Título: Minha vida valeu a pena?
Autor: Emma Goldman
Assuntos: Goldman, Vida
Data: 12/1934
Fonte: Revista Verve, 35, 2019, págs: 113-129. Primeira Edição: Harper's Monthly Magazine, Vol. CLXX, dezembro 1934. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/ emma-goldman-was-my-life-worth-living. Apesar de não ser uma revista anárquica, a Harper's Magazine, fundada em 1890 em Nova York, tem como tradição publicar novas perspectivas relativas à política, sociedade, arte e cultura (NT).
Notas: Tradução: do inglês por Eliane Carvalho.
e-g-emma-goldman-minha-vida-valeu-a-pena-1.jpg

  I

  II

  III

I

Quanto uma filosofia pessoal é uma questão de temperamento ou resultado de experiências é um assunto para debate. Naturalmente, chegamos a conclusões à luz de nossas experiências por um processo que chamamos de raciocínio sobre os fatos observados nos eventos em nossas vidas. A criança é suscetível à fantasia. Ao mesmo tempo, ela enxerga a vida de forma mais verdadeira do que os mais velhos à medida em que se atenta ao seu entorno. A criança ainda não foi impregnada pelos costumes e preconceitos que constituem a maior parte do pensamento. Cada criança responde de uma maneira ao seu ambiente. Algumas se tornam rebeldes, recusando o deslumbramento com as superstições sociais. Revoltam- se com cada injustiça cometida contra elas ou contra os outros. Crescem cada vez mais sensíveis ao sofrimento que as circunda e às restrições que marcam cada convenção e tabu impostos sobre elas.

Eu, evidentemente, pertenço à primeira categoria. Desde as primeiras lembranças de minha juventude na Rússia, tenho me rebelado contra a ortodoxia em todas as suas formas. Nunca suportei presenciar a severidade, e me indignava com a brutalidade oficial praticada sobre os camponeses na nossa vizinhança. Derramei amargas lágrimas quando os jovens foram recrutados pelo exército e arrancados de seus corações e lares. Ressenti-me contra o tratamento dado aos nossos serviçais, que realizavam todo o trabalho duro e ainda tinham que se resignar aos miseráveis quartos de dormir e aos restos de nossa comida. Indignei-me ao descobrir que o amor entre jovens judeus e jovens gentios era considerado o crime entre os crimes, e que o nascimento de uma criança ilegítima era considerado a mais depravada imoralidade.

Chegando à América, trouxe as mesmas esperanças da maioria dos imigrantes europeus e me deparei com as mesmas desilusões, mas estas últimas me afetaram mais profunda e intimamente. Ao imigrante sem dinheiro e sem conexões não é permitido apreciar a reconfortante ilusão de que a América é o tio benevolente que assume uma imparcial e carinhosa guarda de seus sobrinhos e sobrinhas. Logo aprendi que em uma república há inúmeras maneiras pelas quais os mais fortes, astutos e ricos podem tomar o poder e mantê-lo. Vi muitos trabalharem por salários baixos que os mantinham nos limites da escassez para aqueles poucos que obtinham grandes lucros. Vi os tribunais, os salões do legislativo, a imprensa e as escolas — na realidade, todo local para a educação e proteção — usados de forma efetiva como instrumento de proteção de uma minoria, enquanto às massas era negado qualquer direito. Descobri que os políticos sabiam como obscurecer cada questão, como controlar a opinião pública e manipular os votos para sua própria vantagem e de seus aliados financeiros e industriais. Este é o retrato da democracia que logo descobri na minha chegada nos Estados Unidos. Houve basicamente pouca mudança significativa desde aqueles tempos.

Essa situação, experimentada no dia a dia, foi-me exposta com uma força tal que rompeu os embustes e fez com que a realidade se sobressaísse viva e claramente a partir de um evento que aconteceu pouco depois da minha chegada na América. Foi a então chamada revolta de Haymarket, que resultou no julgamento e condenação de oito homens, entre eles cinco anarquistas. Seu crime foi um imenso amor por seus companheiros e a determinação em emancipar a massa oprimida e desapossada. De forma nenhuma o estado de Illinois conseguiu provar a conexão desses homens com a bomba atirada em um comício ao ar livre na Praça de Haymarket, em Chicago. Foi o fato de serem anarquistas o que resultou em sua condenação e execução no dia 11 de novembro de 1887. Este crime jurídico deixou uma marca indelével em minha mente e em meu coração, e levou à minha aproximação do ideal pelo qual estes homens haviam morrido tão bravamente. Passei a me dedicar à sua causa.

É necessário mais do que a experiência pessoal para se adquirir uma filosofia ou um ponto de vista a partir de algum evento específico. É a qualidade de nossa resposta ao evento e nossa capacidade de entrar na vida dos outros que nos possibilita tornar a vida e a experiência deles em nossa própria. No meu caso, minhas convicções derivaram e se desenvolveram dos eventos e das vidas de outros, bem como da minha própria experiência. Tudo o que vi, relativo à autoridade e à repressão econômica e política sobre os outros, transcende qualquer coisa que eu tenha sofrido.

Perguntam-me frequentemente por que mantenho um antagonismo tão inflexível em relação ao governo e de que maneira eu me encontro oprimida por este. Na minha opinião, todo indivíduo é mutilado pelo governo. Este extorque impostos da produção. Cria tarifas que impedem a troca livre. Coloca-se sempre ao lado do status quo e das condutas e crenças tradicionais. Entra na vida pessoal e nas relações pessoais mais íntimas, incitando os supersticiosos, puritanos e corruptos a impor seus preconceitos obtusos e servidão moral sobre os sensíveis, os criativos e os espíritos livres. O governo faz isso por suas leis de divórcio, por sua censura moral e por milhares de perseguições mesquinhas àqueles que são honestos demais para vestirem a máscara moral da respeitabilidade. Além disso, o governo protege os fortes à custa dos fracos, fornece tribunais e leis, que os ricos desdenham e que o pobre deve obedecer. Permite que o rico predador faça guerras que lhes irão fornecer mercados estrangeiros para os favorecidos, com prosperidade para os mandatários e morte a granel para os governados. No entanto, não é apenas o governo no sentido do Estado que destrói todo valor e qualidade individual. É todo o complexo de autoridade e dominação institucional que sufoca a vida. São as superstições, os mitos, dissimulações, evasões e a subserviência que sustentam a autoridade e a dominação institucional. É a reverência a essas instituições incutidas nas escolas, na igreja e no lar, de modo que o homem acredite e obedeça sem protestar. Tal processo de desvitalização e deturpação da personalidade dos indivíduos e de todas as comunidades pode ter sido parte da evolução histórica, mas deve ser vigorosamente combatido por toda mente honesta e independente em uma era que tenha qualquer pretensão ao esclarecimento.

É frequentemente sugerido a mim que a Constituição dos Estados Unidos é a garantia suficiente de liberdade para seus cidadãos. É obvio que mesmo a liberdade que ela finge assegurar é muito limitada. A adequação da garantia não me impressiona. As nações do mundo, com séculos de leis internacionais por trás delas, nunca hesitaram em se empenhar na destruição em massa, ao mesmo tempo que, solenemente, prometem manter a paz. E os documentos oficiais na América não evitaram que os Estados Unidos fizessem o mesmo. Aqueles com autoridade sempre abusaram e abusarão de seu poder, e as ocasiões em que não o fazem são tão raras como rosas em icebergs. A Constituição está longe de desempenhar qualquer papel liberador na vida dos americanos, ela lhes roubou a capacidade de confiar em seus próprios recursos ou de pensar por si mesmos. O povo americano é facilmente ludibriado pela santidade da lei e da autoridade. Na realidade, o padrão de vida se tornou uniformizado, roteirizado e mecanizado tal qual a comida enlatada e os sermões de domingo. Os “100% Americanos”[1] facilmente engolem informações tendenciosas, crenças e ideias industrializadas. Eles proliferam a partir da sabedoria transmitida pelo rádio e por revistas baratas de empresas cujo objetivo filantrópico é vender a América. Estes homens aceitam os padrões de conduta e de arte da mesma forma que um comercial de chiclete, pasta de dentes e graxa de sapatos. Até canções são produzidas como botões ou pneus de carros — tudo projetado pelo mesmo molde.

II

Ainda assim, não me desespero com a vida americana. Ao contrário, sinto que o frescor da perspectiva americana e as inexploradas provisões de energia intelectual e emocional que existem no país são uma grande promessa para o futuro. A guerra deixou em seu rescaldo uma geração confusa. A loucura e brutalidade presenciadas, a crueldade e o desperdício desnecessários que quase o destruíram o mundo, fizeram com que essa geração duvidasse dos valores transmitidos por seus antecessores. Alguns, sem nada saber do passado, tentaram criar novas formas de vida e arte do nada; outros vivenciaram a decadência e o desespero; muitos, mesmo na revolta, foram patéticos. Recuaram para a submissão e a futilidade porque lhes faltava um ideal e estavam atravancados por um senso de pecado e pelo peso de ideias mortas em que não poderiam mais acreditar.

Nos últimos tempos, um novo espírito tem se manifestado na juventude que tem crescido com a depressão. Este espírito tem um propósito, ainda que confuso. Quer criar um mundo novo, mas ainda não é claro como quer alcançá-lo. Por esta razão, a geração mais jovem pede por salvadores. Tende a acreditar em ditadores e saudar cada novo aspirante como um messias. Busca um sistema inequívoco de salvação com uma minoria sábia para dirigir a sociedade em uma via única para a utopia. Ainda não notou que deve salvar a si mesma. A jovem geração ainda não aprendeu que os problemas que enfrenta só podem ser resolvidos por ela mesma, com base na liberdade econômica e social em cooperação com as massas trabalhadoras por seu direito à mesa e aos prazeres da vida.

Como já afirmei, minha objeção à autoridade, seja qual for a sua forma, deriva de uma visão social muito mais ampla do que qualquer coisa que eu tenha sofrido em relação a ela. O governo, obviamente, interferiu na minha plena expressão, assim como faz com outros. Certamente, os poderes não me pouparam. Batidas policiais em minhas conferências, durante meus trinta e cinco anos de atividades nos Estados Unidos, eram uma ocorrência comum, seguida de inúmeras detenções e três condenações à prisão. A isso seguiu-se a anulação da minha cidadania e minha deportação. A mão da autoridade esteve sempre interferindo em minha vida. E se, todavia, pude me expressar, foi apesar de toda restrição e dificuldades colocadas no meu caminho e não por causa delas. E nisso eu jamais estive sozinha. Em todo o mundo existiram figuras heroicas para a humanidade que, frente às perseguições e difamações, viveram e lutaram por seus direitos e pelo direito da humanidade à livre e ampla expressão. A América destaca-se pelo grande número de crianças nascidas em seu território que definitivamente não deixam nada a desejar: Walt Whitman; Henry David Thoureau; Voltairine de Cleyre, uma das grandes anarquistas na América; Moses Harman, pioneiro na questão da emancipação da mulher de sua subserviência sexual; Horace Traubel, doce cantor da liberdade, e toda uma gama de almas corajosas se expressaram de acordo com uma nova ordem social baseada na liberação de qualquer forma de coerção. É verdade que tiveram que pagar um preço alto. Foram privados de grande parte dos confortos que a sociedade oferece aos inteligentes e talentosos, mas que lhes são negados se não forem subservientes. Porém, independente do preço, suas vidas foram enriquecidas para além do senso comum. Eu também me sinto desmesuradamente abastada. E isso se deve à descoberta do anarquismo, que mais do que qualquer outra coisa, fortaleceu minha convicção de que a autoridade embrutece o desenvolvimento humano, enquanto a liberdade plena o afirma.

Considero o anarquismo a filosofia mais bela e prática já pensada em sua aplicação para a expressão individual e a relação que estabelece entre o indivíduo e a sociedade. Além disso, creio que o anarquismo é demasiadamente vital e próximo da natureza humana para acabar. Tenho como convicção que a ditadura, seja à direita ou à esquerda, nunca funcionará — ela nunca funcionou e o tempo provará, como já aconteceu. Quando o fracasso de ditadores modernos e de filosofias autoritárias se tornarem mais aparentes e a percepção de fracasso se tornar mais geral, o anarquismo vingará. Deste pondo de vista, a erupção das ideias anarquistas em um futuro próximo é muito provável. Quando isto acontecer e produzir efeito, acredito que a humanidade deixará o labirinto em que se encontra e, pela liberdade, começará um caminho para uma vida sã e para a regeneração.

Há muitos que negam a possibilidade de tal regeneração alegando que a natureza humana não pode mudar. Aqueles que insistem que a natureza humana permanece a mesma em todos os tempos não aprenderam nada e esqueceram tudo. Eles certamente não têm a mínima noção dos passos significativos nas áreas de sociologia e psicologia que provam que, sem sombra de dúvidas, a natureza humana é plástica e pode mudar. A natureza humana não é de modo algum fixa, e sim fluida e receptiva às novas condições. Se, por exemplo, o chamado instinto de autopreservação fosse tão fundamental como se supõe, as guerras teriam sido eliminadas há muito tempo, assim como as ocupações insalubres e perigosas.

Aqui eu gostaria de salientar que não seriam necessárias mudanças tão grandes, como se supõe, para garantir o sucesso de uma nova ordem social, como a concebida pelos anarquistas. Eu penso que o nosso aparato atual seria suficiente se as opressões artificiais e as desigualdades, bem como a força organizada e a violência que a sustentam, fossem removidas.

Diz-se também que, se a natureza humana pode ser mudada, o amor pela liberdade não poderia ser removido por adestramento dos corações humanos? O amor à liberdade é algo universal, e nenhuma tirania pode erradicá-lo. Alguns ditadores contemporâneos podem até tentar, e na realidade estão tentando com todas as formas de crueldade ao seu comando. Mesmo que eles durem tempo suficiente para levar este projeto adiante — o que é pouco viável —, há outras dificuldades. Em primeiro lugar, as pessoas que os ditadores procuram adestrar teriam de ser subtraídas de toda a tradição em sua história que pudesse sugerir os benefícios da liberdade. Também seria necessário isolar estas pessoas do contato com qualquer outro que lhes pudesse trazer ideias libertárias. O simples fato, no entanto, de que a pessoa tem consciência de si, de ser diferente dos outros, cria o desejo de agir livremente. A vontade de liberdade e autoexpressão é um traço fundamental e dominante.

Como é habitual quando as pessoas estão tentando se livrar de fatos incômodos, frequentemente me deparo com a alegação de que o homem médio não quer a liberdade, que o amor à mesma existe para poucos, que o povo americano, por exemplo, simplesmente não liga para isso. Que o povo americano não carece completamente do desejo por liberdade foi provado com sua resistência à antiga Lei Seca[2], que foi tão efetiva que até mesmo os políticos finalmente responderam ao apelo popular e revogaram a emenda. Se as massas americanas fossem tão determinadas ao lidar com questões mais importantes, teriam alcançado muito mais. É verdade, no entanto, que o povo americano está apenas começando a se abrir para ideias mais avançadas. Isto se dá por conta da evolução histórica do país. A ascensão do capitalismo e de um Estado poderoso são, afinal de contas, recentes nos Estados Unidos. Muitos ainda creem ingenuamente na tradição dos pioneiros, quando o sucesso era fácil, as oportunidades abundantes, e era pouco provável que a posição econômica do indivíduo se tornasse estática ou desesperançada.

É verdade, contudo, que o americano médio continua imbuído dessas tradições, convencido de que a prosperidade voltará. Mas, diante do fato de alguns carecerem de individualidade e da capacidade de pensar de modo independente, não posso admitir que isso seja motivo para que a sociedade mantenha um berçário especial para regenerá-los. Insisto que a liberdade, a liberdade real, uma sociedade mais livre e mais flexível, é o único meio para o desenvolvimento das melhores potencialidades do indivíduo.

Concordarei que alguns indivíduos alcançam uma grande envergadura em sua revolta contra as condições existentes. Sei perfeitamente que meu próprio desenvolvimento foi em grande parte em meio à revolta, mas considero um absurdo o argumento de que os males sociais devem ser perpetrados para que se faça necessária a revolta contra eles. Tal argumento seria uma repetição da velha ideia de purificação religiosa. Em primeiro lugar, é falta de imaginação supor que aqueles que mostram qualidades acima do comum só poderiam se desenvolver de uma maneira. A pessoa que sob este sistema desenvolveu traços de revolta poderia facilmente, em um contexto social diferente, ter se desenvolvido como artista, cientista, ou em qualquer outra capacidade criativa e intelectual.

III

Hoje, não afirmo que o triunfo das minhas ideias eliminaria todos os problemas possíveis da vida do homem para sempre. Acredito que a erradicação dos atuais obstáculos artificiais ao progresso abriria caminho para novas conquistas e prazeres da vida. A natureza e nossos próprios sistemas são aptos a continuar nos proporcionando dores e lutas suficientes. Por que então manter o sofrimento desnecessário imposto por nossa atual estrutura social, com base no mito de que isso fortaleceria nosso caráter, quando corações e vidas partidas sobre nós, todos os dias, desmentem tal noção?

Grande parte da preocupação sobre o abrandamento do caráter humano sob a liberdade vem de pessoas prósperas. Seria difícil convencer alguém faminto de que muita comida arruinaria o seu caráter. Quanto ao desenvolvimento individual na sociedade que anseio, me parece que com liberdade e abundância saltos inimagináveis de iniciativa individual seriam liberados. A curiosidade humana e o seu interesse no mundo são indubitáveis para o desenvolvimento individual em qualquer campo de ação.

Claro que para aqueles imersos no presente é impossível notar que o incentivo pelos ganhos poderia ser substituído por outra força que motivasse as pessoas a dar o melhor que existe nelas. Com certeza, o lucro e os ganhos são fortes fatores em nosso sistema atual. Eles têm que ser. Até os ricos possuem uma sensação de insegurança. Quer dizer, eles querem proteger o que têm e se fortificar. A motivação pelos ganhos e pelo lucro, entretanto, está relacionada a outros motivos mais fundamentais. Quando um homem se proporciona roupas e abrigo, caso ele seja do tipo "faz dinheiro", ele continua a trabalhar para garantir o seu status — para receber o prestígio do gênero admirado por seus colegas. Sob condições de vida diferentes e mais justas, estes motivos mais fundamentais podem ser empregados para fins especiais, e a motivação pelo lucro, que é apenas a sua manifestação, sucumbirá. Mesmo hoje, cientistas, inventores, poetas e artistas não são primordialmente movidos pelas possibilidades de ganhos ou lucros. O impulso de criar é a primeira e a maior força em suas vidas. Se este impulso falta às massas de trabalhadores, isso não é de modo algum surpreendente, uma vez que a sua ocupação é uma rotina mortífera. Sem nenhuma relação com suas vidas ou necessidades, o trabalho é executado nos mais deploráveis espaços, ao comando daqueles que têm o poder de vida e morte sobre as massas. Por que, então, deveriam eles se sentirem impulsionados a fazer mais do que o absolutamente necessário para garantir sua miserável existência?

Nas artes, ciências, literatura e em áreas da vida que acreditamos ser extirpadas de alguma maneira de nosso cotidiano, somos dados à pesquisa, experimentos e inovação. Porém, nossa tradicional reverência à autoridade é tão grande que um medo irracional emerge na maioria das pessoas quando se sugere que experimentem. Certamente, há ainda razões maiores para a experimentação no campo social do que no científico. Espera-se, assim, que à humanidade ou a uma parte dela seja dada a oportunidade, em um futuro não muito distante, de tentar esta vida afortunada e se desenvolver sob a liberdade que corresponde às etapas iniciais de uma sociedade anarquista. A crença na liberdade pressupõe que os seres humanos são capazes de cooperar. Mesmo agora eles o fazem em uma dimensão surpreendente, do contrário, a sociedade organizada seria impossível. Se os instrumentos com os quais os homens podem prejudicar uns aos outros, tal como a propriedade privada, fossem eliminados, e se o culto à autoridade pudesse ser excluído, a cooperação seria espontânea e inevitável, e o indivíduo descobriria sua maior vocação para contribuir e enriquecer o bem-estar social.

Somente o anarquismo ressalta a importância do indivíduo, suas possibilidades e necessidades em uma sociedade livre. Em vez de dizer que ele deve se submeter e venerar as instituições, viver e morrer pelas abstrações, partir seu coração e impedir seu próprio desenvolvimento em nome de tabus, o anarquismo insiste que o centro de gravidade na sociedade é o indivíduo, que ele deve pensar por si mesmo, agir livremente e viver plenamente. O objetivo do anarquismo é que cada indivíduo no mundo possa fazer isso. Se ele puder se desenvolver livre e plenamente, se livrará da interferência e opressão de outros. A liberdade é, desta forma, o alicerce da filosofia anarquista. Obviamente, isto não tem nada a ver com o tão vangloriado “individualismo sólido”[3].Tal individualismo predatório é na realidade murcho, e não sólido. Ao menor sinal de perigo, ele corre para os braços do Estado e chora pela proteção do exército, marinha ou qualquer outro aparelho repressivo que estiver sob o controle do Estado. Seu “individualismo sólido” é simplesmente uma das desculpas que a classe dominante usa para ampliar seus negócios ilimitadamente e para a extorsão política.

Sem se importar com a tendência atual em direção aos brutamontes, aos Estados totalitários ou a ditaduras de esquerda, minhas ideias permanecem inabaladas. Na realidade, elas foram fortalecidas pela minha experiência pessoal e pelos acontecimentos mundiais no decorrer dos anos. Não vejo razão para mudar, uma vez que não acredito que a tendência à ditadura possa ser bem-sucedida na solução de nossos problemas sociais. Assim como no passado, ainda insisto que a liberdade é a alma do progresso e essencial em cada fase da vida. Considero-a o mais próximo que poderíamos postular de uma lei de evolução social. Minha fé é no indivíduo e na capacidade de indivíduos livres se unirem.

O fato do movimento anarquista, pelo qual me empenho há tanto tempo estar, de certa maneira, estagnado e obscurecido por filosofias autoritárias e coercitivas me preocupa, mas não me desespera. Parece- me um fato de grande importância que muitos países se neguem a receber anarquistas. Os governos sustentam que, enquanto partidos à direita ou à esquerda podem defender mudanças sociais, estes ainda preservam a ideia de governo e autoridade. Somente o anarquismo rompe com ambos e propaga a rebelião irredutível. A longo prazo, portanto, o anarquismo é sempre o mais mortal dos inimigos do atual regime do que outras teorias sociais que agora clamam pelo poder.

Deste ponto de vista, penso que minha vida e trabalho foram bem-sucedidos. O que geralmente se tem como sucesso — aquisição de bens, conquista do poder ou prestígio social —, considero fracassos deploráveis. Desconfio quando ouço que um homem chegou lá. Isso significa que ele está acabado, que seu desenvolvimento parou em determinado ponto. Sempre me esforcei para me manter em um estado de fluxo e crescimento contínuos, e não me estagnar em um nicho de autossatisfação. Se tivesse que viver minha vida novamente, assim como qualquer um, mudaria alguns pequenos detalhes. Mas, em minhas ações e atitudes mais importantes, viveria exatamente como fiz. Certamente eu trabalharia pelo anarquismo com a mesma convicção e confiança em seu triunfo final.

[1] O termo original em inglês, hundred-percenter, refere-se aos ultranacionalistas estadunidenses (NT).

[2] A Lei Seca, nos Estados Unidos, que proibia a produção, importação, transporte e venda de bebidas alcoólicas no país, estendeu-se entre os anos de 1920 e 1933, quando foi revogada pelo presidente Franklin Roosevelt (NT).

[3] O termo em inglês, Rugged Individualism, foi utilizado publicamente pela primeira vez nos Estados Unidos durante o discurso de posse do presidente republicano Herbert Hoover, em 1928, um ano antes do início da chamada Grande Depressão. O termo reproduz a posição liberal do individualismo e a crença na oportunidade estadunidense, diante da crescente interferência estatal nos governos da Europa (NT).