe trabalhadora se valorizar. A globalização capitalista já mostrou isso. Mais mobilidade para indivíduos não garante mais paridade em geral. Integrar não é necessariamente equalizar: a coleira, as rédeas e o chicote também são conectivos. Mesmo onde conecta, o digital divide. Como o capitalismo, o digital divide quem tem de quem não tem. Mas um computador não é o que falta ao que não tem. O que não tem carece de poder, que não é distribuído igualmente pela digitalização. Em vez de um binário de capitalistas e proletários, está emergindo um mercado universal no qual cada pessoa será incessantemente avaliada e classificada. A tecnologia digital pode impor diferenciais de poder mais completa e eficientemente do que qualquer sistema de castas na história. Já hoje, sua capacidade de engajar em relações sociais e econômicas de todos os tipos é determinada pela qualidade do seu processador. Na extremidade inferior do espectro econômico, a pessoa desempregada com o smartphone consegue a carona mais barata no Craigslist (onde pegar carona costumava ser de oportunidade igual). Na extremidade superior, o trader de alta frequência lucra diretamente com o poder de processamento de seus computadores (fazendo a corretagem de ações tradicional parecer justa em comparação), assim como o minerador de Bitcoin. É impensável que a igualdade digital pudesse ser construída sobre um terreno tão desigual. A lacuna entre ricos e pobres não se fechou nas nações na vanguarda da digitalização. Quanto mais difundido o acesso digital se torna, mais veremos a polarização social e econômica acelerar. O capitalismo produz e circula novas inovações mais rápido do que qualquer sistema anterior, mas ao lado delas produz disparidades cada vez maiores: onde cavaleiros uma vez governaram sobre pedestres, bombardeiros furtivos agora navegam sobre motoristas. Você pode usar uma impressora 3D para fazer uma arma, mas a NSA pode fazer vermes de computador que tomam controle de sistemas industriais inteiros. E o problema não é apenas que o capitalismo é uma competição injusta, mas que impõe essa competição em cada esfera da vida. A digitalização torna possível incorporar os aspectos mais íntimos de nossas relações em sua lógica. A divisão digital não passa apenas entre indivíduos e demografias; ela passa através de cada um de nós. Em uma era de precariedade, quando todos simultaneamente ocupam múltiplas posições sociais e econômicas em mutação, as tecnologias digitais seletivamente nos empoderam de acordo com as formas em que somos privilegiados enquanto ocultam as formas em que somos marginalizados. O estudante de pós-graduação que deve cinquenta mil dólares se comunica com outros devedores através de mídias sociais, mas são mais propensos a compartilhar seus currículos ou avaliar restaurantes do que organizar uma greve de dívidas. Somente quando entendemos os protagonistas de nossa sociedade como redes ao invés de indivíduos autossuficientes é que a gravidade disso se torna clara: a coletividade digital é premissa no sucesso de mercado, enquanto todos nós experimentamos o fracasso em isolamento. Nas redes sociais do futuro, que anunciantes, agências de crédito, empregadores, proprietários e polícia monitorarão em uma única matriz de controle, podemos apenas nos encontrar na medida em que afirmamos o mercado e nosso valor nele. Quanto mais difundido o acesso digital se torna, mais podemos esperar ver a polarização social e econômica acelerar. * O sistema se atualiza Competição e expansão de mercado sempre estabilizaram o capitalismo oferecendo nova mobilidade social, dando aos pobres uma participação no jogo justamente quando não tinham mais razão para continuar jogando. Mas agora que o mundo inteiro está integrado em um único mercado e o capital está se concentrando nas mãos de uma elite cada vez menor, o que poderia prevenir uma nova onda de revolta? O supracitado Henry Ford foi um dos inovadores que responderam à última grande crise que ameaçou o capitalismo. Aumentando salários e incrementando produção em massa e crédito, ele expandiu o mercado para seus produtos, minando as demandas revolucionárias do movimento trabalhista ao transformar produtores em consumidores. Isso encorajou até os trabalhadores mais precários a aspirar à inclusão ao invés da revolução. As lutas da geração seguinte eclodiram em um novo terreno, à medida que consumidores reprisaram a demanda dos produtores por autodeterminação no mercado: primeiro como uma demanda por individualidade, e depois, quando isso foi concedido, por autonomia. Isso culminou com o imperativo clássico da contracultura faça-você-mesmo, “Torne-se a mídia”, justamente quando a infraestrutura global de telecomunicações estava sendo miniaturizada para tornar trabalhadores individuais tão flexíveis quanto economias nacionais. Nos tornamos a mídia, e nossa demanda por autonomia foi atendida, mas isso não nos tornou livres. Assim como as lutas dos produtores foram desarmadas transformando-os em consumidores, as demandas dos consumidores foram desarmadas transformando-os em produtores: onde a velha mídia havia sido de cima para baixo e unidirecional, as novas mídias derivam seu valor do conteúdo criado pelos usuários. Enquanto isso, globalização e automação erodiram o compromisso que Ford havia negociado entre capitalistas e um subconjunto privilegiado da classe trabalhadora, produzindo uma população redundante e precária. Neste contexto volátil, novas corporações como o Google estão atualizando o compromisso fordista via trabalho gratuito e distribuição gratuita. Ford ofereceu aos trabalhadores maior participação no capitalismo via consumo em massa; o Google dá tudo de graça transformando tudo em um trabalho não remunerado. Ao oferecer crédito, Ford permitiu que trabalhadores se tornassem consumidores vendendo seu trabalho futuro assim como presente; o Google dissolveu a distinção entre produção, consumo e vigilância, tornando possível capitalizar sobre aqueles que podem nunca ter nada para gastar. A atenção em si está suplementando o capital financeiro como a moeda determinante em nossa sociedade. É um novo prêmio de consolação pelo qual os precários podem competir. Aqueles que nunca serão milionários ainda podem sonhar com um milhão de visualizações no YouTube, e um novo incentivo para impulsionar a inovação constante que o capitalismo necessita. Como no mercado financeiro, corporações e indivíduos podem tentar a sorte, mas aqueles que controlam as estruturas através das quais a atenção circula exercem o maior poder. A ascensão do Google não deriva de receita publicitária ou vendas de produtos, mas das formas como molda os fluxos de informação. Olhando adiante por esse caminho, podemos imaginar um feudalismo digital no qual capital financeiro e atenção foram ambos consolidados nas mãos de uma elite, e uma ditadura benevolente de computadores (humanos e outros) mantém a Internet como um playground para uma população supérflua. Programas e programadores individuais serão substituíveis, quanto mais mobilidade interna uma estrutura hierárquica oferece, mais robusta e resiliente ela é, mas a estrutura em si será inegociável. Podemos até imaginar o restante da população participando em uma base aparentemente horizontal e voluntária no refinamento da programação, dentro de certos parâmetros, é claro, como em todos os algoritmos. O feudalismo digital poderia chegar sob a bandeira da democracia direta, proclamando que todos têm o direito à cidadania e participação, apresentando-se como uma solução para os excessos do capitalismo. Aqueles que sonham com uma renda básica garantida, ou que desejam ser compensados pela colheita online de seus “dados pessoais,” devem entender que essas demandas só seriam realizadas por um estado de vigilância onividente, e que tais demandas legitimam o poder estatal e a vigilância mesmo que nunca sejam atendidas. Estatistas usarão a retórica da cidadania digital para justificar mapear todos em novas cartografias de controle, fixando cada um de nós a uma única identidade online a fim de cumprir sua visão de uma sociedade sujeita a regulação e aplicação totais. “Cidades inteligentes” imporão ordem algorítmica ao mundo offline, substituindo o imperativo de crescimento insustentável do capitalismo contemporâneo por novos imperativos: vigilância, resiliência e gestão. Nesta projeção distópica, o projeto digital de reduzir o mundo à representação converge com o programa da democracia eleitoral, no qual apenas representantes agindo através dos canais prescritos podem exercer poder. Ambos se posicionam contra tudo que é incomputável e irredutível, ajustando a humanidade a uma cama de Procusto. Fundidos como democracia eletrônica, apresentariam a oportunidade de votar em uma vasta gama de minúcias, enquanto tornam a infraestrutura em si inquestionável, quanto mais participativo um sistema é, mais “legítimo”. No entanto, toda noção de cidadania implica uma parte excluída; toda noção de legitimidade política implica uma zona de ilegitimidade. Liberdade genuína significa ser capaz de determinar nossas vidas e relações desde a base. Devemos ser capazes de definir nossos próprios marcos conceituais, formular as perguntas assim como as respostas. Isso não é o mesmo que obter melhor representação ou mais participação na ordem prevalecente. Defender a inclusividade digital e a administração estatal “democrática” equipa aqueles que detêm o poder para legitimar as estruturas através das quais o exercem. É um erro pensar que as ferramentas construídas para nos governar nos serviriam se apenas pudéssemos depor nossos mestres. Esse é o mesmo erro que toda revolução anterior cometeu sobre polícia, tribunais e prisões. As ferramentas de libertação devem ser forjadas na luta para alcançá-la. * As redes sociais Contemplamos um futuro no qual sistemas digitais atenderão todas as nossas necessidades, contanto que peçamos apenas pela ordem presente entregue instantaneamente. Traçando a trajetória de nosso imaginário digital, logo estaremos sempre votando, sempre trabalhando, sempre comprando, sempre na prisão. Até fantasias que separam a alma do corpo para viajar dentro do computador deixam o sujeito liberal intacto: todo pós-humanismo que nos foi oferecido tem sido um neoliberalismo, todos. Gradualistas liberais lutando por privacidade online e neutralidade da rede figuram os subalternos que estão defendendo como indivíduos. Mas enquanto operamos de acordo com o paradigma dos “direitos humanos”, nossas tentativas de nos organizar contra sistemas de controle digital apenas reproduzirão sua lógica. O regime de constituições e cartas que está presentemente chegando ao fim não apenas protegeu o sujeito liberal, o indivíduo. Ele o inventou. Cada um dos direitos do sujeito liberal implica uma grade de violência institucional para garantir sua atomização funcional, o particionamento da propriedade privada, a privacidade das cabines de votação e celas de prisão. Se nada mais, a ostensiva conexão em rede da vida diária ressalta a fragilidade da individualidade liberal. Onde “eu” começo e termino, quando meu conhecimento é derivado de mecanismos de busca e meus pensamentos são acionados e direcionados por atualizações online? Contrariando isso, somos encorajados a reforçar nosso frágil individualismo construindo e disseminando propaganda autobiográfica. O perfil online é uma forma reacionária que tenta preservar a última brasa tremulante da subjetividade liberal vendendo-a. Digamos, “economia da identidade.” Mas o objeto de exploração é uma rede, e assim é o sujeito em revolta. Nenhum jamais se pareceu com o indivíduo liberal por muito tempo. A galé de escravos e a revolta de escravos são ambas redes compostas de alguns aspectos de muitas pessoas. Sua diferença consiste não em diferentes tipos de pessoas, mas diferentes princípios de conexão em rede. Todo corpo contém múltiplos corações. A perspectiva que a representação digital fornece sobre nossa própria atividade nos permite esclarecer que estamos perseguindo um conflito entre princípios organizacionais rivais, não entre redes ou indivíduos específicos. As redes produzidas e ocultadas pelo liberalismo são inevitavelmente hierárquicas. O liberalismo busca estabilizar a pirâmide da desigualdade ampliando para sempre sua base. Nosso desejo é nivelar pirâmides, abolir as indignidades da dominação e submissão. Não exigimos que os ricos deem aos pobres; buscamos derrubar as cercas. Não podemos dizer que o digital é essencialmente hierárquico, porque não sabemos nada de “essências”; sabemos apenas que o digital é fundamentalmente hierárquico, na medida em que é construído sobre a mesma fundação do liberalismo. Se um digital diferente é possível, ele só emergirá sobre uma fundação diferente. Não precisamos de melhores iterações da tecnologia existente; precisamos de uma premissa melhor para nossas relações. Novas tecnologias são inúteis exceto na medida em que nos ajudam a estabelecer e defender novas relações. Redes sociais antecedem a internet; diferentes práticas sociais nos conectam em rede de acordo com diferentes lógicas. Entendendo nossas relações em termos de circulação ao invés de identidade estática, em termos de trajetórias ao invés de localizações, de forças ao invés de objetos, podemos deixar de lado a questão dos direitos individuais e partir para criar novas coletividades fora da lógica que produziu o digital e suas divisões. * A força sai Para cada ação, há uma reação igual e oposta. Integração cria novas exclusões; os atomizados buscam uns aos outros. Toda nova forma de controle cria outro local de rebelião. Policiamento e infraestrutura de segurança aumentaram exponencialmente nas últimas duas décadas, mas isso não produziu um mundo mais pacificado. Pelo contrário, quanto maior a coerção, mais instabilidade e inquietação. O projeto de controlar populações digitalizando suas interações e ambientes é em si uma estratégia de enfrentamento para evitar as convulsões que estão destinadas a seguir a polarização econômica, degradação social e devastação ecológica causadas pelo capitalismo. A onda de levantes que varreu o globo desde 2010, da Tunísia e Egito passando por Espanha e Grécia até o movimento Occupy mundial, e mais recentemente Turquia e Brasil, tem sido amplamente entendida como um produto das novas redes digitais. No entanto, é também uma reação contra a digitalização e as disparidades que ela reforça. Notícias de acampamentos Occupy se espalharam via Internet, mas aqueles que os povoaram estavam lá porque estavam insatisfeitos com o meramente virtual, ou porque, sendo pobres ou sem-teto, não tinham acesso a ele. Antes de 2011, quem poderia ter imaginado que a Internet produziria um movimento mundial premissado em presença permanente em espaço físico compartilhado? Isso é apenas um prenúncio da reação que se seguirá à medida que mais e mais da vida é ajustada à grade digital. Os resultados não estão predeterminados, mas podemos ter certeza de que haverá novas oportunidades para as pessoas se unirem fora e contra a lógica do capitalismo e controle estatal. À medida que testemunhamos a emergência da cidadania digital e do mercado de identidade, comecemos perguntando quais tecnologias o não-cidadão digitalmente excluído precisará. As ferramentas empregadas durante a luta pelo Parque Gezi em Istambul no verão de 2013 poderiam apresentar um humilde ponto de partida. Como podemos extrapolar do mapeamento de protestos para as ferramentas que serão necessárias para insurreição e sobrevivência, especialmente onde os dois se tornam um e o mesmo? Olhando para o Egito, podemos ver a necessidade de ferramentas que pudessem coordenar o compartilhamento de comida, ou desabilitar os militares. Entender a expansão do digital como um cercamento de nosso potencial não significa cessar de usar tecnologia digital. Em vez disso, significa mudar a lógica com a qual a abordamos. Qualquer visão positiva de um futuro digital será apropriada para perpetuar e favorecer a ordem dominante; a razão para engajar no terreno do digital é desestabilizar as disparidades que impõe. Em vez de estabelecer projetos digitais destinados a prefigurar o mundo que desejamos ver, podemos perseguir práticas digitais que perturbam o controle. Em vez de partir para defender os direitos de uma nova classe digital, ou incorporar todos em tal classe via cidadania universal, podemos seguir o exemplo dos privados de direitos, começando pelos levantes contemporâneos que radicalmente redistribuem poder. Entendidos como uma classe, programadores ocupam hoje a mesma posição que a burguesia ocupava em 1848, exercendo poder social e econômico desproporcional à sua alavancagem política. Nas revoluções de 1848, a burguesia sentenciou a humanidade a mais dois séculos de infortúnio ao finalmente se aliar com lei e ordem contra trabalhadores pobres. Programadores fascinados pela revolução da Internet poderiam fazer ainda pior hoje: poderiam se tornar bolcheviques digitais cuja tentativa de criar uma utopia democrática produz o totalitarismo definitivo. Por outro lado, se uma massa crítica de programadores mudar suas lealdades para as lutas reais dos excluídos, o futuro estará em disputa mais uma vez. Mas isso significaria abolir o digital como o conhecemos, e com ele, a si mesmos como classe. Desertem da utopia digital.