Título: Anarquismos e Sociedade de Controle
Notas: Edson Passetti é professor no Depto. Política, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e coordenador do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) PUC-SP.

Os investimentos na produtividade do corpo se aperfeiçoam e acumulam: na sociedade de soberania castiga-se, na disciplinar busca-se utilidade econômica e docilidade política, na de controle exige-se participação e fluxo inteligente. Efeitos inibidores de resistências também não cessam de trafegar entre o direito de morte, o de deixar viver e o de fazer viver.

O século XIX colocou as possibilidades para a democracia e o socialismo; o seguinte se encerrou confirmando a arrogância capitalista, seus valores universais e o imperativo dever do planeta globalizado em vir a ser democrático. O socialismo de Estado, ou autoritário, tornou-se realidade no século XX, confirmando a crítica anarquista que o via como forma ditatorial de existência, solução inviável para a superação das desigualdades e, por conseguinte, com vida breve. Os anarquismos, nos últimos anos do século passado, viram-se novamente atuais e algumas partes começaram a reparar instintivamente numa filosofia procedente de autores como Deleuze e Foucault.

Suas contundências e generosidades foram sendo notadas pelos anarquistas[1]. Contudo, deve ser feita uma ressalva elementar. Foucault fez questão de afirmar que não se comprometia com um estado civil. Se sua obra pode ser compreendida como inventora de liberdades, Foucault não quis e não fez por ser apreciado como um anarquista, muito menos como um liberal[2]. Deleuze, por sua vez, caracterizou o fim do devir revolucionário coletivo, enfrentando o equívoco socialista. Não se afastou das análises econômicas de Marx, mas como um Bakunin contemporâneo[3], não abriu mão da liberdade em busca da afirmação da igualdade. As autorias de Foucault e Deleuze remetem-nos, diante da encruzilhada, a não nos acomodarmos pelos percursos utópicos direcionados a um sujeito autônomo. Pelo contrário, a luta contra o assujeitamento faz com que os anarquistas deles se aproximem, restituindo coexistências e diversidades analíticas que afirmem subjetividades libertárias. Ao assim procederem, os anarquistas não somente se atualizam, mas libertam-se de necessidades fundamentais. Pelo desmedido ato de pensar e atuar, estes autores legam aos anarquistas similitudes, proximidades, desassossegos, para um saber que de tempos em tempos foi declarado morto.

Nada mais desesperador para o regime da verdade verdadeira do que após declarar a morte e certificá-la por meio de tratados filosóficos, econômicos e humanitários, ver-se obrigado a reconhecer não ter havido morte no que permanecia vivo. A clínica da verdade, então, afirma sua pertinência com base no erro eventual do diagnóstico e propicia aos seus elaboradores e defensores outras prerrogativas pautadas na incerteza perante o despertar do coma. Todo o dito e escrito é, então, redimensionado como algo derivado da apatia, estado de semi-vida e sinecura transitória.

A vida dos anarquismos não se pronuncia por continuidades. Eles reaparecem surpreendendo pela atualidade da análise diante das eloqüentes formulações teóricas, os projetos políticos, o definitivo conceito, movimentando pessoas, afirmando seu nomadismo.

Os anarquismos não ficaram desatentos à clínica. Nômades e avessos ao heroísmo, suas autorias sistematizam acontecimentos, revolvem suas noções, instabilizam suas próprias certezas transitórias. É certo que nos anarquismos há um projeto humanista. Do XIX até a metade do XX, eles muito poucos se distanciavam desta meta para atingir a maioridade buscando a emancipação humana. Max Stirner e Friedrich Nietzsche já tinham levado ao limite a crítica ao projeto humanista descrevendo sua falta de limiares. Mas, diante da história da certeza, da utopia e da crítica aos efeitos da era dos direitos, as quimeras da igualdade, da liberdade e da fraternidade requeriam nudez. Para os anarquistas, verdadeiramente maior é o presente, vida como uma existência pautada na crítica à autoridade centralizada do poder pastoral ao poder de Estado. Alheios ao mito da fênix, os anarquismos estão presentes nos escombros dos regimes tanto quanto nas liberdades inventadas no cotidiano; eles não renascem de tempos em tempos, apenas existem.

Os anarquismos não saem das profundezas para atingirem a superfície em determinadas épocas. São constituídos do mesmo magma gelatinoso e febril que alimenta a Terra, que constrói sua crosta e vida. São rizomas na vegetação, formando a parte da superfície que se dilata por meio das lavas sobrepostas à crosta ou a novas superfícies que emergem das erupções oceânicas. Aprenderam certas leis da natureza relativas a alimentação e abrigo, discernem a igualdade de todos fundada na ignorância e superada pela linguagem entendida como tradução, invenção de povos. Preferem ser nômades sobre a Terra, encarando os céus.

Max Nettlau, seu mais cuidadoso arquivista, remete os anarquismos às experiências em longínquas fases da nossa existência para atualizar suas virtualidades em invenções de liberdade diante da autoridade centralizada. Jamais haverá liberdade absoluta ou dissociação completa da autoridade. Não há ciência universal porque não há o homem universal, explicitaram Proudhon e Bakunin, seus dois mais importantes sistematizadores no XIX. Contra a Idéia ou o Espírito, interpõem por meio da análise o fato repleto de forças, as quais mediante situações estratégicas que o Estado pretende controlar e dirigir, lado a lado com a religião e o capital, afirmam práticas libertárias de vida. Não há espírito absoluto ou consciência superior da verdade capazes de comandar libertários. O desejo de uma sociedade livre e igualitária é também a certeza que nunca haverá uma sociedade anarquista, imaginação que anularia a própria existência dos anarquismos.

Seu projeto humanista repousa e se agita no interior de um discurso que tem por finalidade realizar a emanciapação humana diante da emancipação política que situa os indivíduos num sono hipnótico de igualdade política e democracia que fazem progredir o regime da propriedade.

A vida somente pode ser estudada por meio de séries que dêem conta dos sofrimentos. É por meio do método serial, como propunha Proudhon, que nos afastamos de teorias, para abordar os elementos na série em seus desconfortos, conflitos e tensões, pacificados em políticas por meio dos conceitos de povo, nação e Estado. Um Estado, lembra Errico Malatesta, é sempre cobrança de impostos, polícia, exército, prisões e também religiões. Uma força que atua sobre as relações sociais, econômicas, culturais e intelectuais. Força que também está presente no que chamamos por políticas governamentais de saúde, educação, transportes, comunicações e, principalmente enquanto defesa de direitos de empresários diante dos direitos de trabalhadores. Onde houver Estado haverá um poder de autoridade centralizada disseminado pela sociedade. Forma-se, assim, uma rede de poderes, deveres e assujeitamentos.

É impossível definir o que é anarquismo. Ele é um fluxo de singularidades que coexistem. Por vezes, pretende-se afirmar que ele se ordena com base em relações de afinidades, forma de caracterizá-lo com base no revolucionarismo emergente do discurso emancipatório, levado a cabo desde Bakunin. Se as singularidades são redesenhadas por meio das semelhanças fazendo aparecer o perigo iminente da força hegemônica, diante de tal situação justificada pelas contingências da história, antes que qualquer condutor apareça, o próprio movimento se pulveriza, negando a pretensa unificação por meio das afinidades. Não há como negar que uma perspectiva reformadora ou pacificista de Godwin e Proudhon, afirmando as revoluções como forma de restauração da autoridade central, exige mais micropolíticas que rupturas calcadas em movimentos sociais como afirmam suas partes revolucionaárias. Contudo, esta possível demarcação distintiva em duas séries, anula a pretensão à afinidade como conceito capaz de dar conta das relações entre estas duas séries por onde caminham os anarquismos. Tal limite constrange limiares, opõe vetores e instaura efeitos de hegemonia. Há de se concordar que tal disposição fez do bakunismo o grande motivador dos anarquismos, da revolução russa à guerra civil espanhola e ao maio de 68. Em especial, no Brasil, por meio das influências de Bakunin, Malatesta e Kropotkin, organizaram-se as mobilizações contundentes do início do século passado e persistem até hoje no seu inteiror, mas reduzir os anarquismos a um efeito de hegemonia, no caso o bakunismo, é perder de vista a coexistência nas singularidades. É entender suas existências a partir de critérios de política de Estado, de soberania, estudá-los, demarcá-los e julgá-los por meio de teorias.

Há na coexistência um fato recorrente que interpõe ao sonho humanista, o confronto, o debate, a exigência de libertar-se da tolerância, a atitude voltaireana e religiosa. Não há sossego nos anarquismos, esteja ele convulsionado pelo acontecimento histórico ou pela vivência. Coexistem diferenças na associação de pessoas livres exercitando subjetividades libertárias. Não há Bakunin, por exemplo, que não esteja atravessado por Proudhon; não há cientificismo em Kropotkin que não esteja abalado por Proudhon; não há revolucionarismo livre de pacifismo; não há esperança na massa que não esteja desfeita pelo seu autoritarismo. Não há, enfim, coletivismo que não esteja interceptado por individualismo. Portanto, uma nova contraposição, agora, entre coletivismo e individualismo, seria inócua. Os anarquismos não pretendem dissociá-los e ao mesmo tempo preservarem suas liberdades diante da condução burocrática pelo Estado, distinguindo o socialismo libertário do autoritário de Marx e Engels. O que era um sonho, uma utopia, para Marx, após a extinção do Estado é imprescindível no imediato para os anarquistas para que ocorra a abolição do Estado[4], ou seja, a abolição da autoridade centralizada ocorre por meio de relações horizontalizadas estabelecidas entre os envolvidos.

O principal problema reside na autonomia do indivíduo. Os anarquismos individualistas e/ou coletivistas afirmam miríades de associações federadas perante a iminência de uma possível sociedade totalizadora. Fundam-se num direito de secessão, com base num contrato sinalagmático e comutativo, como formulou Proudhon, em um dos seus derradeiros escritos, Do princípio federativo. Nem regime de deveres para uma entidade, nem direitos para quem se governa; apenas afirmação de um sujeito soberano. Eis o problema! Uma resolução simples e imediata teria como resposta apontar para a contradição entre os termos. Se no século XVI, Etienne de la Boétie foi sagaz ao caracterizar a antinomia servidão voluntária, o efeito no discurso anarquista do século XIX respondendo à sujeição e à servidão com soberania do sujeito apenas pretende afirmar, ainda que involuntariamente, a pertinência da soberania do sujeito emancipado.

Mas qual o sentido em ser soberano sob condições de igualdade? Não há por que pensar em soberania, na medida em que deixa de haver súditos. Se os anarquismos não esperam pelo futuro, mas operam pelo presente, fazendo existir vida livre e igualitária no presente diante de uma política da qual não se aparta, a vida somente pode ter existência libertária mediante a abolição do súdito[5]. Abolir a condição de súdito é por si a abolição da soberania, seja ela centralizada no Estado ou no indivíduo autônomo. Não se trata de inverter sinais, do Estado para o sujeito autônomo, o que seria algo semelhante ao que faz acontecer a continuidade da democracia no capitalismo por meio da representação renovada por eleições e exercício do sufrágio universal.

Max Stirner, um anarquista nos anarquismos passa a ser uma referência heterotópica para os libertários, tanto quanto as reflexões sobre Foucault e Deleuze. O devir revolucionário de cada UM, proprietário de si, vibra e existe pelo outro, numa igualdade entre diferentes únicos e que independe de um convencimento íntimo para o fazer acontecer pela razão do outro. Dois, que são sempre cada UM, únicos proprietários de si existindo e associados pela razão outro, em conflito, tensão e debates. Os anarquismos atuam, vivem e afirmam não tanto pelo princípio da afinidade, mas pelo da coexistência. É no seu interior que a pretensa autonomia do sujeito se encontra sob tensão diante de cada luta contra o assujeitamento.

Numa sociedade de controle que exige participação como forma de inibir resistências[6] os anarquismos precisam da razão do outro libertário. Se quiserem responder ao que estão fazendo de si, terão que enfrentar os efeitos da crítica à autonomia do sujeito.

Misérias da democracia

No século XIX, Proudhon e Max Stirner, antecipando-se a Nietzsche anunciavam a democracia como religião moderna do rebanho. Desde a década de 1840, afirmava-se a contestação aos direitos que nos quer direitos, ordeiros, ordenados, devedores e acalmados, por meio, inicialmente, da crítica ao contratualismo e à emancipação política para anunciar o ciclo socialista, no qual Proudhon e Marx, afirmaram dupla sinalização.

De início um Marx libertário, em A questão judaica e em Crítica à filosofia do direito de Hegel, não admitia o socialismo por meio da ocupação do Estado, posição que passará a defender no final da década, em O manifesto comunista, e assumia a crítica de maneira análoga à de Proudhon. Ambos consideravam o mundo dos direitos como sendo o dos deveres para com a propriedade e seus dispositivos de segurança que caracterizam o homem genérico. A igualdade política cujo apogeu se cristalizava com democracia, constituição e sufrágio universal, perpetuava a desigualdade econômica fomentada pelo Estado, o capital e a religião. Tratava-se apenas de um novo instrumento de dominação. O cidadão encontrava-se sob o comando do homem burguês. O verdadeiro Homem, somente apareceria mediante a abolição do Estado.

O Estado investia numa política moderna organizada por meio de leis e do direito como veiculador de relações entre os súditos. Segundo Foucault, estava em jogo regular a população por meio da biopolítica em busca de investimento produtivo e dócil do corpo. Os liberais se orientavam pelo princípio que se governa sempre demais e encontravam no utilitarismo uma forma de governamentalidade propícia à redução da atuação do governo, pretendendo uma tecnologia de governo pautada na regulamentação jurídico-política como resposta quer à sabedoria ou à moderação dos governantes. O liberalismo, segundo Foucault, no século XIX, não seria mais do que uma reflexão a respeito da prática governamental. Os socialistas, por sua vez, divididos em libertários e autoritários, exigiam abolição ou extinção do Estado. Para os marxistas o Estado seria o meio para afirmar o direito da verdadeira maioria, o agente para investimento verdadeiro em biopolítica e utilidade do corpo em nome do coletivo. A conquista do Estado seria a realização de uma consciência superior como meio para superar a desigualdade e o socialismo autoritário a plena realização da prática governamental. Contudo, para os anarquistas, o problema não residia nem no governar demais, nem no governo total. Diante da redutora regulamentação jurídico-política liberal ou do governo total, dos dispositivos individualizantes ou totalitários indissociáveis do Estado moderno como sublinhou Foucault, formas de continuidade da biopolítica e da utilidade econômica e docilidade política em nome de um soberano centralizado, os anarquistas propunham a associação federativa, com base numa sociabilidade avessa a redutores ou maximizadores de Estado. Era preciso inventar uma vida pautada em novos costumes alheios ao castigo, à vingança, aos direitos sociais.

A saúde do corpo por meio do investimento disciplinar e de biopolítica que atravessavam as relações sociais faziam da cidadania a forma eficaz e eficiente de promover a fácil condução com base na abdicação da vontade à razão da representação. Nós, nos encontrávamos em asilos, reformatórios, manicômios, prisões, em casamentos, fábricas, casernas, escolas, partidos e sindicatos, lugares de extração de energias produtivas e de reprodução; espaços de contenção mas também de desassossego, do intempestivo e do surpreendente. O investimento na inibição das resistências pela cidadania substituiu um direito fundado no perdão herdado do direito canônico e fez aparecer um direito por deveres em nome de todos os homens livres. O soberano não era mais o herdeiro mas todos, o povo, instituindo nova tradição. Nós tanto anarquistas como socialistas autoritárias, sabíamos que não éramos todos e queríamos ser todos. Ainda que, liberais e socialistas autoritários estivessem voltados para afirmar o soberano seja como exercício de governo que toma a população como sujeito de necessidades, aspirações e objeto pelo Estado pretendendo melhorar ou realizar a verdadeira sorte desta população, numa continuidade que ia da monarquia, passando pela democracia até o socialismo, os anarquistas procuravam atingir seu limite ou o fim desta continuidade ao investirem num sujeito soberano, autônomo, a partir de práticas cotidianas, de amor, arte, educação e economia. Os anarquistas são, portanto, diante da continuidade da teoria da soberania, seu limite e limiar imediato. Estabelecem vínculos com o socialismo autoritário no sentido que este atribui ao fim da história, com a socialização dos meios de produção, mas trata-se apenas de uma afinidade tangencial. Para eles a tese da extinção do Estado, após a tomada do mesmo pelo partido da revolução e sua vanguarda, planificando a economia por meio da utilização dos dispositivos repressivos e de direitos contra a classe antagonista, institui uma administração das coisas, uma nova forma de dominação, ou seja, um idealismo que se pretende realista e concreto. Estava claro para os anarquistas que a administração das coisas supõe governo de homens e, por conseguinte, nova forma de dominação.

Democracia e socialismo, desde o século XIX, estabeleceram tensões em direção ao redimensionamento do nós em todos. As respostas socialistas, principalmente dos anarquistas voltavam-se para liberdade de amar, educar seus filhos com base no talento de cada um, federalizar a vida livre do contrato que supunha deveres, como se fosse possível acontecer um indivíduo livre e autônomo. A emancipação do direito e da exploração por meio de revoluções e pacifismos marcaram as resistências libertárias: o alvo era o Estado e todas as situações em que uma autoridade centralizada pudesse se constituir.

A política como guerra prolongada por outros meios se afirmou nas democracias por meio do princípio da amizade transcendental pelo povo ou humanidade, atuação em parlamentos e partidos que elegem a todos como inimigos (sabendo que a coalizão é apenas parte de um interesse circunstancial). A este tipo de integração os anarquistas se recusaram e não se prestaram a abdicar da sua vontade em nome da representação. Diante da tomada do Estado como meio para a vida igualitária para todos, criaram lutas travadas no dia a dia. Recusaram a consciência superior, tanto dos investidores em produtividade em nome do direito, como dos deuses investidores em produtividade em nome do socialismo, de todos. As resistências anarquistas se queriam menores diante da democracia e do socialismo autoritário, mas também não deixavam de buscar a maioridade como utopia. Contudo, para os anarquistas a democracia sempre se opôs a comunismo. Trata-se de uma forma de governo na qual é possível a passagem da luta por constituição para a luta por federação e anarquia. O comunismo contemporâneo, por sua vez, não passa de um revival de antigos patriarcalismos. Seu destino será sempre ditaduras e, neste sentido, se assemelha à monarquia, ou seja, governo pautado na individibilidade do poder de Estado, do chefe, do pai. A democracia é ao mesmo tempo para os anarquistas um forma da miséria a ser combatida que se funda na ilusória igualdade de todos e, por outro, forma de governo pautada na divisão de poderes de Estado que beneficia uma experiência de liberdade para além do limite instituído pelos governos como forma de por um fim à desordem e melhorar as condições de vida da população. O Estado moderno, com mínima ou máxima intervenção, sob o liberalismo ou o socialismo, tanto faz, é em si forma acabada do dominação que conta com a continuidade da constituição dos súditos pelos próprios súditos. Não há democracia que salve o socialismo de Estado.

Misérias do controle

A democracia no capitalismo requer a continuidade da miséria, afirmou Gilles Deleuze, com precisão. No século XX, sob democracias e ditaduras, os anarquismos resistiram. Anarquizaram as centralidades, mas gradativamente foram deixando de anarquizar a si próprios; também pareciam estar sendo apanhados, consagrando uma doutrina.Contudo, resistiram às redes de poderes e reapareceram nos acontecimentos de 1968 quando tudo levava a crer que suas práticas tinham sido esgotadas e superadas na Guerra Civil Espanhola.

No interior da sociedade de controles contínuos, os lugares são redefinidos por fluxos. O investimento não é mais no corpo propriamente dito; interessa agora é extrair o máximo de energias inteligentes, fazer participar, criar condições para cada um se sentir atuando e decidindo no interior das políticas de governos, em organizações não-governamentais e na construção de uma economia eletrônica. As relações interestatais deixam de ser preponderantes no âmbito internacional, cedendo lugar a relações transnacionais. Os asilos, as prisões, os hospitais, os manicômios, as escolas, o sexo, as crianças são atravessados por direitos. Sociedade de plenos direitos. Mundo da modulação, da exigência de formação constante, de controle contínuo, de bancos de dados no qual a cifra é a senha, caracterizou assim Deleuze, a nova configuração que ultrapassa sem suprimir por completo a sociedade disciplinar exaustivamente descrita por Foucault segundo o molde, a fábrica, a escola, o exame, a assinatura, a palavra de ordem. Estamos diante de uma sociedade em rede exercida por protocolos e interfaces, uma sociedade de diplomacia e guerra entre uniões de Estados de um lado, e guerras que pleiteiam o estatuto de Estado-nação por parte de etnias que pretendem afirmar suas especificidades. Uma sociedade em transição opondo o que ela superou e seus próprios vestígios. Um estágio superior de democracia diante de formas tradicionais de combinação entre razão moderna e religião, uma estranha e eficaz convivência entre democracia e teocracia.

A sociedade eletrônica, pautada em fluxos que se atualizam, confirmam a desterritorialização não só do capital, já sobejamente conhecida, mas também dos trabalhadores ou parte deles libertados do confinamento territorial que impunha o Estado-nação até a fase do imperialismo. Ela traz para dentro de si todas as formas possíveis de saberes cujas verdades se refazem por meio da confiança aos protocolos. É preciso reformar constantemente. No regime de controle não se deve ter nada acabado mas, ao contrário, ele se fortalece por meio da noção de inacabado convocando a todos a participarem ativamente da busca por maior produtividade e confiança na integração. Não se pretende mais docilizar, apenas criar dispositivos diplomáticos de construção de bens materiais e imateriais que contemplem a adesão de todos. Comunicar intensamente e instantaneamente é a maneira pela qual os agenciamentos coletivos dinamizam as máquinas. Estamos pois, segundo Deleuze, na era das máquinas cibernéticas de computadores. Estamos num mundo de direitos que não mais disciplinam as forças mas que consagram suas vidas como agentes participantes do próprio controle. Não há mais trabalho manual subordinado ao intelectual, apenas uma reviravolta na qual a vida somente existe para quem é trabalhador intelectual. Aos demais, os efeitos de vestígios a serem superados ou filantropias circunstanciais e circunstanciadas.

A participação contínua dá sentido ao controle contínuo. Todos precisamos ser democráticos, uma democracia de antecipação por meio de sondagens. Não se abdica do castigo ou da disciplina, mas agora se investe de outra maneira: o alvo é a rede Estado para o corpo são, outro redimensionamento da biopolítica. Mas o Estado também não é mais somente investimento sobre o território ou população, é principalmente, investimento no planeta, no espaço celestial. A biopolítica da população cede lugar, então, a uma ecopolítica planetária. Não há mais corpo no interior do corpo planeta, mas corpo planeta no espaço sideral: fazer a vida para a ocupação do espaço sideral. Não há lugares como investimento produtivo, mas fluxos. Não há mais o produtivo especialista disciplinar e disciplinado, mas o polivalente atuante, transparente. Não mais corpo-máquina, corpo-espécie, mas corpo-planeta.

Resistir não é apenas redimensionar as sabotagens como insinuou Deleuze. Uma sabotagem na rede eletrônica é parte do controle contínuo, ela é apanhada produtivamente, é acesso a saberes procedentes de fluxos que se misturam: há uma educação em rede, como na Internet, que estimula uma criação auto-didata que se separa dos controles das ciências humanas e cria conhecimento. Diante da tradição do saber aristocratizado da cultura ocidental, a rede democratiza saberes, mas por meio de protocolos e confianças, aristocratiza interfaces. Não há mais mecânica ou eletricidade no comando e sim eletrônica que, do ponto de vista da materialidade, funciona também inibindo resistências. Mas há também, e como não deixar de constatar, opressão e domínio que atualizam resistências. A questão, ou as questões, que se colocam dizem respeito sem dúvida aos agenciamentos, posto que o regime aristocrático de protocolos e interfaces é compartilhado produtiva e simultaneamente pelas redes de Estados em união (de União Européia a Mercosul) como por pleiteadores de Estados-nação (de palestinos a minorias étnicas em geral), como por associações libertárias. O acesso aos meios eletrônicos permanecem agenciados de maneira a perpetuar a miséria. Neste sentido, atribuir à Internet ou derivadas, um caráter democrático é apenas sinalizar favoravelmente em relação à perpetuação da miséria de maneira análoga à da proliferação dos direitos.

De sorte que vivemos numa sociedade de controle que se afirma antes de tudo como sociedade de difusão de direitos e que encontrou no multiculturalismo sua forma mais atroz. Veio dar direitos a todos no momento em que o corpo deixou de ser parte conjugada da máquina energética. O direito não é mais acesso, mas condição para a continuidade dos súditos reinventores de soberanias esterritorializantes. São convocados pelos fluxos produtivos eletrônicos que não requerem mais o corpo inteiro, mas apenas inteligência. O Estado não investe mais na formação corpo são. Agora ele necessita do corpo são já agenciado: sua inteligência, participação contínua e defesa democrática. Aos demais, parece não haver nada mais a fazer senão disponibilizá-los para filantropias de múltiplas ordens. O Estado, então, existe como agenciador produtivo ao lado das empresas e organizações não-governamentais para administração de corpos desnecessários, trazendo para o centro das controvérsias a ética da fraternidade.

Tomando-se o triângulo perfeito da revolução francesa que levou inicialmente ao confronto pelas liberdades, sua afirmação e contestação relativa à emancipação humana em busca de igualdade e constatada a vitória capitalista para todos, se reconhecem os princípios de liberdade e igualdade e se passa a investir em fraternidade. As misérias assim o requerem para que a sociedade de controle com sua materialidade eletrônica e democrática se afirme.

Diante dos fluxos que apanham a todos e que criamos para todos participarem ainda estamos tomados por saberes providenciais. Não é estranho que se ajustem tão bem razão e religião com conservadorismo, democracia midiática, transdisciplinaridades... Ainda se pensa em sociedade, a melhor sociedade, a melhor sociedade que seja capaz de preservar-se das armas biológicas e químicas que ela mesma criou para se proteger. É preciso cada vez mais segurança e proteção contra os virus que atingem inteligências produtivas de corpos e máquinas e que podem ser acionados de qualquer lugar, de qualquer Estado, a partir de qualquer organização não-governamental, ou indivíduos, de perícias da inteligência capazes de colocar em risco a espécie, mas jamais o planeta. Como resistir a fluxos? Por meio de contra-fluxos?

Anarquizar quem sabe seja pensar sem pensamento (da razão verdadeira, soberana, ou das religiões), como uma criança, este ser que se encontra no mundo da arte, da luta pelo objeto querido como um guerreiro que não visa a destruição, como sublinhou Max Stirner, como desejava Nietzsche, pensadores que pensaram a si próprios, livres de uma consciência, como heterotopias, diferentes. Stirner não se iludia com a autonomia do sujeito soberano defendida por Proudhon. Jamais passara pelo seu pensamento que pudesse aparecer algo como consciência superior externa como Lenin ao aperfeiçoar Marx. Se Proudhon e Marx estavam certos que a democracia seria a religião do rebanho no século XX, Nietzsche estava correto ao afirmar que o socialismo não alçaria vôo. E Stirner que somente a associação entre iguais diferentes, associações inacabas, em fluxos, acabariam com a providência divina e da razão. As associações articuladas como miríades, exigem pessoas únicas, livres de direitos, subversivas em busca do objeto. Não são pessoas autônomas mas componentes de uma subjetividade que afirma não mais todos ou muitos, mas justamente seus reversos, uns. Uma prática de liberdade que não exige fidelidade mas lealdade, não ser fiel (religioso, confessional e trapaceiro) a si, ao povo, ou a estes pensadores que inventam povos, como Stirner, Nietzsche, Foucault ou Deleuze: amizade não como transcendência, mas imanência, coisa própria de amigos, os melhores inimigos.

Foucault, sutil e contundente, revirando o pensamento sobre si, como estética da existência e Deleuze, generoso com outros pensadores para si, inventando autorias, são fluxos para os anarquismos, por anarquizá-lo. Expressam por meio de suas reflexões pontos que tocam os anarquismos e merecem ser tocados por Stirner tanto quanto se deixaram atingir por Nietzsche. São para nós mesmos, para mim, pra você, como os versos de Arnaldo Antunes: “o que não pode ser/ ser que não é/ é o que é/ o quê?”.

[1] Em especial o pequeno dossiê composto pelos segiuintes artigos: Passetti, Edson, “Foucault libertário”, Schmid, Wilhelm, “Da ética como estética da existência”, Vaccaro, Salvo “ Foucault e o anarquismo” e May, Todd “Pós-estruturalismo e anarquismo”, in Revista Margem, Faculdade de Ciências Sociais PUC-SP/Educ, no. 5, 1996 pp. 125–185; e, Rago, Margareth Emtre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo, São Paulo, Unesp, 2000.

[2]Foucault como um anarquista libertário?” Resposta: “É o que o senhor desejaria. Não, não me identifico com os anarquistas libertários, porque existe uma certa filosofia libertária que crê nas necessidades fundamentais do homem. Eu não tenho vontade, eu, sobretudo, recuso-me a ser identificado, ser localizado pelo poder...” in Ditos e escritos, (org. Manoel Barros da Motta), São Paulo, Forense Universitária, 1999, vol. 1. pp. 311–312 [1984, Intervew met Michel Foucault”, Krisis]

[3] Segundo Frank Harrison, em The modern State, Bakunin deve ser entendido como um autor no anarquismo que sempre manteve-se coerente com a crítica radical de Proudhon, mas que no âmbito econômico esteve mais próximo do que se poderia imaginar das conclusões da crítica da economia política levadas a cabo por Karl Marx. É neste sentido que aproximo Deleuze de Bakunin, a partir do vigor da reflexão heterodoxa na busca pela liberdade.

[4] Não tenho a intenção aqui de investir na problematização acerca das diferenças entre anarquistas e marxistas no interior do discurso socialista. Muito menos tornar relevante a afirmação de Lenin, em O Estado e a revolução, que a distinção entre Proudhon e Marx resumia-se à escolha de meios diferentes para o mesmo fim. Convêm apenas sublinhar que tal distinção tem em Lenin o papel de afirmar a importância da hegemonia da consciência do partido diante do espontaneísmo libertário.

[5] É Bakunin, em Deus e o Estado, quem chama a atenção para a importância da ciência, das descobertas e vulgarização das leis da natureza, livres da academia científica, lugar análago à Igreja, Assembléia e Partido da revolução. Para ele, a autoridade se funda no conhecimento por meio da horizontalidade de saberes múltiplos. Diante do poder dos cientistas modernos, sacerdotes, políticos e vanguardistas, afirma a necessidade de se ouvir mais de uma opinião, comparar e decidir pelo que for mais justo. Este é o materialismo capaz de superar os demais idealismos da religião e da ciência. Não havendo a solução justa, mas a escolha pela mais justa, segundo o direito de secessão, não há sujeição que possa ser superada pelo sujeito autônomo, que por si só, não passa de outro idealismo.

[6] “Se as máquinas motrizes constituíram a Segunda idade da máquina técnica, as máquinas da cibernética e da informática formam uma terceira idade que recompõe um regime de servidão generalizado: ‘ sistemas homens-máquinas’ , reversíveis e recorrentes, substituem as antigas relações de sujeição não reversíveis e não recorrentes entre dois elementos; a relação homem-máquina se faz em termos de comunicação mútua interior e não mais de uso ou ação. (...) Sublinhou-se recentemente a que ponto o exercício do poder moderno não se reduzia à alternativa clássica ‘repressão ou ideologia’ , mas implicava processos de normalização, de modulação, de modelização, de informação, que se apóiam na linguagem, na percepção, no desejo, no movimento, etc., e que passam por micro-agenciamentos. É esse conjunto que comporta ao mesmo tempo a sujeição e a servidão, levadas aos extremos, como duas partes simultâneas que não param de se reforçar e de se nutrir uma à outra.” (Deleuze/Guattari, Mil platôs, São Paulo, Editora 34 Letras, vol. 5, pp: 157–158).