A chamada blindagem parlamentar não é novidade, apenas a atualização de uma lógica que atravessa a história política brasileira desde o nascimento colonial. Desde o primeiro momento em que a Coroa portuguesa instituiu privilégios de casta, separando os senhores da terra de seus escravizados, o direito foi construído como muralha de proteção para os de cima e como punhal contra os de baixo. Hoje, quando um parlamento vota para decidir se seus próprios membros podem ou não ser julgados, apenas repete a tradição das capitanias hereditárias e do foro reservado, com a diferença de que agora se chama democracia representativa. A essência é a mesma: institucionalizar a desigualdade como norma, transformar a lei em barreira, não em caminho. É a manutenção de uma herança que nunca foi rompida, apenas vestida de novas roupas, como se a blindagem fosse apenas um detalhe técnico, quando é, de fato, a reafirmação de que o Estado existe para se proteger contra o povo, não para servi-lo.
Não se deve cair na ingenuidade de achar que essa blindagem é mero excesso ou desvio temporário. Ao contrário, trata-se da função natural de qualquer Estado moderno. Ele não existe para garantir igualdade, mas para regular a desigualdade; não existe para distribuir justiça, mas para assegurar que a justiça não atravesse a linha que protege os donos do poder. O que vemos na blindagem é a lógica do organismo estatal criando anticorpos contra qualquer possibilidade de fissura interna. Se a Justiça pode, em momentos de tensão, ser usada contra parlamentares, é preciso neutralizar essa ameaça. A casa se fecha sobre si mesma e transforma julgamento em decisão secreta, transferência de poder de fora para dentro. É o Estado blindando-se contra si mesmo, numa coreografia que revela sua essência: máquina de proteção de castas. A lei que deveria ser universal revela-se, mais uma vez, uma muralha seletiva. Para o pobre, as grades da prisão; para o político, as grades douradas da imunidade.
Essa prática é mais ampla do que parece. Ela se inscreve no que sempre marcou as elites brasileiras: o medo constante do povo. É o mesmo medo que fez nascer o exército nacional não como defesa externa, mas como polícia interna contra revoltas escravas e camponesas. É o mesmo medo que levou a anistia de militares torturadores, sob o pretexto de reconciliação nacional. É o mesmo medo que mantém intacto o foro privilegiado e os mecanismos de autoproteção. A PEC da Blindagem não inaugura nada: apenas torna explícita a lógica subterrânea de toda a história política brasileira. Um país forjado na desigualdade jamais poderia produzir instituições que não fossem também desiguais. O que se anuncia agora é a honestidade brutal dessa estrutura: o privilégio não será mais escondido sob retórica de igualdade, mas formalizado na Constituição. Mas não se trata de um fenômeno puramente nacional. A lógica de blindagem é universal às instituições políticas centralizadas. Sempre que um corpo governante acumula poder, ele desenvolve mecanismos de defesa contra sua própria responsabilização. Seja pela figura da imunidade parlamentar, seja pelo sigilo de Estado, seja pela multiplicação de instâncias burocráticas que adiam o julgamento até o esquecimento, o efeito é o mesmo: a concentração de poder exige autopreservação, e essa autopreservação se materializa em muros jurídicos e simbólicos. A blindagem é, portanto, um instinto de sobrevivência do poder centralizado. Não há como esperar o contrário de estruturas construídas para governar sobre e contra os outros.
A leitura mais ampla nos mostra que não se trata apenas de um dispositivo técnico-jurídico, mas de uma operação social de naturalização da desigualdade. Quando se aceita que parlamentares tenham mecanismos de autoproteção, reafirma-se que existem duas ordens: a da lei aplicada contra o povo e a da lei escrita para os governantes. Isso mina qualquer pretensão de universalidade, mas fortalece o sistema, porque garante a continuidade da dominação. A blindagem não é um erro que precisa ser corrigido; é uma engrenagem que precisa ser desmontada. Não haverá reforma capaz de reverter sua essência, porque a blindagem é a própria natureza do Estado. O que resta é romper com essa lógica, substituindo as estruturas de privilégio por práticas coletivas de responsabilização direta, onde ninguém possa decidir sobre a impunidade de si mesmo.
A PEC da Blindagem não é um acidente, mas a consequência lógica de uma longa tradição de privilégios que marcam o Estado brasileiro. O nome já denuncia o crime: blindagem, como se fosse necessário proteger os senhores de gravata daquilo que chamam de povo. O que se esconde nesse gesto é a confissão de que o parlamento não confia nem em sua própria legitimidade. Ao votar para decidir se seus próprios membros podem ser julgados, essa casta repete em forma nua e brutal a essência da dominação: a lei não é universal, é muralha. O discurso de que se trata de prerrogativa democrática não passa de verniz: na prática, é privilégio explícito. A lei que deveria limitar o poder transforma-se em sua armadura, e o povo, que deveria ser sujeito da democracia, é rebaixado à condição de espectador impotente.
Não se trata de excesso pontual. O Estado, em qualquer de suas formas, sempre funcionou como máquina de autopreservação das elites. O Judiciário, vendido como instância imparcial, não é senão mais um braço dessa engrenagem, seletivo e cúmplice. A blindagem parlamentar apenas torna explícito o que já era regra silenciosa: para o pobre, as grades da prisão; para o político, as grades douradas da imunidade. O organismo estatal opera como um corpo doente que produz anticorpos não para se curar, mas para prolongar a infecção. Cada mecanismo de imunidade serve para neutralizar a possibilidade de responsabilização real. A PEC não inaugura a desigualdade, apenas confessa que ela é estrutural. É a honestidade cínica de um regime que prefere se blindar a admitir sua falência moral.
Essa lógica não nasce hoje. Vem de longe, e sua genealogia é clara. Na Colônia, a escravidão legalizada foi a primeira blindagem: durante quatro séculos, a violência contra milhões de pessoas negras e indígenas era protegida pela lei, enquanto pequenos delitos cometidos pelos escravizados eram punidos com mutilação e morte. No Império, a Constituição de 1824 garantia foro especial e privilégios processuais aos políticos e juízes, enquanto o voto era restrito aos que tinham renda e propriedade. A própria política imperial foi um escudo contra a participação popular: blindava a casta senhorial da interferência do povo. Na República Velha, a blindagem se chamava “política do café com leite”: alternância oligárquica garantida por fraudes eleitorais, pistoleiros e massacres de rebeliões como Canudos e Contestado. O Estado, ali, não hesitava em exterminar populações inteiras para garantir que os donos da terra seguissem intocados.
A ditadura militar atualizou o mesmo mecanismo em escala ainda mais ampla. Quando promulgou a anistia de 1979, blindou torturadores e assassinos com o selo da lei. Chamou-se reconciliação nacional o que foi, de fato, a maior blindagem da história recente: perdão coletivo aos crimes do regime, ao mesmo tempo em que perseguidos políticos seguiam desaparecidos. A democracia que se seguiu nasceu marcada por essa impunidade institucionalizada. Não é por acaso que até hoje militares podem zombar dos mortos sem risco real de punição. O pacto da transição foi um pacto de blindagem. E no período recente, vimos novas camadas: o foro privilegiado que protege parlamentares por décadas, os recursos intermináveis que arrastam processos até a prescrição, a seletividade que transforma investigações em armas políticas, nunca em justiça equânime.
A PEC da Blindagem apenas dá forma explícita a essa linha histórica. Não é novidade, é tradição. A essência é sempre a mesma: os de cima se protegem, os de baixo são punidos. A lei nunca foi neutra, sempre foi escrita como fortaleza contra a plebe. O que hoje se formaliza em votação secreta no parlamento já existia nos confessionários coloniais, nos gabinetes imperiais, nos conchavos oligárquicos, nas anistias militares. O Estado brasileiro nasceu blindado, cresceu blindado e agora apenas confessa, em letras constitucionais, a sua verdadeira função. A blindagem não é novidade: é o DNA do Estado brasileiro.
E por isso, não basta se indignar com mais esse capítulo. A crítica não pode cair na ilusão liberal de que bastaria “fortalecer as instituições”. Instituições fortes são precisamente o que permite que a desigualdade se reproduza sob o nome de legalidade. A solução não é corrigir a blindagem, mas desmontar o aparato que a torna possível. Não se trata de moralizar o parlamento, mas de abolir o próprio princípio que permite a existência de uma casta legisladora acima do povo. Não se trata de pedir juízes mais justos, mas de dissolver o poder que confere a juízes e parlamentares o direito de decidir sobre a vida dos outros. A resposta só pode ser outra: uma sociedade em que a responsabilidade não seja mediada por muros institucionais, mas vivida diretamente, em assembleias abertas, em práticas de solidariedade, em comunas de iguais.
A blindagem deles é muro. A nossa, quando despertarmos, será corpo coletivo. Eles se escondem atrás de portas blindadas, enquanto o povo segue nu diante da polícia, do desemprego e da fome. Mas cada muro erguido por eles é também confissão de fraqueza. É o cadáver que se perfuma, é o castelo que desmorona e reforça muralhas em vão. A história já mostrou que nenhuma blindagem resiste ao momento em que o povo rompe sua condição de espectador e se faz protagonista. Quando isso acontecer, não haverá prerrogativa, não haverá foro, não haverá sigilo capaz de protegê-los. Porque os muros cairão, e cairão de uma vez.
A grande ironia é que enquanto parlamentares se blindam em conluios explícitos, há quem corra para aplaudir ministros do Supremo como se fossem guardiões heroicos da democracia. Mas que democracia é essa que eles defendem? É a democracia mutilada, restrita ao voto de quatro em quatro anos, enquanto a vida cotidiana segue governada pela fome, pelo medo e pela desigualdade. O Supremo não é defensor do povo, mas administrador da ordem. Hoje, a narrativa veste toga e se apresenta como resistência contra o golpismo, mas na prática cumpre a função de sempre: preservar o equilíbrio entre as elites, garantir a continuidade do status quo e impedir que a pressão social transborde em ruptura. E aqui a esquerda, especialmente aquela ancorada no funcionalismo público e na social-democracia, presta o serviço mais fiel ao sistema: transforma o teatro constitucional em epopeia moral. Fala em “fortalecer as instituições” como se as instituições fossem neutras, quando a história mostra que sempre se fortaleceram contra os pobres. Alimenta a fé no Estado como se ele fosse remédio, quando é o próprio veneno. É uma esquerda domesticada, confortável no gabinete, que chama programas sociais de políticas de Estado, mas jamais ousa questionar por que os mesmos cofres financiam bilionários com isenções e juros infinitamente maiores do que qualquer auxílio dado ao povo.
Do outro lado, a direita não se esconde atrás de sentimentalismos. Ela leva a luta de classes a sério, embora nunca a nomeie como tal. Demoniza pobres que recebem auxílio, porque precisa de inimigos internos para justificar cortes e austeridade. Constrói a narrativa da “responsabilidade fiscal” para legitimar a transferência permanente de recursos públicos aos rentistas. Usa palavras como “empreendedorismo”, “livre mercado” e “modernização” como véus de uma violência de classe sistemática. E é eficaz porque sua brutalidade se apresenta como racionalidade econômica. O que na verdade é roubo institucionalizado, aparece como inevitabilidade científica. É o discurso do Estado mínimo para os pobres e Estado máximo para os ricos: mínimo quando se trata de garantir saúde, educação, moradia; máximo quando se trata de socorrer bancos, proteger latifúndios, perdoar dívidas de grandes conglomerados. A direita não disfarça sua missão: administra com frieza o corte da carne do povo, enquanto reforça os muros dourados das elites.
Mas a crítica não pode poupar a própria sociedade. Essa mesma sociedade que repete o mantra “quem quer, trabalha”, é a que fecha os olhos para o fato de que bilionários vivem do não-trabalho. Enquanto se indigna contra o pobre que recebe R$ 600 de auxílio, aceita sem pestanejar que banqueiros embolsem R$ 600 bilhões anuais em juros da dívida pública. Ensinaram-na a chamar de esmola o pouco que alivia a fome e a chamar de mérito o muito que sustenta a ociosidade das elites. Essa sociedade é cúmplice porque reproduz a ideologia do opressor, porque acredita que talvez um dia também vá “subir de classe” e, nesse dia, também precisará de sua blindagem. Por isso defende o privilégio dos de cima como se fosse um sonho de ascensão, e odeia o direito dos de baixo como se fosse ameaça. É assim que a blindagem se consolida: não apenas no parlamento, não apenas no Supremo, mas no imaginário social que legitima diariamente a desigualdade.
A blindagem não se sustenta apenas em leis e parlamentos; ela se sustenta no senso comum que se repete nos bares, nas igrejas, nos programas de TV e nas redes sociais. A cada vez que alguém diz “o Bolsa Família transforma o povo em preguiçoso”, está reproduzindo a narrativa que criminaliza a sobrevivência. A cada vez que alguém compartilha um meme ridicularizando quem recebe auxílio, mas não ousa comentar o lucro bilionário dos bancos, está servindo de correia de transmissão da ideologia. Não se trata de ignorância pura, mas de uma pedagogia de décadas, uma pedagogia que ensina o pobre a odiar o pobre e a venerar o rico. O apresentador de televisão que grita contra “vagabundos” que vivem de auxílio é o mesmo que silencia diante dos perdões fiscais de dezenas de bilhões concedidos a grandes empresários. A “revolta” seletiva se repete como mantra: contra quem recebe R$ 600, ódio; contra quem embolsa bilhões com isenções e subsídios, silêncio cúmplice.
Esse mecanismo aparece de forma quase caricata em debates públicos. Quando um governo aumenta o auxílio, a pergunta que circula é: “quem vai pagar essa conta?”. Mas quando o Estado injeta R$ 400 bilhões para salvar bancos ou concede renúncias fiscais ao agronegócio exportador, a pergunta desaparece. Nas redes sociais, vemos diariamente a circulação de frases como “quem quer, trabalha”, “o povo se acomoda com esmola”, “assistencialismo destrói o país”. O curioso é que ninguém aplica esse mesmo raciocínio aos herdeiros que vivem de dividendos isentos desde 1995. Ninguém ousa dizer que os bilionários estão acomodados em sua renda de não-trabalho. Ao contrário, eles são celebrados como exemplos de sucesso, estampam capas de revistas, dão palestras motivacionais. A ociosidade dos ricos é batizada de empreendedorismo; a sobrevivência dos pobres é amaldiçoada como vagabundagem.
E essa inversão de valores é cultivada também pela educação formal, pela moral religiosa e pelas falas cotidianas dentro das famílias. Quantas vezes não se escuta em casa: “estude para não virar vagabundo”? Esse “vagabundo” nunca é o banqueiro, o rentista, o herdeiro que vive da fortuna da família. O “vagabundo” é sempre o vizinho que recebe auxílio, o catador de recicláveis que preferiu o benefício ao subemprego, a mãe solo que depende de programa de transferência de renda. Na igreja, o pastor repete que “Deus ajuda quem cedo madruga”, reforçando a ideia de que a salvação está no trabalho incessante, nunca na coletividade ou no questionamento da exploração. Nos jornais, os colunistas alertam contra “populismos” e “irresponsabilidade fiscal” quando se trata de políticas sociais, mas jamais escrevem editoriais contra a farra das isenções para empresas. A blindagem, portanto, não é apenas jurídica ou fiscal: é mental, cultural, moral. Ela se enraíza no inconsciente coletivo, moldando a percepção de justiça para que a desigualdade pareça natural. E é isso que torna o sistema tão resistente: ele não depende apenas da força da lei, mas da adesão voluntária de milhões que o reproduzem em suas palavras, em seus memes, em seus pequenos julgamentos cotidianos.
O Brasil não é apenas desigual: ele é um laboratório de como blindar os ricos de qualquer ônus social. Enquanto em países como Estados Unidos, França e Alemanha há impostos progressivos sobre grandes fortunas, sobre heranças vultosas e sobre lucros de capital, aqui a riqueza é tratada como divindade intocável. Nos EUA, por exemplo, heranças acima de US$ 13 milhões pagam até 40% de imposto. Na França, dividendos são tributados em até 30%. Na Alemanha, a taxação sobre grandes fortunas chega a 45%. No Brasil, nada disso existe: dividendos são isentos, heranças acima de milhões pagam apenas 4% ou 8% em alguns estados, e a alíquota máxima de imposto de renda mal arranha 27,5%. Para um bilionário, isso é piada. Esse arranjo não é acidente, é projeto: manter o país como paraíso fiscal interno para suas elites. Não é à toa que grandes fortunas estrangeiras migram para cá via holdings e fundos, aproveitando a benevolência tributária nacional. O resultado é um Estado que extrai o máximo dos pobres e devolve o mínimo, enquanto garante aos ricos o luxo de viver eternamente do rendimento acumulado.
E aqui está a contradição mais obscena: se a elite pode viver do não-trabalho, por que os milhões de pobres não podem? Bilionários vivem do juro da dívida pública, sustentada por impostos que recaem sobre consumo básico. Herdeiros vivem de dividendos isentos, sustentados pelo trabalho de empregados que pagam proporcionalmente mais impostos que seus patrões. Bancos vivem de taxas abusivas e empréstimos subsidiados pelo Estado, amparados em leis que os blindam contra riscos. Isso é nada menos que uma renda garantida – só que para quem nunca precisou trabalhar. Mas quando um pobre recebe R$ 600 de auxílio, a sociedade se indigna, brada contra “vagabundos” e repete o mantra da meritocracia. Por que um herdeiro multimilionário pode viver de renda sem trabalhar, enquanto um miserável é chamado de parasita por receber auxílio para sobreviver? A resposta é simples: porque a ideologia dominante naturaliza o privilégio e criminaliza a sobrevivência.
Essa é a maior blindagem: a cultural. Ensinaram o povo a odiar o pouco que alivia a fome e a venerar o muito que garante a luxúria. O Bolsa Família é tratado como esmola, mas o pagamento de mais de R$ 600 bilhões anuais em juros da dívida pública – dinheiro que sai do imposto de todos para cair no colo de rentistas e bilionários – é tratado como “obrigação do Estado”. Poucos lembram que em 2022, o auxílio emergencial custou R$ 292 bilhões, metade do que se gastou com juros no mesmo ano. Em outras palavras: quando é para salvar os pobres, o gasto é visto como peso insustentável; quando é para sustentar a renda do não-trabalho dos ricos, o gasto é visto como normalidade. Esse duplo padrão é a essência do capitalismo periférico brasileiro: um sistema que criminaliza a sobrevivência da maioria e santifica a ociosidade da minoria.
A conclusão é inevitável: o Brasil não é apenas uma democracia mutilada pela blindagem jurídica dos parlamentares. É uma economia sequestrada pela blindagem fiscal dos ricos e uma cultura envenenada pela blindagem ideológica que transforma a vítima em culpado e o opressor em benfeitor. Se aceitarmos que bilionários tenham o direito de viver de rendas, heranças e dividendos sem impostos, então não há razão moral para negar aos pobres o mesmo direito: o de viver sem trabalho forçado, sustentados por uma sociedade que já tem riqueza suficiente para todos. Mas a sociedade prefere manter a farsa: proclama que é vergonhoso não trabalhar quando se é pobre, e chama de sucesso não trabalhar quando se é rico. É essa a perversão central, e enquanto ela não for rompida, qualquer discurso sobre democracia, justiça ou igualdade será apenas a mais recente blindagem de um sistema construído para se proteger da vida.
Se os ricos têm o direito de viver do não-trabalho, então nada mais justo que universalizar esse direito como base de uma vida livre. O que hoje aparece como privilégio parasitário de herdeiros e rentistas deveria ser, em uma sociedade emancipada, a condição de todos. O não-trabalho não como ociosidade vazia, mas como liberdade de criar, de amar, de cuidar, de experimentar a vida sem a chantagem da fome e da miséria. Se já existe riqueza suficiente para sustentar o ócio luxuoso de bilionários que nada produzem, existe também para garantir o descanso, a dignidade e a abundância para milhões que carregam o peso do mundo nas costas. O que se chama hoje de assistencialismo, sob olhares de desdém, nada mais é do que um vislumbre daquilo que deveria ser direito universal: viver sem ser escravo do salário, sem ser refém da exploração. Nesse horizonte, não se trata de estender o privilégio dos ricos, mas de dissolver a própria noção de privilégio, substituindo-a pela partilha. O não-trabalho deixa de ser sinal de preguiça e torna-se sinal de libertação, pois o trabalho forçado é que sempre foi a marca da servidão. E o que hoje é blindagem das elites transforma-se, finalmente, em blindagem coletiva: não contra a justiça, mas contra a volta da exploração. Uma sociedade assim não precisaria de parlamento blindado nem de tribunal travestido de democracia – porque a vida em comum seria a verdadeira instituição, aberta, viva, sem muros.