Cruz Negra Anarquista de Almada e Editora Monstro dos Mares
Cartas de Madrid
e outros escritos de Presos Anarquistas
Contribuição para a luta contra a prisão
Carta aberta aos clones do sistema
Contra o controle, a prisão, a repressão companheir@s italian@s
Agora é o momento: os círculos de familiares e amigos
Destruamos todas as bastilhas!
Carta de um preso anarquista turco
F.I.E.S. e o sofrimento legal na Espanha
Prefácio
Tiago Jaime Machado
“Aqui estou, mais um dia Sob o olhar sanguinário do vigia” Diário de um detento, Sobrevivendo no Inferno, Racionais MC’s, 1999.
A atividade diária de um editor é silenciosa. Raramente existe um espaço para trocas sobre o que se está pesquisando, que encontros os textos lhe proporcionam, quais motivações fazem com que as palavras se tornem livros. Essa atividade silenciosa se dá atrás de uma mesa, e como disse Robson Achiamé, esse é o espaço de militância do editor anarquista. Não é o único espaço, obviamente, mas seguramente é o mais longevo, quieto, pari passu , parágrafo por parágrafo… É mergulhar nas camadas da internet, em águas densas e profundas. Ser editor pressupõe buscar nas palavras que encontra sua visão de mundo e trazê-las à tona. Isso exige um compromisso, requer um propósito de ser, um lançar-se às possibilidades, uma abertura, um ser-aí . Só existe esse coletivo publicador do qual me sinto parte e responsável porque houve tantos outros antes desse, em que aprendizados e a solidariedade de editores fizeram emergir entendimentos de mundo que transformam livros em possibilidades, enfrentamentos e resistências.
Ao afrontar a Hidra de Lerna do grande capital, a palavra escrita e a tinta no papel assumem dimensões que estão muito além de conquistar um conhecimento que permite baratear o acesso ao livro impresso, mas que surge da necessidade de perceber que alguns textos não devem ficar apenas no PDF ou pendurados em links quase secretos de um servidor web. Alguns escritos mexem com nossas tripas, se tornam pontos de encontros recorrentes, paralelos frequentes com a atualidade, adquirem uma condição ontológica, se tornam parte da linguagem e da articulação de mundo. É assim que o livro emerge para o editor.
Esta coletânea reúne textos de pessoas que empunharam uma fina e afiada faca , não apenas para ver a ferida que faz , mas que despertaram através da violência suas trajetórias pessoais e de militância. Cada uma dessas cartas representam muito mais do que decisões individuais e de cunho pessoal, são um modo de compreensão do mundo que há , de formas de resistência e enfrentamento ao grande inimigo. São registros da batalha social, resultados de reflexões silenciosas – não atrás de uma mesa, na frente de um computador – mas que foram forjadas entre o aço das grades, em celas imundas e sem liberdade. O que trazemos nessa publicação, graças à imensa colaboração da Cruz Negra Anarquista de Almada em Portugal, é o grito de denúncia de quem está no Centro de Extermínio do Estado Democrático atual. São essas pessoas que levaram suas decisões radicais a cabo, que apresentam em seus escritos uma visão de fundo, partindo de dentro do inferno para se tornarem registros do seu tempo e denunciarem o sofrimento e os anseios de quem vive a prisão dentro da prisão, para qualquer tempo.
Viver a anarquia é estar no limite de um entendimento de mundo que não merece existir por nem mais um minuto. E como a história e as ruas nos mostram, frequentemente anarquistas, lutadoras sociais e pessoas em movimento divergem do estabelecido, “criam problemas” para quem deseja e lucra com a permanência de tudo que há. Assim se foram os 43 estudantes de Ayotzinapa no Massacre de Iguala, Rafael Braga foi condenado e preso por portar Pinho Sol, o assassinato de Santiago Maldonado, a perseguição a Anarquistas em Porto Alegre (antes, durante e depois da copa), os 23 do Rio de Janeiro, nosso amigo Brian do Bosque, Marielle Franco e tantas outras pessoas e esperanças. Todas são como Mártires de Chicago, perseguidas, condenadas, presas ou mortas por suas ideias. Por serem dissidentes do conformismo, da exploração cotidiana, da dominação e do grande capital.
Ao trazer nessas páginas os textos dos presos de Madrid na última década do século passado e dos primeiros anos deste novo tempo, entre outros escritos, lançamo-nos no esforço de somar em solidariedade com as pessoas que mesmo diante da antítese da liberdade, decidem combater com as armas que têm: as palavras. Para que Massacres da Candelária, Carajás, Carandiru… nunca mais se repitam. Por um Abolicionismo Penal viável, possível e urgente. Abaixo os muros das prisões!
Livros, Anarquia e Liberdade! Tiago Jaime Machado Editor [A]
Denunciar a Prisão
José Alberto
Prisão: é a opressão em sua máxima expressão.
Prisão: técnica inquisitorial, jaula cruel e sábia na arte de punir, de castigar (dentro do castigo normal através de terríveis meios e instrumentos, castigos em úmidas e geladas celas disciplinares, regime 111º e outros), de infligir suplício, de fazer sofrer.
“O castigo é mais um espelho da prepotência para o poder que o PODER se permite sobre os seres humanos: abusa-se para mostrar que se possui”, diz Bárbara Pimenta no seu livro Prisão de Mulheres.
Prisão: suplício infamante, aviltante, execrável.
Prisão: é a violação permanente e sistemática da vontade do indivíduo, é ser registrado, anotado, descrito, biografado, mensurado, comparado, avaliado, medido, observado, catalogado, contado, vigiado, espiado, dirigido, manipulado, normalizado, admoestado, exortado, intimidado, chantageado, provocado, perseguido.
Prisão: local em que o direito inalienável à indignação é oprimido barbaramente com torturas, quando não se pode amordaçar através da lobotomia química: fortes doses de psicotrópicos três vezes ao dia (pela manhã, ao meio-dia e à noite), doses de lagartil, que fazem o indivíduo rastejar por algum tempo e, ainda, chantagens que violam o direito às designadas medidas de flexibilidade da pena, incluindo ameaças várias, tais como: “Assim serás transferido para outra prisão longe dos teus familiares!” ou “Ainda aparecerá enforcado! Toma um rumo na vida!”.
Prisão: o poder sobre os corpos – os gestos cronometrados e comandados –, os olhares, os comportamentos, os movimentos, os trajetos; é o controle dos horários impostos e das atividades subsequentes.
A prisão infantiliza, faz regredir, é o anulamento do ser; é a perda da capacidade de pensar, refletir, de decidir minimamente sobre a própria vida. “Na realidade, a entrada na instituição prisional significa uma servidão completa do corpo, da vida, do tempo, da manifestação dos sentidos e até do pensamento – que quase deixa de ser livre – de quem lá entra”, escreve Bárbara Pimenta na referida obra.
Prisão: local onde os detentos estão expostos à arbitrariedade dos meganhas; onde reina o nepotismo, o favoritismo pessoal, as gritantes descriminações; onde a solidariedade é criminalizada; onde se vive a desconfiança permanente, a competição na delação mútua, a violência entre presos (e sobre presos da parte dos meganhas), tudo fomentado pelo sistema com o objetivo de que a indignação contida não se oriente contra o sistema e passe a questioná-lo.
Prisão: fator criminalizante, escola do crime, fábrica de delinquência, geradora da proliferação de comportamentos delitivos e patológicos e, ainda, da disfuncionalidade familiar, causando dor e destruição em milhares de famílias.
Prisão: é o sofrimento sistemático e premeditado intento de aniquilação física, psicológica, da personalidade e da identidade do indivíduo sob a fraude do discurso reabilitador e ressocializador.
Prisão: é a pulsão da morte, a arte de reter a vida em constante e intenso sofrimento, subdividindo-a em mil mortes.
Prisão: é “viver” na insegurança, em ambiente constrangedor, hipócrita e hostil, onde a traição está ao virar-se de costas; é vegetar, “viver” no aborrecimento, no isolamento, na solidão, na incerteza, na ansiedade, na atroz agonia, em estado indefeso, no medo, no desespero, em stress permanente, em taquicardia; é ter sensações que nunca antes se tinha experimentado: ódio, raiva, impotência; é o sofrimento por meio da fome, da desnutrição silenciosa, da privação de relações afetivas e sexuais e de mil e uma outras privações.
Prisão: armazenamento de carne humana; é estar submetido à incubação de germes, de viveiros de doenças infectocontagiosas conducentes ao extermínio; é a vida sujeita, com cálculo probabilístico, ao risco sobrelevado de contágio mortal; é ver e sentir o horror do fim de si mesmo acontecido muito antes da morte; é a morte lenta e dolorosa de seres condenados à absoluta ferocidade da indiferença e do ostracismo; é perder o controle das funções vitais do seu organismo, ficar com fobias, se tornar psicótico, neurótico, esquizofrênico, apático, depressivo; é o definhamento, a degradação, o apodrecimento do indivíduo emparedado em vida; é a constante indução ao suicídio.
Prisão: genocídio silencioso entre muros; o inferno dantesco.
Prisão: máquina infernal, demente, trituradora, de poder cego e homicida, centro de loucura, de tortura, de sofrimentos inúteis e gestão da morte.
O sofrimento dos encarcerados é um mal absoluto, por ser estéril. Existem sofrimentos que propiciam engrandecimento pessoal e que fazem com que uma pessoa fique melhor. Mas todos que observam o fenômeno estão de acordo ao afirmarem que a ação de isolar grupos de homens para obrigá-los a vegetar artificialmente não produz nada, num universo infantilizante e alienante que os desumaniza e os dessocializa.
“Este sofrimento é sem sentido, um absurdo”, dizem os abolicionistas do sistema penal, Louk Hulsman e Jacqueline Berbat de Celis.
“Os muros das prisões não são tanto para evitar que o preso fuja, mas sim para esconder todo o vexame e massacre que se encontram por trás deles.”
“As alternativas à prisão devem ser forçosamente a não-prisão.”
“A prevenção é a justiça social e por isso a resposta não são as prisões mas sim uma verdadeira transformação social desde a raiz dos problemas.”
PUNIÇÃO NÃO É SOLUÇÃO
À punição contrapomos justiça social e liberdade!
Queremos a abolição da prisão!
Prisão? Abolição!
ANISTIA TOTAL!
Enquanto a abolição da prisão não acontecer de fato, exigimos subsídio de risco, seguro de vida e indenização para os nossos familiares por cada morte de preso, além do cumprimento do direito à saúde, do direito à alimentação adequada, do direito à higiene, do direito a uma vida afetiva e sexual, o fim da retenção e da censura de correspondência, o direito à promoção pessoal mediante “educação” permanente, o direito a condições de trabalho não escravizantes e muitos outros direitos contemplados pela lei, todavia violados sistematicamente a começar pelo governo, indo até os meganhas.
Desde dentro, abril de 1998, José Alberto.
Humanismo Inquisitorial
Manuel Oliveira
A solitária não existe em certos países da Europa já há dezenas de anos. O maior castigo aplicado ao recluso transgressor ou inadaptado ao regulamento prisional é a transferência para outra prisão. Todavia, aqui no país dos brandos costumes (brandos apenas em relação à população reclusa entre muros ou fora de muros, porque, outro tanto, não se dizer em relação aos juízes e a todo o horroroso arsenal dos vários códigos infligidores de martírios), as solitárias, jaulas cruéis e sábias na arte de castigar, encontram-se quase sempre cheias de carne humana por períodos de tempo que vão até trinta dias, para satisfação do humanismo inquisitorial. Por vezes, há filas de reclusos à espera de celas vagas para cumprirem os castigos que o arsenal de horror da prática quotidiana da penalidade engendrou.
A solitária, designada pelos reclusos de “segredo” e de “manco”, é uma jaula lúgubre, insalubre, úmida, gelada de inverno, com chão de cimento, sem mobiliário, sem ventilação suficiente, praticamente sem luz do dia, e cuja luz artificial é insuficiente para os reclusos poderem ler e estudar. A cama é uma base de cimento com um colchão de espuma por cima, que fica todo encharcado de suor depois de poucos dias por falta de ventilação debaixo do colchão. O único lugar para colocar a comida e a roupa é o chão. O preso é obrigado a comer de pé, com a marmita nas mãos, na cama ou no chão, como animais. O balde de fezes e urina é esvaziado de vinte e quatro em vinte e quatro horas.
Cela solitária, jaula dentro da jaula, a técnica de infligir suplícios sem deixar marcas exteriores, a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em “mil mortes”, com o poder punitivo a apossar-se do indivíduo até as costuras da mente.
O recluso que é submetido a esse espaço-tempo – 23 horas ininterruptas por dia de jaula, com uma hora de recreio por dia a céu aberto, isolado de toda a população prisional –, num processo de aniquilamento sensorial, sem poder falar com ninguém, a ter por companhia pulgas e moscas, estas últimas atraídas pelo balde dos dejetos e pela marmita da desnutrida e muitas vezes intragável refeição, a falar para as paredes, emparedado em vida, entorpecido, a definhar, num nível suficiente de vegetação para passar do purgatório ao limbo; que tortura física, psíquica e moral não sofre? Quantas perturbações psíquicas e traumas não são originados? Quanta violência institucionalizada! Quanto terrorismo psicológico e físico! É o sistemático e premeditado intento de aniquilação física, psíquica e da personalidade e identidade do indivíduo. Quantos sentimentos de ódio não são, neste cruel castigo, germinados? Quantos desejos de vingança não são alimentados? “Alguém tem de pagar por isto!” é a expressão de vingança constantemente ouvida no ambiente de agonia, de degradação e de extermínio das prisões. Depois, é ver a mídia anunciar os atos de delinquentes e, em obediência à política do alarmismo social, exigir penas mais duras, colada à liturgia dos suplícios proferida pelos charlatães políticos, que visam à caça do voto sem analisar as causas dos referidos atos, sem questionar quem fabricou esses delinquentes capazes de tais atos.
Prisões, solitárias (Cela solitária, ou simplesmente solitária, é uma forma especial de punição onde o detento é encarcerado numa cela individual e isolado de qualquer contato humano, muitas vezes com exceção de membros do pessoal do presídio), a atrocidade da expiação, os corpos e as mentes manipuladas pelo horroroso arsenal dos castigos e do poder da prisão em si, a opressão na sua máxima expressão, o mundo carcerário, a sua brutalidade e a sua corrupção. Martírio, dor, extermínio. Tanta crueldade, tanta desgraça, afinal para quê? Para disciplinar? Ressocializar? Mas as estatísticas da reincidência não são bem claras? Jamais o chicote da vingança serviu de panaceia para os males sociais originados pela iníqua estrutura da sociedade baseada nas desigualdades sociais – logo, nos privilégios. Se não houvesse privilégios não haveria delitos!
“As prisões não impedem que se produzam atos antissociais. Multiplicam o seu número. Não alcançam os seus fins. Degradam (ainda mais) a sociedade que os gerou. Devem desaparecer.”
À prisão contrapomos liberdade, igualdade social, fraternidade e justiça social.
Ao sistema, à prisão, à cela disciplinar e a todo o resto do arsenal de castigos, designa de regime “humano”. Ao desumano, chamam de humano. Com efeito, outra coisa não se poderia esperar da insensibilidade dos legisladores, perpetuadores das desigualdades sociais e dos privilégios e, por conseguinte, do martírio dos socialmente despojados. Lembrar a nova língua que já George Orwell denunciava. Efetivamente, à guerra, chamam paz; ao ódio, chamam amor; e à injustiça, chamam justiça.
Que cinismo e irracionalidade evidenciam em defesa de seus interesses, conseguidos em detrimento dos produtores desses interesses!
Como se a barbárie da prisão não chegasse para causar danos irreversíveis ao indivíduo – quando, por sorte, este consegue escapar ao extermínio a que se encontra submetido – e às suas famílias e amigos, vê-se ainda o recluso sujeito aos abomináveis castigos da cela disciplinar, sem motivo justificado face ao contemplado nos códigos, apenas por mero capricho dos funcionários prisionais de elevada hierarquia. Trata-se, portanto, de castigos extraoficiais, não codificados. Por exemplo, na Prisão de Vale de Judeus, os reclusos protestam em carta aberta, contra os castigos em celas disciplinares “a torto e a direito” (sic) e contra as condições desumanas. Na prisão do Linhó, sobrelotada majoritariamente por jovens, é retirado o colchão durante o dia do recluso castigado em cela disciplinar e é-lhe dado um cigarro depois de cada “refeição” caso seja fumante. Nada dessa aberração está codificada. São, portanto, castigos secretos. Resquícios da outra opressão – a fascista. Na prisão de Pinheiro da Cruz, o recluso capturado por não se ter apresentado de saída precária prolongada, é castigado em cela disciplinar, na qual o castigo normalmente nunca é menor que trinta dias de apodrecimento. Enterrado em vida, entre paredes e teto de cor branca (de cal), grades, porta de jaula fechada com enorme cadeado e, como não fosse suficiente, ainda com outra porta forrada a chapa de ferro, trancada com dois ferrolhos e fechadura com várias voltas, além de uma outra grande grade trancada a cadeado para evitar qualquer contato solidário por parte dos companheiros, quando o nº 4 do artigo 53º do decreto-lei nº 49/80 de 22 de Março estipula: “revogada a licença de saída prolongada, é descontado no cumprimento da medida privativa de liberdade o tempo em que o recluso esteve em liberdade e não poderá ser concedida nova saída sem que decorra um ano sobre o ingresso do recluso em qualquer estabelecimento”. Portanto, qualquer castigo além do contemplado pela lei é pura prepotência.
Estas são apenas algumas das inumeráveis prepotências ocorridas cotidianamente nas prisões – locais por excelência do arbítrio sistemático. É a ficção do estado de direito com a violência do castigo justo e proporcional!
A liberdade à sexualidade, a liberdade de associação e expressão e a liberdade da inviolabilidade da correspondência, não existe. É a mordaça total. Não é por acaso que o número de presos ativistas não aumenta significativamente. É que àqueles que rompem a mordaça esperam, geralmente, mais anos de prisão. O medo e a chantagem impera nas prisões. As represálias por parte do sistema são draconianas. É a lei do silêncio da máfia estatal. O trabalho é escravidão. As doenças e os contágios multiplicam-se a grande velocidade. As mortes de reclusos aumentam. A política de extermínio continua.
Após milênios de opressão e de séculos de cerimonial do castigo público; Depois de inflamados discursos e declarações dos “Direitos Humanos”; O massacre continua! Punição não é solução! Prisão? Abolição! Anistia total!
Manuel Oliveira (sequestrado num centro de extermínio do democrático Estado Português)
Contribuição para a luta contra a prisão
Constantino Cavalleri
Estes escritos foram elaborados após a circulação, no seio do movimento, do documento “CONTRIBUIÇÃO PARA O DEBATE I.A.I. E ALGUNS ESCLARECIMENTOS PARA @S COMPANHEIR@S”, com a intenção de continuar com o debate iniciado por este último documento e revitalizar a luta que se está a levar a cabo, abrindo possibilidades concretas para o seu crescimento a fim de reforçá-la.
Acrescento também que a nossa contribuição será socializada no primeiro encontro da Internacional Antiautoritária Insurrecionalista” (I.A.I.) para avaliar a possibilidade concreta de um interesse comum entre as realidades que participaram, referente a uma intervenção sintonizada entre grupos e indivíduos para alargar a luta e radicalizá-la.
É melhor que @s companheir@s saibam que as considerações e propostas adiantadas não são fruto de elaborações abstratas ou de descrições lógicas de trajetos imaginados no cérebro de alguém; na realidade, por detrás delas há uma experiência de muitos anos de participação ativa no seio do “Comitê de solidariedade com o proletariado sardo preso e deportado”, entidade que foi das primeiras a expor de forma sistemática as montagens político-judiciais que logo vieram dar lugar a detenções e sucessivos julgamentos requeridos pelos magistrados do Ministério Público, Marini e Ionta.
A LUTA CONTRA O FIES
Na perspectiva das lutas passadas dos presos FIES (regime especial de isolamento)[1] e para sermos mais incisivos, são necessárias algumas considerações que ilustrem e fundamentem a luta no nível atual em que se encontra o movimento na sua complexidade (há que se ter em conta as críticas e apreciações expressas por dois companheiros presos, em cartas que circularam pelo movimento e que eu tive a ocasião de ler).
Dou como garantido que @s companheir@s conhecem o desenvolvimento da luta que surgiu no ano 2000 nas prisões do Estado Espanhol, levada a cabo dentro e fora das prisões, que tiveram um feedback no plano internacional. Conseguiram pelo menos sensibilizar a opinião pública sobre esse tipo de prisão e os momentos desumanos e sufocantes que a caracterizam.
Apesar disso, nos demos conta, para que esconder que a luta tem limites próprios e que para além disso, manifesta algumas coisas que não coincidem com a vontade dos presos decididos a luta até a greve de fome por tempo indefinido? O movimento fora das prisões parece ter afetado a força criativa e a energia necessária para poder unir estas duas relações de forças de forma a obrigar o estado a cumprir os objetivos a que se propõem.
Se os meus atuais conhecimentos e considerações refletem pelo menos alguns dos elementos que caracterizam a luta e a condição do movimento neste momento, longe de ser vã, penso que existem razões suficientes e perspectivas concretas para continuar mais forte e preparadas do que antes. A condição, obviamente, de que tod@s @s companheir@s realmente interessad@s na luta concretizem a sua vontade e seriedade penso que é absolutamente indispensável.
Também é necessário, em relação a esta contribuição, acrescentar outros aspectos que se dão por adquiridos mas que não o são, pois dão lugar a equívocos, mal entendidos, falsas interpretações, e sabe-se lá mais o quê. Por isso é importante nossa clareza, pelo menos neste contexto, para evidenciar o que é exposto e as propostas que daí nascem.
Peço um pouco de paciência e atenção @s companheir@s e peço desculpa por repetições, detalhes, explicações longas e outras coisas que possam parecer supérfluas. A intenção não é de aborrecer, mas sim de evitar mal entendidos e frivolidades, para além de animar e aprofundar a análise.
A SOLIDARIEDADE
A solidariedade no âmbito revolucionário é o momento em que, para além das diferenças existentes, as entidades revolucionárias – individuais ou coletivas – manifestam-se e reforçam-se entre elas reconhecendo reciprocamente a validade de cada uma.
Tal manifestação de solidariedade pode ser expressa de mil maneiras: da contribuição econômica para financiar as atividades levadas a cabo, à correspondência com quem é golpeado pela repressão, dos atos esporádicos de sabotagem, à intervenção na praça pública. Estas foram algumas das maneiras de fazer sentir a solidariedade com @s pres@s em luta que se levaram a cabo, algumas com êxito apesar das carências e dos limites que surgiram. No entanto, a manifestação de solidariedade mais efetiva é a de tomar a luta em toda a sua complexidade, alargando-a no social e também no espaço, a fim de aumentar as frentes da própria luta, dentro e fora das prisões, sem por isso, impedir ou forçar quem acredita que deve atuar segundo os seus próprios métodos ou sensibilidade.
A LUTA COMO ATAQUE
Quanto a mim, entendo a luta em todos os seus aspectos como ataque ao domínio. No caso das lutas contra prisão, entendo a luta como ataque ao poder do estado-capital para lhe impor a abolição do regime de prisão especial (isolamento), o fim da dispersão d@s pres@s e a libertação d@s pres@s com doenças incuráveis.
O conteúdo específico da luta contra a prisão, obviamente, não impede o objetivo que nos incita à luta: a destruição das prisões. No entanto, esta perspectiva que anima tod@s @s anarquistas e anti-autoritári@s, não é a perspectiva em que acreditam tod@s @s pres@s, nem todos os seus familiares, nem tod@s @s que, por uma motivação qualquer, possam simpatizar e participar nesta luta.
Por isso, é possível estarmos todos juntos, se, pelo menos, houver alguns elementos da luta que, metodologicamente, a caracterizem como espaço de interesse comum, e sobre a qual estamos dispost@s a dar as nossas energias. Um destes elementos é precisamente entender a luta como ataque. O conceito de ataque, penso que estará claro para tod@s, não expressa exclusivamente aquela prática que no imediato produz destruição ou danos materiais visíveis, ações “espetaculares” embora esporádicas.
Por ataque entendo qualquer manifestação concreta de corte com compromissos e mediações com o poder que se combate.
Dentro de uma ótica de luta isto é muito importante, porque põe em evidência que uma atuação em perspectiva liga toda uma série de práticas, de ações, de manifestações em que uma lógica se torna evidente no conjunto da intervenção; mesmo se os seus aspectos particulares pudessem não resultar no imediato como ataque.
UMA LUTA ESPECÍFICA
A luta contra o F.I.E.S. é uma luta que pretende alcançar objetivos específicos que são parciais. No entanto, a nossa perspectiva é e será a destruição das prisões e da sociedade que as engendra.
Deste modo, queremos catalisar o interesse e a participação de grupos mais ou menos amplos de presos e de pessoas desde que concordem com os objetivos que propomos.
Esta parte é muito importante e deve ter-se sempre em conta a fim de evitar possíveis rupturas, por parte de quem está em luta, por motivos ideológicos.
RUPTURAS, DIFERENÇAS, DESAGREGAÇÕES
Um daqueles aparentes pontos de debilidade do movimento anarquista e antiautoritário em geral, que se manifesta também na luta contra o FIES, é devido à desagregação existente entre diferentes realidades, sejam individuais ou coletivas. Seja por rupturas no plano das relações pessoais ou por diferenças de sensibilidade ou de maneiras de lutar. Creio que estas diferenças, desde que não causem uma competição para estabelecer uma inútil graduação de quem é mais anarquista, não apenas são superáveis como são extremamente positivas.
Para não cair numa simples petição de princípio, a positividade das diferenças tem de manifestar-se como uma riqueza do movimento; e a única maneira que posso conceber, é a de criar uma metodologia de relação que na luta e pela luta produza uma ataque concêntrico e sintonizado de todas as forças do jogo. Não afirmo nem a necessidade de “recompor” rupturas passadas, nem a necessidade de colaborar lado a lado com quem não há afinidade. Esta lógica pacificadora de “abracemo-n@s a tod@s” não me interessa para nada. Defendo que é possível no meio de rupturas, fraturas e diferenças – obviamente dentro da prática do ataque entendido como expliquei acima; ou seja, na desordem da luta – dar corpo a um ataque conjunto que tenha uma frente unitária que cerque o estado-capital por todos os lados, provocando a energia e a potência necessária para, pelo menos, impor os objetivos predefinidos das lutas que se estão a levar a cabo.
Obviamente, tudo isto depende em grande medida da seriedade de tod@s nós, para além claro, do método usado.
O ALARGAMENTO DA LUTA
Tendo o ponto de partida das lutas e objetivos específicos (fim do FIES, da dispersão dos presos e libertação dos presos com doenças incuráveis) não é certo que o inimigo que se ataca se encarne nas estruturas e instituições específicas aplicadas às prisões. As instituições prisionais são apenas uma parte, um aspecto da manifestação real do estado-capital, cuja constituição depende da inter-relação entre cada uma das suas partes: das instituições político-militares-judiciais, às de controle e manipulação da informação. Dos centros de produção e distribuição de mercadorias às sedes do capital financeiro.
Esta complexidade de inter-relações e estruturas é o inimigo real, portanto, a nossa luta não pode limitar-se a atacar um setor, um aspecto ou um momento particular.
Do mesmo modo, os três objetivos que temos na luta contra o FIES são válidos para outras situações diferentes que superam as fronteiras do Estado Espanhol. Por exemplo, na França, na Sardenha, na Alemanha, Itália, dentre outros lugares, aqueles mesmos objetivos poderiam produzir uma transformação e interessar às pessoas em situação de encarceramento e também todas as outras pessoas sensíveis ao problema. A luta não pode dirigir-se apenas a quem está no cárcere e ao movimento existente no território espanhol; até porque o Estado Espanhol não é mais responsável do que outros estados com quem se inter-relaciona e de quem representa apenas aspectos específicos cujo objetivo é o de controlar um determinado território para que a exploração e a ganância possam atuar com as garantias necessárias para a estabilidade social.
Se a isto acrescentarmos o fato – aceito amplamente, espero – de que a solidariedade mais produtiva em relação às pessoas encarceradas e à luta que se está a levar a cabo, é a de fazer a luta pessoal, alargando a mesma ao lugar onde vivemos, pode-se concluir que a ampliação da luta, seja no plano territorial ou na individualização do inimigo, é um momento imprescindível que nos implica diretamente a todo nosso grupo.
Trata-se apenas de dar (ou ao menos tentar) continuidade e sintonia à luta para que esta seja mais incisiva.
LUTA E REPRESSÃO
A repressão não existe num momento concreto, mas sim numa subparte da existência do poder em cada um dos seus momentos. A repressão se manifesta de mil maneiras, tem mil caras e no momento atual não exclui nenhum dos aspectos da existência. A repressão pode atuar quase sem perturbar, porque o estado-capital perpetua-se numa situação social de consentimento generalizado. O regime democrático atual, essencialmente criado e sustentado (direta ou indiretamente) pelo consentimento generalizado ou pela ausência de movimentos claramente dissidentes ou radicais, não admite situações de choque generalizado porque isto significaria reconhecer a inexistência real dos alicerces sobre os quais se sustenta e reproduz.
Por isso, reserva-se uma atenção especial para aqueles movimentos que, saindo do próprio controle e das vias esterilizantes dos protestos ordenados e manipulados dos órgãos “corretos”, arriscam-se, desta forma, a representar no contexto social, os condicionamentos sobre aqueles a quem poderiam despertar a atenção e a disponibilidade para a ação mais ou menos ampla da parte das pessoas excluídas dos modelos vigentes que existem.
Daí a tentativa de criminalizar @s companheir@s, grupos revolucionários e rebeldes sociais, tornando-os para-raios virtuais e negando a existência de manifestações de dissensões nos estratos sociais.
Se a criminalização de companheir@s e rebeldes tem esta função e acontece desta maneira, é evidente que a luta que fazemos não pode se desligar do contexto social, desses estratos de pessoas excluídas ou não, que participando nesta luta criam preocupações para o poder, abrindo perspectivas reais insurrecionais que estão radicadas nas necessidades das classes excluídas. Isto significa que a luta não é só nossa; é, antes, uma luta de tod@s @s que participam nela, de quem a faz sua.
Quanto mais a luta tende a se alargar no social, tanto mais dura será a repressão e as tentativas de repressão, para além das manipulações diretas para se cometerem barbarismos e separar os objetivos finais das componentes radicais dos estratos sociais que empreendem a luta.
Seria um grave erro ajudar o estado-capital na sua fundamental ação de defesa, sem nos preocuparmos em agir e dar estímulos corretos e metodológicos para que a luta possa progredir nos termos apropriados ao ataque. Progredir também sem a nossa presença e não obstante as operações repressivas que de vez em quando nos golpeiam. É indispensável expor os jogos e as finalidades do poder e colocar em evidência que o objetivo do estado-capital não é a detenção em si d@s revolucionári@s e rebeldes sociais, mas sim pôr fim ou erradicar a própria luta.
A detenção da companheira e do companheiro de Madrid, juntamente com ordem de detenção do outro companheiro, a sua libertação em seguida, e a posterior detenção de um dos companheiros, com tudo o que isso implicou em termos de manipulação midiática, tem a sua raiz exatamente nesta estratégia própria do poder constituído. Não é por acaso que o conteúdo das mensagens midiáticas se concentra exclusivamente sobre a transposição da luta dos seus termos reais até aos criminalizantes e com isto pretende-se, no fundo, separar a forma de atuar d@s companheir@s e rebeldes sociais dos estratos sociais que se solidarizaram e participaram pessoalmente na luta.
Pelo menos uma parte da nossa futura atividade deve passar por manter e alargar no campo social, nas manifestações de cada lugar, nas assembleias públicas e nos nossos instrumentos editoriais, aquelas contribuições e cumplicidades com as camadas sociais interessadas e participantes na luta, que contribuem desta forma para que a estabilidade do sistema seja posta em perigo.
A extensão da luta entendida assim nos dá uma perspectiva bastante diferente da atual. Para estimular a luta já não são necessários unicamente @s companheir@s e rebeldes sociais do solo ibérico, mas também tod@s nós, cada um@ em sua terra.
E fazer frente aos problemas relacionados com a luta que emergem da mesma – o estancamento que se manifesta, os limites que já conhecemos… –, já não é algo exclusivo do movimento ibérico, não nos comportemos só como observadores. É desta perspectiva, na qual nos vemos tod@s diretamente implicad@s, que surge outro elemento importante, ou seja, que da extensão da luta sairão reforçadas as situações específicas e também as mais débeis (porque são numericamente inconsistentes ou porque atravessam condições de particular carência organizativa ou de cansaço…). A partir da extensão a diferentes realidades territoriais e a diferentes movimentos, a luta pode ganhar continuidade no tempo e projetar-se na prática como indefinida.
A QUESTÃO ORGANIZATIVA
Embora a perspectiva da extensão da luta resolva algumas problemáticas e nos responsabilize na primeira pessoa por todas as situações do movimento, abre por outro lado uma questão organizativa.
É evidente que a questão se coloca unicamente àqueles que veem na organização um instrumento, um meio válido para reforçar a luta. Neste sentido, o problema é exclusivamente de método, no que diz respeito às relações entre companheir@s e às coisas necessárias para a luta, salvaguardando e, se possível, enriquecendo a autonomia de tod@s e dotando-@s de meios para ampliar a sua possibilidade de ação.
Trata-se então de pôr em pé possibilidades organizativas, onde tod@s @s que participam na luta tenham a ocasião de trocar experiências, de socializar projetos e perspectivas, de conhecer situações e iniciar relações que cada um@ continuará depois por sua conta.
A informalidade que muit@s de nós já praticamos em “pequena” escala e que a proposta da IAI estimula a praticar em grande escala, cuja possibilidade é sublinhada na “Contribuição para o debate IAI e alguns esclarecimentos aos companheir@s” apresenta-se no global ainda que fazendo especial referência à luta contra o FIES.
A continuidade da luta, seja num plano territorial ou temporal, produz uma continuidade de relações, de intercâmbio de experiências entre todas as realidades participantes na luta. Esta continuidade é obtida parcialmente através do contato direto entre situações de movimentos: aqueles que já têm relações e conhecimentos e que desenvolveram um certo grau de afinidade ou confiança. E as outras realidades, aquelas novas que se aproximam da luta: aquelas que também, conhecendo as respectivas existências não têm relações por mil motivos? E aquelas que por dificuldades financeiras não podem contatar com as demais no imediato das necessidades impostas pela luta? Não podemos esquecer que as cartas de dois companheiros presos FIES postas a circular no seio do movimento, fazem referência exatamente às carências que se manifestaram na luta, em boa parte por motivações organizativas e metodológicas: não devemos crer que as problemáticas relativas ao “mau ambiente” entre indivíduos e grupos, as fraturas entre diferentes realidades, se resolvam por si próprias e sem trazer influências negativas para a luta. Por isto temos que encontrar soluções possíveis agora mesmo.
Eu creio que é positivo superar o “impasse” organizativo através da própria informalidade das relações, e a única forma que posso conceber é a de dar vida a encontros periódicos de todo informais quanto ao seu funcionamento, nos quais a assembleia d@s participantes não seja deliberativa para nada, mas que seja exclusivamente um momento de socialização das experiências, de informações, de projetos, de tensões, de troca de perspectivas, de debate, de conhecimento da luta específica.
Estas ocasiões de encontros gerais poderão ser por sua vez lugares adequados para alargar conhecimento, relações, afinidades, além de serem lugares de possíveis intercâmbios de meios, instrumentos, metodologias, capacidades e também de natureza econômica e financeira..
Outro aspecto é que esses momentos de encontros gerais excluem funções intermediárias, ou seja, aquelas tarefas frequentemente atribuídas a grupos e companheir@s que possuem contatos diretos com aquelas realidades com as quais não queremos nos relacionar. As socializações que se criam no âmbito da assembleia geral, quando destes encontros, dizem respeito a tod@s @s presentes e cada um@ no final fará as suas escolhas mais adequadas. Não se trata de solucionar as rupturas que se deram mas de reduzir as suas consequências negativas.
A QUESTÃO REPRESSIVA
Tornou-se evidente, em muitos locais, que estes encontros generalizados, juntamente com a evidente positividade que criam, em geral e por lutas específicas, servem de “monitor” em ocasiões em que as forças e as estruturas do poder, no cumprimento da sua tarefa repressiva, podem, de forma sistemática, “fichar” tod@s @s participantes.
Considero séria esta observação, e admito que não a tenha tido em conta, talvez porque dei como adquiridas algumas coisas.
Nós não somos a vanguarda de ninguém, senão de nós mesm@s. Muito pelo contrário, a metodologia que explicamos estimula em todos os sentidos a negar qualquer forma de vanguardismo, delegação e representatividade. Nesta forma de ver as coisas, a nossa participação nas lutas sociais é um estímulo direto, concreto, à ação direta, à autogestão das lutas, à autonomia total de tod@s @s que fazem sua a luta.
O fato de sermos insurrecionalistas clarifica também a nossa forma de atuar, o estímulo que damos a partir das lutas específicas em função da insurreição generalizada.
Se tivéssemos possuído a força para concretizar uma insurreição que tão só pudesse ter tido potencialmente a capacidade de destruir o atual contexto social, não estaríamos aqui discutindo e teríamos nos dedicado a outras coisas.
Se possuíssemos esta força e não a tivéssemos concretizado em forma de insurreição seríamos imbecis. E como não creio que sejamos imbecis e não me parece que estejamos num contexto insurrecional, é evidente que não possuímos essa força.
Isso significa que temos de agir, com a metodologia insurrecionalista, assim como agimos para levar adiante diariamente as lutas sociais em que participamos. A nossa atividade face às lutas sociais é evidente. Manifestamo-la em praças, ruas e em todas as ocasiões em que a população ou parte dela se expressa sob a forma de dissidência e luta.
É verdade que não damos esses estímulos de forma legal, mas é óbvio que se conduzir um carro e não possuir carta tentarei que os “caras” não me encontrem, pois sei que de seguida serei preso.
Num contexto social baseado no consenso generalizado, real ou virtual não tem importância, a nossa forma pública de atuar para incidir no social (de forma limpa, sem erros) dá um medo terrível ao poder precisamente porque os nossos estímulos não são de natureza vanguardista e tampouco estão desligados ou distantes do senso comum e das suas possibilidades de compreensão.
É por isso que a repressão do estado-capital tem por objetivo separar e separar-nos dos contextos de lutas sociais, criminalizando a nós e às nossas ações ou dando a entender que algumas ações são justas (quando esterilizadas por mecanismos legais de reivindicação) ou injustas (se recusamos a prática burocrático-legal dos anestesistas sociais e institucionais).
É por esta razão, creio, que o desafio do poder atual do estado-capital tem de se dar principalmente no plano social, com a nossa manifesta participação nas lutas, nos protestos, nos ataques espontâneos.
Neste contexto, tem razão de ser a metodologia da organização informal, tanto em um nível amplo como em um nível específico; apesar de o estado-capital nos empurrar na direção da clandestinidade insistimos na necessidade de permanecer juntos nas lutas sociais. Supondo que o poder constituído e a rede telemática de informação não estejam completas ou que existam falhas na centralização dos dados a nível europeu ou mais além (não o sabemos mas o imaginamos), a monitoração e o fichamento que as forças policiais podem fazer quando destes encontros gerais, não modifica substancialmente nada a respeito da nossa forma de fazer frente a luta, e que conste isto. Obviamente que isto não exclui que @s companheir@s devam estar atent@s e que tomem todos os cuidados para evitar descuidos de qualquer tipo. Isto não exclui possíveis tentativas criminalizantes de construir montagens que pretendem separar a nossa luta do social, separar a insurreição dos movimentos sociais reais, a nossa reação não pode ser radicalizarmo-nos mais nestes movimentos mas ampliar ainda mais os nossos estímulos em sintonia com o que é pedido pelas lutas.
Doutro modo, possuindo eles a força material para fazer-nos desaparecer a tod@s, de uma forma ou de outra; um poder que se rege pelo consenso generalizado deve ter também o poder de gerir este desaparecimento face ao consenso em que se rege, força que evidentemente não tem, por agora, dado que optou pela estratégia de afastar-nos a nós e às nossas ações dos contextos reais da natureza social, que se manifestam como rupturas à estabilidade do sistema.
Constantino Cavalleri Guasila – Sardenha, Novembro de 2000
Carta aberta aos clones do sistema
José Alberto
“Vives” na apatia, na indiferença, na mesquinhez, na humilhação, nas fofocas, nas lamúrias, no queixume, no desabafo, na tagarelice e na maledicência. “Vives” na lama da falsidade, da bajulação, da hipocrisia, no dizer mal por trás, no virar da casaca, na traição ao dar de costas. Dás o dito pelo não dito quando és confrontado. Passas a “vida”, a subvida, na submissão, a rastejar como cobras, a andar de joelhos, na subserviência. És sublime na servidão. Tens vaidade de ser lacaio. Até fazes de faxina dos teus companheiros. Sujeitas-te à escravidão. Deixas-te degradar pelo sistema. Absorves a subcultura carcerária até encher a mente. Desbaratas as energias em bagatelas e na alienação da narcotizante propaganda do sistema; na alienação da televangelização dos germes do domínio e do charlatão discurso do sistema. Pensas como eles (sistema). Tens o discurso deles. Tens os pontos de vista deles. Tens os valores deles. És o centro do poder e não o marginal do poder. És produto e produtor do sistema. Pensas pela cabeça deles. Fazes o jogo deles. Tens a polícia na cabeça, és o reflexo deles. Submetido à cultura secular do domínio, sobrevives com o desejo de vir também a mandar. O teu imaginário é querer ser como eles. Tens hoje o chicote nas costas, mas sonhas em chicotear os demais amanhã. Quando te dão uma chave de um armazém, das latrinas, do bar, da escola, da enfermaria, da biblioteca, tornas-te soberbo, arrogante, déspota e polícia. Reproduzes constantemente o sistema. Até pareces um clone do sistema. Vende-te. Cedes à chantagem deles. Deixas-te transformar em bobo. Abanam-te a cenoura – as designadas medidas de flexibilidade de pena (precárias, RAVI, RAVE, liberdade condicional) – à frente dos teus olhos, em troca da perda da tua dignidade. Propõem-te que colabores com eles. Aceitas. Passas a fazer de polícia aos teus companheiros. Deixas-te manipular, corromper e instrumentalizar por eles. Fazem de ti uma marionete. Passas a exercer poder sobre os teus companheiros.
Veiculas os boatos que a direção da administração do teu extermínio quer. Fazes de ti correia de transmissão. Culpa o que vês e o que não vês. Inventas problemas. Fazes competição na delação. Tens presunção de ser delator. E pretendes ser o maior dos delatores. Dedo-duro! Vanglorias-te “viver” nessa abjeção. És tu que fazes o grande controle da prisão. Dá pareceres à direção da administração do extermínio sobre se o companheiro x ou y merece ou não as medidas de flexibilidade. És um nojo!…
E mesmo quando não é um X9, tem posturas que só favorecem o sistema, pois, criticas destrutivamente os companheiros ativistas, que, corajosamente denunciam a prepotência e as monstruosidades do sistema, revelando, por vezes, ideias próprias de inquisidor.
A tipos como tu, que não são caguetas, mas que pensam como (e pior que) o sistema, o falecido e estimado companheiro Juvenal chamava-lhes “cabeças partidas”.
É verdade, não haja dúvidas, és um “cabeça partida”. Não denuncias o sistema e tampouco as suas monstruosidades. Estás revoltado, mas não fazes nada, mas passas a vida a chafurdar na maledicência sobre os companheiros ativistas que lutam contra as monstruosidades praticadas pelo sistema e por condições que tornariam a vida menos cruel na prisão. Até dá a ideia de que trabalhas para o sistema. Porém, quando os frutos dessa criticada luta aparecem, geralmente és logo o primeiro a querer beneficiar dessas melhorias, esquecendo ou desconhecendo que as mesmas se devem a esses ativistas.
Com a tua postura reacionária, retrógrada, imbecil, não fazes mais do que ajudar a perpetuar o sistema.
Quando deixarás de pensar pela cabeça deles? Quando deixarás de ver os problemas sociais pelos olhos deles? Quando deixarás de pensar que nada podes fazer? Onde está a tua dignidade? Ainda não viste que transportas o inimigo na tua cabeça? Ainda não viste que o teu inimigo são as ideias autoritárias que tens na cabeça e que nos fazem a vida negra? Não vês que és cúmplice do sistema? Não vês que estás colonizado no pensamento? É urgentíssimo que faças a tua descolonização mental.
Exorto-te à reflexão, a que penses pela tua própria cabeça, a que sejas tu próprio, à defesa da dignidade do indivíduo, da dignidade humana.
Resistência à degradação!
Desde as enxovias do poder, Abril 99 José Alberto
Contra o controle, a prisão, a repressão companheir@s italian@s
(Su Gazetinu nº 0)
O texto que de seguida reproduzimos fez-se circular nas últimas semanas, de forma informal, em determinadas e restritas situações, à espera que o instrumento editorial projetado se levasse a cabo. Isto representa uma espécie de papel das tentativas dos grupos que, entre outras coisas, estão a organizar debates públicos e manifestações em diversas cidades sardas.
Na Sardenha demos vida a grupos de luta contra as prisões e esta primeira saída pública pretende socializar, entre @s pres@s, os seus familiares e em todo o social, um mínimo de projetualidade operativa que clarifique as coordenadas sobre as quais articulará a sua participação.
O ponto de partida sobre o qual todos coincidimos é que a prisão, juntamente com outras formas de controle e repressão, não é mais do que o reflexo de uma sociedade corrompida, contraditória, dilacerante e sustentada por um poder político-econômico-ideológico, que se apoia num sistema que garante injustiças e substancialmente baseado na exploração da maioria em benefício de uma restrita elite em determinadas áreas do mundo e da sociedade.
Portanto, a luta contra a prisão, contra cada forma de cárcere, assim como contra cada forma de repressão e controle, é para nós a luta contra o íntegro sistema social vigente, sustentado pela alienação e exploração.
Da mesma forma que não acreditamos na possibilidade de um sistema baseado no domínio do homem pelo homem e sobre a natureza no seu conjunto reconhecer a liberdade de cada indivíduo singular e das comunidades humanas específicas, de determinar-se em autonomia, tampouco acreditamos que a prisão possa representar (eventualmente “melhorada”) uma instituição que assuma papéis positivos para os indivíduos e para o corpo social.
A prisão – como qualquer forma de repressão – é o tipo de instrumento para encerrar, corrigir e, se necessário, isolar da sociedade pessoas consideradas, injustamente ou com razão, delinquentes, criminosas, não respeitosas para com as leis em vigor.
Mas estas leis, que são impostas a todos, nem por todos foram elaboradas e aprovadas; só uma ínfima minoria de indivíduos têm a mesma possibilidade de elaborá-las e de impô-las depois a todos, fazendo uso de instituições e homens submetidos ao mesmo objetivo (funcionários, magistrados, polícias), com frequência explicitamente armados.
Os que não têm semelhante possibilidade ou tantos quantos não possuem ainda assim a capacidade ou vontade para elaborar leis válidas inclusive também para outros, porquê deveriam respeitar as leis?
Não altera nada o fato de que as leis sejam elaboradas por poucas pessoas eleitas em pleno regime democrático. Não é por uma parte da população, mais ou menos numericamente consistente, decidir renunciar à sua própria autonomia e independência, colocando a própria existência nas mãos de outros (os eleitos), que desaparecem as contradições econômico-sociais de fundo e ganham valor as leis feitas por uns poucos e impostas a todos!
De qualquer forma, seja mais ou menos democrático o regime, uma sociedade que se rege pela redução de completos estratos sociais a EXCLUÍDOS de uma existência digna, ou que pretende para amplas massas proletárias a escravidão diária de um trabalho cada vez mais alienante e embrutecido, para além de degradante, ou que impõe respeito e ordem apenas a favor dos privilegiados, dos poderosos e dos que estão ao serviço destes e dos seus interesses. Uma sociedade assim não é um sistema que possamos nem queiramos respeitar. Quiçá não se conseguirá destruir definitivamente, mas é nossa intenção tentá-lo, atacando-o em todos os seus aspectos e manifestações como temos feito até hoje.
Uma sociedade assim não pode senão produzir descontentes – como nós –, dissidentes – como muitos de nós –, excluídos do gozo de uma vida digna – como muitíssimos – e obrigar os indivíduos refratários ao recrutamento no trabalho informal ou legal e, portanto, sujeitos a “delinquir”.
E é essa mesma sociedade que origina tensões e repressões individuais e coletivas que muito degeneram em comportamentos, ações, fatos ensanguentados que atingem pessoas, famílias, comunidades, populações inteiras a quem foi expropriada toda a capacidade de autocontrole e autorregulação.
Enquanto que o capital (agora multinacional e informatizado), por meio dos estados que representam os seus apêndices territoriais, fomenta guerras destrutivas como a história nunca tinha conhecido, matando comunidades inteiras em cada canto do planeta que esteja fora da ordem social estabelecida e da legalidade gerada pelo domínio, as camadas da população mais débeis, mais marginalizadas, privadas de toda a satisfação da vida, que suplicam e instam desde os confins dos estados aos estratos sociais assimilados pelo sistema vigente, gerando guerras entre miseráveis que o governo alimenta ainda mais com o fim de aterrorizar a sociedade inteira e obrigá-la a ceder às medidas de controle e repressão cada vez mais desumanizantes e inaceitáveis.
Um sistema que não aceita sucumbir em absoluto, mas que tende a perpetuar-se por meio do que o alimenta e disso retira benefício e poder. É para que se garanta um mínimo de estabilidade, de consenso (forçado e “voluntário”) que instituiu a prisão, as mil formas de repressão na sociedade, as mil condenações comportamentais e psicológicas, os manicômios verdadeiros e virtuais, nos quais se isola, tortura, separa os dissidentes, os refratários, os “desgraçados”, numa palavra, os Rebeldes Sociais.
A prisão, portanto, como apêndice sistemático e irrenunciável para o sistema vigente, reflete, e com frequência amplificada, as porcarias existentes mais além dos seus muros. Serve frequentemente de laboratório de ensaio para novas e mais avançadas formas de manipulação comportamental e psicológica, de repressão e controle.
É por isto que a luta contra a prisão é, ao mesmo tempo, a luta contra esta sociedade do domínio, e vice-versa, a luta contra este regime não pode senão ser a luta pela destruição das prisões.
No entanto, não queremos ter ilusões nem devaneios. E ainda menos ser “humanitaristas” que, não sabendo fazer outra coisa para aliviar a própria consciência que se levanta contra o existente, em vez de empunhar as armas necessárias para a luta pela destruição do sistema, fazem obra de consolo, de alívio das tensões, reduzindo-se a pacificadores de almas desiludidas ou caídas em desgraça.
Não somos bombeiros e recusamos qualquer função de amaciamento, de pacificação. Não nos consideramos tampouco uma entidade coletiva em “solidariedade” com outros, por presos ou livres que estes sejam.
Não porque recusemos a solidariedade, mas porque não a consideramos suficiente em si mesma para satisfazer as nossas tensões e as alheias, e também porque avaliamos a solidariedade como manifestação concreta, real, material das lutas, das batalhas, dos protestos de tod@s aquel@s que se contrapõem realmente ao existente com o fim de destruí-lo definitivamente, ou, pelo menos, de arrancar-lhe condições melhores de existência.
Por outro lado, recusamos qualquer papel e hipótese vanguardista e sim aspiramos a destruir as prisões juntamente com o sistema que as gera e sustenta. Desejamos fazê-lo em conjunto com aquel@s que, ativando-se em torno das lutas, se colocam em jogo a si mesmos na primeira pessoa, assim como nós, renunciando a delegar e aos papéis de representação, simplesmente participando na luta segundo as suas tensões, especificidades, possibilidades e capacidades.
Não temos ilusões, nem devaneios, porque somos perfeitamente conscientes de que não possuímos, por nós mesmos, nem a força nem a capacidade de destruir as bases da sociedade que nos domina.
Não somos grupos “de solidariedade”, portanto, com a luta dos outros, por presos ou livres que sejam.
Não somos grupos de solidariedade mas de luta; grupos que levam avante uma luta que é A MESMA LUTA, para além de ser a luta de tod@s aquel@s que participam nela dentro e fora de muros. É esta a solidariedade real que manifestamos no passado e é esta a única forma de solidariedade que concebemos hoje.
Somos conscientes também de outro fato: que só a luta, ou seja, a guerra constante, pode de forma planejada dar resultados positivos, por pequenos que sejam.
E lutar quer dizer, precisamente, colocarmo-nos em jogo na primeira pessoa, enfrentar riscos numerosas vezes, muitas vezes sacrifícios, colocar também em risco essas migalhas de certeza e “privilégios” que cada um de nós faz questão de possuir para evitar o suicídio. Lutar portanto arriscando na primeira pessoa, não nas lutas de outro, mas nas nossas próprias lutas.
Se não acreditássemos nessa luta contra as prisões, uma LUTA TAMBÉM NOSSA, não estaríamos dispost@s a arriscar nada, não tanto a nossa liberdade, mas a própria existência.
Acreditamos igualmente que esta luta é também nossa, pelo mesmo motivo que a intensificação do regime repressivo na prisão corresponde a um reforço do poder instituído e, consequentemente, a uma posterior restrição do social em geral.
Cada torturado na prisão tem uma componente no social e vice-versa: um pêndulo brutal ao qual corresponde apenas um reforço do regime de escravidão dentro e fora das prisões.
A consciência de não possuir alternativa à luta levada adiante na primeira pessoa não nos faz desistir. Tampouco enterramos as nossas intenções face à consciência da apenas PROVÁVEL, portanto incerta, AQUISIÇÃO da força necessária para destruir definitivamente as prisões e a sociedade que as gera e renova.
Consideramos possível, em qualquer caso, a aquisição de uma força capaz de IMPOR AO PODER CONSTITUÍDO alguns objetivos particulares que representem maior espaço de liberdade para @s pres@s e para tod@s os que não o são.
Mas para impor estes objetivos particulares, verdadeiramente mínimos frente a exigência de liberdade total, cremos que a luta não pode ser de retaguarda, de resposta: deve tratar-se de ataque, ou seja, de iniciativa nossa, d@s livres, d@s pres@s, d@s familiares.
Uma luta que parta de tod@s nós e que esteja nas nossas mãos, que se articule livremente adaptando-se às tensões e às vontades de cada um(a), mas que tenha a possibilidade de sintonização, pelo menos naqueles momentos em que a sua explicação requeira concentração de tentativas e força capaz de impor ao poder constituído os objetivos preestabelecidos.
Deve, além do mais, tratar-se de uma luta aberta à possibilidade de alargar-se, de envolver tanta mais gente quanto seja possível, dentro e fora das prisões, de ligar-se a outras lutas similares, a outras situações análogas.
Este não é o momento para grandes análises (que eventualmente podem caber sempre em momentos mais oportunos), mas sim o momento em que, no social, o poder do estado-capital, os gânglios do domínio social e político se alargaram no plano internacional. E acontece serem momentos em que, catalizando-se os interesses do capital mundial, cremos ter isolado algumas áreas, na Europa, onde a luta poderia articular-se de forma ampla.
Nas prisões do estado espanhol, está em marcha, desde finais de 1999, uma luta que, difundida no social, procura a abolição do regime especial de isolamento (FIES), a libertação dos doentes crônicos, o fim da dispersão das pessoas presas, ou seja, da sua transferência para lugares distantes da sua própria terra ou da prisão na qual se criaram espaços de socialização, de estudo, de simpatia, de convivência pacífica entre presos.
Nós acreditamos que nas prisões – e na sociedade – do estado italiano, em particular na Sardenha, há condições similares pelas quais é possível dar saída a uma luta com objetivos análogos. Sobretudo no momento em que – depois das vagas de protestos que as administrações prisionais e os meios de comunicação tentaram ocultar no ano passado e de continuarem os brutais espancamentos de reclusos na prisão de S. Sebastian em Sassari – o poder político não se dispõe a melhorar as condições d@s pres@s, mas a aumentar a repressão, o controle, as medidas inumanas já vigentes nas prisões.
É destes dias, com efeito, a notícia do aumento das restrições para @s pres@s e do número de guardas prisionais, além do mais, em dois anos, com a discrição da direção penitenciária, da prorrogação do art. 41 e da sua aplicação para delitos não previstos, da construção de novas prisões em que enterrar os que não considerem válido adaptarem-se às restrições e prepotência impostas pelo regime vigente de domínio.
É nossa intenção dar início a uma luta sistemática de oposição a este projeto repressivo e que se coloquem como objetivos imediatos, entre outros que se queiram propor:
-
A abolição dos regimes especiais de detenção ou isolamento.
-
A libertação dos doentes crônicos ou incuráveis.
-
O fim da dispersão e a aplicação, para os que a requeiram, da regionalização da pena.
Não somos unicamente nós @s que entendemos nestes objetivos a obtenção de melhores condições de vivência nas prisões e, sobretudo, uma maior possibilidade de comunicação entre o interno e o externo das prisões, para assim evitar que matanças como a de S. Sebastian permaneçam impunes ou que morram no silêncio decretado pela mídia, ministérios, direções prisionais.
Estamos a mobilizar-nos há algum tempo para contatar toda uma série de situações, na Sardenha e noutros lugares, para que a luta se ramifique por todas as partes e se envolva, no social e nas prisões, quanto mais gente melhor. Quanto antes daremos vida a um instrumento editorial específico, que sirva para dar a conhecer a evolução da luta por qualquer lado.
Há por todos os lados tensões, situações que manifestam vivo interesse, condições ótimas que devem encontrar confrontação num início de luta, possivelmente em sintonia dentro e fora das prisões.
@s pres@s, seus familiares, tod@s @s interessad@s podem fazer circular à sua maneira este texto, manifestar considerações próprias, críticas, propostas, para as direções que aparecem de seguida, expressar, por escrito ou por meio de familiares e conhecidos, a mesma intenção de participar ou dar saída à forma de protesto que cada um será livre de escolher.
Obviamente, esperamos que @s pres@s também, mais além das suas posições pessoais, expressem o que consideram válido sobre as suas situações, condições nas prisões de cada um, as tensões que existem, o interesse que suscita nos pres@s a seguinte proposta, etc..
De momento, os endereços aos quais podeis fazer chegar os escritos, considerações, propostas, críticas, etc. são:
1) Constantino Cavalleri – Via M. Melas nº 24 – 09040 GUSALIA (CA) – Tel: 0349 6419847
2) Rita Piga – Via Buonnarroti nº 2 – 08001 NUORO – Tel: 0339 1262579
3) Antonello – NUORO – Tel: 0339 1263478
Os companheiros estão dispostos para encontros com familiares, pres@s, quem esteja interessad@ na luta, para discutir e avaliar em conjunto as possíveis ações comuns válidas para difundir socialmente os interesses pelas problemáticas ligadas às prisões, à repressão dentro e fora das prisões, às mil formas como o controle se manifesta.
(Traduzido a partir da versão castelhana publicada em Cofre de vientos contra la cárcel y la repressión – anexos junio del 2002)
Agora é o momento: os círculos de familiares e amigos
Anônimo
É o momento de retomar uma proposta que foi lançada há algum tempo a partir de uma prisão do estado espanhol e que cremos ser de vital importância nestes momentos: o encontro entre toda a gente familiar e próxima dos companheiros presos que estão a lutar.
Desde finais do ano de 1999, presos do regime de isolamento FIES (regime especial de isolamento, um sistema de “vida” no interior das prisões no qual os presos se mantém sós e isolados em módulos especiais entre 20 e 22 horas na cela por dia, com as comunicações com o exterior totalmente controladas e censuradas, sem contato com os guardas prisionais para reduzir a possibilidade de motins ou sequestros, submetidos a maus tratos físicos e a insultos de todo o gênero continuamente) têm vindo a protestar com o objetivo de conseguir umas reivindicações que, longe de serem utópicas ou loucas, são simplesmente “direitos” que a mesma lei concede e que são sistematicamente violados. A única coisa que conseguiram neste tempo todo foram mais torturas, uma publicidade infame em jornais e revistas semanais e a manutenção das suas condições de vida ao mesmo nível de antes.
Porque cremos necessário este encontro?
Pensamos que as estruturas atuais que lutam contra as prisões não avançam. Carentes de imaginação e de continuidade, não foram capazes de criar as condições para uma mobilização contínua e contundente. Há que ter em conta que a luta é dura. Estamos a protestar contra o mais sólido pilar que o Estado de Direito possui para garantir o respeito da população: a prisão. A prisão é a ameaça que nos colocam à frente, como excluídos, para evitar que protestemos contra um sistema que a cada dia nos demonstra que, contrariamente ao que dizem, se governa de cima para baixo. Obrigam-nos a viver em bairros-gueto, na melhor das hipóteses, quando não em barracas, submetidos a um controle exagerado e a uma repressão policial que se alimenta continuamente, que nos golpeia sem motivos ou por questões excessivas, que dispara pelas costas ao menor gesto estranho. É uma realidade que é cotidiana. Não ter dinheiro, estar no desemprego, ser de outra etnia ou raça, não ter documentos de identidade, são crimes pelos que pagamos um alto preço. O racismo e a prepotência estão na ordem do dia. Dizem-nos que todos temos as mesmas oportunidades, que se pisarmos a cabeça do vizinho podemos ser como eles, viver uma vida tranquila sem estar continuamente a ser perseguidos por energúmenos de uniforme.
Assassinam-nos com as suas drogas, as que levam à prisão a maior parte das pessoas. Como explicar que as drogas são introduzidas no estado por máfias policiais instaladas nas fronteiras? Porquê só os consumidores e pequenos traficantes pisam uma e outra vez as prisões e não o fazem todos aqueles que têm dinheiro para se safarem sem delinquir, ou os grandes traficantes cúmplices da polícia? Quem não se apercebe de que a droga legal e ilegal é uma das maiores fontes de receitas do Estado? Quem pode pôr em dúvida que é a pobreza e não a droga que leva as pessoas para a prisão?
Para justificar a existência das prisões, dizem-nos que estas são necessárias para isolar os psicopatas ou violadores, os que cometem atos antissociais, para tratá-los e reinseri-los em prol do bem comum. Mas, como se explica então que os violadores e demais sejam precisamente os de “confiança” dos guardas prisionais e que, para o resto dos presos, o “tratamento” consista em administrar metadona indiscriminadamente? Que tipo de reinserção praticam, torturando e isolando os que protestam e premiando os que denunciam os seus próprios companheiros? Não, as prisões não são necessárias, não constituem nenhuma alternativa, nem tampouco reinserem. Eles mesmo reconhecem que a maioria dos presos reincide várias vezes, que as prisões são fábricas de “delinquentes”, onde as bondades anunciadas na Constituição e no regulamento penitenciário se esfumaçam para dar lugar à realidade. Uma realidade que nos diz que devemos olhar para a rua, donde provêm as pessoas presas, para nos darmos conta do porquê de acontecer o que acontece.
Lutar contra a prisão é lutar contra o sistema que cria pobreza para muitos e opulência para uns poucos e o preço a pagar é alto: ser rotulado de terrorista, subversivo, anti-sistema, carecendo de importância o fato de quem ser assim classificado não ter ideais políticos ou mal saiba ler. Terroristas somos todos os que estamos fartos de aguentar uma situação de abuso insustentável e que decidimos abrir a boca para gritar.
Cremos que sozinhos não poderemos lutar contra este monstro chamado democracia e que necessitamos da coordenação do esforço coletivo de todos os que nos solidarizamos com os nossos. Eles são um bravo exemplo de unidade, sob as duras condições do seu encarceramento.
A batalha é longa, temos de ser conscientes disso e é urgente e necessário reforçar o apoio e a ação de todos os que dizemos BASTA!
Encontrarmo-nos pode ser o começo do caminho. Discutir e apresentar propostas sobre o que podemos fazer na rua para parar a repressão e avançar nas reivindicações para melhorar o nível de vida dos nossos companheiros presos. É urgente. Não podemos esperar mais.
Tomemos como exemplo outras lutas que tiveram lugar no passado, como as da COPEL e dos comitês de apoio. As lutas de ontem são as de hoje, porque apesar de passar o tempo as condições prisionais não são muito diferentes. De fato, a “Ley Orgánica General Penitenciaria” foi então aprovada e sob o seu comando a repressão liquidou a luta dos presos e sob o mesmo mando hoje liquidam os nossos companheiros. Atualmente a população reclusa superou o número de mais de 50.000; muitas das reivindicações de então continuam vivas hoje porque ainda não foram satisfeitas; o Estado está a optar pela via claramente repressiva, construindo mais macro-prisões de máxima segurança como resposta à massificação e ao sempre crescente aumento da população presa; apesar das sentenças que declararam a inconstitucionalidade do regime FIES, este continua a existir e foi “legalizado” mediante circulares internas em 1996.
O único caminho é a mobilização e a ação. Muitas são as exigências, dentro e fora: Para quando um sistema de comunicação com as atuais macro-prisões que não nos faça esperar horas por ônibus, comboios, ou ter que pagar caros táxis, para visitas de tão só 45 minutos? Para quando a libertação dos doentes terminais? Porque não organizar caixas de resistência para todos aqueles que dispõem de escassos recursos?
Está nas nossas mãos.
Contatos:
Madrid: apartado de correos 156072 / 28080 Madrid
Barcelona: apartado de correos 10007 / 08080 Barcelona. Telefone: 660280194
(Tradução do texto Ahora es el momento: los circulos de familiares y amigos. Publicado em Cofre de vientos contra la cárcel y la repressión – anexos junio del 2002)
Destruamos todas as bastilhas!
anarquistas portugueses em 1977
Quando o povo parisiense, no dia 14 de julho de 1789, conquistou a Bastilha (terrível fortaleza-prisão, defendida por amplas e altas torres, fosso, pontes levadiças e guarnição militar), estava a abrir às escâncaras as portas da Grande Revolução Francesa e estava a preludiar a todas as Revoluções Sociais seguintes. Como odiava todas as masmorras, de Bicêtre ao torrão de Vincennes, sem esquecer a Pontece (onde estavam os presos por dívidas) e tantas outras, não podia deixar nenhuma de pé, sob pena de negar-se a si próprio e ser eternamente obrigado a recomeçar. Nem podia, com ridículo e casuístico rigor jurídico, estar a esmiuçar quais os casos-modelo passíveis de liberdade vigiada, de liberdade condicional, de liberdade sob compromisso – ou de qualquer uma dessas modalidades de liberdade miserável que nós, anarquistas, não queremos para os nossos piores inimigos (não por caridade cristã, mas porque, apesar de tudo, ainda nos obstinamos em descortinar neles alguns resquícios de dignidade humana) e são previstas pela jurisprudência dos magistrados, pela linguagem peremptória dos códigos e pela eficiência oficiosa das polícias, as quais, para poderem estender as malhas das suas redes, sempre necessitaram da auspiciosa colaboração dos delatores… “em liberdade”. Assim acontece em todas as revoluções autênticas: todos os presos são postos em liberdade incondicional, indivisível, ilimitada; todas as bastilhas são reduzidas a cinzas ou convertidas em celeiros ou currais para gado, no caso de reunirem as condições higiênicas mínimas. Acaba-se com a separação entre o bestiário sofredor que padece atrás das grades, isto é os presos no sentido literal do termo e aqueles que, cá fora estão com as chaves das celas na mão, queremos dizer os carcereiros, ou presos que se ignoram, que somos afinal todos nós. E assim aconteceu na Revolução Russa com inúmeras prisões do czarismo, atacadas pelas multidões criadoras. E na Revolução Espanhola, quando os anarquistas atacaram esses símbolos vivos do sadomasoquismo cotidiano. A famosa Coluna de Ferro, por exemplo, que tão bem se bateu na região de Teruel contra o verso e o reverso da mesma medalha, por outras palavras, contra os fascistas e estalinistas, e foi a que mais resistiu à compulsiva militarização das milícias, contava entre os seus vinte mil homens com numerosos ex-presidiários da cadeia de San Miguel de los Reyes. As razões de semelhante comportamento são claras: tristemente ao corrente do regime das prisões, não podiam esses homens ser de novo subjugados pela disciplina das casernas. Só em liberdade total, em ordem anárquica, associando-se segundo regras que lhes eram imanentes e não sopradas do exterior, podiam continuar por diante com o esforço de guerra. Milicianos da liberdade, sê-lo-iam; soldados debaixo de uniforme, isso nunca!
Contudo, se como dizíamos, todas as Revoluções Sociais destroem todas as bastilhas, todas as contrarrevoluções políticas as conservam e modernizam. Foi o que aconteceu no caso francês. A seguir ao ímpeto inicial, destruidor, do povo, veio o refluxo conservador, “construtivo”, dos políticos profissionais. Os jacobinos, empenhados na luta pelo poder com a burguesia girondina, encheram de novo as prisões, ergueram cadafalso e guilhotina, conferiram plenos poderes ao acusador público Fouquier-Tinville, por toda a parte introduziram o já metediço Comitê de Salvação Pública, generalizaram a desconfiança e a fofoca, promoveram em larga escala o assassinato frio e a mentira por amálgama – e deste modo, ó ironia!, cavaram o seu próprio fosso e prepararam o terreno para os seus rivais políticos. A propósito disso, um dos mais destacados jacobinos, Saint-Just, chegou mesmo a fazer autocrítica, de que nos incumbe hoje tirar todos os ensinamentos, antes de, por sua vez, ser guilhotinado: os revolucionários que apenas levaram a revolução até meio não fizeram mais do que cavar a sua própria tumba. Foi também o que aconteceu no caso russo. O povo destruiu parte do erroneamente construído e, sobre os alicerces do que restava, a contrarrevolução bolchevista edificou a sua ditadura sobre o proletariado e empregou logo os métodos inquisitoriais que a caracterizam, deste modo, conservar e prolongar o regime antigo, sob etiqueta mais aliciante. Assim: Substituiu a polícia czarista (Okhrana) pela Tcheka; aceitou na nova Academia Militar “vermelha” ex-generais brancos; aceitou no seu seio toda uma série de antigos torcionários cuja competência técnica continuou a aperfeiçoar-se; determinou que, a partir de 1918, os detidos pudessem, sem culpa formada, ser fuzilados nos subterrâneos da Tcheka; criou a pena de morte para os jovens delinquentes de doze anos de idade; exportou em larga escala esse artifício jurídico que em Portugal conhecemos pelo rótulo de “medidas de segurança”; etc, etc.
No caso português em que tudo é mais mesquinho, já que, como dizia o poeta Alexandre O’Neil, vivemos num país em diminutivo – nem sequer revolução houve com o 25 de Abril de 1974, quanto mais uma contrarrevolução violenta que depois a tivesse vindo desnaturar! A mentalidade pidesca[2], forjada ao longo de mais de 40 anos de fascismo paternalista por escravos resignados e por opositores parciais ao regime, determinou logo que os antigos arquivos da PIDE não fossem pura e simplesmente queimados, única solução que se impunha pelo simples fato de conterem informações susceptíveis de serem instrumentalizadas por novas polícias, por partidos políticos, pelos militares de carreira e, em geral, por todas as capelas. Qual quê!, em vez disso, criaram-se mas foi Comissões de Extinção que nada extinguiram e, tomando-se como embriões de novas polícias, menos ainda se extinguem a si próprias. Como associados rivais, os partidos políticos correram atrás das suas fichas e das do parceiro, para melhor esconderem as mazelas, atualizarem os “conhecimentos” e fazerem chantagem. Foi ainda o mesmo tipo de mentalidade, desgraçadamente imperante, que fez com que as luzes da ribalta apenas iluminassem certos aspectos mais folhetinescos da ex-polícia política, que se encontrassem os bodes expiatórios apenas entre os seus obedientes e zelosos funcionários, e se passasse a esponja sobre o triste passado de corporações como a GNR, a PSP, a Guarda Fiscal, a Polícia Judiciária, a Polícia Militar. Mas que havia de esperar de pessoas que sempre frisaram o fosso, pelos vistos intransponível, que separa o crime político do crime comum? Não foram os “nossos” democratas e os detidos insignificantes no tempo da outra senhora, muitas vezes por andarem a distribuir panfletos rotineiros ou pelo fato da simples filiação em conceituados partidos de esquerda, quem sempre frisou que eles eram os aristocratas das prisões, os peraltas do mundo celular, os homens do elegante estatuto de preso político (que os ajuda a singrar nas variadas carreiras), enquanto os outros, os que eram torturados e espancados pela Polícia Judiciária, os que com certeza tinham o cromossoma do crime descoberto pelo Lombroso[3] da criminologia, não passavam da ralé do delito comum?
Cabe a nós, anarquistas, que vimos tantos dos nossos serem enforcados em Chicago ou eletrocutados em Boston; fuzilados nas prisões da Tcheka, Butirky ou da Ucrânia; atacados a tiro de canhão em Moscou e Kronstadt; guilhotinados na França; garrotados na Espanha; deportados em Portugal e sempre perseguidos como malfeitores, bombistas, associais por toda a parte; repor a verdade e pugnar pela libertação, sem reservas, de todas as vítimas da sociedade onívora. Não será nas nossas fileiras que se encontrarão os reformadores do código penal, do estatuto da magistratura, da instituição penitenciária, nem os assassinos legais, os candidatos a ditadores, os reorganizadores das polícias existentes ou ainda a criar. Somos pela destruição de todas as bastilhas e de todas as polícias; para nós, todos presos são sociais.
Era Kropotkin quem dizia que precisamente porque o homem, fruto das taras de uma sociedade doentia, não é excelente, era necessário evitar e demolir tudo o que pudesse vir a torná-lo pior ainda. Neste caso encontram-se todas as prisões por ele consideradas “universidades do crime”, e, por nós, berços da astenia e da desmoralização, fontes unissexuais do abuso sexual forçado, focos infecciosos do espírito de delação e colaboração com a polícia ou, no caso contrário, de uma revolta desesperada e autodestrutiva, embrulhada como um cata-vento que perdeu o Norte.
DESTRUAMOS TODAS AS BASTILHAS! SOLIDARIEDADE ATIVA COM TODOS OS PRESOS COMUNS! VIVA A REVOLUÇÃO SOCIAL! VIVA A ANARQUIA! Maio de 1977
Grupos Anarquistas “Os Revoltados”, “Os Solidários”, “Lanterna Negra”, “Liberdade” e “Núcleo de Intervenção Anarquista” (texto retirado da revista “Acção Directa” nº 11 – Fevereiro/Março de 2001)
Carta de um preso anarquista turco
Sou um prisioneiro anarquista há 5 anos. O Tribunal de Segurança (DGM) de Malataya condenou-me a 15 anos de prisão porque não neguei a minha identidade e ideias anarquistas. Tive que lidar com todo o tipo de problemas. Na prisão de Malataya fui colocado num bloco dominado por prisioneiros Marxista-Leninistas. No entanto, não fui aceito por eles. Me disseram que para ser aceito eu teria que ficar como um prisioneiro apolítico e não como anarquista. Apenas o PKK me aceitou, mas com uma condição: não deveria falar com ninguém sobre o anarquismo. Embora tenham me tolerado um pouco, depois de eu ter me negado a essa condição. Foram mais moderados apenas porque no passado eu tenha me afirmado como um anarquista curdo. Se isso não tivesse acontecido, certeza que nunca teriam me tolerado. Não tive outra alternativa a não ser pedir pela transferência para a prisão de Burdur. Havia mais 4 prisioneiros anarquistas na prisão de Burdur. Eram pessoas que se converteram ao anarquismo já depois de presas. Eles, como muitos outros anarquistas, têm um passado de esquerda. Nessa altura fui torturado, tinha problemas para respirar, problemas no fígado, olhos e ouvidos. E o mais importante: tinha um grave trauma. Estava com problemas em respirar e, por vezes, desmaiava. Sugeri aos meus compas anarquistas que deveríamos pedir a transferência para um bloco que tivesse ar-condicionado. Eles concordaram, mas as autoridades prisionais rejeitaram o pedido. Foi-nos dito que falássemos com os representantes do Comitê de Prisioneiros, que era controlado por organizações Marxista-Leninistas. Expliquei a eles a questão, durante esse tempo não pude ir ao médico por causa da deterioração da minha saúde. Falei também com os representantes do MLKP (Partido Comunista, Marxista-Leninista) e o PKK e pedi-lhes ajuda. Eles ficaram chateados, recusaram-se a nos ajudar porque éramos anarquistas e não “revolucionários”. Não nos viam como revolucionários, disseram-nos para não causar problemas.
Eu e os meus compas discutimos o problema entre nós. Decidimos pedir transferência para outra prisão onde não houvesse marxistas. Alguns dos meus companheiros aconselharam-me a ficar num dos blocos políticos até que minha saúde melhorasse. De início recusei mas depois fiquei preocupado porque desmaiava mais frequentemente. Decidi dizer isto aos representantes do Comitê de Prisioneiros. O MLKP recusou-se de imediato a deixar-me ficar no seu bloco. O PKK deixou-me ficar mas com uma condição: eu teria que ser um cidadão “normal”. Estava magoado e recusei. Entretanto, algumas das pessoas que vinham nos ver de fora para nos visitar eram mandadas embora pelo Comitê de Prisioneiros. A razão era o fato de não sermos “revolucionários”. (…) Fomos transferidos para lugares diferentes… Fui enviado para a prisão de Konya/Ermenek. Vivi lá cerca de 2 anos. Durante algum tempo estive com os Trotskistas, porque eles também eram rejeitados e tratados como nós pelo Comitê de Prisioneiros. Finalmente percebi como é difícil viver com os Marxistas. A minha aprendizagem política me ensinou. A minha saúde estava em risco se eu continuasse na solitária. Fui enviado para o hospital Ankara Numune e fui operado. Contudo não puderam fazer nada em relação às minhas constantes dores de cabeça e o meu problema nos ouvidos.
Como podem ver, a pena por ser anarquistas é muito severa. Confrontamo-nos com todo o tipo de problemas. Penso que isto é algo com que os anarquistas têm que contar. Espero que esta carta ajude a perceber quais as condições que os anarquistas enfrentam nas prisões turcas.
F.I.E.S. e o sofrimento legal na Espanha
Xose Tarrío
Se me perguntassem o que é o cárcere, eu lhes responderia sem duvidar que é a lixeira de um projeto socioeconômico determinado, do qual jogam todas aquelas pessoas que incomodam dentro da sociedade: por isso o cárcere abriga principalmente pobres…
A ideia de cárcere surge na história como meio para prender e isolar da sociedade àquelas pessoas que as autoridades consideram inoportunas ou subversivas às suas doutrinas e normas. No curso da história do cárcere, e suas masmorras, foram aplicadas formas diferentes; porém sempre, absolutamente sempre foi constituído como uma ferramenta de poder imposto, um meio coercitivo dos reis, de militares e de políticos. Exato! No cárcere nasce a necessidade de governo, de estado, de apoderar-se do direito exclusivo de castigar, ou seja, do uso exclusivo da violência sobre as pessoas livres; a utilidade funcional desse feito é a necessidade de fazer valer suas leis por meio do terror e da tortura, a fim de destruir os inimigos do sistema vigente e aquelas pessoas insubmissas a seus códigos e leis. Porém, também tem sem dúvida uma origem social: o controle por parte do poder das pessoas deserdadas e pobres, da imensa massa de pobreza e marginalização que se move dentro das sociedades modernas, a fim de frear em grande parte o descontentamento social, reprimindo constantemente as camadas sociais mais rebeldes. Por tudo isso podemos já concluir que a prisão, os cárceres modernos, são uma ferramenta do aparato governamental, mediante os quais mantém o seu poder; isso surge da necessidade do poder em controlar o povo, regulá-lo, ordená-lo, selecioná-lo, mantê-lo, em definitivo, abaixo de uma liberdade condicionada, sujeitada a um código penal e às leis injustas determinadas sem consulta do povo, com a ameaça constante do cárcere pairando sobre suas cabeças.
Se as carceragens foram criadas para prender nelas pobres e subversivos a ordem estabelecida, aqui, dentro das carceragens espanholas, foi criado o FIES e nela pode-se ver presos enterrados vivos, aqueles que dentro da prisão desafiam e combatem ao poder; o FIES (regime especial de isolamento) constitui dentro do Estado Espanhol uma das mais graves violações dos direitos humanos nos últimos anos, ao ser um regime especial não regulamentado nem sequer em sua própria lei, uma espécie de carta branca aos carcereiros para reprimir a seu capricho a uma série de presos organizados contra a Instituição Penitenciária. Começou a ser aplicada em 1991 após a reorganização da APRE (Associação de Presos em Regime Especial), uma organização de presos sensibilizados com os problemas carcerários, e após uma onda de motins, sequestro de carcereiros, autoridades carcerárias e judiciais que levaram a cabo para chegar à sociedade e pedir melhorias nas condições dos cárceres espanhóis; o FIES foi criado após o Ministro do Interior, Antoni Asunción, foi planejado e executado com a finalidade de destruir a associação APRE e para separar do resto da população reclusa aqueles presos considerados mais conflituosos, ou aqueles especialistas em fugas, dando então lugar a uma prisão dentro do próprio cárcere. Essa seleção de presos foi dividida em pequenos grupos e transferidos um a um aos novíssimos módulos FIES ou departamentos especiais, onde todo o contato com a população reclusa é impossível, no qual se torna fácil o trabalho de repressão sobre eles, tiram-lhes as roupas e fornecem roupas padrão e calçados, realizam interferências nas correspondências e limitam a quantidade de cartas; são levados sozinhos para o pátio sem estarem sob punição e o colchão é retirado durante o dia, devolvendo-o durante a noite, para as transferências dentro do recinto carcerário são despidos e algemados, e conduzidos escoltados por vários carcereiros armados de porretes e barras de ferro; os julgamentos são realizados durante o dia, durante o translado não podem ver nada; eles sofrem espancamentos, insultos e estrangulamentos contínuos, que as vezes duram dias inteiros, dentro das celas à mercê de grupos de carcereiros;… é muito etcétera para definir o significado do FIES nos cárceres do Estado espanhol de 1991 até hoje.
Na atualidade há duras lutas internas nas quais perdemos muitos compas, e o apoio que estamos recebendo de coletivos antiprisionais, estamos conseguindo que o FIES seja levado ao conhecimento da sociedade e que já não se pode ser aplicado de maneira generalizada como a seis anos; hoje em dia temos colchões (e aparatos), a roupa pessoal e começamos a realizar as vagens (para julgamentos) com o resto dos presos… As cartas não são todas interditadas e são poucos os locais onde se algema para realizar translados. Porém a repressão continua presente, disposta a manifestar-se em qualquer momento: Jaén 2, Huelva, Valladolid, etc… São prisões espanholas em que se mantêm o FIES sobre compas presos, onde se tortura e se reprime por passatempo e onde a pessoa presa resiste graças ao seu valor e solidariedade. Ser um FIES significa que em qualquer momento podem fazer contigo o que querem, que tem carta branca sobre ti por considerarem os FIES como presos incorrigíveis, com os quais somente cabe usar a violência legal, a tortura e celas de castigo. Desde 1991 morreram quatro compas que estivem sob este regime: Ernesto Pérez Barrot, Moisés Caamañez, Jose Luís Iglesias Amaro, Jose Romera Gonzalez; a um quinto que puseram cordas em sua cela e o espancaram todos os dias, até que se enforcou na Jaén 2 em 1995, então meu vizinho (Jose Luis Fernández Álvarez)… Isto sem contar os danos psicológicos que todos esses anos de isolamento e repressão causaram em muitos compas. Não devemos esquecer que a maioria dos presos FEIS já estão a mais de uma década em celas isoladas e que muitos outros compas assim estiveram entre quinze e vinte anos, isso pode dar uma ideia de qual é a realidade dentro dos cárceres espanhóis para quem ousa enfrentá-las: o risco de apodrecer e morrer numa masmorra, sozinho e depressivo é real, aqui o fascismo é palpável (penso que também como consequência desta onda de neofascismo que assola mais uma vez a Europa).
Para ir finalizando este breve artigo que escrevo para explicar um pouco do que é o cárcere e o que é FIES, dizer que toda repressão e tortura se baseia em algo fundamental: a impunidade com que os seus autores/carrascos podem levá-la a cabo; por isso é imprescindível levar ao conhecimento a situação dos departamentos FIES no Estado Espanhol, pois esta situação amanhã poderá acontecer em qualquer outro país, como já acontece na Alemanha e na França, etc… Por isso há que se denunciar este governo fascista e desmascarar sua política carcerária e sua brutalidade. Só assim, talvez, poderemos aliviar um pouco as duras condições de vida que se padece aqui dentro, enquanto criamos as condições para que um dia possamos apagar da face da terra essas vergonhas que a humanidade chama de prisões, e que não são outra coisa que câmaras de terror, onde um sistema injusto impõe sua lei por meio da repressão e da injustiça.
Das prisões do Estado espanhol, saudações e um grito de resistência…
Carta ao tribunal de Córdoba
Claudio Lavazza
Aproveito a oportunidade de falar a este tribunal para dar uma distinta versão dos fatos e dessa maneira acabar com a imagem de frio assassino que os meios de comunicação me colocaram desde o primeiro dia.
Não desejo justificar meu ato a este tribunal, não me importa absolutamente suas opiniões ou decisões, não quero nenhum tipo de acordo com meus inimigos, tampouco quero justificar-me ante a opinião pública, a mesma que permissivamente observa com indiferença a miséria diária e a eliminação de milhares de pessoas, que se indigna pela morte de policiais, mas quando somos nós que atiramos pensam que somos assassinos e quando é a polícia que mata “se está fazendo justiça”. Na sangrenta guerra que impõe o capital, milhares de indivíduos tombam com as balas das Forças de Segurança do Estado, cada dia, vítimas das diferenças sociais e da estratégia destrutiva da economia de mercado.
Para garantir a segurança dos ricos, exércitos de mercenários são recrutados, adestrados, colocados estrategicamente nas ruas para vigiar, eliminar a quem não obedece as regras que lhes são impostas. Sempre que surge uma guerra, os bancos, os caras da bolsa, as multinacionais do armamento, os Estados e seus interesses, estão prontos para investir dinheiro nesses negócios sujos, vivem e se multiplicam para benefício de poucos, dando as costas à miséria e a morte de muitos seres humanos. Atacar a essa classe social para roubar-lhe algo de seu imenso tesouro é o ponto mais digno de cada proletário, é muito melhor seguir esse caminho cheio de perigos (prisão ou morte), do que levar uma vida ajoelhado frente aos poderosos em troca de um salário humilhante.
Eu sempre fui um proletário, um marginal, um rebelde, um anarquista, um inimigo de qualquer sistema. Para mim, “a rebeldia contra a opressão é simplesmente uma questão de estática, de puro equilíbrio: entre um homem e outro perfeitamente igual, eles nascem e permanecem livres e iguais em direitos, sem haver diferenças sociais, se houverem, enquanto uns abusam e tiranizam, outros protestam e odeiam. A rebeldia é uma tendência niveladora e portanto racional, natural. Os oprimidos, os saqueados, os explorados, devem ser rebeldes, porque eles precisam recuperar seus direitos até alcançar sua completa e perfeita participação no patrimônio universal”, nas palavras de Francisco Ferrer y Guardia.
Este sistema vê o rebelde como fisicamente ameaçador e ideologicamente perturbador, devido aos “abusos e enganos”[4] que é dito para quem o comete e ao mal exemplo de comportamento social que isso poderia dar. Sua existência é dissidência aos olhos de um Estado que quer ser forte e hegemônico, e que portanto deve atuar com severidade, eliminando os rejeitados. Esse tipo de punição se parece cada vez mais com os campos de extermínio, tentando dessa maneira destruir ao indivíduo físico e mentalmente.
Naquele 18 de Dezembro, em minha fuga defendia minha própria vida e liberdade. Sabia muito bem que o inimigo não tinha escrúpulos e demonstrou isso atirando. Primeiro na saída do banco e logo descambando para uma emboscada que teria sido mortal se não fosse pelo fato de ter levado coletes à prova de balas; minha decisão foi simples: era a minha vida ou a deles. E que fique claro de uma vez: nós fomos ali para levar o dinheiro, sem intenção de matar ninguém.
Sou um amante da liberdade e somente posso brindar meu respeito e solidariedade aos que como eu tem o valor e a dignidade de defender sua própria vida com unhas e dentes. Como inimigo da exploração e da miséria não guardo nenhum sentimento de compaixão para quem em nome do privilégio, torturam, encarceram e assassinam.
Não tenho medo das duras condenações. Os anarquistas no cárcere temos geneticamente em nosso sangue; nem medo da morte, este sentimento já foi perdido faz muito tempo; nem medo dos tribunais divinos, porque não creio em nenhum deus. Diante dos tribunais terrenos nunca vou me ajoelhar. Só me interessa o juízo dos meus, ou seja, dos companheiros que lutam por um mundo novo.
E por mais que vocês, senhores, tentem tapar os olhos, essa é uma guerra, GUERRA SOCIAL, e cada parte chora seus caídos. Nós já estamos chorando os nossos faz muito tempo.
Claudio Lavazza
Contribuição para o debate
Claudio Lavazza
Muit@s de nós vivemos essa realidade de domínio capitalista sem dar a devida importância. Muit@s pensam que no fundo esse assunto interessa só até certo ponto, pensam que é suficiente fazer uns quantos panfletos, escrever algum artigo nas revistas do movimento, depois distribuí-las e assim ficar em paz consigo mesm@ e com @s demais. O que está acontecendo na realidade em relação à repressão social, geralmente não se sabe quantos estão realmente conscientes. Mais grave é a situação do cárcere e sua realidade.
Como é possível que o sistema sempre consiga isolar este mundo dos olhos de quem vive do lado de fora? Nesses últimos 20 anos assistimos a impressionantes mudanças, sobretudo no aparato de controle e seus sistemas, com suas espantosas estruturas penitenciárias edificadas fora dos espaços urbanos, para aumentar ainda mais o isolamento e o esquecimento de seus “hóspedes”, nascem como chuchu por todas as partes, construções caríssimas de 7 à 8 milhões de pesos para 1.200/1.500 vagas, mais de 4 milhões de pesos por cada pessoa presa. Com esse dinheiro todo, quantas casas decentes poderiam ser construídas para quem não tem? Porém, a preocupação do sistema não é com quem não tem teto. Seu problema é como conter a raiva d@s excluíd@s, cada vez mais crescente e ao mesmo tempo fazer negócios tirando seu couro. Esses dois negócios são a resposta perfeita e linear às exigências das leis de mercado; trata-se somente de criar as condições na sociedade: exploração, marginalização, drogas, são muitas das muitas armas utilizadas com inteligência e que provocam três caminhos possíveis. Quem entra totalmente em seu funcionamento e aceita, quem não aceita isso e se coloca à margem e buscando lutar para mudar as coisas, e as vítimas. Três realidades bem distintas uma das outras.
Quem abaixa a cabeça e decide que sua miserável existência é servir ao sistema, terá quase tudo o que deseja, basta humilhar-se o suficiente, no mundo do trabalho assalariado poderá um dia (quem sabe) subir na vida e passar de pessoa explorada a quem explora, será parte dos inteligentes, um dos histéricos por segurança, cedo ou tarde terá bens para proteger e fará parte da massa que busca “mudar o valor universal da justiça pelo valor da segurança”, para essas pessoas a segurança será mais importante que a justiça e sua forma de pensar e sentir se transformará na única forma possível. Pensará sozinha, através de um eficiente sistema de desinformação, que se existem delitos é porque há uma parte da população que deve ser encarcerada, e se as circunstâncias permitirem, exterminadas. Para essas pessoas o cárcere é uma necessidade justa e indiscutível.
Por outro lado estão as vítimas da situação criada pelo sistema, deslumbradas por essa sociedade de consumo não compreenderam em tempo a ditadura exercida através da pequena e da grande tela, que impõe suas ordens, suas éticas, revelando desde criança que se não tem um carro ou tal marca de roupas, é uma merda de pessoa ou não merece existir, são essas verdades/ordens, convites ao delito que cedo ou tarde empurram excluíd@s a desafiar as leis dos ricos para terem também uma oportunidade. Se falhar em sua tentativa, ali estará o cárcere e a dureza de suas leis. A essa classe de excluíd@s não é permitido entrar num mundo de belezas artificiais sem abaixar a cabeça, todo o peso da injustiça cairá em cima, condenando-@s a longuíssimas penas por coisas pequenas e passará a alimentar o negócio do sistema penitenciário, bem como todo o emaranhado que o sustenta; bancos, grupos empresariais e corretores da bolsa de valores, etc. E esses por sua vez financiam os partidos políticos, principais promotores desta forma particular de “investimento” do dinheiro público.
Por fim, há quem formou uma consciência de classe e teve tempo suficiente para realizá-la no percurso da sua existência, compreenderam a necessidade e a urgência de reagir a um estado de coisas determinado, tanto que essas pessoas são chamadas de rebeldes sociais. Como aquelas que com consciência de classe, compartilham uma mesma realidade preestabelecida pelos poderosos, tanto que uns e outros são inimigos de seus interesses e ideologias, por não terem se adaptado às exigências das circunstâncias. Assim, ambos merecem o mesmo tratamento… O cárcere. Para quem cai nessa rede será apresentada a mesma oportunidade que a vivida na sociedade “livre” (só que dessa vez em pequena escala). Ou seja, adaptar-se e abaixar a cabeça, ou rechaçar a tudo isso e lutar para não permiti-lo. Volta-se a repetir o mesmo jogo, com as mesmas alternativas que estavam presentes lá fora. Aqui faz falta compreender uma coisa que é fundamental para ter entre tod@s, uma clara visão de um objetivo comum que saiba efetivamente como contrariar ao funcionamento do sistema, o cárcere é o lugar ideal de onde a luta de classe d@s excluíd@s tem uma oportunidade maior de desenvolver-se. Por ser um lugar onde as injustiças abundam, facilitando assim uma união indispensável entre pres@s. Claro que para chegar ali, é necessário criar as condições para que nossa união se concretize, como por exemplo a contribuição solidária e presença d@s que estão de fora é indispensável para conseguir-se algum progresso aos que estão dentro. É preciso dar oportunidade para não vivermos como grupos tribais acostumados a enfrentar os problemas cara a cara, sem condições, cada um@ com seu “rolo”, cada qual com suas próprias inimizades, sendo mais propensas ao desacordo do que a união.
Precisamos dessa união. Necessitamos triunfar nessa luta para demonstrarmos a nós mesm@s que é possível ganhar o jogo contra o sistema, agir juntos para uma sociedade sem cárceres.
Saúde e Liberdade.
Claudio Lavazza
Sobre a palavra
Michele Pontolillo
“… a violência nasce como síntese da angústia e da ausência de alternativa praticável” A. Negri
Se eu fosse um democrata, um dos muitos que atendem os chamados contra a violência, se estivesse a favor das saídas negociadas, se eu aceitasse acriticamente os slogans do poder, se me transformassem telejornalisticamente em idiota. Enfim, se fosse um produto do pensamento único preparado para servir submissa e incondicionalmente, sem dúvida hoje não estaria trancado numa maldita jaula de uma maldita prisão, certamente não teria empunhado uma pistola para atacar um banco, porém, sobretudo não teria me declarado um firme inimigo da organização do estado e deus seus servidores.
Feliz ou infelizmente, conforme o ponto de vista, sou anarquista, um rebelde em revolta permanente, um filho da classe trabalhadora que com o passar do tempo se deu conta que faltava-lhe alternativas praticáveis.
Vítimas e cúmplices do ardiloso jogo democrático que frequentemente nos deixamos induzir pela impalpável ilusão de que nossa vontade vem sendo legalmente representada e respeitada, nos convenceram que vivemos em uma sociedade multicultural, tolerante e que garante a diversidade e pluralidade de seus componentes sociais, onde qualquer ideia, pensamento e opinião encontrará seu espaço para manifestação e talvez difusão. Não há nada mais mentiroso! A grande fanfarra da mídia tem acesso a uma crítica mais radical, tod@s temos direito de participar da grande orgia midiática, podemos dizer o que queremos já que o sensacionalismo midiático não escuta nada. Não damos conta de que a causa desse contínuo bombardeio midiático onde a palavra e a imagem perdem todo o seu valor e significado comunicável, nos tornamos incapazes de pensar, refletir, chegar a novas conclusões e ideias autonomamente, sem condicionamento cheio de interesses.
Ao contrário do que os governantes da Terra quiseram nos fazer acreditar, vivemos numa sociedade incomunicável, da superficialidade, pois cabe a seguinte pergunta: Pode ser a palavra um instrumento eficaz e conclusivo para solucionar os problemas sociais, políticos e/ou econômicos, pode a palavra criar mais justiça social, pode garantir trabalho e uma casa digna a todas as pessoas da comunidade? Pode ser o remédio aos problemas como a contaminação do meio ambiente, a marginalização, da pobreza?
Se a palavra não está associada à vontade e ação subjetiva dirigida à transformação da realidade, nada pode fazer senão ser um simples testemunho passivo de uma existência tímida às mudanças. Claro que o poder, cuja única preocupação é assegurar a continuidade da exploração do homem pelo homem, não tem nenhum interesse que a palavra tome corpo, convertendo-se em prática individual e coletiva, por isso a mantém isolada num vazio de inutilidade.
Faz somente 30 anos que era possível afirmar com absoluta convicção que as palavras escritas causavam mais danos que as armas, porém o capitalismo foi capaz de sequestrar e neutralizar o perigo da palavra privando-a de seu significado mais autêntico. O que resta então? As únicas armas que os excluídos dispõem: A resistência e a defesa ativa de frente aos contínuos ataques do capital e do estado que o administra, exercendo a violência revolucionária e criando novas alternativas onde reina o nada.
Não se pode impedir a luta de classes, não há amizade entre explorad@s e explorador@s, não haverá paz social até que o proletariado não saia da escravidão do trabalho assalariado.
Até que a palavra não volte a ter seu legítimo protagonismo nas relações sociais e humanas seguiremos na ausência de alternativas, porém não podemos esquecer que onde há ausência, há desejos, e onde há desejos realizados, há liberdade. Então façamos realidade nossos desejos.
Michele Pontolillo
Comunicado de Michele Pontolillo sobre sua greve de fome
Comunico que a partir das 12 horas do dia 7 de Dezembro de 2000 iniciarei uma greve de fome sem prazo para terminar.
Devido à persistência da situação altamente repressiva que se está vivendo tanto dentro como fora das prisões e da legitimidade que me confere o direito inalienável do indivíduo em rebelar-se contra a prepotência e a arrogância de quem exerce o Poder, comunico que a partir das 12 horas do dia 7 de Dezembro de 2000 iniciarei uma greve de fome sem prazo para terminar pelas rações e conteúdos que venho através dessa expor.
Já faz alguns anos que observamos um agravamento importante da ação repressiva dos Estados imperialistas europeus com a intenção de criminalizar e cercear o ativismo de movimentos sociais e políticos, entre eles o movimento anarquista, muito difundido em países marcados por contínuas lutas trabalhadoras e revolucionárias como é o caso da Espanha, Itália e Grécia.
Por onde você olhar o panorama é desolador. A reestruturação do capitalismo impulsionada pelo uso massivo de tecnologias tecnológicas está abrindo novas contradições que muito dificilmente os governos poderão resolver utilizando políticas de consenso. Os Estados e por extensão a sociedade em seu conjunto, tiveram que se adaptar aos trancos e barrancos às novas exigências do capitalismo cada vez mais excludente.
O barateamento dos custos de produção, o índice cada vez mais alto de desemprego, a flexibilização e precarização do trabalho cuja a consequência mais imediata é a precarização de amplos setores sociais tradicionalmente próximos da classe média, a contratação de mão de obra barata proveniente dos países mais pobres, o desmantelamento do estado de bem-estar sobre o qual se assentava o pacto social alcançado entre o proletariado e a burguesia, são aspectos que comprovam uma realidade que deixa de vislumbrar não somente um futuro incerto para tod@s aquel@s que tomaram parte do processo de produção e que estão amarrados entre a escravidão do trabalho e a ameaça angustiante de fazer parte da lista de demissões, senão também uma provável radicalização do conflito de classes.
A incerteza e imprevisibilidade do futuro, o elevado número de excluíd@s do processo produtivo postos à margem numa vida miserável e de subsistência, colocando em questão o sistema de exploração. Assim descreve com assustador realismo o escritor francês Jacques Attali este novo cenário que vai se perfilando a um ritmo acelerado no ocidente opulento:
“O que foi varrido não foi a Europa, mas de uma certa maneira a forma de pensar a ordem social, um capitalismo totalmente novo está a ponto de surgir, um capitalismo global que modificará profundamente o papel dos Estados e nações no mundo. Um capitalismo impulsionado por novas forças de onde emergirá uma nova elite e onde serão precarizados os conjuntos de classes tradicionais, em breve haverá no lugar dos assalariados um vasto proletariado que não pertence a classe alguma; uma superclasse triunfante flutuará sobre as águas lamacentas da miséria e o preço do êxito de uns poucos será pago com a marginalização da maioria e com violência aos que não pertencem a nada.”
Diante dessa perturbadora radiografia social, os estados mostram sérias dificuldades em manter o consenso em torno de suas instituições e os crescentes protestos populares, alguns dos quais claramente se afastam da linha de ação oficial dos partidos e sindicatos “operários” domesticados, servos fiéis de seus patrões. A escolha de formas de luta autônomas e autogeridas, comprova isso.
Então qual é a fórmula adotada pelos estados para conter dentro de seus limites toleráveis o descontentamento geral e a radicalização das lutas sociais?
Nem mais, nem menos que conceder aos seus órgãos repressivos todo o controle de poder necessário para fazer frente a cada situação que surgir, com um destaque obsessivo e paranoico ao perfeccionismo de seu aparato para a “luta antiterrorista”, na “tolerância zero”, eufemismos políticos para o controle e eliminação de dissidentes reais, e também potencialmente os imaginários.
O fato de que esta repressão utiliza conforme seus critérios os instrumentos de guerra (polícia, balas de borracha, chumbo, montagem de provas, “kit flagrante”[5], detenções arbitrárias, etc.), dependendo do nível alcançado pela luta de classes.
É evidente o grande desdobramento de todos os poderosos meios coercitivos e repressivos que o estado vem mostrando nos últimos tempos, um sinal inequívoco de que o conflito entre explorad@s e explorador@s está aumentando consideravelmente. As primeiras “vítimas” das investidas repressivas do estado são naturalmente @s proletári@s rebeldes que tomaram consciência de sua condição de explorad@s e oprimid@s e tomam a frente de luta contra o poder em todas as suas expressões.
Como parte do proletariado insurgente estão @s anarquistas, insubmiss@s declarad@s contra a imposição do estado e do capital, trazem um projeto político e social forjado nas teses socialistas nas quais @s trabalhador@s são @s únic@s produtor@s da riqueza social, portanto podem e devem se emancipar do domínio da burguesia capitalista para ser de uma vez por todas, don@s de suas vidas e de seu futuro.
Quem tem, ainda que seja um mero conhecimento dos princípios que movem o anarquismo, saberá que o antiautoritarismo mais visceral e o anticapitalismo se fundamentam na teoria e na prática anárquica.
@s anarquistas são inimig@s confess@s de todas as hierarquias, de qualquer imposição e domínio, venha de onde vier, tenha o nome que tiver; são disseminadores da vida e da liberdade, da autodeterminação e da independência do indivíduo e dos povos que pertencem, desejam uma sociedade autogerida como a única base sobre a qual podemos construir um mundo mais justo, equânime e libertário.
Então, quando o proletariado se prepara para tomar a iniciativa e despertar em seus desejos de emancipação, como já vimos em diversas ocasiões ao longo do percurso de sua existência como classe, o estado aparece e tira sua máscara, revelando a sua verdadeira face maligna, violenta, criminosa, fazendo uso de disfarces coloridos como progressista e democrático. Os métodos utilizados pelo estado para acabar com as revoltas proletárias são conhecidas por todos, suas mãos estão manchadas de sangue dos inocentes.
Na memória surge a infame lembrança dos GAL, o Batalhão Basco-espanhol e outros grupos armados organizados pelo estado que se dedicaram a semear o medo e o terror entre a população civil que observava atônita como caíam, um atrás do outro, os que se atreveram em questionar o sistema e lutaram contra ele. Também lembramos das bombas na Itália, Piazza Fontana em Milão e na estação ferroviária de Bolonha que causaram a morte de centenas de pessoas, fatos que até hoje ainda não foram esclarecidos apesar de todo o tempo transcorrido desde que se consumaram essas terríveis tragédias: vejam como o estado italiano deixou de reconhecer o envolvimento de alguns de seus homens do serviço secreto nesses bárbaros atos criminosos. Por mais que tentem esconder, todos sabemos da verdade: os atentados foram planejados e ordenados nas mais altas esferas do poder constituído: foi o terrorismo de estado quem, numa busca desesperada de revidar a transbordante ofensiva revolucionária do proletariado empenhado em mudar e transformar a realidade radicalmente, o estado é responsável pela porte de centenas de inocentes.
Mais recentemente, o estado italiano levou muitos anarquistas aos seus Santos tribunais da inquisição, acusados de formar parte de uma mentirosa e grotesca organização armada, hierarquicamente estruturada e que contava com chefes, tenentes e comandantes operacionais. Tudo isso acompanhado de forte campanha de criminalização que deu lugar a uma verdadeira caça aos anarquistas. Qualquer pessoa que pregasse a revolução e o comunismo libertário, ou que tenha tido algum contato ainda que esporádico com o anarquismo, era sistematicamente perseguido e preso. Essa caçada não tardou em dar resultados tirando a vida de compas Soledad e Eduardo, mortos “pela obra e pela graça” do estado quando foram encontrados sequestrados em prisões imundas.
As coisas ainda não mudaram. O estado segue utilizando provas forjadas em montagens políticas ou judiciais como armas para apagar os focos de resistência proletária que surgem lá onde as contradições sociais são mais graves. É o caso de três compas anarquistas de Madri acusado de terem enviado diversas cartas-bomba para jornalistas a serviço da imprensa mais reacionária da Espanha.
A operação foi projetada e perpetrada como é habitual nesses casos, pelo ministério do interior, a Brigada Provincial de Informação,é o mesmo de uma polícia política que garante que @s acusad@s compareçam diante da autoridade judicial encarregada de abrir as portas das prisões onde essas pessoas aprenderão o que significa a dor, o sofrimento e a impotência. As provas? Manter relações com anarquistas e trabalhadores rebeldes que já estão presos.
Porém, para que as provas forjadas tenham o efeito desejado é necessária a contribuição de elementos essenciais como o linchamento público, a desmoralização pessoal e política d@s retaliad@s, e a condenação moral de seus atos e sua forma de ser, sentir e pensar.
Os meios de comunicação do estado tem um papel crucial e decisivo nesse aspecto, eles preparam o terreno para que a repressão possa atuar impunemente, se encarregando de criminalizar e sujar o nome das pessoas, grupos e coletivos considerados incômodos e chatos ao poder.
A questão é mais perversa do que se pode imaginar: os jornalistas apontam e acusam, os tribunais sentenciam e as cadeias executam.
Esses pedagogos da consciência das massas, tão empenhados em demonstrar o improvável, em dizer que este mundo tal como está organizado é o melhor que já tivemos. Excelentes manipuladores da realidade e incríveis artistas para distorcê-la, chamam a mentira e a calúnia de “liberdade de expressão”, o linchamento midiático de “direito à informação”, tacham de “terrorismo” a solidariedade ativa com @s pres@s políticos que passarão a vida nos centros de extermínio do capital, acobertam as torturas e os assassinatos cometidos diariamente nas delegacias e nos cárceres. O aniquilamento d@s proletári@s rebeldes nas solitárias com a marca de prisioneir@ FIES, o isolamento, a morte lenta e agonizante d@s pres@s com doenças crônicas ou em estado terminal. Eles se apoiam no todo poderoso e dogmático “Estado Democrático de Direito”.
Diante deste cenário Dantesco, sem ser dramático, cabem somente duas posturas: ou a submissão cega e devota pelo domínio capitalista; ou a rebelião espontânea e passional contra tudo o que nos oprime e escraviza.
-
Fechamento dos módulos de isolamento e abolição do Acompanhamento Especial de Internos Fichados, F.I.E.S
-
Fim da separação entre pres@s
-
Liberdade imediata para tod@s @s pres@s com doenças crônicas.
ABAIXO OS MUROS DAS PRISÕES!!! VIVA A ANARQUIA!!!
Michele Pontolillo, prisioneiro anarquista italiano sequestrado no centro de extermínio Villabona, (Astúrias).
Aviso de copyleft
Aviso de Copyleft: Esta publicação é uma ferramenta de luta contra o capitalismo, a colonialidade e o patriarcado em todas as suas expressões. Por isso, pode e deve ser reproduzida para ler em qualquer lugar, discutir em grupo, promover oficinas, citações acadêmicas, rodas de conversas e fazer impressões para fortalecer o seu rolê anarquista / banquinha de zines / coletivo. Compartilhar não é crime. Pirataria é multiplicação.
Notas
[1] † Adaptado de “fichero de internos de especial seguimiento”
[2] † PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) – Que denuncia colega ou amigo aos superiores hierárquicos, à semelhança do fazem os informantes da polícia. Adaptado de infopedia.pt – acessado em Janeiro de 2019.
[3] † LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente . São Paulo: Ícone, 2013.
[4] NT: Quer dizer “falsas denúncias”, por questão de formatação do texto, foi preservada a tradução literal da expressão.
[5] † Adaptado pelo tradutor