David Watson

Todos nós vivemos em Bhopal

  A Revolução Verde é um pesadelo

  Industrialização do Terceiro Mundo

  Cultura industrial e praga industrial

  Voltando para a aldeia

Este ensaio foi publicado na revista ecológica radical norte-americana Fifth Estate, logo após a explosão química em Bhopal, um dia de morte que (começou em 3 de dezembro de 1984 e) está matando até hoje. As crianças nascem deformadas ou mortas, a terra foi destruída. Aqueles que sobreviveram ao massacre inicial – famílias de refugiados industriais que fugiram da nuvem química – estão vendo um ao outro lentamente morrer de câncer e outras ‘doenças’ relacionadas à poluição/stress.

As cinzas das piras funerárias em Bhopal ainda estão quentes e as sepulturas coletivas ainda estão frescas, mas a mídia, a prostituta das corporações, já começou suas pregações em defesa do industrialismo e seus horrores incontáveis. Cerca de 3.000 pessoas foram massacradas em meio à nuvem de gás mortal e 20.000 permanecerão permanentemente inválidas. O gás venenoso deixou um rastro de morte de mais de 40 quilômetros quadrados, deixando pessoas e animais mortos ou moribundos enquanto se espalha por uma longa distancia a sudeste da fábrica da Union Carbide. “Nós pensamos que era a praga”, disse uma vítima. De fato, foi: uma praga química, uma praga industrial. Cinzas, cinzas, tudo veio ao chão!

Um terrível e infeliz “acidente”, somos tranquilizados pelo aparelho de propaganda em favor do Progresso, da História, do “Nosso modo de vida moderno”. Um preço, é claro, tem que ser pago – uma vez que os riscos são necessários para garantir um padrão de vida mais elevado, um modo de vida melhor.

O The Wall Street Journal, uma tribuna da burguesia, escreveu em seu editorial: “Vale a pena lembrar que a fábrica de inseticida da Union Carbide e as pessoas que a rodeiam estavam lá por razões imperiosas. A agricultura da Índia tem se tornado próspera, trazendo uma vida melhor para milhões de pessoas no campo, em parte por causa do uso da tecnologia agrícola moderna que inclui a aplicação de inseticidas”. O fato incontestável, de acordo com este sermão, é o reconhecimento universal de que a Índia, como todo mundo “precisa de tecnologia. Cenas de privação humana ao estilo de Calcutá podem ser substituídas tão rapidamente quanto o país puder importar os benefícios da revolução industrial e da economia de mercado do Ocidente”. Logo, apesar dos perigos envolvidos, “os benefícios superam os custos”. (13 de dezembro de 1984)

O Journal estava certo em um aspecto – as razões para a presença da fábrica e das pessoas por lá certamente eram imperiosas: as relações de mercado capitalista e a invasão tecnológica são tão atraentes quanto um furacão para as pequenas comunidades de onde essas pessoas foram desenraizadas. Ele convenientemente deixou de notar, contudo, que países como a Índia não importam os benefícios do capitalismo industrial; esses benefícios são exportados sob a forma de pagamentos de empréstimos para encher os cofres dos banqueiros e vampiros corporativos que leem o The Wall Street Journal para ficarem a par das últimas notícias dos seus investimentos. Os indianos apenas correm os riscos e pagam as despesas; na verdade, para eles, como para toda a massa de pessoas que vivem nas favelas do Terceiro Mundo, não há riscos, apenas a certeza de fome e doenças, apenas a certeza da retaliação dos esquadrões da morte contra quem criticar o estado das coisas como elas estão.

A Revolução Verde é um pesadelo

Na verdade, a miséria ao estilo Calcutá é o resultado da industrialização do Terceiro Mundo e da chamada ‘Revolução Verde’ da agroindústria. A Revolução Verde, que era para revolucionar a agricultura dos países “atrasados” e produzir maiores rendimentos das culturas, foi um milagre somente para os bancos, corporações e ditaduras militares que os defendem. O afluxo de fertilizantes, tecnologia e inseticidas, bem como a administração burocrática, explodiu economias rurais milenares com base na agricultura de subsistência, criando uma classe de agricultores mais ricos dependentes de tecnologias ocidentais para produzir culturas voltadas ao mercado, como café, algodão e trigo para exportação, enquanto a grande maioria das comunidades agrícolas foi destruída pela concorrência de mercado capitalista, fazendo com que essas pessoas fossem enviadas como refugiados para as cidades em crescimento.

Estas vítimas podem ser colocadas em paralelo com o campesinato destruído pela revolução industrial da Europa centenas de anos antes, juntamente com a permanente subclasse dos moradores de favelas desempregados e subempregados que vivem lutando para sobreviver sobre as tênues margens da civilização, ou que se tornaram bucha de canhão das Bhopals, São Paulos e Jakartas de um mundo em industrialização – um processo de industrialização, como todas as industrializações na história, pago com a pilhagem da natureza e dos seres humanos no campo.

A produção de alimentos sobe em alguns casos, é claro, porque a medida é somente quantitativa – alguns alimentos desaparecem enquanto outros são produzidos durante todo o ano, mesmo para exportação. Mas a Subsistência é destruída. Não só a paisagem rural começou a sofrer as consequências da produção agrícola constante e do uso de produtos químicos, mas também as massas de pessoas – trabalhadores na terra e nos casebres lotados crescendo em torno das instalações industriais – têm enfrentado mais fome em um ciclo vicioso de exploração, enquanto o trigo vai para o exterior para comprar mercadorias absurdas e armas.

Mas subsistência também é cultura: suas culturas são destruídas junto com sua subsistência e as pessoas ficam ainda mais presas dentro do labirinto tecnológico. A ideologia do progresso está lá, soando mais alto do que nunca em nome daqueles que têm algo a esconder, para maquiar a pilhagem e assassinato feitos em níveis nunca antes testemunhados.

Industrialização do Terceiro Mundo

A industrialização do Terceiro Mundo é uma história familiar para quem mantém os olhos abertos para o que está ocorrendo. Os países coloniais não são nada mais do que uma lixeira e uma reserva de mão de obra barata para as corporações capitalistas. Tecnologia obsoleta é enviada para lá junto com a produção de produtos químicos, medicamentos e outros produtos proibidos no mundo desenvolvido. O trabalho é barato, há pouco ou nenhum padrão de segurança e os custos menores. Mas a fórmula de custo-benefício ainda permanece: os custos são pagos apenas pelos outros, as vítimas da Union Carbide, da Dow, e da Standard Oil.

Produtos químicos considerados perigosos e que foram proibidos na Europa e nos EUA ainda são produzidos no exterior – o DDT é um exemplo bem conhecido em uma enorme lista desses produtos, tais como os pesticidas não registrados Leptofos, exportados pela Velsicol Corporation para o Egito, que matou e feriu muitos agricultores egípcios no meio da década de 70. Outros produtos são simplesmente despejados nos mercados do Terceiro Mundo, como o trigo contaminado com mercúrio que provocou a morte de até 5.000 iraquianos em 1972, trigo esse que foi exportado pelos EUA. Outro exemplo foi a contaminação arbitrária do lago Manágua, na Nicarágua, por uma fábrica de soda cáustica e cloro pertencente à Pennwalt Corporation e outros investidores, o que causou um grande surto de intoxicação por mercúrio em uma fonte primária de peixes importante para as pessoas que vivem em Manágua.

De acordo com o seu próprio inspetor de segurança, a fábrica da Union Carbide em Bhopal nem mesmo atende as normas de segurança norte americanas, mas um perito das Nações Unidas sobre comportamento corporativo internacional disse ao New York Times, “Toda a lista de fatores não está apta a garantir a segurança industrial adequada” ao longo do Terceiro Mundo. “A esse respeito, a Carbide não é muito diferente de qualquer outra empresa de produtos químicos.” De acordo com o Times, “Em uma fábrica de baterias da Union Carbide em Jacarta, na Indonésia, mais da metade dos trabalhadores tiveram danos nos rins por exposição ao mercúrio. Em uma fábrica de cimento de amianto de propriedade da Corporação Manville, 300 quilômetros a oeste de Bhopal, os trabalhadores em 1981 ficavam rotineiramente cobertos com pó de amianto, prática que jamais seria tolerada aqui.” (12 de setembro de 1984)

Cerca de 22.500 pessoas morrem a cada ano por exposição aos inseticidas – uma percentagem muito maior do que o uso de tais produtos químicos poderia sugerir vem do Terceiro Mundo. Muitos especialistas criticam a falta de uma “cultura industrial” nos países “subdesenvolvidos”, como uma das principais causas de acidentes e contaminação. Mas em uma “cultura industrial” desenvolvida a situação é realmente melhor?

Cultura industrial e praga industrial

Nas nações industriais avançadas existe uma “cultura industrial” (e poucas outras). Lá essas catástrofes têm sido evitadas como os especialistas nos querem fazer crer? Um evento de proporções tão gigantescas quanto as de Bhopal sugere o contrário – neste caso, a poluição industrial matou cerca de 4.000 pessoas em um grande centro populacional. Isso foi em Londres, em 1952, quando vários dias de poluição “normal” juntamente com uma estagnação do ar vieram a matar e ferir permanentemente milhares de britânicos.

Para além desses, há os desastres mais próximos de casa ou da memória, por exemplo, o do Canal Love (ainda vazando nos sistemas hídricos do Great Lakes), ou as contaminações massivas de dioxinas em Seveso na Itália e em Times Beach no Missouri, onde milhares de moradores tiveram de ser evacuados permanentemente. Houve também o despejo da Berlim e Farro no Swart Creek em Michigan, onde C-56 (um subproduto de pesticidas que ganhou fama após o ocorrido no Canal Love), ácido clorídrico e cianureto de fábricas de automóveis de Flint se acumularam. “Eles acham que nós não somos cientistas e nem mesmo educados”, disse um morador enfurecido, “mas qualquer um que foi para a escola sabe que cianeto e ácido clorídrico são as substâncias que foram usadas para matar pessoas nos campos de concentração”.

Uma imagem poderosa: a civilização industrial como um grande e fedorento campo de extermínio. Nós todos vivemos em Bhopal, alguns mais perto das câmaras de gás e das valas comuns, mas todos nós perto o suficiente para sermos vítimas. E a Union Carbide não é, obviamente, um caso à parte – os venenos são despejados pelo ar e pela água, em rios, lagos e riachos, são usados como alimento para os animais que irão para o mercado (vacas loucas em um mundo louco), são pulverizados em gramados e estradas, pulverizados sobre culturas alimentares, todos os dias, em todos os lugares. O resultado pode não ser tão dramático como Bhopal (que quase serviu como uma distração, uma máquina de dissuasão para levar nossas mentes para fora da onipresente realidade que Bhopal verdadeiramente representa), mas é mortal. Quando a ABC News perguntou ao professor de saúde pública da Universidade de Chicago e autor de “The Politics of Cancer”, Jason Epstein, se ele achava que um desastre estilo Bhopal poderia ocorrer nos EUA, ele respondeu: “Eu acho que o que estamos vendo na América é algo muito mais lento – diferente desses grandes vazamentos acidentais que resultam em um aumento excessivo de cânceres ou anomalias reprodutivas”.

Na verdade, malformações de nascimento duplicaram nos últimos 25 anos. O câncer também está em ascensão. Em uma entrevista para o The Guardian, o professor do Hunter College, David Kotelchuck descreveu os mapas do “atlas do câncer” publicado em 1975 pelo Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar. “Mostre-me um ponto vermelho nesses mapas e eu vou lhe mostrar um centro industrial dos EUA”, disse ele. “Não existe qualquer nome de lugares nos mapas, mas você pode facilmente encontrar concentrações de indústrias. Veja, não é a Pennsylvania que está marcada em vermelho, mas sim a Philadelphia, Erie e Pittsburgh. Olhe para West Virginia aqui, há apenas dois pontos vermelhos, o Vale do Kanawha, onde há nove fábricas de produtos químicos, incluindo a Union Carbide, e este trecho industrializado do rio Ohio. É a mesma história para onde quer que você olhe”.

Há 50.000 depósitos de lixo tóxico nos EUA. A EPA admite que 90% dos 90 bilhões de libras de resíduos tóxicos produzidos anualmente pela indústria dos EUA (70% por empresas químicas) é descartado “indevidamente” (embora nós ainda não saibamos o que eles consideram como “bom” descarte). Estes produtos mortais da civilização industrial – arsênico, mercúrio, dioxinas, cianeto, e muitos outros – são simplesmente despejados, “legalmente” e “ilegalmente” onde quer que seja conveniente para a indústria. Cerca de 66.000 compostos diferentes são usados pela indústria. Quase um bilhão de toneladas de pesticidas e herbicidas que compreendem 225 substâncias químicas diferentes foi produzido no ano passado nos EUA (1984), e um adicional de 35 milhões de toneladas foi importado. Cerca de 2% dos compostos químicos têm sido testados quanto aos efeitos secundários. Há 15.000 fábricas de produtos químicos nos EUA, fabricando diariamente morte em massa.

Todos os produtos químicos despejados estão estragando nossa água. Cerca de 3–4.000 poços, dependendo de para qual agência do governo você pergunte, estão contaminados ou interditados nos EUA. Somente em Michigan, 24 sistemas municipais de água foram contaminados, e mil outros locais têm sofrido contaminação grave. De acordo com o Detroit Free Press, “O número final poderia ser de até 10.000 locais” apenas no “país das maravilhas” das águas que é Michigan. (14/4/84).

Os encobrimentos são tão frequentes aqui como no Terceiro Mundo. Um exemplo é o da dioxina; durante o processo de investigações em torno do Agente Laranja, descobriu-se que a Dow Chemical tinha mentido o tempo todo sobre os efeitos da dioxina. Apesar de os resultados da investigação afirmarem que a substância é “excepcionalmente tóxica” e que tem “um enorme potencial para a produção de Clorácne e lesão sistemática”, o toxicologista principal da Dow, V.K. Rowe, escreveu em 1965: “Nós não estamos de forma alguma tentando esconder os nossos problemas sob um montinho de areia. Mas certamente não queremos que surja qualquer situação que possa fazer com que as agências reguladoras se tornem restritivas”.

Hoje o Vietnã sofre uma epidemia de câncer de fígado e uma série de cânceres e problemas de saúde causados pelo uso massivo de Agente Laranja em seu país durante a guerra genocida travada pelos EUA. Os sofrimentos de veteranos norte-americanos são apenas uma gota no balde. A dioxina está aparecendo em todos os lugares de nosso ambiente, até mesmo sob a forma de “chuva tóxica”.

Voltando para a aldeia

Quando as autoridades indianas e a Union Carbide começaram a processar os gases restantes na fábrica de Bhopal, milhares de moradores fugiram, apesar das garantias das autoridades. O The New York Times citou um homem, que disse: “Eles não estão acreditando nos cientistas, nem no governo, nem no Estado, nem em ninguém. Eles só querem salvar suas vidas”.

O mesmo repórter escreveu que um homem tinha ido para a estação de trem com suas cabras “esperando que pudesse levá-las com ele – para qualquer lugar contanto que estivesse longe de Bhopal” (14 de dezembro de 1984). O mesmo homem citado acima disse ao repórter: “Todas as pessoas estão voltando para a aldeia”. O repórter explicou que “ir para a aldeia” é o que os indianos fazem quando há algum problema por vir. Uma antiga e sábia estratégia de sobrevivência pela qual pequenas comunidades sempre renovaram a si mesmas enquanto os impérios de bronze, ferro e ouro, com pés de barro, caíram em ruína. Mas a subsistência foi e está sendo destruída em todos os lugares e, com ela, a cultura. O que devemos fazer quando não há nenhuma aldeia para onde voltar? O que fazer quando todos nós vivemos em Bhopal, e Bhopal está em toda parte? Os comentários de duas mulheres, uma refugiada de Times Beach em Missouri e outra de Bhopal, vêm à mente. A primeira mulher disse a respeito de sua antiga casa, “Este já foi um lugar agradável. Agora, temos que enterrá-lo”. A outra mulher disse: “A vida não pode voltar atrás. O governo pode pagar pelas vidas? Ele pode trazer as pessoas de volta?”

Os vampiros corporativos são culpados pela ganância, pilhagem, assassinato, escravidão, extermínio e devastação. Devemos evitar qualquer sentimentalismo quando chegar a hora deles pagarem por seus crimes contra a humanidade e o mundo natural. Mas nós teremos que ir além disso, até nós mesmos: a subsistência, e com ela a cultura, foi destruída. Temos de encontrar nosso caminho de volta para a aldeia, para fora da civilização industrial, para fora deste sistema de extermínio.

As Union Carbides, os Anderson Warrens, os “especialistas otimistas” e os propagandistas mentirosos precisam terminar, mas com eles é preciso terminar também os pesticidas, os herbicidas, as fábricas de produtos químicos e o modo de vida químico que nada mais é do que a morte. Porque isto é Bhopal, e isto é tudo o que temos. “Este lugar que já foi agradável”, e não pode ser simplesmente enterrado por nós para começarmos tudo de novo em algum lugar ainda intocado. Temos que encontrar nosso caminho de volta para a aldeia, ou como os nativos norte-americanos dizem, “de volta para o cobertor[2]”, e devemos fazer isso sem tentar salvar uma civilização industrial que está condenada, mas sim tentando renovar a vida que deve tomar lugar sobre sua ruína. Ao jogar fora este modo de vida moderno, nós não estamos “desistindo das coisas” ou sacrificando-as, mas sim jogando fora um fardo terrível. Façamos isso logo antes de sermos esmagados.


The Anarchist Library http://theanarchistlibrary.org/library/david-watson-we-all-live-in-bhopal
Traduzido por ctenomys. Publicado em Protopia.