Edson Passetti

Anarquismos

1999

O anarquismo é para muitas pessoas algo inominável. É visto como sinônimo de bagunça, desorganização, irresponsabilidade, ausência de regras, convulsão, subversão, palavra que designa o mal. O anarquismo é também visto por muita gente como sendo sinônimo de antarquismo, oposição sistemática a qualquer governo. Mas o anarquismo não é avacalhação, desordem e muito menos oposição a qualquer governo. Anarquismo é um movimento social, uma forma de pensar criticamente a sociedade, um governo de si pautado na liberdade dos indivíduos que dispensa a entidade estatal.

O anarquismo expressa a verdade das sociedades sem soberanos; não pretende uma sociedade única mas uma miríade de sociedades. Volta-se para a crítica às relações que se estabelecem com base no poder centralizado, esteja ele na família, na escola, no Estado. Para ele é insuportável tolerar prisões, manicômios, internatos de qualquer gênero. Por isso estimula todas experiências que potencializem a liberdade e reduzam os exercícios de autoridade. Para o anarquismo está em jogo a presentificação na horizontalização das relações, com base na incomensurável gama de desejos a ser realizada como prazer pela vida, com generosidade, solidariedade e amizade, que se fazem sempre presentes.

Seria um equívoco afirmar que o anarquismo é uma única vertente política. Ao contrário, e por ser múltiplo, só podemos pensar em anarquismos com seus propósitos realizando-se mutuamente. A forma de expressão coletiva destas conformações chama-se federalismo.

A da liberdade anarquista se faz nas específicas circunstâncias e de modos diversos. A vida libertária pode advir tanto de resultados pacíficos como de produto de confrontos mais violentos, sabendo-se neste caso, os riscos que uma revolução pode trazer, distorcendo o ideal socialista libertário em algum autoritarismo. Muitas vezes, para que a liberdade se realize fora dos princípios da sociedade burguesa — ou seja, no mercado, e de sua repercussão na política, como democracia — o debate é insuficiente para se chegar ao fim da centralidade do poder.

A sociedade igualitária federalista não emerge de um ato voluntário num determinado momento; ela deve ser gestada no presente e as análises anarquistas nos mostram a importância de estarmos atentos ao local e ao regional, às diversidades culturais, ao inominável. O anarquismo supõe a revolta contra a ordem e para tal não se dispensa da memória das revoltas, de sua própria história como movimento social no planeta.

Os anarquismos são inomináveis; estão em sintonia com sua época; requerem raiva e paciência; dispensam-se dos intelectuais profetas; sabem conjugar saberes de todas grandezas; evitam a metafísica e dialogam entre si assimilando as críticas de seus parceiros no interior do debate anarquista. Não há como dizer que o anarquismo é isto ou aquilo. Ele é isto e aquilo como realização de supressão de poderes centralizados. É o federalismo que garante a pluralidade de expressões, propostas e soluções temporárias; que faz saber a todos os interessados a respeito de suas realizações.

Os anarquismos existem porque há uma amizade entre eles da mesma maneira que no interior de cada um deles se faz referência para a própria existência de todos. São escolhas repletas de sensibilidade política para com os diferentes que emergem e progridem, sob o signo de uma educação voltada para a realização do talento de cada um.

O anarquismo, neste final de século XX, é sinônimo de inominável porque não pode ser apanhado por uma definição universalista, generalizadora, como regra geral. Mas o é também por explicitar a revolta contra desigualdades, discriminações, segregações, exclusões, impedimentos à vida livre. Ele também é intolerável para pessoas que imaginam ser impossível viver sem uma autoridade superior, seja ela procedente do divino ou da razão.

Os anarquismos fazem parte do inominável para um planeta que se vê envolvido atualmente na crença na democracia como valor universal. Mas seria o caso de se perguntar, qual democracia? Os anarquismos organizados federativamente não desprezam mas valorizam a democracia direta; não se furtam ao debate político, porém separam-se dele quando norteado por mandatos fixos, assembleias permanentes, governos representativos. Para um anarquista a representação é desnecessária: cada um sabe de si porque realiza-se com os pares e nesta convivência nada é exigido para que ele ceda mais do que possa.

Inominável é a surpresa e os anarquistas estão disponíveis e atentos. Sabem que elas sempre aparecerão como os acasos; que não existe nada fixo, constante e imutável e que vivemos sob os riscos da profusão de novidades, uma pletora de bem-querer pela vida dos seres vivos. Com cooperação e ajuda mútua sabemos defender nossas vidas e o fazendo preservamos o planeta e o que o circunda. Somos poucos, talvez muito poucos, mas poderemos surpreender quando repararmos que anarquizar a vida é aquilo que trazem latente muitos parceiros desconhecidos até o momento.

Que sempre exista o inominável surpreendente e que cada vez menos tenhamos que olhar para os efeitos de dominação e designá-los como inomináveis. Mas se eles persistirem, que não nos refugiemos no desprezo, contidos em nós mesmos pela aversão. Que as tornemos públicas, compartilhadas com outros.

Os anarquismos serão sempre inomináveis porque não dão sossego a ninguém!


Revista Libertárias, São Paulo: Imaginário, 1999, 6 – 7 pp. Disponível em nu-sol.org