#cover d-g-david-graeber-voce-e-anarquista-1.jpg #title Você é Anarquista? #subtitle A resposta pode surpreender você! #author David Graeber #SORTtopics Anarquia, Anarquismo, Anarquistas, Texto Introdutório #source [[https://theanarchistlibrary.org/library/david-graeber-are-you-an-anarchist-the-answer-may-surprise-you][theanarchistlibrary]] #lang pt #pubdate 2020-05-29T22:00:00 É bem provável que você já deve ter ouvido algo sobre quem são os anarquistas e no que se supõe que eles acreditam. É bem provável que quase tudo que você ouviu não seja verdade. Muitas pessoas parecem pensar que anarquistas defendem a violência, o caos e a destruição, que eles são contra todas as formas de ordem e organização, ou que são niilistas enlouquecidos que só querem explodir tudo. O fato é que nada disso está perto de ser verdade. Anarquistas são simplesmente pessoas que acreditam que seres humanos são capazes de se comportar de maneira razoável sem ter de ser forçados a isso. É realmente uma noção bem simples, mas é algo que os ricos e poderosos sempre consideraram extremamente perigoso. Basicamente, os princípios anarquistas vêm de duas hipóteses elementares. A primeira é de que todos os seres humanos são, sob condições normais, tão razoáveis e decentes quanto eles podem ser, e que podem se organizar e organizar suas comunidades sem ouvirem como fazer isso. A segunda é que o poder corrompe. Acima de tudo, anarquismo é somente a preocupação em se ter coragem para tomar os princípios simples de bom senso pelos quais todos nós vivemos e segui-los até suas conclusões lógicas. Por mais estranho que isso pareça, você provavelmente já é um anarquista no que é mais fundamental. Você só não percebe isso. Vamos começar por alguns exemplos do cotidiano: **** Se há uma fila para pegar um ônibus lotado, você espera sua vez e se contém para não furar a fila mesmo na ausência da polícia? Se você respondeu “sim”, então você está acostumado a agir como um anarquista! O princípio anarquista mais básico é a auto-organização: a hipótese de que seres humanos não precisam ser ameaçados com perseguição para que sejam capazes de se entender razoavelmente ou se tratar com dignidade e respeito. Todos acreditam que são capazes de se comportar de maneira sensata. Se pensam que leis e polícia são necessárias, é somente porque eles não acreditam que as outras pessoas são capazes disso. Mas, se você pensar sobre isso, não verá que essas pessoas pensam da mesma maneira que você? Anarquistas argumentam que quase todo comportamento antissocial que nos faz pensar que é necessário haver exércitos, polícia, prisões e governos para controlar nossas vidas é na verdade causado pela desigualdade sistemática e pela injustiça que exércitos, polícia, prisões e governos causam. É um círculo vicioso. Se as pessoas se acostumarem a ser tratadas como se suas opiniões não importassem, é bem provável que se tornem nervosas e incrédulas, até mesmo violentas – o que, é claro, torna tudo mais fácil para aqueles que estão no poder que opiniões dessas pessoas não importam. A partir do momento que elas veem que suas opiniões realmente importam tanto quanto a de qualquer um, elas tendem a se tornar visivelmente compreensíveis. Para resumir tudo: anarquistas acreditam que, em boa parte, é o poder e os efeitos do poder que fazem com que as pessoas sejam idiotas e irresponsáveis. **** Você é membro de um clube ou equipe esportiva ou alguma organização voluntária em que decisões não são impostas por um líder, mas sim feitas sob consenso? Se você respondeu “sim”, então você pertence a uma organização que trabalha sob princípios anarquistas! Um outro princípio anarquista básico é a associação voluntária. É simplesmente uma questão de se aplicar princípios democráticos à vida comum. A única diferença é que anarquistas acreditam que deveria existir uma sociedade na qual tudo pudesse ser organizado desse jeito; todos os grupos baseados em livre consentimento de seus membros de modo que, de cima para baixo, estilos militares de organização, como exércitos, burocracias ou grandes corporações, baseados em hierarquias, não sejam mais possíveis. Talvez você não acredite que isso seja possível. Talvez. Mas, toda vez que se combina algo sob consenso em vez de ameaça, toda vez que se faz um acordo voluntário com outra pessoa, chega a um entendimento ou aceita-se um compromisso ao se levar em consideração a situação específica ou as necessidades de outra pessoa, você está sendo anarquista – mesmo que não perceba isso. Anarquismo é somente o modo que as pessoas agem quando estão livres para fazer o que escolherem e quando lidam com outras pessoas igualmente livres – e, portanto, cientes de sua responsabilidade com os outros. Isso leva a outro ponto crucial: o de que as pessoas podem ser sensatas e perspicazes quando lidam com iguais, mas de que a natureza humana faz com que não sejam mais confiáveis ao receber poder sobre os outros. Dê poder às pessoas, e elas quase invariavelmente abusarão disso de um jeito ou de outro. **** Você acredita que os políticos são, em sua maioria, porcos egoístas e mesquinhos que não se preocupam de verdade com o interesse público? Você pensa que vivemos sob um sistema econômico que é idiota e injusto? Se você respondeu “sim”, então você concorda com a crítica anarquista sobre a sociedade de hoje – ao menos, em seu sentido mais amplo. Anarquistas acreditam que o poder corrompe e que aqueles que passam sua vida inteira à procura de poder são as últimas pessoas que deveriam tê-lo. Anarquistas acreditam que nosso sistema econômico atual recompensa mais as pessoas por comportamento egoísta e sem escrúpulos do que por ser correto e atencioso com seres humanos. A maioria das pessoas pensa assim. A única diferença é que a maioria das pessoas não acredita que existe algo a ser feito a respeito disso, ou algum modo que – e isso é no que os servos mais fiéis dos poderosos mais insistem – que não tornará as coisas piores ainda. Mas e se isso não for verdade? E há realmente algum motivo para acreditar nisso? Quando testada, a maioria das previsões comuns sobre o que aconteceria sem Estados ou capitalismo se revela totalmente falsa. Por milhares de anos as pessoas viveram sem governos. Em muitas partes do mundo, pessoas vivem fora do controle de governos hoje. Elas não se matam todas umas às outras. Vivem, basicamente, suas vidas do mesmo jeito que outros viveriam. É claro que, em uma sociedade complexa, urbana e tecnológica, isso seria mais complicado; mas a tecnologia pode também fazer com que esses problemas se tornem mais fáceis de se resolver. O fato é que sequer começamos a pensar no que seria das nossas vidas se a tecnologia fosse guiada para servir às necessidades humanas. Quantas horas realmente teríamos que trabalhar para manter uma sociedade funcional – ou seja, se acabássemos com todas as profissões inúteis e destrutivas como operadores de telemarketing, advogados, agentes penitenciários, analistas financeiros, profissionais de relações públicas, burocratas e políticos, e deslocássemos nossas melhores mentes do trabalho com engenharia espacial ou mercados de ações para mecanizar tarefas perigosas e fastidiosas como mineração de cobre ou limpeza de banheiros, e distribuísse o restante do trabalho entre todos igualmente? Cinco horas por dia? Quatro? Três? Duas? Ninguém sabe, porque ninguém está sequer se perguntando esse tipo de questão. Anarquistas pensam que essas são as questões que deveriam ser perguntadas. **** Você acredita nessas coisas que você conta para suas crianças (ou que seus pais contaram a você)? “Não importa quem começou com isso.” “Dois errados não fazem um certo.” “Arrume sua própria bagunça.” “Faça aos outros...” “Não seja mau com os outros só porque eles são diferentes.” Talvez devêssemos decidir se estamos mentindo para nossas crianças quando dizemos a elas o que é certo e errado ou se devemos tomar essas regras a sério. Porque, se se levar esses princípios morais as suas conclusões lógicas, chega-se ao anarquismo. Pense no princípio de que dois errados não fazem um certo. Se se levar isso a sério, só isso acabaria com todo o embasamento para a guerra e o sistema de justiça criminal. O mesmo vale para compartilhar: sempre falamos para nossas crianças que elas têm que aprender a dividir, a considerar as necessidades dos outros, a ajudar uns aos outros; então vamos para o mundo real onde pressupomos que todo mundo é naturalmente egoísta e competitivo. Mas um anarquista apontaria isso; na verdade o que dizemos a nossas crianças está certo. Boa parte de todo grande acontecimento na história mundial, toda descoberta ou realização que melhorou nossas vidas foi baseada em cooperação e ajuda mútua. Mesmo agora, a maioria de nós gasta nosso dinheiro tanto com amigos e familiares quanto com nós mesmos. Sendo possível não existir para sempre pessoas competitivas no mundo, não há razão para a sociedade se manter encorajando tal comportamento e incentivar as pessoas a competir por necessidades básicas para se viver. Isso somente serve aos interesses das pessoas no poder, que querem que vivamos uns com medo dos outros. É por isso que anarquistas clamam por uma sociedade baseada não só na livre associação, mas também na ajuda mútua. A verdade é que a maioria das crianças cresce acreditando em uma moral anarquista e gradualmente percebe que o mundo adulto não funciona desse jeito. É por isso que muitos se tornam rebeldes ou alienados, até mesmo suicidas, no caso de adolescentes, até se tornarem resignados e amargos como os adultos. Com frequência, seu único consolo é ter filhos e fingir para eles que o mundo é justo. Mas, e se realmente pudéssemos começar a construir um mundo que realmente fosse baseado em princípios de justiça? Não seria o maior presente que poderia ser dado às crianças? **** Você acredita que seres humanos são essencialmente corruptos e malvados, ou que alguns tipos de pessoas (mulheres, negros, pessoas comuns que não são ricos ou bem educados) são espécimes inferiores, destinados a ser liderados por seus superiores? Se você respondeu “sim”, bem, então parece que você não é anarquista afinal de contas. Mas se você respondeu “não”, então é bem provável que você já concorda com até 90% dos princípios anarquistas e, acredite ou não, está vivendo boa parte do tempo de acordo com eles. Toda vez que você trata outro humano com consideração e respeito, você está sendo anarquista. Toda vez que você lida com suas diferenças em relação aos outros a fim de chegar a um compromisso razoável, ouvindo o que todos têm a dizer ao invés de deixar uma pessoa decidir por todos, você está sendo anarquista. Toda vez que você tem a oportunidade de forçar alguém a fazer algo, mas decide, em vez disso, apelar para seu senso de razão ou justiça, você está sendo anarquista. O mesmo vale para toda vez que você divide algo com um amigo ou decide quem lava a louça ou faz qualquer coisa tentando ser justo. Agora, talvez você afirme que tudo isso parece bom e legal para pequenos grupos de pessoas se relacionarem, mas que administrar uma cidade ou um país é uma questão totalmente diferente; e é claro que há razão nisso. Mesmo que você descentralize a sociedade e coloque o máximo de poder possível nas mãos de pequenas comunidades, ainda há muitas coisas que precisam ser coordenadas, de manter ferrovias até decidir rumos para a pesquisa médica. Mas só porque algo é complicado isso não significa que não há jeito de se fazer isso democraticamente. Isso será complicado apenas. Na verdade, anarquistas têm todo tipo de ideias e visões diferentes de como uma sociedade complexa poderia se organizar por si só. Para explicá-las, no entanto, iríamos para muito longe do escopo de um pequeno texto introdutório como este. É suficiente dizer, antes de tudo, que muitas pessoas têm passado muito tempo elaborando modelos de como uma sociedade realmente democrática e saudável poderia funcionar; e que, não menos importante que isso, nenhum anarquista afirma ter um esquema perfeito. A última coisa que queremos é, afinal, impor modelos pré-fabricados de sociedade. A verdade é que provavelmente não podemos sequer imaginar metade dos problemas que virão quando tentarmos criar uma sociedade democrática. Ainda assim, seguimos confiantes, com um pouco de criatividade humana, de que tais problemas podem ser resolvidos, desde que de acordo com o espírito dos nossos princípios básicos, que são, numa análise final, simplesmente os princípios de fundamental bom senso.