Título: Revolução anarquista na Coreia
Subtítulo: A Comuna de Shimin (1929-1932)
Autor: Emilio Crisi
Data: 2012
Notas: Originalmente publicado em espanhol. Este texto constitui o primeiro esboço dos estudos deste autor sobre o tema. Os resultados finais foram publicados em espanhol no livro Revolución Anarquista en Manchuria: aproximación histórica sobre la experiencia de la comuna libertaria impulsada por el anarquismo coreano al este de Manchuria.

INTRODUÇÃO: 80 ANOS DA COMUNA DE SHIMIN

Em 1929, anarquistas agrupados em uma federação foram artífices e protagonistas de um processo revolucionário, anticapitalista e antiestatal na região da Manchúria – localizada ao norte da península coreana e nordeste da China. Já se passaram mais de 80 anos desta ação inspirada nos ideais e princípios libertários, baseada numa práxis revolucionária latente naqueles tempos nos quais as pessoas se esforçavam para alcançar a liberdade. Perto do fim daquela tentativa de revolução social, em 24 de janeiro, um dos personagens dessa história, o comandante Kim Jwa-jin, era assassinado numa emboscada. Morria um lutador histórico da guerra de independência na Coreia; ele que também se convertera num dos principais apoiadores da Comuna de Shimin.

Depois de seu assassinato, os vencedores – de um lado, os nacionalistas que fundaram a Coreia do Sul; de outro, os stalinistas que erigiram a Coreia do Norte – escreveram de seu modo a história desses anos desconhecidos para os ocidentais. Além de não dar a devida atenção à experiência da Região Autônoma de Shimin (ou Chong yi-bu, em coreano romanizado), com seus mais de dois milhões de agricultores autogestionados, também se apoderaram da figura de Kim Jwa-jin como apenas mais um herói da independência do país.

Curiosamente, naquela mesma data, em 1911, era assassinado (juntamente com outros 11 companheiros) o maior expoente do anarquismo japonês, o jornalista Kotoku Shusui. Inimigo declarado do império japonês, Shusui criticava veementemente o sistema de classes e as incursões coloniais de seu país sobre outros povos do Oriente. Sua luta serviu de inspiração para milhares de militantes chineses, coreanos e japoneses na incansável batalha contra o capitalismo, o Estado e o colonialismo na região. A Coreia anarquista e sua comuna camponesa não foram exceções.

OBSERVAÇÕES E PERSPECTIVAS DO FATO HISTÓRICO: A história escrita.

É preciso refletir: por que uma experiência revolucionária que durou cerca de três anos (de 1929 a 1932), envolvendo mais de dois milhões de coreanos, passou despercebida na historiografia das esquerdas? Nesse sentido, apenas a historiografia anarquista coreana resgatou esse importante capítulo.

Em suas “memórias”, o ex-ditador norte-coreano Kim II-sung menciona a existência de três facções que lutavam pela independência contra os japoneses: o Partido Comunista (PC) coreano, os nacionalistas (com seu governo em Xangai) e uma “terceira facção separatista”.[1] Provavelmente, sua intenção foi escamotear a identidade ideológica daquele setor organizado. Mas também há uma clara intenção de apagar qualquer comprovação histórica de que um setor importante da esquerda teve uma bemsucedida experiência revolucionária antes da existência da Coreia do Norte marxista. Não bastasse isso, o líder stalinista afirmou que a derrota da Manchúria frente aos japoneses foi causada pelas brigas entre as facções nacionalistas e “separatistas” – esquecendo-se de mencionar, no entanto, os assassinatos e massacres ordenados pelo PC.

Os setores nacionalistas, que mais tarde fundariam a República da Coreia, instituindo uma ditadura sangrenta, também conseguiram apagar da história a participação ativa e decisiva do anarquismo na luta pela independência contra o império nipônico.

Felizmente, o trabalho exaustivo de pesquisa recuperou parte desse evento histórico de grande valor experimental para nossa ideologia. Estudos como os dos coreanos Ha Ki-rak (“History of the Korean anarchist movement”), Cho Sehyun (“Na Ásia Oriental também ...”) ou Hwang Dong-Youn (“Beyond Independence: The Korean Anarchist Press…”) têm apresentado investigações detalhadas sobre o assunto. Da mesma forma, textos de Alain MacSimoin (“The Workers Solidarity Movement Irishman”), de Jason Adams (com seus “Non-Western Anarchisms”) ou do sul-africano Lucien Van der Walt (“Towards a history of anarchist anti-imperialism”) representam uma importante contribuição para o assunto.

Na experiência que se desenvolve no enclave de Shimin, fomentada no início do século XX, vemos um resultado semelhante a outros processos nos quais o anarquismo organizado sabia e podia apresentar socialmente seu projeto de revolução. Na Rússia (1917), Ucrânia (1919) e Espanha (1936) observaram-se as derrotas do impulso libertário no plano da autodefesa diante do nacionalismo reacionário, além da traição e entrega dos partidos marxistas.

O contexto e a abrangência

Surpreendentemente, quando começamos a investigar o que estava por trás da história dessa comuna revolucionária, a gênese e o auge do anarquismo coreano, e o quanto isso tinha a ver com a independência da Coreia, temos uma grande surpresa sobre a relação direta que existe entre estes fatos. Talvez possamos afirmar hoje que, no momento da independência coreana frente ao império japonês, convergiram três grandes correntes políticas em magnitude organizacional e acumulação de forças; mas apenas uma acabou perdendo ao longo da história. As outras duas acabaram fundando repúblicas, estabelecendo fronteiras e novas ditaduras para controlar novamente um povo que vivera durante décadas o absolutismo da ocupação japonesa.

Como já mencionado, o processo de revolução social em Shimin acontece em meio a uma guerra anticolonialista. Este processo atingiu grandes propriedades rurais e pequenas cidades, instaurando, não sem inconvenientes, conselhos de administração que substituíram e extinguiram o Estado em todos os níveis. Tal resultado teve muito a ver com o início de toda essa história.

Uma revolução libertária “à coreana”

Ao analisar as ações da comuna, percebe-se, num primeiro momento, a influência dos anarquistas que retornaram do exílio como um fator que impulsionou as lutas sociais e as disputas políticas sobre o futuro da região.

Por um lado, os ácratas que retornaram do Japão ou de Xangai – regiões em processo de industrialização mais avançado, com um movimento sindical forte e mobilizado – vão insistir no caráter das lutas do incipiente movimento operário coreano. Mas os outros exilados do resto da China proporão tanto uma luta anticolonial como a inserção social em áreas rurais, estimulando as lutas dos movimentos camponeses. E foi esta última que se mostrou a mais acertada durante a década de 1920. De outro, alguns dos fundamentos teóricos do anarquismo coreano, esboçados no início do século XX, retratam a luta cultural e identitária contra o domínio do colonialismo japonês. Um exemplo é o “Manifesto da Revolução Coreana” (Joseon Hyeong-myeong Seoneon), escrito pelo histórico militante anarquista Shin Chae-ho, que expõe o papel claramente revolucionário de um povo com fortes raízes culturais, vilipendiado por um exército estrangeiro.

O manifesto também destaca o internacionalismo militante no estabelecimento de alianças com anarquistas japoneses, chineses, vietnamitas e taiwaneses. As lutas antiimperialistas são fortemente defendidas, com incentivo a uma guerra social contra o colonialismo nipônico – que exercia um sistema de domínio em toda a região – e rechaço às atrocidades cometidas pelos invasores.

Por fim, o documento enfatiza que as forças anarquistas não devem ficar à mercê de nacionalistas e bolcheviques em um processo revolucionário, a fim de evitar que se instaure novamente um Estado. Veremos, adiante, o desenvolvimento detalhado desses conceitos.

RAÍZES E ANTECEDENTES DO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO Herança da luta anticolonial

A história coreana registra uma série de revoltas populares de cunho antiestatal, anticolonial e anticapitalista, que atingiram regiões em todo o país. Um dos exemplos foi a Revolução Camponesa de Donghak, em 1894, quando agricultores do sul se revoltaram contra o governo local e qualquer monarquia – fosse ela coreana, chinesa ou japonesa. A proposta do movimento: igualdade entre todos os homens. O desfecho: o esmagamento da revolta pelo império japonês.

Um levante posterior de grandes proporções será o Primeiro de Março de 1919, ocorrido no contexto de uma proclamação de independência e de insurreições anticoloniais em todo o país. Contando com a participação de diversas organizações anarquistas, o Movimento da Independência de Samil (como ficaram conhecidas as primeiras manifestações de 1° de março) foi brutalmente reprimido pelo exército da ocupação japonesa. O saldo foi de 7.500 mortos e 16 mil feridos. Um dos ativistas da intentona revolucionária foi Jeong-Wha-am, que mais tarde fundaria, ao lado de outros companheiros, a Federação Anarquista.

Este evento foi um marco na história da luta pela independência da Coreia, uma vez que conseguiu fortalecer o sentimento de identidade do povo. Aproveitando-se da situação, um grupo de coreanos nacionalistas estabeleceu um governo provisório em Xangai, na China.

Em meados dos anos 1920 (e como fruto das manifestações de 1919), acendeu-se o pavio que fez explodir a luta de diversos grupos políticos e sociais contra a invasão japonesa na Manchúria. Em 1925, o governo do Japão lançava sua “Lei de Preservação da Paz”, proibindo a existência de qualquer organização que alterasse o Kotukai (nacionalismo japonês). Os anarquistas figuravam entre os setores perseguidos, notadamente por sua ação militante nas organizações operárias, estudantis, camponesas e culturais em toda a Coreia.

Influências libertárias na região

O contexto regional do sudeste asiático oferecia uma grande influência para que os anarquistas coreanos aprofundassem seus níveis de organização e de projetos revolucionários. Além disso, pode-se concluir que os libertários coreanos exilados na China e no Japão engajaram-se nas lutas sociais (sindicalistas, camponesas e estudantis) e políticas que aconteciam em seu país de origem. Como veremos a seguir, boa parte da agitação social e do impulso político revolucionário na Coreia dos anos 1920 tinham a ver tinha a ver com o retorno dos desterrados mais combativos. Um exemplo: Baek Jeong-gi (1896-1934) – conhecido como “Gupa” no jargão militante – experiente anarquista, exilado na China em 1925, atuando na União Anarquista de Xangai. Em julho daquele ano, com o início das ondas de greves gerais operárias em Xangai, Baek milita entre os metalúrgicos filiados a seu sindicato.

Nesse sentido, alguns acontecimentos do movimento organizado de trabalhadores no sudeste da Ásia convertem-se em fértil influência ao desenvolvimento do anarquismo coreano da época. Entre os mais importantes, podemos citar as maciças greves gerais na China, com a participação da União Anarquista Chinesa; movimentos paredistas de operários no Japão; criação da Universidade Nacional de Trabalhadores em Xangai, no ano de 1928, impulsionada pelo movimento ácrata chinês; o Movimento de Autodefesa das Comunidades Rurais de Quanzhou, também na China, entre 1927 e 1928; e a criação da Seção de Pequim da Aliança da Juventude Negra.[2]

Exilados no Japão por volta de 1922, Park Yeol, Jeong Tae-sung, Kim Chunghan, Hong Jin-yu, Choi Kyu-jong, Yuk Hong-kyun, Seo Dong-seong, Jang Sang-jung, Ha Sae-myeong, Hang Hyeon-sang, Seo Sang-kyeong e outros conseguem construir a organização Futeishya (“Revolta”), que incluía militantes anarquistas japoneses de renome como Noguchi Hinji, Kurihara Krzuo, Ogawa Shigeru, Kaneko Fumiko e Niyiama Shodai, entre outros.[3]

O trabalho internacionalista dos anarquistas coreanos também impulsiona a criação da Federação Anarquista do Leste (Tung-fang, Wu Cheng-fu, Chu-i-che, LienMeng), composta por organizações da China, Vietnã, Taiwan, Japão, Filipinas, Índia e, obviamente, Coreia. A Federação aprovou como base teórica própria o “Manifesto da Revolução Coreana”, tendo Kim Jong-jin como um dos mais ativos militantes. Em 1928, iniciam a publicação do jornal Dong Bang (“O Oriente”). Um dos slogans da Federação do Leste foi “unir o proletariado de todo o mundo e, sobretudo, das colônias orientais para derrotar o capitalismo internacional e imperialista”.[4]

O anarquismo coreano

Desde o início do século XX, as ideias anarquistas espalhavam-se em todas as esferas sociais da Coreia. A participação no Movimento Primeiro de Março não foi exceção. Como exposto anteriormente, os anarquistas coreanos entendiam muito bem o que se passava num contexto de opressão onde o exército imperial japonês tentava controlar completamente a vida da sociedade. Além disso, a própria burguesia local desejava a independência para se tornar a classe dirigente. Influenciados pela conjuntura de resistência ao regime imperial, os libertários coreanos começaram a desenvolver organizações sociais e políticas com o objetivo de iniciar um projeto revolucionário.

À medida que crescia a unidade organizacional dos anarquistas, em meados da década de 20, acentuava-se a perseguição do exército japonês e de sua polícia política. A resultante desse processo repressivo seria o aumento do número de exilados, assassinatos e prisões dos militantes libertários. Em outubro de 1925, na província de Kiho, o jornal Dong-a Ilbo informou sobre a prisão de uma dezena de ativistas da Liga Bandeira Negra (LBN). A organização fora fundada um ano antes pelos exilados coreanos no Japão, militantes do grupo Futeishya, junto a Park Yeol. Entre os detidos da LBN: Hong Jin-yu, Seo Sang-kyeong, Shin Young-woo, Seo Jeong-sup, Han Byeong-hee, Lee Bok-won, Seo Cheoung-sun, Lee Chang-sik, Kawk Cheol e Lee Ki-yong.[5] No ano seguinte, o mesmo jornal noticiou a prisão de cinco jovens trabalhadores que divulgavam um manifesto muito semelhante ao desenvolvido por Shin Chae-ho.[6]

Também em 1925, na cidade de Taegu, muitos anarquistas que retornavam do exílio no Japão formaram organizações como a Liga da Verdade e da Fraternidade. Este coletivo e outros grupos, como a Liga dos Revolucionários, começam a se articular organizativamente com a Sociedade da Juventude Negra de Tóquio. Em Anui, Mesan, são formados a Liga da Amizade Negra de Changwon e o grupo de Apoio Mútuo da ilha de Jeju – este último chegou a organizar cooperativas de artesãos e camponeses. Em pouco tempo, muitos desses agrupamentos sofreriam a ação de agentes infiltrados, o que resultava na prisão de seus membros.[7]

A magnitude e o alcance organizativo do anarquismo coreano podem ser comprovados por fontes primárias como o Dong-a Ilbo. O periódico noticiava, em 1929, a existência de um grupo clandestino de anarquistas (no qual Lee Eun-song militava).[8] Este coletivo contava com cem militantes organizados somente em Icheon, província Kwangwon. No mesmo ano, soube-se que todos os membros do Movimento da Sociedade dos Artistas de Chanju eram anarquistas.[9]

Inspirada principalmente por Mikhail Bakunin (1814-1876) e Piotr Kropotkin (1842-1921), toda uma geração de libertários coreanos desempenhou relevante papel até o fim dos anos 1920. Uma influência que resultaria na experiência comunal ao norte, na Manchúria. Yu Ja-myeong (1891-1985), o já mencionado Shin Chae-ho (1880-1936), Hwae-young Lee (1867-1932), Lee Eul-kyu, Lee Jeong-kyu, Jeong Wha-am (1896 - 1981) e Jeung-ki Paik são alguns dos articuladores do processo de federação dos núcleos anarquistas regionais.[10] Suas produções teóricas e, principalmente, seus ímpetos por organizar o anarquismo no país os converteram nos principais orientadores para os militantes ácratas. Como já mencionado, Shin Chae-ho, de clara orientação bakuninista, desenvolveu, entre outros textos, o “Manifesto da Revolução Coreana” em 1924.[11] Este consistia em programa de análise e ação anarquista no contexto de uma guerra de independência.

O programa apoiava a participação ativa do anarquismo na luta anticolonialista contra o império japonês, além do desenvolvimento da luta contra a classe exploradora e dominante na Coreia. Nesse sentido, o manifesto buscava diferenciar revolução política e revolução social. Segundo o documento, uma revolução política somente muda de mãos o poder. “A última revolução foi uma revolução em que as pessoas continuavam a ser governados como antes – apesar de o poder de 'A' ter sido transferido para a força de 'B' pela chamada revolução – pois as pessoas eram escravas do Estado e dominadas pelo poder da classe privilegiada, que manteve o controle sobre o povo”.[12]

À frente de seu tempo, o manifesto defendia a realização de uma “revolução do povo”, ou “revolução direta”, emanada das próprias camadas populares. Segundo o documento, os pobres e os soldados deveriam mudar estruturalmente a sociedade com a sua “firme determinação e seu próprio poder.”[13] Falar de poder no anarquismo sempre foi polêmico; no entanto, naquele contexto, é óbvio que os libertários coreanos estão falando de um poder próprio das classes oprimidas. Nesse ponto, o manifesto trata de estabelecer a diferença de base e de conceitos no que diz respeito a uma revolução, rechaçando qualquer abordagem de “nação”. A opção é pelo conceito de “povo”, uma vez que “povo é tangível; a nação não”.[14]

O texto – que incitava o anarquismo coreano a se rebelar em armas para conseguir a liberdade – serviu de base para a fundação, em 1924, da Federação Anarquista Coreana (Hangug-eo Anakiseuteu Yeon-maeng). Esta organização foi formada por núcleos militantes anarquistas e se encontrava quase totalmente na clandestinidade por conta da perseguição do exército japonês. Em todas as regiões e províncias da Coreia havia núcleos organizados da federação. Os mais importantes foram em Seul, Taegu, Pyongyang e Icheon, bem como na Manchúria e entre os exilados na China e no Japão.

O trabalho dos militantes era produzir propaganda e material impresso sobre a tendência e os diferentes âmbitos de organização. Destaque para os jornais “Recapturar” (Talhwan), “A Conquista” (Jeong Bo) e “Boletim da Justiça”.

A federação sempre manteve, entretanto, uma forte tendência para a ação social. Assim, prioriza a atuação em sindicatos e entre camponeses e estudantes, além de organizar a resistência à ocupação japonesa em células de autodefesa.

Em novembro de 1929, muda seu nome para Federação Anarquista-Comunista da Coréia – FACK (Jo-sun-san Gong Mu-jung-bu-eu-ja Ju-Yeon Maeng). É nessa mesma época que a FACK, sob a influência de Kim Jong-jin, decide destinar mais recursos para alimentar uma revolução ao norte da Coreia e sul, na Manchúria.

CONSTITUIÇÃO E DEFESA DA REGIÃO AUTÔNOMA SHIMIN

Segundo a FACK, as condições para desenvolver um projeto revolucionário libertário foram dadas na região da Manchúria, ao norte da Coreia, fronteira com a China. Uma área historicamente disputada por reis e governantes japoneses, russos, chineses e coreanos. Até a invasão final do exército nipônico, era uma zona de cultivo agrícola especial, com grandes planícies férteis onde o arroz e o milho compunham a produção agrícola mais importante.

Depois do prolongamento ferroviário para Port Arthur, na Rússia, a área tornouse cada vez mais um terreno de disputa militar das potências do Oriente. As classes dominantes do Japão – que viviam, em 1920, um momento de auge no seu crescimento econômico e de expansão territorial para seu império – decidiram empenhar-se na conquista permanente de toda a Manchúria. O objetivo: controlar politicamente áreas hostis em disputa, expandindo seu mercado e indústria para a região.

A área exata da Comuna Autônoma de Shimin localizava-se onde no passado se desenvolvera a região de Younggotap, capital do antigo reino Balhae. Atualmente, compreende a região de Jilin, uma das três províncias chinesas da Manchúria (Dongbei Pingyuan, em chinês). Era um local onde vivia grande parte da população coreana exilada (mais de dois milhões de pessoas). Aproveitando-se da composição claramente rural da população, o plano inicial da comuna era formar coletivos voluntários de camponeses onde a educação seria acessível aos menores de 18 anos. Para os maiores responsáveis, garantiam-se alfabetização e apoio educacional.[15]

Veteranos de guerra haviam garantido seu apoio a uma possível incursão libertadora. Um deles foi o general Kim Jwa-jin, um comandante relativamente jovem (39 anos), conhecido por sua façanha contra o exército japonês na batalha de Chingsanli, dez anos antes. “Baekya”, como foi apelidado Kim Jwa-jin, além de ter um compromisso com a independência da Coreia, possuía um passado de luta pela liberdade. Tal inclinação se manifestou já na juventude: aos 18 anos, ele queimou arquivos de registros de escravos, liberando 50 famílias que, posteriormente, puderam ocupar terras. Foi a primeira libertação de escravos na Coreia contemporânea. Não bastasse isso, fundaria, anos mais tarde, a Escola de Homyeong, dedicada a levar educação racionalista aos setores mais castigados da Coreia.

Kim sempre fora convidado por facções independentistas para oferecer apoio militar. Decidiu, contudo, apostar politicamente no projeto da FACK. Desse modo, em 1929, juntamente com outros generais (como Lee Bom-sok), dissolveu o Exército do Norte e passou a defender, como general do Exército de Autodefesa, a zona de Shimin – já estabelecida como uma Província Autônoma sem Estado central. Seu papel naquele momento era o de comandar a resistência militar dos habitantes da comuna. Porém, sua preocupação com a questão social fez com que se aprofundasse no projeto emancipatório da comuna.

No contexto de resistência armada e revolução social, estabelece-se, em agosto de 1929, o Conselho ou Assembleia de Autogoverno dos Coreanos na Manchúria – AACM (Han-jok-ji Cha Ryong-hap-hoe). Uma associação administrativa baseada no “principio de livre federação sustentada na liberdade espontânea do homem”.[16] Esse tipo de administração, que tinha pouco a ver com a formação de um novo Estado – como propugnavam o marxismo e outras correntes – permitiu que milhões de pessoas se agrupassem numa organização federal descentralizada. Seus princípios foram completamente antagônicos ao capitalismo e ao socialismo estatal, adquirindo certos graus de complexidade à medida que foi se estruturando territorial e internamente.

A relação entre as comunidades e seus sistemas internos de decisão fez necessário a implementação de um tipo de federalismo libertário a partir da formação de três níveis de conselho: Conselhos Municipais ou de Aldeias (de acordo com cada localidade); Conselhos Distritais (de um conjunto de localidades próximas); e Conselhos de Área ou Regionais (cobrindo a região com todos os distritos). Dessa forma, eliminou-se a estrutura do Estado central, além dos estados regionais e locais. Em seu lugar foram estabelecidas juntas de decisão baseadas na democracia direta.

Nas questões relacionadas ao trabalho-produção, à planificação da economia e ao aproveitamento dos bens sociais e naturais, praticaram-se formas inovadoras de funcionamento em diferentes âmbitos do trabalho. Nesse sentido, praticou-se – não sem inconvenientes – a autogestão dos camponeses em grande parte dos serviços públicos e nas plantações de arroz e milho. Delegações da AACM (através de recursos obtidos de desapropriações na cidade) traziam grandes moinhos para processar arroz – alguns de até mil toneladas – o que representou um avanço tecnológico para a comunidade rural. Cada necessidade vital ou problemas sociais exigiram a montagem de novos conselhos para solucioná-los, de acordo com as partes interessadas: Conselhos de Agricultura, Educação, Finanças, Propaganda, Assuntos Militares, Juventude, Saúde Pública, entre outros.

Havia a ideia original de que a sociedade, através da educação, iria conscientemente praticar as diferentes etapas e níveis de federalismo. Todavia, o tempo limitado de guerra na região acelerou a formação dessas estruturas. Um exemplo muito frequente disso era a transferência de delegados de uma cidade para outra para promover a organização mais rápida de conselhos e assembleias do povo, com o objetivo de eleger rapidamente um delegado para a AACM. Nessas circunstâncias, não se poderia produzir um processo gradual de experimentação e prática militante adequada para a sustentação política de uma revolução social. Com base nos escritos, não foi possível identificar claramente o papel da mulher no município. Há referências que indicam que faziam trabalho de propaganda e de contrabando de armas para a guerrilha.

O declínio de um sonho emancipatório

O desenvolvimento organizacional e a expansão da Comuna de Shimin fizeram com que os stalinistas coreanos e a burguesia nacionalista pró-japonesa começassem a ver com maus olhos aquela nova experiência. Na visão dos bolcheviques, a AACM era uma ameaça que cooptava as suas “bases populares”. As áreas próximas a Yu Rim defendiam combate ao stalinismo para se precaver de futuras contendas. Já os guerrilheiros alinhados ao comandante Kim Jwa-Jin argumentavam que a disputa com o marxismo deveria ocorrer depois de conquistada a independência.

No dia 24 de janeiro de 1930, quando Kim Jwa-jin – já com 41 anos – ajudava a reparar um moinho de arroz (segundo diziam, financiado pelos anarquistas), um militante da juventude stalinista do PC coreano assassinou-o a sangue frio. Depois da morte de Kim, a FACK começou a convocar todos os seus membros distribuídos pela Coreia, China e Japão para se concentrarem na área da comuna. O mesmo aconteceu com todos os recursos.

A partir desse momento, duas frentes começaram a atacar simultaneamente: ao sul, as tropas japonesas; ao norte, os stalinistas apoiados pela URSS e pelo PC chinês (ex-aliado da FACK).

Em 1931, os stalinistas começam a enviar infiltrados para assassinar os líderes da FACK. No meado do ano, matam Kim Jong-jin, ideólogo da comuna e líder da FACK. Os comunistas acreditavam que, assassinando os líderes anarquistas (segundo eles, os “dirigentes”), a comuna não tardaria a cair. Embora tenha realizado tais assassinatos seletivos, o exército comunista perdeu terreno para as tropas japonesas até o fim de 1932. Logo o império japonês assumiria o controle de toda a Manchúria, transformando-a em estado fantoche e impondo o velho imperador Puyi como governante.

Após a queda definitiva das últimas aldeias da comuna, em 1932, muitos ativistas tiveram de fugir da perseguição tanto do exército japonês quanto dos bolcheviques. Baek Jeong-gi organizou na clandestinidade os “Corpos de Independência de Esquerda”, até ser levado preso para Nagasaki, onde morreu de pneumonia crônica em 1934.

Yu Rim, líder da juventude anarquista, foi condenado a cinco anos e, depois, exilado na China. Posteriormente, voltaria a lutar contra a ditadura nacionalista da Coreia do Sul.

O resto da militância da FACK foi perseguida – quando não aniquilada – por toda a península.

A mesma área onde floresceu por três anos Comuna de Shinmim foi ocupada por empresários japoneses que promoveram desenvolvimento do comércio, mineração e indústria.

A população sobrevivente aos massacres do exército japonês e dos stalinistas começou a viver num regime de escravidão, fome e arbítrio. Havia, inclusive, denúncias de que as empresas japonesas, para evitar gastos com a saúde, fuzilavam trabalhadores que estavam doentes.

Em 1945, o anarquismo coreano viu renascer das cinzas um grupo organizado: a Federação para a Construção de uma Sociedade Livre, que promovia o controle das fábricas pelos operários em Seul.

Que os traços deixados por essa experiência de revolução social na Coreia do Norte não fechem um capítulo na história do anarquismo do Sudeste Asiático; mas, sim, levantem questões sobre os resultados produzidos durante o processo de coletivização rural com uma participação de dois milhões de pessoas. Embora a comuna tenha durado cerca de 30 meses e ocorrido numa área um pouco maior que o estado de Alagoas[17] , acreditamos que sejam válidas as tentativas de revelar fatos tão pouco conhecidos no ocidente. Ainda mais se tratando de uma experiência anarquista.

Durante a investigação – ainda aberta – vêm sendo feitas tentativas de aprofundar a comunicação e o compartilhamento de arquivos e dados entre diferentes entidades e pessoas que pesquisam o assunto. Uma clara barreira é a distância geográfica, idiomática, cultural e temporal na hora de conhecer balanços contemporâneos feitos pelo anarquismo do Sudeste Asiático. Sabemos apenas que um dos últimos marcos na história do anarquismo coreano foi a reconstrução, no início dos anos 1980, da Federação Anarquista na parte sul da península.

Correntes historiográficas orientais, bem como as ocidentais, – tanto marxistas quanto liberais ou nacionalistas – apagaram/ignoraram as experiências históricas críticas e antagônicas à formação dos Estados Nacionais e às construções da cidadania e nacionalidade exigidas pelos setores hegemônicos hoje em dia. Assim, a luta enfrentada pelos anarquistas atualmente deve não só propor um projeto libertário como alternativa ao sistema de dominação, mas também recuperar do esquecimento os processos e projetos emancipatórios próprios, quando foram propostas mudanças sociais sem atalhos.

A sociedade igualitária proposta pela FACK e realizada pela AACM não prosperou por conta de sua incapacidade de se defender em médio prazo. Obviamente, não foi capaz de deter o avanço de um império militar em sua expansão política e econômica – visto que só a Segunda Guerra Mundial fratricida (e, ainda assim, só depois de 10 anos) poderia tê-lo feito até certo ponto. Contudo, a experiência da revolução coreana libertária se inscreve na história de nossa classe, devendo ser conhecida, discutida e, obviamente, aprofundada.

Os curtos 20 anos de revoluções de impulso libertário (1917-1936), com seus sucessos e fracassos, devem nos servir de guia e inspiração na hora de agir, refletir e pôr em marcha a mudança social que definitivamente consiga erigir uma sociedade sem hierarquias. É nesse caminho que acreditamos, assim como nossos velhos companheiros da FACK.

Referências Bibiográficas

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VAN DER WALT, Lucien. “Towards a history of anarchist anti-imperialism”. http://www.anarkismo.net/article/84

[1] KIM IL-SUNG. “With the Century”. Foreign Languages Publishing House, Pyongyang, Coreia do Norte, 1994.

[2] GRAHAM, R. (ed.). Anarchism: A Documentary History of Libertarian Ideas. Vol.1: From Anarchy to Anarchism (300 CE to 1939). Montreal, Black Rose Books, 2005.

[3] Em 1923, Park Yeol (1902-1974) e sua companheira Kaneko Fumiko foram presos sob acusação de atentado contra o imperador japonês Hiroito. Ficaram 22 anos na cadeia, sendo libertados em 1945.

[4] HA KI-RAK. History of the Korean anarchist movement. Seoul, 1986.

[5] MACSIMOIN, Alain. “Workers Solidarity Movement (Irlanda)”. Setembro de 1991, Dublin; e HA KI-RAK, History of the Korean anarchist movement, op. cit.

[6] Os cinco militantes são Yun Woo-yeol, Ha Eun-sa, An Byong-hoe, Yang Myoung y Lee Yoon-jae.

[7] MACSIMOIN, Alain. Op. cit.; e HA KI-RAK. Op. cit.

[8] Alguns dos militantes detidos foram Yun Yong-wha, Lee In-ha, Lee Eun-song e Kim Soon-hee, entre outros.

[9] Entre os artistas presos pela polícia japonesa: Kwon O-don, An Byeong-ki, Kim Hak-won, Jeong Jin-bok, Seo Jeong-ki e Kim Hyeon-kuk.

[10] HA KI-RAK. Op. cit.

[11] Shin Chae-ho foi preso em 1928, quando realizou expropriações para financiar a luta político-social. Morre sozinho e enfermo, em 1936, na prisão de Lushun. [Sobre Chae-ho consultar 'Shin Chae-ho: el Kotoku de Corea', disponível em http://anarkismo.net/article/17888].

[12] HA KI-RAK. Op. cit. [O manifesto na íntegra, traduzido para o castelhano, com introdução histórica, pode ser lido em http://anarkismo.net/article/18343].

[13] Ibidem. Interessante notar como, na década de 20, o anarquismo já começa a falar de um poder popular.

[14] Ibidem

[15] Ibidem

[16] Ibidem.

[17] N. do R.: para aproximar à realidade do leitor brasileiro. Província de Misiones (Argentina) = 29.801 km². Alagoas = 27.767 km². Yu Rim (1894-1961) fué referente de las juventudes libertarias en Corea. Editó junto a Shin Chae-ho y Kim Chang-suk el periódico “Chon-go” desde su exilio en China.