Élisée Reclus
Sobre o vegetarianismo
Homens de tão grande valor, higienistas e biólogos, estudaram a fundo as questões relacionadas à alimentação normal, = que terei o cuidado de não demonstrar incompetência ao dar minha opinião sobre alimentos de origem animal e vegetal. Cada um tem a sua opinião. Como não s= ou químico nem médico, não falarei sobre nitrogênio ou albumina, nem reproduzi= rei as dosagens fornecidas pelos analistas, e simplesmente relatarei minhas impressões pessoais, que certamente coincidirão com as de muitos vegetarian= os. Farei um passeio por minha própria vida e, ocasionalmente, pararei para faz= er uma observação motivada pelas pequenas aventuras da vida.=
Antes de mais nada, devo dizer que a busc= a pela verdade pura não teve nada a ver com as primeiras impressões que fizeram de= mim um vegetariano virtual, ainda criança, usando um vestido de criança. Lembro= -me perfeitamente do horror do derramamento de sangue. Um dos meus parentes col= ocou um prato na minha mão e me mandou para o açougue da aldeia, pedindo que eu trouxesse de volta alguns restos de sangue. Inocente e covarde, saí alegrem= ente para fazer a tarefa e entrei no pátio onde estavam os carrascos do animal abatido. Ainda me lembro daquele pátio sinistro, onde homens assustadores passavam, segurando grandes facas nas mãos, que eles limpavam em sarreaux salpicados de sangue. Sob um alpendre, um enorme cadáver parecia ocupar um espaço prodigioso; carne branca, um líquido rosa escorria pelas sarjetas. E= eu, trêmulo e mudo, fiquei naquele pátio ensanguentado, incapaz de avançar, apavorado demais para fugir. Não sei o que aconteceu comigo; minha memória = não guarda nenhum vestígio disso. Parece que ouvi dizer que desmaiei e que o compassivo açougueiro me levou de volta para a casa da família: eu não pesa= va mais do que um dos cordeiros que ele abatia todas as manhãs.
Outras imagens escurecem meus anos de inf= ância e, como a do açougue, marcam outras tantas datas em minha história. Um deles sangra lentamente o animal para que o sangue escorra gota a gota, porque é essencial, ao que parece, para a preparação adequada das linguiças de sangu= e, que a vítima tenha sofrido muito. Ela grita continuamente, intercalando que= ixas infantis e gritos desesperados, quase humanos: parece uma criança, e o porco doméstico não era a criança da casa por um ano, alimentado à força para eng= ordar e respondendo com afeição genuína a todo o cuidado que só tinha a intenção = de lhe dar uma grossa camada de banha? E quando o coração responde ao coração, quando a dona de casa, encarregada de cuidar do porco, se afeiçoa a seu pup= ilo e o acaricia, o elogia e conversa com ele, não parece ridículo, como se fos= se absurdo, quase desonroso, amar um animal que nos ama? Uma das minhas impres= sões mais fortes da infância é a de ter testemunhado um desses dramas rurais: o massacre de um porco, realizado por toda uma população em insurreição contra uma boa velhinha, minha tia-avó, que não consentiu com o assassinato de seu amigo gordo. A multidão do vilarejo havia forçado a entrada no chiqueiro; e= les estavam levando o animal à força para o matadouro rústico, onde a máquina de abate estava esperando, enquanto a infeliz senhora, caída em uma escada, chorava em silêncio. Fiquei ao lado dela e observei o choro, sem saber se me solidarizava com sua dor ou se me juntava à multidão, acreditando que o aba= te do porco era justo, legítimo, ditado pelo bom senso e pelo destino.
Cada um de nós, especialmente aqueles que viveram em um ambiente de classe trabalhadora, longe das cidades banais e uniformes onde tudo é metodicamente classificado e escondido, já testemunho= u um desses atos bárbaros cometidos pelo carnívoro contra os animais que ele com= e. Não é preciso ir a uma Porcopolis na América do Norte ou a um saladero em La Plata para contemplar o horror dos massacres que são a condição primária de nossa alimentação habitual. Mas essas impressões se desvanecem com o tempo:= dão lugar a essa fatal educação cotidiana que consiste em reduzir o indivíduo à média, despojando-o de tudo o que o torna um ser original, uma pessoa. Pais, educadores, tanto oficiais quanto voluntários, médicos, sem mencionar a equ= ipe toda-poderosa conhecida como “Todo mundo”, todos trabalham juntos para endurecer o caráter da criança em relação a essa “carne no chão”, que, no entanto, ama como nós, sente como nós e também pode progredir sob nossa influência, a menos que regrida conosco.
Pois é precisamente uma das consequências= mais infelizes de nossos hábitos carnívoros o fato de que as espécies de animais sacrificadas ao apetite do homem têm se tornado sistemática e metodicamente mais feias, diminuídas em inteligência e valor moral. O próprio nome do ani= mal no qual o javali foi transformado se tornou o mais grosseiro dos insultos: a massa de carne que vimos chafurdando nas poças fétidas é tão feia de se ver= que evitamos de bom grado qualquer analogia de nome entre o animal e os pratos = que preparamos com ele. Que diferença na forma e na aparência entre o muflão que salta sobre as rochas da montanha e a ovelha que, agora desprovida de qualq= uer iniciativa individual, é simplesmente carne estupefata entregue ao medo, não ousando mais se afastar do rebanho, atirando-se nos dentes do cão que a persegue. A mesma degradação se abateu sobre o boi, que agora vemos se move= ndo dolorosamente pelos prados, transformado pelos criadores em uma enorme massa ambulante com formas geométricas, como se tivesse sido projetada antecipadamente para a faca do açougueiro. E é para produzir esses monstros= que aplicamos a expressão “criação”! É assim que os humanos cumprem sua missão = de educadores de seus irmãos, os animais!
Afinal de contas, não é assim que tratamo= s toda a natureza? Solte um bando de engenheiros em um vale encantador, cercado de prados e árvores, às margens de um belo rio, e logo verá o que eles fizeram= com ele! Eles terão tomado muito cuidado para tornar seu próprio trabalho o mais óbvio possível e para esconder a natureza sob seus montes de entulho e carv= ão, assim como terão orgulho de ver a fumaça de suas locomotivas cruzando o céu= em uma rede confusa de listras amareladas ou pretas. É verdade que esses mesmos engenheiros também afirmam ocasionalmente embelezar a natureza. Quando os artistas belgas protestaram recentemente contra a devastação da paisagem ao longo do rio Mosa, o ministro foi rápido em dizer que eles ficariam felizes= com ele de agora em diante: ele prometeu construir todas as novas fábricas com torres góticas! Da mesma forma, os açougueiros exibem cadáveres esquartejad= os e carnes ensanguentadas diante dos olhos do público, bem na beira das ruas ma= is movimentadas, ao lado de lojas floridas e perfumadas; eles até têm a audáci= a de decorar a carne pendurada com rosas, e a estética é salva!
Ficamos surpresos ao ler nos jornais que = todas as atrocidades da guerra chinesa não são um sonho ruim, mas uma realidade lamentável! Como é possível que homens que tiveram a sorte de ser acariciad= os por suas mães e de ouvir nas escolas as palavras de justiça e bondade, como= é possível que essas bestas com rostos humanos tenham prazer em amarrar homens chineses uns aos outros pelas roupas e pelas caudas e jogá-los em um rio? C= omo é possível que eles acabem com os feridos e façam os prisioneiros cavar sua= s sepulturas antes de atirar neles? E quem são esses terríveis assassinos? São pessoas q= ue se parecem conosco, que estudam e leem como nós, que têm irmãos, amigos, esposas ou noivas; e, mais cedo ou mais tarde, vamos encontrá-los, apertar = suas mãos sem encontrar um traço de derramamento de sangue! Mas não há uma relaç= ão direta de causa e efeito entre a alimentação desses carrascos que se dizem “civilizadores” e seus atos ferozes? Eles também se acostumaram a glorifica= r a carne sangrenta como fonte de saúde, força e inteligência. Eles também entr= am em açougues sem repugnância, onde se desliza no pavimento avermelhado e se respira o cheiro insípido e doce do sangue! Existe realmente tanta diferença entre o cadáver de um boi e o de um homem? Os membros cortados e as entranh= as entrelaçadas dos dois são muito parecidos: a matança do primeiro torna mais fácil matar o segundo, especialmente quando a ordem do chefe soa e as palav= ras do mestre coroado podem ser ouvidas de longe: “Seja impiedoso”.<= /span>
Há um provérbio francês que diz que “todo= caso ruim é negável”. Mas na China, os russos, os franceses, os ingleses e os alemães não se escondem mais modestamente uns dos outros: testemunhas ocula= res e os próprios autores nos informaram em todos os idiomas, alguns com cinism= o, outros com relutância. A verdade não pode mais ser negada, mas uma nova moralidade teve de ser criada para explicá-la. Essa moral é que existem dois direitos humanos, um que se aplica às pessoas amarelas e outro que é privil= égio das pessoas brancas. Assassinar e torturar os primeiros agora parece permissível, enquanto seria errado fazer o mesmo com os segundos. Mas a moralidade não é igualmente elástica quando se trata de animais? Ao fazer c= om que os cães de caça destruam a raposa, o cavalheiro aprende a atirar com se= us fuzis nos chineses em fuga. As duas caçadas são o mesmo esporte; no entanto, quando a vítima é um homem, a emoção e o prazer são provavelmente mais intensos. Basta perguntar ao homem que recentemente evocou o nome de Átila = para dar esse monstro como exemplo a seus guerreiros!
Não é uma digressão mencionar os horrores= da guerra em relação ao abate de animais e aos banquetes carnívoros. A maneira como as pessoas comem corresponde a seus hábitos. Sangue gera sangue. A esse respeito, todos podem consultar suas memórias sobre os homens que conhecera= m, e nenhuma dúvida permanecerá em suas mentes sobre o contraste que, de modo ge= ral, os vegetarianos apresentam com os grandes comedores de carne, os gananciosos bebedores de sangue, em termos de amabilidade de maneiras, gentileza de car= áter, igualdade de vida.
É verdade que essas são qualidades tidas = em baixa estima pelos “super-homens” que, embora não sejam superiores aos outr= os mortais, são pelo menos mais arrogantes e pretendem se elevar desprezando os humildes e exaltando os fortes. De acordo com eles, os mansos são os fracos= e os doentes que atrapalham o caminho, e seria um ato piedoso dispensá-los. Se não podemos matá-los, pelo menos que morram! Mas é justamente porque os man= sos podem ser mais resistentes ao mal do que os violentos: os sanguíneos e os c= oloridos não costumam ser os que vivem mais tempo; os verdadeiramente fortes não são aqueles que ostentam sua força na superfície, no carmesim de seus rostos, na protuberância de seus músculos ou na redondeza de sua gordura brilhante. Al= ém disso, a estatística logo poderá nos dar informações positivas a esse respe= ito; ela já teria feito isso se tantas pessoas interessadas não estivessem ocupa= das agrupando números verdadeiros ou falsos na batalha para defender suas respectivas teorias.
Seja como for, diremos simplesmente que, = para a grande maioria dos vegetarianos, a questão não é se seus bíceps e tríceps s= ão mais fortes do que os dos carnívoros, ou mesmo se seu organismo oferece mai= or resistência contra os choques da vida e as chances de morte, o que é realme= nte muito importante: Para eles, trata-se de reconhecer a solidariedade de afet= o e bondade que liga o homem aos animais; trata-se de estender aos nossos irmãos ditos inferiores o sentimento que já pôs fim ao canibalismo na espécie huma= na. As razões que os antropófagos podiam invocar contra o abandono da carne hum= ana como parte da dieta habitual tinham o mesmo valor daquelas usadas hoje pelos simples carnívoros; os argumentos que foram apresentados contra o costume monstruoso são precisamente aqueles que invocamos hoje; o cavalo e o boi, o coelho selvagem e o “coelho da sarjeta”, o veado e a lebre nos servem melhor como amigos do que como carne. Queremos mantê-los como companheiros de trab= alho respeitados ou como simples parceiros na alegria de viver e amar.
Mas”, dizem-nos, ”se você se abstiver de = carne animal, outros carnívoros, humanos ou animais, os comerão em seu lugar, ou então a fome e os elementos se encarregarão de destruí-los. Sem dúvida, o equilíbrio das espécies será mantido como antes, de acordo com as chances de vida e a interação dos apetites; mas, pelo menos no conflito de raças, cabe= rá a outros serem os destruidores. Administraremos a parte da terra que nos pertence, tornando-a o mais agradável possível, não apenas para nós, mas ta= mbém para os animais ao nosso redor; levaremos a sério o papel de educador que o homem atribui a si mesmo desde os tempos pré-históricos. Nossa parcela de responsabilidade pelas transformações na ordem universal não se estende alé= m de nós mesmos e de nosso ambiente imediato. Se fizermos pouco, pelo menos esse pouco será nosso trabalho.
É certo que, se tivéssemos a ideia quimér= ica de levar a prática da teoria às suas últimas e lógicas consequências, sem nos preocuparmos com considerações de outra natureza, cairíamos no puro absurdo. Nesse aspecto, o princípio do vegetarianismo não é diferente de qualquer ou= tro princípio: ele deve se acomodar às condições comuns da vida. Obviamente, não pretendemos subordinar todas as nossas práticas e ações de todas as horas, = de todos os minutos, ao respeito pela vida do infinitamente pequeno; não nos d= eixaremos morrer de fome e sede como um lama budista, quando o microscópio nos mostrar uma gota de água que treme com células animais. Não hesitaremos em cortar um galho na floresta, ou mesmo colher uma flor em um jardim; chegaremos ao pon= to de comer alface, repolho e aspargos, embora reconheçamos plenamente a vida = nas plantas e nos animais. Mas não se trata de fundar uma nova religião e aderi= r a ela com o dogmatismo dos sectários: é uma questão de tornar nossa existênci= a o mais bela possível e adaptá-la o máximo possível às condições estéticas de nosso ambiente. Assim como nossos ancestrais sentiam nojo de comer a carne = de seus semelhantes e um dia pararam de encher suas mesas com ela, e assim com= o há muitos carnívoros que se recusariam a comer a carne do nobre cavalo, companheiro do homem, ou a do cão e do gato, os hóspedes mimados do lar, ta= mbém detestamos beber o sangue e esmagar sob nossos dentes o músculo do boi, o animal de arado que nos dá o pão. Ansiamos pelo momento em que não ouviremos mais o balido das ovelhas, o mugido das vacas, o grunhido e os gritos estridentes dos porcos sendo levados ao matadouro; ansiamos pelo momento em= que não correremos mais, para encurtar o minuto hediondo, passando por um local= de matança com riachos de sangue, fileiras de presas afiadas das quais pendem cadáveres, cajados manchados de sangue e armados com facas horrendas. Quere= mos finalmente viver em uma cidade onde não corremos mais o risco de ver açougu= es cheios de cadáveres ao lado de lojas de seda ou de joias, em frente a farmá= cias ou bancas de frutas perfumadas, ou belas livrarias adornadas com gravuras, estatuetas e obras de arte. Queremos que nosso ambiente seja agradável aos olhos e esteja em sintonia com a beleza. E como os fisiologistas e - melhor ainda - nossa experiência pessoal nos dizem que esse alimento vil de carne esquartejada não é necessário para sustentar nossa existência, descartaremos todos esses alimentos horríveis que nossos ancestrais apreciavam e que a maioria de nossos contemporâneos ainda aprecia. Esperamos que, em breve, el= es tenham pelo menos a cortesia de esconder seus alimentos. Os matadouros já f= oram relegados aos subúrbios remotos: que os açougues sigam o exemplo, amontoand= o-se como estábulos em cantos obscuros!
A feiura também é a razão pela qual abomi= namos a vivissecção e todos os experimentos perigosos, exceto quando são heroicam= ente praticados pelo cientista em sua própria pessoa. É também pelo fato de o trabalho ser feio que o naturalista que cutuca borboletas vivas em sua caix= a, que destrói o formigueiro inteiro para contar formigas, nos inspira repulsa. Afastamo-nos com repugnância do engenheiro que desfigura a natureza prenden= do uma cachoeira em seus canos de ferro fundido, e do lenhador californiano qu= e corta uma árvore de quatro mil anos de idade e cem metros de altura para mostrar = as toras em feiras ou exposições. A feiura nas pessoas, nas ações, na vida, na natureza ao redor - esse é o inimigo por excelência. Vamos nos tornar belos= e deixar que nossa vida seja bela!
Então, quais são os alimentos que melhor atendem ao nosso ideal de beleza, tanto em sua natureza quanto na maneira c= omo devem ser preparados? Esses são exatamente os alimentos que sempre foram ma= is apreciados pelas pessoas simples e que podem dispensar os truques enganosos= da cozinha. São ovos, grãos e frutas, em outras palavras, os produtos da vida animal e vegetal, que representam tanto a cessação temporária da vitalidade= nos organismos quanto a concentração dos elementos necessários para a formação = de uma nova vida. Os ovos do animal, as sementes da planta, os frutos da árvore são o fim de um organismo que não é mais, o começo de um organismo que ainda não é. O homem os coleta para se alimentar sem matar. O homem os recolhe pa= ra se alimentar sem matar o ser que os deu a ele, porque eles foram formados no ponto de contato entre duas gerações. Além disso, os cientistas que estudam= a química orgânica não nos dizem que o ovo, seja de um animal ou de uma plant= a, é o reservatório por excelência de todos os elementos vitais? Omne vivum ex ovo.
Data: 1901
Fonte: La Réforme Alimentaire, Vol V, N°3, mars 1901, p. 37-45