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O anarquismo, depois de haver descoberto uma segunda fonte de inspiração no sindicalismo revolucionário, encontrou uma terceira na Revolução russa. Esta afirmação pode, à primeira vista, surpreender o leitor habituado a considerar a grande mutação revolucionária de Outubro de 1917 como obra e apanágio exclusivo dos bolchevistas. Na realidade, a Revolução russa iniciou-se por um vasto movimento de massas, uma onda de base popular que submergiu as formações ideológicas. Não pertenceu a ninguém, senão ao povo. Na medida em que esta revolução foi autêntica, impulsionada de baixo para cima, produzindo espontaneamente órgãos de democracia direta, apresentou todas as características de uma revolução social de tendências libertárias. Todavia, a relativa fraqueza dos socialistas libertários russos impediu-os de explorar as condições excepcionalmente favoráveis à vitória das suas ideias.

A Revolução foi, por fim, confiscada e desnaturada pela maestria, dirão uns, astúcia, dirão outros, da equipe de revolucionários profissionais agrupados à volta de Lenin. Mas esta derrota para o anarquismo e para a autêntica revolução popular não foi inteiramente estéril para as ideias libertárias. Para começar, a apropriação coletiva dos meios de produção foi realizada, o que permitirá, um dia, que o socialismo de baixo para cima venha a prevalecer sobre o capitalismo de Estado; depois, a experiência da URSS proporcionou aos anarquistas russos e de outros países a possibilidade de extrair lições complexas de um temporário fracasso — lições das quais o próprio Lenin parecia ter tomado consciência pouco antes de falecer — e a possibilidade de reformular os problemas da revolução e do anarquismo no seu conjunto. Segundo a expressão de Kropotkin, retomada por Volin, a Revolução ter-lhes-ia ensinado, se necessário fosse, como não se deve fazer uma revolução. Longe de provar a impraticabilidade do socialismo libertário, a experiência soviética, em larga medida, confirmou o contrário, a precisão profética dos pontos de vista expressos pelos fundadores do anarquismo e, nomeadamente, da sua crítica ao socialismo “autoritário”.

Uma Revolução Libertária

O ponto de partida da Revolução de 1917 tinha sido a de 1905, durante a qual surgiram órgãos revolucionários de um novo tipo: os sovietes. Nasceram nas fábricas de São Petersburgo, por ocasião de uma greve geral espontânea. Em vista da ausência quase completa de um movimento sindical e de uma tradição sindicalista, os sovietes preencheram uma lacuna e coordenaram a luta das fábricas em greve. O anarquista Volin pertenceu ao primeiro grupo que, em ligação com os operários, teve a ideia de criar o primeiro soviete. O seu testemunho coincide com o de Trotsky que, alguns anos mais tarde, veio a ser presidente do Soviete, e que, sem nenhuma intenção pejorativa, antes pelo contrário, escreve, nas suas impressões sobre 1905: “A atividade do soviete significa a organização da anarquia. A sua existência e o seu desenvolvimento ulteriores traduziam a consolidação da anarquia.”

Esta experiência se gravou indelevelmente na consciência operária, e quando eclodiu a Revolução de Fevereiro de 1917, os dirigentes revolucionários não tiveram nada a inventar. Os trabalhadores apoderaram-se espontaneamente das fábricas. Os sovietes ressurgiram naturalmente. Uma vez mais tomaram de surpresa os profissionais da Revolução. Como reconheceu o próprio Lênin, as massas operárias e campesinas eram “cem vezes mais esquerdistas” que os bolchevistas. Os sovietes gozavam de um prestígio tão difundido, que a insurreição de Outubro só poderia ser desencadeada em seu nome e com o seu apelo. Mas a despeito do seu élan, careciam de homogeneidade, de experiência revolucionária e de preparação ideológica. Assim, constituíam uma presa fácil para os partidos políticos com ideias revolucionárias vacilantes.

O partido bolchevista, apesar de organização minoritária, constituía a única força revolucionária realmente organizada e dinamizada por objetivos definidos. Não tinha quase rivais ao campo das forças socialistas, quer no plano político, quer no sindical. Dispunha, por outro lado, de quadros de primeira ordem e desenvolvia “uma atividade frenética, febril, impressionante”, como admitiu Volin.

Todavia, o aparelho do Partido — no qual Stálin era, na época, figura modesta — encarava os sovietes com certa desconfiança, pela concorrência que lhe faziam. Imediatamente a seguir à tomada do poder, a tendência espontânea e irresistível à socialização da produção foi, a princípio, canalizada através do controle operário. O decreto de 14 de novembro de 1917 legalizou a ingerência dos trabalhadores na direção das empresas e no cálculo de custos, aboliu o segredo comercial e obrigou os patrões a mostrar a sua escrita.

“As intenções dos dirigentes da Revolução não eram as de ir mais além” — informa Victor Serge. Em abril de 1918, “ainda admitiam a possibilidade (…) da formação de sociedades mistas por ações, nas quais tivesse participação, com o Estado soviético, o capital russo e estrangeiro”. “A iniciativa das medidas de expropriação pertenceu às massas, e não ao poder.”

A 20 de outubro de 1917, no primeiro congresso dos conselhos de fábrica, apresentou-se uma moção de acentuada inspiração anarquista, que reclamava: “O controle da produção e as comissões de controle não devem ser apenas comissões de verificação, mas também (…) as células do futuro, que preparam, desde já, a transferência da produção para as mãos dos trabalhadores.” Nesta altura, A. Pankratova observa: “Estas tendências anarquistas afirmam-se com tanto maior facilidade e êxito, quanto maior resistência os capitalistas opuserem à aplicação do decreto sobre o controle operário e continuarem a recusar a ingerência dos trabalhadores na produção.”

O controle operário, com efeito, revelou-se, em breve, uma medida tíbia, inoperante e deficiente. Os empregadores sabotavam, subtraíam os estoques e as ferramentas, provocavam os operários e despediam-nos; por vezes, serviam-se dos comitês de fábrica como simples agentes ou auxiliares da administração, e houve muitos patrões que trataram de fazer nacionalizar o seu estabelecimento por se beneficiarem com o fato. Como resposta a estas manobras, os trabalhadores apoderavam-se das fábricas e punham-nas a funcionar por sua própria conta. Nas suas moções, proclamavam: “Não afastaremos os industriais, mas tomaremos conta da produção, se eles não quiserem assegurar o funcionamento das fábricas.” Pankratova acrescenta que, neste primeiro período de socialização “caótica” e “primitiva”, os conselhos de fábrica “apossaram-se frequentemente da direção das fábricas cujos proprietários haviam sido eliminados ou tinham preferido fugir.”

Em breve, o controle operário se esfumou diante da socialização. Lênin obrigou, literalmente, os seus lugares-tenentes a se lançarem “no cadinho da viva criação popular”, usando uma linguagem autenticamente libertária. A base da reconstrução revolucionária devia ser a autogestão, e só esta podia suscitar nas massas o entusiasmo revolucionário capaz de tornar possível o impossível. Quando o mais insignificante servente, o mais irremediável desempregado, ou a mais humilde cozinheira virem as fábricas, a terra e a administração confiadas às associações de operários, empregados, funcionários, camponeses, e constituídas as comissões de reabastecimento, etc, criadas espontaneamente pelo povo… “quando os pobres virem e sentirem tudo isto, nenhum força poderá vencer a revolução social”. O futuro pertencia, como vemos, a uma república do tipo da Comuna de 1871, a uma república de sovietes.

“Com o objetivo de impressionar as massas, de obter a sua confiança, o partido bolchevista começou por lançar palavras de ordem, que, até então, caracterizavam o anarquismo”, avisa-nos Volin. Slogans como o de Todo o poder aos sovietes! eram imediatamente compreendidos pelas massas no seu sentido libertário. Assim, testemunha Archinoff, “os trabalhadores interpretaram o poder soviético como a liberdade de dispor do seu próprio destino social e econômico”. No 3º congresso dos Sovietes (princípios de 1918), Lênin asseverou: “As ideias anarquistas revestem agora formas vivas.” Pouco depois, no 7º Congresso do Partido (6 a 8 de março do mesmo ano), Lênin fazia adotar teses que, entre outras coisas, tratavam da socialização, da produção administrada pelas organizações de trabalhadores (sindicatos, comitês de fábrica, etc), da eliminação de funcionários profissionais, da polícia e do exército, da igualdade de salários e soldos, da participação de todos os membros dos sovietes na gestão e administração do Estado, bem como da supressão completa e progressiva do referido Estado e da moeda. No congresso dos Sindicatos (primavera de 1918), Lênin descreveu as fábricas como “comunas autogeridas de produtores e consumidores”. O anarcosindicalista Maximoff chegou a declarar: “Os bolchevistas não somente abandonaram a teoria do enfraquecimento gradual do Estado, como também a ideologia marxista no seu conjunto. Tornaram-se uma espécie de anarquistas.”

Uma Revolução “Autoritária”

Mas este audacioso alinhamento com o instinto e a disposição revolucionários das massas, se logrou colocar os bolchevistas na direção da Revolução, não correspondia nem à sua ideologia tradicional nem às suas verdadeiras intenções. Desde sempre, foram “autoritários”, entusiastas das ideias de Estado, de ditadura, de centralização, de partido dirigente, de gestão da economia a partir de cima, e uma série de coisas em contradição com a concepção realmente libertária da democracia soviética.

O Estado e a Revolução, escrito às vésperas da insurreição de Outubro, é um espelho onde se reflete a ambivalência do pensamento de Lênin. Algumas páginas poderiam ser assinadas por um libertário e, como vimos atrás, nessa obra, é prestada homenagem, pelo menos parcialmente, aos anarquistas.

Porém, este apelo à revolução pela base se desdobra numa defesa em favor da revolução pela cúpula. As concepções de Estado, centralização e hierarquia, não estão insinuadas de forma dissimulada; pelo contrário, estão francamente expostas: o Estado sobreviverá à conquista do poder pelo proletariado e só desaparecerá após um período transitório. Quanto tempo durará esse purgatório? Lênin não nos oculta a verdade, diz-nos ele sem pena e, parece, com alívio: o processo será “lento” e de “longa duração”. O que a Revolução parturejará, sob a aparência do poder dos sovietes, será “o Estado proletário” ou “a ditadura do proletariado”, “o Estado burguês sem burguesia”, como admite o próprio autor quando se aprofunda no seu pensamento. Tal Estado onívoro tem por certo a intenção de tudo absorver.

Lênin segue a escola sua contemporânea, o capitalismo de Estado alemão, a Kriegswirtschaft (economia de guerra). A organização da grande indústria moderna, com sua “disciplina de ferro”, constitui outro dos seus modelos. Diante de um monopólio estatal como o dos correios, Lênin declara, entusiasmado: “Que mecanismo admiravelmente aperfeiçoado! Toda a vida econômica organizada como os Correios (…), eis o Estado, eis a vida econômica de que necessitamos.” Querer prescindir da “autoridade” e da “subordinação” não é mais do que um “sonho anarquista”, afirma. Pouco antes, animava-o a ideia de confiar a produção e a troca às associações de trabalhadores, à autogestão. Mas havia um engano na equação de todos os parâmetros do seu pensamento. Assim, não oculta a sua receita mágica: todos os cidadãos transformados em “empregados e em trabalhadores de um truste universal de Estado, toda a sociedade convertida em um grande escritório ou numa grande fábrica”. Quanto aos sovietes, eles estariam colocados sob a égide do partido que tinha a missão histórica de “dirigir” o proletariado.

Os mais lúcidos dos anarquistas russos não se deixaram enganar. No apogeu do período libertário de Lênin, incitavam já as massas a se precaverem: no seu jornal, Golos Truda (A Voz do Trabalho), Volin publicava, nos últimos meses de 1917 e primeiros do ano seguinte, estas palavras proféticas: “Uma vez consolidado e legalizado o seu poder, os bolchevistas — que são socialistas políticos e estatais, isto é, homens de ação centralista e autoritária — tratarão da vida do país e do povo, através de meios governamentais e ditatoriais, impostos a partir do centro (…). Os vossos sovietes tornar-se-ão, pouco a pouco, simples órgãos executivos da vontade do poder central (…). Assistiremos ao estabelecimento de um poder autoritário, político e estatal, que agirá de cima e tudo esmagará (…) com sua mão de ferro (…). Infeliz daquele que não estiver de acordo com o poder central!” “Todo o poder aos sovietes passará a constituir, de fato, a autoridade dos chefes do Partido.”

Ainda segundo Volin, a tendência anarquizante das massas obrigou Lênin a afastar-se, durante algum tempo, do velho caminho. Assim, deixaria subsistir o Estado apenas pelo tempo necessário. Depois, seria o “anarquismo”. “Mas, pelos deuses, imaginai (…) o que diria o cidadão Lênin, logo que o poder atual estivesse consolidado e tornasse impossível o diálogo com as massas!” Naturalmente, voltaria aos velhos caminhos abandonados. E criaria o “Estado marxista” de um tipo mais aperfeiçoado.

Como se compreende, seria pura fantasia supor que Lênin e a sua equipe armaram conscientemente uma tal armadilha ao povo. O que existia neles era mais dualismo doutrinário que duplicidade. A contradição era tão evidente, tão flagrante, entre os dois polos do seu pensamento, que era facilmente previsível a sua manifestação no domínio dos fatos. Ou a pressão anarquizante das massas obrigaria os bolchevistas a esquecerem a inclinação autoritária das suas concepções, ou, pelo contrário, a consolidação do seu poder, ao mesmo tempo que o esvaziamento da revolução popular, os levaria a relegar as suas veleidades anarquistas para o porão dos trastes velhos.

Os dados do problema se complicam com a intervenção de um novo e perturbador elemento: as terríveis circunstâncias da guerra civil e da intervenção estrangeira, a desorganização dos transportes e a penúria de técnicos. Estas circunstâncias impeliram os comunistas à adoção de medidas excepcionais, à ditadura, à centralização, aos recursos ao “punho de ferro”. Os anarquistas, porém, contestavam que estas dificuldades fossem simplesmente redundância de causas “objetivas” e exteriores à Revolução. Opinavam que eram devidas, por um lado, à lógica interna das concepções autoritárias do bolchevismo, à impotência de um poder burocratizado e centralizado em excesso. Segundo Volin, a incompetência do Estado e a sua pretensão de tudo querer dirigir e controlar incapacitaram-no para reorganizar a vida econômica do país e conduziram a um verdadeiro colapso, concretizado na paralisação da atividade industrial, na ruína da agricultura e na destruição de todos os laços entre os diversos ramos da economia.

Volin relata, a propósito, o caso da antiga refinaria de petróleo Nobel, em Petrogrado, abandonada pelos proprietários. Os seus quatro mil operários dispuseram-se coletivamente a pô-la a funcionar. Animados deste intento, dirigiram-se em vão ao governo. Tentaram, então, pôr a fábrica a trabalhar pelos seus próprios meios. Dividiram-se em grupos móveis, que se esforçaram por encontrar combustíveis, matérias-primas, mercados e transportes. Para este efeito haviam já entabulado negociações com os seus camaradas ferroviários. O governo irritou-se. Responsável perante o país inteiro, não poderia permitir que cada empresa agisse à sua maneira. Obstinado, o conselho de trabalhadores da fábrica convocou uma assembleia geral dos trabalhadores. O comissário do povo para o Trabalho teve o cuidado de se deslocar a esta assembleia e avisar os trabalhadores de que tal assembleia constituía “um ato de indisciplina grave”, e reprovou a sua atitude “anarquista e egoísta”, ameaçando-os de despedimento sem indenização. Os trabalhadores replicaram que não solicitavam nenhum privilégio: o governo não tinha mais a fazer que deixar os trabalhadores e os camponeses agirem do mesmo modo em todo o país. Tudo em vão. O governo manteve o seu ponto de vista e a fábrica foi encerrada.

O testemunho de Volin é corroborado pelo de uma comunista, a escritora Alexandra Kolontai, que em 1921 lamentava os inumeráveis exemplos de iniciativas dos trabalhadores perdidas na papelada burocrática e no palavreado estéril da administração: “Que amargura para os operários (…), ao aperceberem-se do que poderiam ter realizado, se lhes houvéssemos dado o direito e a possibilidade de agir (…)! A iniciativa esmoreceu, o desejo de agir morreu”.

O poder dos sovietes durou, em realidade, algum tempo, de Outubro de 1917 aos primeiros meses de 1918. Em breve, os conselhos de fábrica, porém, foram despojados das suas atribuições, sob o pretexto de que a autogestão não considerava as necessidades “racionais” da economia, mas que, pelo contrário, estimulava o egoísmo das empresas, criando a concorrência entre umas e outras e tentando sobreviver, a todo o custo, ainda que outras fábricas fossem mais importantes “para o Estado” e melhor equipadas. A Revolução russa encaminhava-se, inicialmente, segundo a expressão de A. Pankratova, para uma fragmentação da economia em “federações autônomas de produtores, do tipo sonhado pelos anarquistas”. Sem dúvida, a nascente autogestão operária não era desmerecedora de certas críticas. Penosamente, por tentativas, a autogestão estava criando novas formas de produção, que não tinham precedentes na história. Certamente, haveria erros, tributo da aprendizagem. Como salienta Kolontai, a autogestão tinha de nascer de um “processo de investigações práticas, talvez com erros, mas a partir das forças criadoras da própria classe operária”.

Os dirigentes do Partido não compartilhavam, porém, desta opinião. Ao contrário, sentiam-se muito felizes por retirarem aos comitês de fábrica os poderes que, no seu foro íntimo, apenas e haviam resignado a delegar. A partir de 1918, Lênin acentuou as suas preferências pelo “comando único” na gestão das empresas. Os trabalhadores deviam obedecer “incondicionalmente” à vontade única dos dirigentes do processo de trabalho. Todos os chefes bolchevistas, diz-nos Kolontai, estavam “desconfiados a respeito da capacidade criadora das coletividades operárias”. A administração tinha sido invadida por numerosos elementos pequeno-burgueses, remanescentes do antigo regime, adaptados rapidamente às instituições soviéticas, que haviam obtido postos de responsabilidade nos diversos comissariados e consideravam que a gestão econômica deveria ser confiada a eles e não às associações de trabalhadores.

Assiste-se, então, a uma crescente ingerência da burocracia estatal na economia. A partir de 5 de dezembro de 1917, a indústria foi presidida por um Conselho Superior da Economia, encarregado de coordenar autoritariamente a ação de todos os órgãos de produção. O congresso dos Conselhos de Economia (26 de maio — 4 de junho de 1918) decidiu a constituição de direções de empresa, das quais dois terços dos membros seriam nomeados pelos conselhos regionais ou pelo Conselho Superior de Economia, e o terço restante eleito pelos operários de cada estabelecimento. O decreto de 28 de maio de 1918 alargou a coletivização ao conjunto da indústria, mas, ao mesmo tempo, transformou as socializações espontâneas dos primeiros meses da Revolução em nacionalizações. Era o Conselho Superior da Economia que estava encarregado de organizar a administração das empresas nacionalizadas. Os diretores e operários especializados permaneciam nas suas funções, a soldo do Estado. No 2º Congresso do Conselho Superior de Economia, em 1918, os conselhos foram asperamente criticados pelo membro relator, que os acusava de dirigirem, praticamente, as empresas, em substituição do conselho de administração.

As eleições para os conselhos de fábrica continuaram a se reaIizar, por mero formalismo, pois um membro da célula comunista procedia, quase sempre, à leitura de uma lista de candidatos preparada antecipadamente, e a votação era imediatamente efetuada, por mão erguida, tudo em presença de “guardas comunistas” da empresa. Bastava que alguém se declarasse contra os candidatos propostos para sofrer sanções econômicas (desclassificação de salário, etc). Como dizia Archinoff, “já não havia mais que um amo onipresente: o Estado”. As relações entre os trabalhadores e este novo patrão tornaram-se semelhantes às existentes entre o trabalho e o capital. O assalariado foi restaurado, com a única diferença de constituir agora pertença do Estado, em vez de escravo tradicional do patrão privado.

Os sovietes foram relegados para um papel nominal, convertidos em instituições de poder governamental. “Deveis constituir as células estatais de base” — declara Lênin, em 27 de junho de 1918, no congresso dos conselhos de fábrica. Segundo Volin, “os sovietes foram reduzidos ao papel de órgãos puramente administrativos e executivos, encarregados de pequenas necessidades locais sem importância, inteiramente submetidos às “diretivas” das autoridades centrais: governo e órgãos dirigentes do Partido”. No 3º Congresso dos Sindicatos (abril de 1920), o relator Lozovsky reconheceu: “Renunciamos aos velhos métodos do controle operário, do qual só conservamos o princípio estatal”. A partir de então, este “controle” passou a ser exercido por um organismo de Estado: a Inspeção de Trabalhadores e Camponeses.

As federações de indústria, com estrutura centralista, serviram, nos primeiros tempos, para os bolchevistas enquadrarem e submeterem os conselhos de fábrica, federalistas e libertários por natureza. A 1º de abril de 1918, a fusão destes dois tipos de organizações era um fato consumado. Doravante, os sindicatos, vigiados pelo Partido, desempenhavam uma ação disciplinar. O dos metalúrgicos de Petrogrado interditou “as iniciativas desorganizadoras” dos conselhos de fábrica e reprovou as pretensões “perigosas” destes fazerem passar para as mãos dos trabalhadores tal ou qual empresa, sob a alegação de que isto significava uma imitação, na pior das formas, das cooperativas de produção, que “há muito se haviam mostrado inoperantes” e que “não deixavam de se transformar em empresas capitalistas”. “Por isso, toda a empresa abandonada ou sabotada pelo industrial, cuja produção fosse necessária à economia nacional, devia ser colocada sob a gestão do Estado”. Era “inadmissível” que os trabalhadores se apossassem das empresas sem a aprovação sindical.

Depois desta operação preparatória, os sindicatos foram domesticados, despojados de autonomia e depurados, os seus congressos diferidos, seus membros encarcerados e suas organizações dissolvidas ou fundidas em unidades mais vastas. No fim deste processo, toda a orientação anarcosindicalista estava aniquilada, e o movimento sindical estreitamente subordinado ao Estado e ao Partido único.

O mesmo aconteceu no referente às cooperativas de consumo, que, nos primeiros tempos da Revolução, se multiplicaram e federaram. Cometeram, porém, o “erro” (ou o “crime”) de escapar ao controle do partido e de deixar que certo número de sociais-democratas (mencheviques) nelas se infiltrassem. Como punição, o Estado começou por privar os armazéns locais dos seus meios de reabastecimento e de transporte, sob o pretexto de “comércio privado” e de “especulação”, ou mesmo sem o menor pretexto. Seguidamente, foram fechadas, de uma só vez, todas as cooperativas livres e, em seu lugar, instaladas, burocraticamente, cooperativas do Estado. O decreto de 20 de março de 1919 integrou as cooperativas de consumo no Comissariado para o Reabastecimento, e as cooperativas de produção industrial no Conselho Superior de Economia. Numerosos cooperados foram presos.

A classe proletária não reagiu com energia nem rapidez contra esta situação. Estava dispersa, isolada, num imenso país atrasado e, em sua grande maioria, agrícola, esgotada pelas privações decorrentes das lutas revolucionárias, desmoralizada. Os seus melhores elementos haviam partido para a frente, na guerra civil, ou tinham sido absorvidos pelo aparelho do Partido ou do Governo. Todavia, foram bastante numerosos os trabalhadores que se sentiram frustrados pelas suas conquistas revolucionárias, privados dos seus direitos civis, e que, humilhados pela arrogância e arbitrariedade dos novos senhores, tomaram consciência da verdadeira natureza do pretenso “Estado proletário”. Assim, no decorrer do verão de 1918, os operários descontentes elegeram, nas fábricas de Moscou e Petrogrado, delegados autênticos, procurando deste modo opor os seus “conselhos de delegados” aos sovietes de empresa já captados pelo poder. Como testemunha Kolontai, o operário sentia, via e compreendia que era marginalizado. Podia comparar o modo de vida dos funcionários soviéticos com o seu e o dos seus camaradas operários, pilar sobre o qual descansava, pelo menos em teoria, a “ditadura do proletariado”.

Quando, porém, os trabalhadores viram completamente claro, era já demasiado tarde. O poder havia tido tempo de se organizar solidamente e dispunha de forças de repressão capazes de esmagar toda a tentativa de ação autônoma das massas. No dizer de Volin, “uma luta áspera e desigual, que durou quase três anos e continua ainda hoje, quase ignorada fora da Rússia, opôs uma vanguarda operária a um aparelho estatal que se obstinava em negar o divórcio consumado entre ele e as massas”. De 1919 a 1921, produziram-se numerosas greves nos centros mais importantes, em Petrogrado, sobretudo, e mesmo em Moscou, como veremos mais adiante, severamente reprimidas.

Mesmo no interior do Partido dirigente, surgiu uma “oposição operária” que reclamava o regresso à democracia soviética e à autogestão. No 10° congresso do Partido, em março de 1921, um membro, Alexandra Kolontai, distribuiu uma brochura em que se reivindicava a liberdade de iniciativa e de organização para os sindicatos, assim como a eleição de um órgão central da administração da economia, a partir de um “congresso de produtores”. O opúsculo foi confiscado e interditado. Lênin conseguiu que a quase unanimidade dos congressistas adotasse uma resolução considerando as teses da Oposição operária “desvios pequeno-burgueses e anarquistas”. “O sindicalismo, o semianarquismo das oposições, era, a seus olhos, um “perigo direto” para o monopólio do poder exercido pelo Partido em nome do proletariado”.

A luta prosseguiu no seio da direção da central sindical. Por defenderem a independência dos sindicatos em relação ao Partido, Tomsky e Riazanov foram excluídos do Presidium e exilados, enquanto o principal dirigente da Oposição operária, Chiapnikov, sofria a mesma sorte, seguido pelo dinamizador de um outro grupo oposicionista, o operário Miasnikov. Este autêntico proletário, justiceiro, em 1917, do grão-duque Michel, que contava quinze anos de militância no partido e, antes da Revolução, mais de sete anos de prisão e setenta e cinco dias de greve de fome, tinha “ousado”, em novembro de 1921, imprimir uma brochura na qual declarava que os trabalhadores haviam perdido a confiança nos comunistas, porque o Partido já não atuava em conformidade com a base e, agora, dirigia contra a classe proletária os mesmos meios de repressão que, de 1918 a 1920, haviam sido usados contra os burgueses.

O Papel dos Anarquistas

Neste drama, onde uma revolução de tipo libertário foi transformada no seu contrário, que papel desempenharam os anarquistas russos? A Rússia quase não tinha tradições libertárias. Foi no estrangeiro que Bakunin e Kropotkin se tornaram anarquistas. Nem um nem outro militaram como anarquistas no interior da Rússia. Quanto às suas obras, apareceram, até à Revolução de 1917, no exterior e em língua estrangeira. Só alguns extratos chegaram à Rússia, introduzidos clandestinamente e em quantidades muito reduzidas. Assim, toda a educação social, socialista e revolucionária dos russos, não tinha absolutamente nada de anarquista. Muito ao contrário, assegura Volin, “a juventude russa avançada lia uma literatura que, invariavelmente, apresentava o socialismo sob uma forma estatal”. A ideia de governo habitava nos espíritos: a social-democracia alemã havia-os contaminado.

Os anarquistas eram “um punhado de homens sem influência”; somavam, quando muito, apenas alguns milhares. Ainda segundo Volin, o movimento anarquista era “demasiado fraco para ter uma influência imediata e concreta sobre os acontecimentos”. Por outro lado, os anarquistas eram, na sua maioria, intelectuais de tendências individualistas, embora mais ou menos ligados ao movimento operário. Nestor Makhno, que com Volin constituía uma exceção, pois, na Ucrânia, sua região natal, operou no coração das massas, escreveu, nas suas Memórias, que o anarquismo russo “se encontrava na cauda de todos os acontecimentos, e mesmo, por vezes, completamente fora deles”.

Contudo, parece haver alguma injustiça nesta apreciação. O papel dos anarquistas, entre a Revolução de Fevereiro e a Revolução de Outubro, não foi de modo algum negligente. Afirma-o Trotsky, várias vezes, ao longo da sua História da Revolução Russa. “Ousados” e “ativos”, apesar do seu escasso número, os anarquistas foram os adversários do princípio da assembleia constituinte, num momento em que os bolchevistas não eram ainda antiparlamentares. Muito antes de Lênin, inscreveram nas suas bandeiras a palavra de ordem: Todo o poder para os sovietes! Foram também eles que animaram o movimento de socialização espontânea das habitações, muitas vezes contra a vontade dos bolchevistas. E em parte sob o impulso dos militantes anarcosindicalistas, os trabalhadores apoderaram-se de fábricas, mesmo antes de Outubro de 1917.

Durante as jornadas revolucionárias, que puseram fim à república burguesa de Kerensky, os anarquistas estiveram nas brechas da luta militar, nomeadamente integrados no regimento de Dvinsky, que, sob as ordens de velhos libertários, como Gratchoff e Fedotoff, desalojou os “cadetes” contrarrevolucionários. Foi o anarquista Anatole Galezniakoff, com a ajuda do seu destacamento, quem dispersou a assembleia constituinte: os bolchevistas não fizeram mais que ratificar o facto consumado. Numerosos destacamentos de camponeses, formados por anarquistas, ou por eles conduzidos (os de Mokroussof, Tcherniak e outros), lutaram sem trégua contra os exércitos brancos, de 1918 a 1920.

Quase não havia cidade importante que não contasse com um grupo anarquista ou anarcosindicalista difundindo um material impresso, relativamente considerável: jornais, revistas, folhetos, livros. Em Petrogrado, dois semanários, e em Moscou um quotidiano, tinham uma tiragem de 25.000 exemplares cada um. A audiência do movimento anarquista crescera par e passo com a Revolução, até que esta e aquele se afastaram das massas.

A 6 de abril de 1918, o capitão francês Jacques Sadoul, em missão na Rússia, escrevia num seu relatório: “O partido anarquista é o mais ativo, o mais combativo, dos grupos da oposição, e provavelmente o mais popular (…). Os bolchevistas estão inquietos”. E, em fins do mesmo ano, Volin afirmava: “Esta influência é tal, que os bolchevistas, avessos a críticas e ainda mais a contradições, estão seriamente inquietos”. “Para a autoridade bolchevista, tolerar a propaganda anarquista equivale (…) ao suicídio. Ela faz o possível para impedir, de início, interditar, depois, e suprimir, finalmente, pela força bruta, toda a manifestação das ideias libertárias”.

Com efeito, o governo bolchevista “começou por fechar as sedes das organizações libertárias e impedir aos anarquistas toda a propaganda e atividade”. Na noite de 12 de abril de 1918, em Moscou, os destacamentos de guardas vermelhos, armados até aos dentes, aniquilaram, por surpresa, vinte e cinco casas ocupadas por anarquistas. Estes, que se supunham atacados pelos guardas brancos, responderam ao ataque. Depois, ainda segundo Volin, “o poder adota medidas mais violentas: a prisão, a marginalização e a condenação à morte”. “Durante quatro anos, este conflito não deixa sossegar o poder bolchevique (…), até ao esmagamento definitivo da corrente libertária manu militari (1921)”.

A derrota dos anarquistas foi facilitada pelo fato de se encontrarem divididos em duas facções: uma, que recusava ser domesticada, e outra que se deixava domesticar. Os últimos invocavam a “necessidade histórica”, para justificar a sua lealdade para com o regime e aprovar, pelo menos momentaneamente, os seus atos ditatoriais. Para eles, o principal era terminar vitoriosamente a guerra civil e esmagar a contrarrevolução.

Tática de curto alcance, opinavam os anarquistas intransigentes, pois a impotência burocrática do aparelho governamental, a decepção e o descontentamento populares é que, precisamente, alimentavam os movimentos contrarrevolucionários. Além disto, o poder acabava por não distinguir as atitudes da ala avançada da Revolução libertária, que contestava os seus meios de dominação, das ações criminosas dos seus adversários da direita. Aceitar a ditadura e o terror, constituía, para os anarquistas que se contavam entre as vítimas, uma política suicida. Enfim, a adesão dos anarquistas ditos “soviéticos” facilitou a eliminação dos outros, dos irredutíveis, que foram apodados de “falsos” anarquistas, de sonhadores irresponsáveis sem sentido de realidade, de estúpidos desorientados, de loucos furiosos e, finalmente, de bandidos e contrarrevolucionários.

O mais brilhante e o mais ouvido dos anarquistas que aderiram ao regime foi Victor Serge. Funcionário do governo, publicou, em francês, um livro em que tentava defender-se da crítica anarquista. O livro que ele escreveu mais tarde, O 1º ano da Revolução Russa é, em grande parte, a justificação da liquidação dos sovietes pelo bolchevismo. O Partido ou, melhor, a sua elite dirigente, é ali apresentada como o cérebro da classe operária. A descoberta do que pode e deve fazer o proletariado pertence aos chefes devidamente selecionados na vanguarda. Sem eles, as massas organizadas nos sovietes não seriam “mais que uma turbamulta de aspirações confusas, embora iluminadas por lampejos de inteligência”.

Victor Serge era demasiado lúcido para nutrir ilusões sobre a verdadeira natureza do poder soviético. Mas este poder encontrava-
se ainda aureolado do prestígio da primeira revolução proletária vitoriosa e era amaldiçoado pela contrarrevolução mundial; esta era uma das razões, a mais respeitável, pelas quais Serge, como tantos outros revolucionários, acreditaram dever calar e dissimular os erros dos bolchevistas. Em meados de 1921, numa conversa privada com o anarquista Gaston Leval, que então se deslocara a Moscou, integrando a delegação espanhola ao 3º Congresso da Internacional, declarou: “O Partido Comunista não exerce uma ditadura do proletariado, mas sim sobre o proletariado”. De volta a Paris, Leval publicou no Le Libertaire alguns artigos nos quais, apoiando-se em dados precisos, estabelece paralelo entre o que Victor Serge lhe confidenciara e os conceitos que manifestava publicamente e que classificou de “mentiras conscientes”. No seu livro Vivendo minha vida, Emma Goldman, anarquista norte-americana, que assistiu pessoalmente à atuação de Serge em Moscou, não se revela menos contundente a seu respeito [1].

A “Makhnovitchina”

Se a liquidação dos anarquistas urbanos, pequenos núcleos sem poder algum, foi relativamente fácil, o mesmo não aconteceu com a forte organização rural, que o camponês Nestor Makhno organizara, com base econômica e militar, no Sul da Ucrânia. Filho de pobres camponeses ucranianos, contava apenas trinta anos em 1919. Ainda muito jovem, participara da Revolução de 1905, abraçando as ideias anarquistas. Condenado à morte pelo czarismo, sua pena fora comutada em oito anos de prisão, cumpridos, quase sempre, em regime de rigorosa incomunicabilidade, no cárcere de Butirki. Mesmo assim, este cárcere foi a sua única escola, onde combateu, com a ajuda de um companheiro, Pedro Archinov, as lacunas da sua instrução.

A organização autônoma das massas camponesas, constituída por iniciativa de Makhno, às vésperas da Revolução de Outubro, abrangia uma área de 280 km. de comprimento por 250 de largura, com 7 milhões de habitantes. Na sua extremidade sul, incluía o porto de Berdiansk, no mar de Azof. No centro desta área erguia-se a cidade de Gulai-Polé, de 20 e 30 mil habitantes e com uma tradição de rebeldia, que já se manifestara ativamente em 1905.

Tudo começou com o estabelecimento, na Ucrânia, de um regimento direitista, imposto pelo exército de ocupação alemão e austríaco, com a missão de devolver aos seus antigos proprietários as terras que os camponeses haviam ocupado. Os trabalhadores rurais defenderam, de armas na mão, todas as suas conquistas, quer contra a reação, quer contra a intempestiva intromissão dos comissários bolchevistas na zona rural, cujas requisições eram demasiado graves. Esta gigantesca resistência foi animada por um justiceiro, uma espécie de Robin Hood anarquista, conhecido pelos camponeses de “Pai” Makhno. Seu primeiro gesto armado foi tomar Gulai-Polé, em meados de setembro de 1918. A retirada das tropas germano-austríacas, em consequência do armistício de 11 de novembro, ofereceu a Makhno a possibilidade de constituir reservas de armas e provisões.

Pela primeira vez na história, os princípios do comunismo libertário foram implantados na Ucrânia libertada e, na medida em que as circunstâncias da guerra civil o permitiram, praticada a autogestão. Os camponeses cultivavam em comum as terras disputadas aos antigos proprietários e agrupavam-se em “comunas” ou “sovietes livres”. Todos os homens, mulheres e crianças deviam trabalhar, na medida das suas forças. Os companheiros eleitos para funções de gerência, a título temporário, retomavam o mesmo trabalho dos membros da comuna, terminado o exercício da sua gestão.

Cada soviete era apenas o executor da vontade dos camponeses que o constituíram. As unidades de produção estavam federadas em distritos e os distritos em regiões. Os sovietes integravam-se num sistema econômico de conjunto, baseado na igualdade social. Deviam ser absolutamente independentes de qualquer partido político, e nenhum político podia ditar a sua vontade, a coberto do poder soviético. Seus membros seriam trabalhadores autênticos, a serviço exclusivo dos interesses das massas laboriosas.

Logo que os guerrilheiros “makhnovistas” penetravam numa localidade, afixavam editais, em que se lia: “A liberdade dos camponeses e dos operários pertence-lhes e não deve sofrer restrição alguma. Cabe aos operários e camponeses agir, organizarem-se e entenderem-se entre si, em todos os domínios da sua vida, tal como a concebam e desejem (…). Os maknovistas podem ajudá-los, dando-lhes conselhos (…). Mas não podem nem querem, em caso algum, governá-los”.

Quando, mais tarde, em fins de 1920, os homens de Makhno se viram obrigados a concluir um acordo efêmero com o poder bolchevista, insistiram na adoção da seguinte cláusula: “Na região onde operar o exército makhnovista, a população operária e camponesa criará as suas instituições livres para a autoadministração econômica e política; estas instituições serão autônomas e ligadas federativamente, por meio de pactos, com os órgãos governamentais das Repúblicas soviéticas”. Atarantados, os negociadores bolchevistas separaram esta cláusula do acordo, a fim de ser referendada em Moscou, onde, evidentemente, ela foi considerada “absolutamente inadmissível”.

Um dos aspectos mais fracos do movimento makhnovista era a insuficiência de intelectuais em seu seio. Na medida do possível, foi ajudado por intelectuais situados fora do movimento, como Karkov e Kurst, a princípio, e os anarquistas que, em fins de 1918, se fundiram numa aliança apelidada Nabat (Alerta), amplamente animada por Volin. Em abril de 1919, realizaram um congresso no qual se pronunciaram “categórica e definitivamente, contra qualquer participação nos sovietes, transformados em organizações puramente políticas e arquitetados sobre uma base autoritária, centralista e estatal”. Este manifesto foi considerado como uma declaração de guerra pelo governo bolchevista, que ordenou a cessação de todas as atividades da Nabat. Em julho do mesmo ano, Volin conseguiu reunir-sc ao quartel general de Makhno, onde, juntamente com Pedro Archinov, tomou a seu cargo na seção cultural e educativa do movimento. Presidiu, depois, a um congresso, o de outubro, em Alexandrovsk, no qual se adotaram as teses gerais, que precisavam a doutrina dos “sovietes livres”.

Os congressos reuniam os delegados dos camponeses e dos guerrilheiros, pois a organização civil era o prolongamento de um exército camponês insurrecional, que praticava a tática de guerrilhas. Este exército, extremamente móvel, deslocava-se até 100 km por dia, não só graças à cavalaria, mas também pelo fato da infantaria se transportar em viaturas hipomóveis. Era organizado em bases especificamente libertárias, de voluntariado, do princípio eletivo, em vigor para todas as graduações, e da disciplina livremente aceita, cujas regras eram elaboradas por comissões de combatentes e que, após a sua aprovação em assembleias gerais, eram rigorosa e unanimemente observadas.(2)

As forças de Makhno infligiram grandes reveses aos exércitos “brancos” intervencionistas. As unidades de guardas vermelhos dos bolcheviques eram menos eficazes. Batiam-se apenas ao longo das estradas de ferro, sem jamais se afastarem dos seus trens blindados; recolhiam-se ao primeiro revés, nem sempre tendo tempo de esperar o embarque de todos os seus homens. Por outro lado, inspiravam pouca confiança aos camponeses que, isolados nas suas aldeias e privados de armamento, tinham de enfrentar os contrarrevolucionários. “A honra de haverem aniquilado a contrarrevolução de Denikine, nos últimos meses de 1919, pertence principalmente aos anarquistas”, escreve Archinov, o cronista da makhovtchina.

Makhno recusou-se sempre a colocar o seu exército sob o comando supremo de Trotsky, chefe do Exército Vermelho, depois que as unidades de guardas vermelhos se fundiram com este último. Este grande revolucionário, Trotsky, convenceu-se de que era seu dever encarniçar-se contra o movimento insurrecional. Assim, a 4 de junho de 1919, redigiu uma ordem pela qual interditou o congresso dos makhnovistas e, acusando-os de combaterem o poder dos sovietes na Ucrânia, estigmatizou o congresso como um ato de “alta traição”, pelo que ordenou a captura de seus delegados. Inaugurando um processo que os stalinistas espanhóis executaram, 18 anos mais tarde, contra as brigadas anarquistas, Trotsky recusou armas aos guerrilheiros de Makhno, eximindo-se ao seu dever de lhes dar assistência, para, em seguida, os acusar de “traírem” e de se deixarem bater pelas tropas brancas.

Não obstante, os dois exércitos atuaram em concordância por duas vezes, quando a gravidade do perigo intervencionista exigiu uma ação conjunta. A primeira foi cm março de 1919, contra Deníkine; a segunda, no decurso da segunda metade do ano de 1920, ante a ameaça das tropas brancas de Wrangel, que, finalmente, foram destruídas por Makhno. Todavia, logo que o perigo foi afastado, o Exército Vermelho retomou as operações militares contra os combatentes de Makhno que, aliás, respondiam golpe por golpe.

Em fins de novembro de 1920, o governo não hesitou em armar-lhes uma cilada. Os oficiais do exército makhnovista da Crimeia, convidados a participar de um conselho militar, foram, logo que ali chegaram, encarcerados pela Polícia política, a “Tcheca”, e sumariamente fuzilados. Ao mesmo tempo, era desencadeada uma ofensiva contra Gulai-Polé. A luta, cada vez mais desigual, entre “libertários” e “autoritários”, durou ainda nove meses. Por fim, Makhno teve de abandonar a partida, posto fora de combate por forças superiores cm número e equipamento bélico, até que, em agosto de 1921, conseguiu refugiar-se na Romênia, de onde passou para Paris, onde veio a falecer mais tarde, pobre e doente. Assim terminou a epopeia da makhnovitchina, que constitui, segundo Pedro Archinov, o protótipo de um movimento independente das massas laboriosas e, por este fato, fonte de inspiração futura para os trabalhadores do mundo.

Kronstadt

As aspirações dos camponeses revolucionários makhnovistas eram muito semelhantes às que, em fevereiro e março de 1921, impulsionaram, conjuntamente, à revolta, os trabalhadores de Petrogrado e os marinheiros da fortaleza de Kronstadt.

Os trabalhadores urbanos tinham de suportar condições materiais intoleráveis: escassez de víveres, combustíveis, meios de transportes e a ação de um regime cada vez mais ditatorial e totalitário, que esmagava a menor manifestação de descontentamento. Em fins de fevereiro, eclodiram greves em Petrogrado, Moscou e outros importantes centros industriais. Os trabalhadores, marchando pelas ruas, atraíram outros contingentes de operários, que fecharam as fábricas, reclamando pão e liberdade. O governo respondeu com fuzilamentos, e os trabalhadores de Petrogrado, por sua vez, com um comício de protesto, que reuniu 10.000 operários.

Kronstadt era uma base naval insular, a trinta quilômetros de Petrogrado, no golfo da Finlândia, cujas águas gelam no inverno. A ilha era habitada por marinheiros e alguns milhares de trabalhadores do arsenal da base militar. Os marinheiros de Kronstadt tinham desempenhado um papel de vanguarda nos acontecimentos revolucionários de 1917. Segundo Trotsky, foram “o orgulho e a glória da Revolução russa”. A população civil de Kronstadt formava uma comuna livre, relativamente independente do poder central. Dentro da fortaleza, havia uma imensa praça pública, autêntico fórum popular, onde cabiam mais de 30.000 pessoas.

Os marinheiros não possuíam, já em 1921, nem os mesmos efetivos, nem a mesma composição revolucionária de 1917: muito mais que os seus predecessores, provinham da massa camponesa; conservavam, porém, o mesmo espírito militante e, pela sua atuação anterior, o direito de participar ativamente nas reuniões dos trabalhadores de Petrogrado. Por isso os marinheiros enviaram emissários aos trabalhadores em greve da antiga capital, os quais foram obrigados pelas forças governamentais a regressar. Então, celebraram-se dois comícios na praça da fortaleza, onde se afirmou o apoio às reivindicações dos operários em greve. Na segunda reunião, a 1º de março, juntaram-se 16.000 pessoas — marinheiros, trabalhadores e soldados — e, não obstante a presença do chefe do Estado (o presidente do executivo central, Kalínine), adotaram uma resolução em que pediam a convocação, à margem dos partidos políticos, nos dez dias seguintes, de uma conferência de operários, soldados vermelhos e marinheiros de Petrogrado, de Kronstadt e da província de Petrogrado. No mesmo comício exigiram a supressão dos “oficiais políticos”, pois nenhum partido político deveria usufruir de tal privilégio, assim como a abolição dos destacamentos comunistas de choque, dentro do exército, e da “guarda comunista”, dentro das fábricas.

Era o monopólio do partido dirigente que se visava. Um monopólio que os rebeldes de Kronstadt não hesitaram em qualificar de “usurpação”. Mas folheemos resumidamente o jornal oficial desta nova Comuna, o Izvestia de Kronstadt, e deixemos falar os marinheiros encolerizados. O Partido Comunista, depois de se arrogar o poder, manifestava, segundo eles, um único cuidado: conservá-lo por todos e quaisquer meios. Tinha-se afastado das massas. Revelara-se incapaz de tirar o país de um estado de derrocada geral. Perdera a confiança dos operários. Burocratizara-se. Os sovietes, despojados do seu poder, haviam sido falsificados, encampados e manipulados; haviam-se estatizado.

Uma máquina policial onipotente pendia sobre o povo, ditando sua lei através de fuzilamentos e da prática de terror. No plano econômico, reinava, em vez do anunciado socialismo, assentado no trabalho livre, um duro capitalismo de Estado. Os operários eram simples assalariados deste grande truste nacional, e submetidos à mesma exploração de antes. Os hereges de Kronstadt chegaram a contestar a infalibilidade dos chefes supremos da Revolução. Escarneceram de Trotsky e de Lênin. Além das suas reivindicações imediatas — restauração das liberdades, eleições livres para todos os órgãos da democracia soviética — visavam alcançar um objetivo mais vasto e de um conteúdo nitidamente anarquista: uma “terceira Revolução”.

Os rebeldes entenderam continuar sobre o terreno revolucionário, vigiando a manutenção das conquistas da revolução social. Afirmavam não ter nada cm comum com os que pretendiam “restabelecer o czarismo”, e se não escondiam a sua intenção de derrubar o poder dos “comunistas”, não era para que os “operários e os camponeses voltassem a ser escravos”. Também não cortavam todos os pontos de contato com o regime, com o qual esperavam ainda “encontrar uma linguagem comum”. Em suma, se reclamavam liberdade de expressão, não o faziam por vãos motivos, mas apenas porque, anarquistas e “socialistas de esquerda” (fórmula que excluía os social-democratas ou mencheviques), eram partidários sinceros da Revolução.

Mas a “audácia” de Kronstadt ia bem mais longe do que era suportável para Lênin ou Trotsky. Os chefes bolcheviques tinham decididamente identificado a Revolução com o Partido Comunista, e tudo que combatia este mito era, a seus olhos, irremediavelmente “contrarrevolucionário”. Viam feita em pedaços toda a ortodoxia marxista-leninista. Os acontecimentos de Kronstadt constituíam um facto de significado tão aterrador, quanto os chefes comunistas sabiam que, governando em nome do proletariado, o seu poder era contestado por um movimento autenticamente proletário. Além disto, Lênin apegou-se à tese um tanto simplista de que a restauração czarista era a única alternativa à ditadura de seu Partido. Os homens de Estado do Kremlin de 1921 raciocinavam como, mais tarde, os de outono de 1956. Kronstadt foi a prefiguração de Budapeste.

Trotsky, o homem “de mão de ferro”, aceitou pessoalmente a responsabilidade de dirigir a repressão. “Se persistirem na vossa atitude, os caçaremos como perdizes”, comunicava pelo rádio aos amotinados. E os marinheiros foram tratados como cúmplices dos “guardas brancos”, das potências ocidentais intervencionistas e da “Bolsa de Paris”. A sua submissão fora obtida pela força das armas. Não tiveram nenhum êxito as tentativas dos anarquistas Emma Goldman e Alexandre Berkman — que haviam encontrado asilo na “pátria do proletariado”, depois de terem sido deportados dos Estados Unidos — em evitar o uso da força, pois “esta traria um mal incalculável à Revolução social”, conforme carta patética que, nessa altura, escreveram a Zinoviev, a quem também pediam que incitasse os seus “camaradas bolcheviques” a solucionarem o conflito através de negociações fraternais. Quanto aos operários de Petrogrado, aterrorizados, submetidos à lei marcial, não puderam levar apoio aos de Kronstadt.

Um antigo oficial czarista e futuro marechal, chamado Toukhatchevsky, foi encarregado de comandar um corpo expedicionário, composto de tropas recrutadas especificamente, dado que grande número de soldados vermelhos se recusavam a atirar sobre os seus companheiros de alistamento. Em 7 de março, começou o bombardeio da fortaleza de Kronstadt. Os sitiados lançaram um último apelo, que teve por título “Que o mundo o saiba!”, no qual disseram: “O sangue dos inocentes cairá sobre a cabeça dos comunistas sedentos de poder. Viva o poder dos sovietes!”. Deslocando-se sobre o gelo do golfo da Finlândia, as tropas sitiantes eliminaram a rebelião, a 18 de março, numa orgia de sangue.

Os anarquistas quase não intervieram neste episódio. O comitê revolucionário de Cronstadt convidara, efetivamente, dois libertários para se lhe reunirem: Volin e Yartchouk, o segundo dos quais fora o animador do soviete de Kronstadt, em 1917. Estes, porém, encontravam-se encarcerados pelos bolcheviques. Conforme relata Ida Mett, historiadora de A Revolta de Kronstadt, a influência anarquista exerceu-se apenas “na medida em que o anarquismo propagou a ideia da democracia operária”. Mas, se não intervieram diretamente nos acontecimentos, os anarquistas não deixaram de proclamar a sua autoria: “Kronstadt — escreveu mais tarde Volin — foi a primeira tentativa popular, inteiramente independente, para libertar o proletariado de todo o jugo e realizar a Revolução Social: tentativa empreendida diretamente (…) pelas massas trabalhadoras,
sem “pastores políticos”, sem “chefes” nem “tutores”. E Alexandre Berkman acrescenta: “Kronstadt fez voar em pedaços o mito do Estado proletário; demonstrou que havia incompatibilidade entre a ditadura do Partido Comunista e a Revolução”.

O Anarquismo Morto e Ressuscitado

Embora os anarquistas não tivessem desempenhado um papel ativo no levantamento de Kronstadt, o regime aproveitou o seu esmagamento para banir uma ideologia que continuava a atemorizá-lo. Algumas semanas antes, a 8 de fevereiro, o velho Kropotkin morrera na Rússia, e o seu funeral constituirá imponente manifestação popular, acompanhado por cerca de cem mil pessoas. Misturadas com as bandeiras vermelhas do comunismo, flutuavam as bandeiras negras do anarquismo, onde se lia, em letras de fogo: “Onde há autoridade não há liberdade”. Os biógrafos de Kropotkin relatam que esta foi a “última grangativas, não se pode evitar a implantação da hierarquia de funde manifestação contra a tirania bolchevista”.

Em seguida ao esmagamento de Kronstadt, foram presos centenas de anarquistas. Meses mais tarde, um libertário, Fanny Baron, e oito de seus camaradas eram fuzilados nas caves da prisão da Tcheka, em Moscou.

O anarquismo militante recebera seu golpe de misericórdia. Mas fora da Rússia, os anarquistas, que viveram a Revolução Russa, empreenderam um vasto trabalho de crítica e revisão doutrinárias, que revigoraram e tornaram mais concreto o pensamento libertário. Desde princípios de setembro de 1920, o congresso da aliança anarquista da Ucraínia, chamada Nabat, tinha rejeitado categoricamente a expressão “ditadura do proletariado” por compreender que ela conduziria inexoravelmente à ditadura de uma fração do proletariado, entrincheirada no Partido e constituída por funcionários e um punhado de chefes, sobre a massa proletária. Pouco antes de falecer, Kropotkin, numa Mensagem aos trabalhadores do Ocidente, denunciou com angústia o estabelecimento crescente de uma “formidável burocracia”: “Para mim, esta tentativa de edificar uma república comunista em bases estatais fortemente centralizadas, sob a lei de ferro da ditadura de um partido, redundou num fiasco retumbante.

A Rússia nos ensina como não deve estabelecer-se o comunismo”. No seu número de 7-14 de janeiro de 1921, o jornal francês Le Libertaire publicava um apelo patético dos anarcosindicalistas russos ao proletariado mundial: “Camaradas, terminai com a dominação da vossa burguesia, tal como nós fizemos aqui. Mas não repitais os nossos erros: não deixeis que o comunismo de Estado se estabeleça nos vossos países!”

No mesmo tom, o anarquista alemão Rudolf Rocker redigiu em 1920 e publicou em 1921 A Bancarrota do Comunismo de Estado, que constitui a primeira análise política a ser feita sobre a degenerescência da Revolução russa. A seu ver, não era a vontade de uma classe que encontrava expressão na famosa “ditadura do proletariado“, mas a ditadura de um partido pretendendo falar em nome de uma classe e apoiando-se na força das baionetas. “Sob o nome de ditadura do proletariado desenvolveu-se na Rússia uma nova classe, a comissariocracia, que exerce uma opressão semelhante à do antigo regime”. Subordinando sistematicamente todos os elementos da vida social à onipotência de um governo dotado de todas as prerreacionários, que foi fatal à Revolução russa”. “Os bolcheviques não só copiaram o aparelho de Estado da antiga sociedade, como lhe deram um poder de que nenhum outro governo se pode arrogar”.

Em junho de 1922, o grupo de anarquistas russos asilados na Alemanha publicou, em nome de A. Gorielik, A Komof e Volin, um opúsculo revelador, intitulado La Répression de l’anarchisme en Russie soviétique (na tradução francesa, da autoria de Volin, aparecida em 1923). Este livro constitui um martirológio do anarquismo russo, alfabeticamente classificado. Alexandre Berkman, em 1921 e 1923, e Emma Goldman, em 1922 e 1923, publicaram uma série de brochuras sobre os dramas a que haviam assistido na Rússia. Também Pierre Archinov e Nestor Makhno, que conseguiram asilar-se no Ocidente, escreveram seus depoimentos.

Muitos anos mais tarde, durante a segunda guerra mundial, foram produzidas, com a maturidade de espírito e análise que a perspectiva dos anos confere, duas grandes obras clássicas da literatura libertária sobre a Revolução russa: a de G. P. Maximof e a de Volin.

Para Maximof, cujo livro apareceu originalmente em inglês, as lições do passado asseguram a certeza de um futuro melhor. A nova classe dominante na URSS não pode e não deve viver eternamente. O socialismo libertário lhe sucederá. Condições objetivas conduzem a esta evolução: “É concebível (…) que os trabalhadores queiram a volta dos capitalistas nas empresas? Jamais! Eles revoltam-se é precisamente contra a exploração do Estado e dos seus burocratas”. O objetivo dos trabalhadores é substituir esta gestão autoritária da produção pelos seus próprios conselhos de fábrica e unir os conselhos numa vasta federação nacional. O que eles ambicionam é a autogestão operária. Do mesmo modo, os camponeses compreenderam que já não se pode voltar à economia individual, e que a única solução tem de ser procurada na agricultura coletiva, na colaboração das coletividades rurais com os conselhos de fábrica e os sindicatos: numa palavra, na expansão do programa da Revolução de Outubro com liberdade.

Qualquer tentativa inspirada no exemplo russo, afirma Volin, resolutamente, terá de redundar num “capitalismo de Estado baseado numa odiosa exploração das massas”, o “pior dos capitalismos”, que não tem absolutamente nenhuma relação com a marcha da humanidade para a sociedade socialista”. O exemplo russo apenas promoverá “a ditadura de um partido, que conduz irrefutavelmente à repressão de toda a liberdade de opinião, de imprensa, de organização e de ação, mesmo para as correntes revolucionárias, salvo para o partido no poder”, e conduz “a uma inquisição social”, que afoga “a respiração da própria Revolução”. Volin termina dizendo que Stálin “não caiu da Lua”. Stálin e o stalinismo são, a seu ver, a consequência lógica do sistema autoritário fundado e estabelecido de 1918 a 1921. “Tal é a lição mundial da extraordinária e decisiva lição da experiência bolchevista, lição que fornece um poderoso apoio à tese libertária e que será em breve, à luz dos acontecimentos, compreendida por todos aqueles que padecem, sofrem, pensam e lutam”.

[1] Ao regressar, desiludida, à América do Norte, de onde emigrara para a Rússia, como voluntária, para colaborar na Revolução de Outubro, Emma Goldman publicou, nos jornais anarquistas norte-americanos, uma série de artigos de análise à obra contrarrevolucionária de Lênin, sob o título de “O grande jesuíta” (Lênin). (R.N.) (2) É sabido que a tática de guerrilhas usada na Sierra Maestra, que deu a vitória a Fidel Castro e que hoje corre mundo impressa sub o nome de “Che” Guevara, foi decalcada sobre a tática de guerrilha dos anarquistas da Ucrânia (exposta pormenorizadamente na obra de Volin, “A Revolução Desconhecida”), também adotada pelos anarquistas espanhóis na Revolução da Espanha (R.N.)