#title Por que somos anarquistas? #author Élisée Reclus #date 1889 #source [[https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1025182g/f11.image][gallica.bnf.fr]] #lang pt #pubdate 2020-12-06T02:20:28 #notes Traduzido do francês por João Black. Originalmente publicado como «Pourquoi sommes-nous anarchistes?», em La Société nouvelle, 31 agosto 1889. Trata-se duma versão modificada dum texto anterior, «Pourquoi sommes-nous révolutionnaires ?» [Por que somos revolucionário?], publicado em La Tribune des peuples, maio 1886. As poucas linhas que se seguem não constituem um programa. Elas não têm outro fim senão o de justificar a utilidade de elaborar um projeto de programa, que seria submetido ao estudo, às observações e às críticas de todos os revolucionários comunistas. Talvez contudo elas encerrem uma ou duas considerações que poderiam encontrar o seu lugar no projeto ao qual apelo. Somos revolucionários porque queremos justiça e em toda a parte vemos a injustiça reinar à nossa volta. É em proporção inversa do trabalho que são distribuídos os produtos do trabalho. O ocioso tem todos os direitos, até o de esfomear o seu semelhante, ao passo que o trabalhador nem sempre tem o direito de morrer de fome em paz: ele é aprisionado quando comete greve. Pessoas a chamadas padres procuram fazer acreditar em milagres para que as inteligências lhes sejam servis; pessoas chamadas reis dizem-se provenientes de um amo universal para serem amos por sua vez; gente por eles armada açoita, golpeia e fusila a seu bel-prazer; gente de capa preta que se diz a justiça por excelência condena o pobre, absolve o rico, e muitas vezes vende as condenações e as ilibações; comerciantes distribuem veneno em lugar de alimento, matam a retalho em vez de matar por atacado, e assim tornam-se capitalistas honrados. O saco de moedas de ouro é o chefe, e aquele que o possui tem em seu poder o destino dos outros homens. Tudo isto nos parece infame e queremos modificar. Contra a injustiça fazemos apelo à revolução. Mas «a justiça não é mais que uma palavra, uma mera convenção», dizem-nos. «O que existe é o direito da força!» Pois bem, se é assim, nem por isso somos menos revolucionários. Das duas uma: ou a justiça é o ideal humano e, nesse caso, reivindicamo-la para todos; ou só a força governa as sociedades e, nesse caso, usaremos a força contra os nossos inimigos. Ou a liberdade dos iguais ou a lei de Talião. Mas porquê a pressa? dizem-nos todos aqueles que, para se dispensarem de agir eles próprios, ficam à espera o tempo todo. A lenta evolução das coisas basta-lhes; a revolução dá-lhes medo. Entre eles e nós a história já se pronunciou. Jamais algum progresso, parcial ou geral, foi realizado por simples evolução pacífica — é sempre feito pela revolução repentina. Se o trabalho de preparação se opera com lentidão nos espíritos, a realização das ideias ocorre bruscamente: a evolução faz-se no cérebro, e são os braços que fazem a revolução. E como proceder a essa revolução que vemos preparar-se lentamente na Sociedade, e que nos esforçamos por ajudar a fazer chegar? É agrupando-nos em orgãos subordinados uns aos outros? É constituindo-nos, como o mundo burguês que combatemos, num conjunto hierárquico, com os seus responsáveis superiores e os seus irresponsáveis inferiores, mantidos como instrumentos nas mãos dum chefe? Para nos tornarmos livres começaremos por abdicar? Não, pois somos anarquistas, isto é, homens que querem manter a plena responsabilidade dos seus atos, que agem em virtude dos seus direitos e deveres pessoais, que concedem a um ser o seu desenvolvimento natural, que não têm ninguém por mestre e não são os mestres de ninguém. Queremos libertar-nos do aperto do Estado, não ter mais sobre nós superiores que possam comandar-nos e pôr a sua vontade no lugar da nossa. Queremos rasgar toda a lei exterior, limitando-nos ao desenvolvimento consciente das leis interiores de toda a nossa natureza. Suprimindo o Estado, suprimimos também toda a moral oficial, sabendo de antemão que não pode haver moralidade na obediência a leis incompreendidas, prática de que nem mesmo se procura dar conta. Não há moral sem ser na liberdade. É também só pela liberdade que a renovação se torna possível. Queremos manter o nosso espírito aberto, alargando-se a todo o progresso, a toda a ideia nova, a toda a iniciativa generosa. Mas, se somos anarquistas, inimigos de todo o chefe, somos também comunistas internacionais, pois compreendemos que a vida é impossível sem agrupamento social. Isolados nada podemos, ao passo que pela íntima união podemos transformar o mundo. Associamo-nos como homens livres e iguais, trabalhando para uma obra comum e regulando as nossas relações pela justiça e a benevolência recíproca. Os ódios religiosos e nacionais não nos podem separar, porque o estudo da natureza é a nossa única religião e porque temos o mundo por pátria. Quanto à grande causa das ferocidades e das baixezas, ela deixará de existir entre nós. A terra tornar-se-á propriedade coletiva, as barreiras serão levantadas e doravante o solo, pertencendo a todos, poderá ser arranjado para o agrado e o bem-estar de todos. Os produtos requeridos serão precisamente os que a terra pode melhor fornecer, e a produção responderá exatamente às necessidades, sem que nada se desperdice como no trabalho desordenado que hoje se faz. Do mesmo modo a distribuição de todas essas riquezas entre os homens será retirada do explorador privado e feita pelo funcionamento normal da Sociedade inteira. Não nos cabe traçar de antemão o quadro da sociedade futura: É à ação espontânea de todos os homens livres que compete criá-la e dar-lhe a sua forma, de resto continuamente mutável como todos os fenómenos da vida. Mas o que nós sabemos é que toda a injustiça, todo o crime de lesa-humanidade, nos encontrarão sempre de pé para o combate. Enquanto a iniquidade perdurar, nós, anarquistas-comunistas internacionais, permaneceremos em estado de revolução permanente. ÉLISÉE RECLUS.