Emma Goldman
O Indivíduo, a Sociedade e o Estado
As mentes dos homens estão confusas, pois os próprios fundamentos de nossa civilização parecem estar cambaleando. As pessoas estão perdendo a fé nas instituições existentes, e as mais inteligentes percebem que o industrialismo capitalista está indo contra o propósito que supostamente teria.
O mundo está sem saída. O parlamentarismo e a democracia estão em declínio. A salvação está sendo buscada no fascismo e em outras formas de governo “forte”.
A luta de ideias opostas que agora se desenrola no mundo envolve problemas sociais que exigem urgentemente uma solução. O bem-estar do indivíduo e o destino da sociedade humana dependem da resposta certa a essas perguntas. A crise, o desemprego, a guerra, o desarmamento, as relações internacionais, etc., estão entre esses problemas.
O Estado, governo com suas funções e poderes, é agora assunto de interesse vital para todo homem pensante. Os desenvolvimentos políticos em todos os países civilizados trouxeram as questões para casa. Teremos um governo forte? A democracia e o governo parlamentar devem ter preferência, ou o fascismo de um tipo ou de outro, a ditadura – monárquica, burguesa ou proletária – seria a solução dos males e dificuldades que assolam a sociedade hoje?
Em outras palavras, devemos curar os males da democracia com mais democracia, ou devemos cortar o nó central do governo popular com a espada da ditadura?
Minha resposta é: nem uma nem outra. Sou contra a ditadura e o fascismo assim como me oponho aos regimes parlamentares e à chamada democracia política.
O nazismo foi justamente chamado de ataque à civilização. Essa caracterização se aplica com igual força a todas as formas de ditadura; na verdade, a todo tipo de repressão e autoridade coercitiva. Pois o que é civilização no verdadeiro sentido? Todo progresso foi essencialmente uma ampliação das liberdades do indivíduo com uma correspondente diminuição da autoridade exercida sobre ele por forças externas. Isso vale tanto no domínio da existência física quanto na política e econômica. No mundo físico, o homem progrediu na medida em que subjugou as forças da natureza e as tornou úteis a si mesmo. O homem primitivo deu um passo no caminho do progresso quando produziu o fogo pela primeira vez e assim triunfou sobre as trevas, quando acorrentou o vento ou aproveitou a água.
Que papel desempenhou a autoridade ou o governo no esforço humano para o aperfeiçoamento, na invenção e na descoberta? Nenhum, ou pelo menos nenhum que fosse útil. Sempre foi o indivíduo que realizou todos os milagres nessa esfera, apesar da proibição, perseguição e interferência da autoridade, humana e divina, na maioria das vezes.
Do mesmo modo, na esfera política, o caminho do progresso consistia em afastar-se cada vez mais da autoridade do chefe tribal ou do clã, do príncipe e do rei, do governo e do Estado. Economicamente, o progresso significou maior bem-estar de números cada vez maiores. Culturalmente, significou o resultado de todas as outras conquistas – maior independência, política, mental e psíquica.
Visto deste ângulo, os problemas da relação do homem com o Estado assumem um significado inteiramente diferente. Não é mais uma questão de saber se a ditadura é preferível à democracia, ou o fascismo italiano superior ao hitlerismo. Uma questão maior e muito mais vital se coloca: o governo político é benéfico para a humanidade, o Estado é benéfico para a humanidade e como isso afeta o indivíduo no esquema social das coisas?
O indivíduo é a verdadeira realidade da vida. Cosmos em si mesmo, ele não existe para o Estado, nem para aquela abstração chamada “sociedade”, ou a “nação”, que é apenas um conjunto de indivíduos. O homem, o indivíduo, sempre foi e necessariamente é a única fonte e força motriz da evolução e do progresso. A civilização tem sido uma luta contínua do indivíduo ou de grupos de indivíduos contra o Estado e mesmo contra a “sociedade”, isto é, contra a maioria subjugada e hipnotizada pelo Estado e pelo culto ao Estado. As maiores batalhas do homem foram travadas contra obstáculos criados pelo homem e desvantagens artificiais impostas a ele para paralisar seu crescimento e desenvolvimento. O pensamento humano sempre foi falsificado pela tradição e pelo costume, e pervertido pela falsa educação no interesse daqueles que detinham o poder e gozavam de privilégios. Em outras palavras, pelo Estado e pelas classes dominantes. Este conflito constante e incessante tem sido a história da humanidade.
A individualidade pode ser descrita como a consciência do indivíduo sobre o que ele é e como ele vive. É inerente a todo ser humano e é algo em crescimento. O Estado e as instituições sociais vêm e vão, mas a individualidade permanece e persiste. A própria essência da individualidade é a expressão; o senso de dignidade e independência é o solo em que ela prospera. A individualidade não é a coisa impessoal e mecanicista que o Estado trata como um “indivíduo”. O indivíduo não é meramente o resultado da hereditariedade e do ambiente, de causa e efeito. Ele é isso e muito mais, muito mais. Um ser vivo não pode ser definido; ele é a fonte de toda a vida e de todos os valores; ele não faz parte disto ou daquilo; ele é um todo, um todo individual, um todo crescente, mutável, mas sempre constante.
A individualidade não deve ser confundida com as várias ideias e conceitos do Individualismo; muito menos com aquele “individualismo rude” que é apenas uma tentativa mascarada de reprimir e derrotar o indivíduo e sua individualidade. O chamado Individualismo é o laissez faire social e econômico: a exploração das massas pelas classes por meio de artifícios legais, aviltamento espiritual e doutrinação sistemática do espírito servil, processo conhecido como “educação”. Esse “individualismo” corrupto e perverso é a camisa de força da individualidade. Ela converteu a vida em uma corrida degradante por coisas externas, por posse, por prestígio social e supremacia. Sua maior sabedoria é “dane-se quem ficar por último”.
Esse “individualismo rude” inevitavelmente resultou na maior escravidão moderna, nas mais crassas distinções de classe, levando milhões à miséria. “Individualismo rude” significou todo o “individualismo” para os senhores, enquanto o povo é arregimentado em uma casta de escravos para servir a um punhado de “super-homens” egoístas. A América é talvez o melhor representante desse tipo de individualismo, em cujo nome a tirania política e a opressão social são defendidas e tidas como virtudes; enquanto toda aspiração e tentativa do homem de ganhar liberdade e oportunidade social de viver é denunciada como “antiamericana” e má em nome desse mesmo individualismo.
Houve um tempo em que o Estado era desconhecido. Em sua condição natural o homem existia sem nenhum Estado ou governo organizado. As pessoas viviam como famílias em pequenas comunidades; lavravam o solo e praticavam as artes e ofícios. O indivíduo, e mais tarde a família, era a unidade da vida social onde cada um era livre e igual ao seu próximo. A sociedade humana então não era um Estado, mas uma associação; uma associação voluntária para proteção e benefício mútuos. Os mais velhos e os membros mais experientes eram os guias e conselheiros do povo. Eles ajudaram a administrar os assuntos da vida, não a governar e dominar o indivíduo.
O governo político e o Estado foram um desenvolvimento muito posterior, surgindo do desejo dos mais fortes de tirar vantagem dos mais fracos, dos poucos contra os muitos. O Estado, eclesiástico e laico, serviu para dar uma aparência de legalidade e direito ao mal cometido por poucos a muitos. Essa aparência de direito era necessária para que fosse mais fácil governar o povo, pois nenhum governo pode existir sem o consentimento do povo, consentimento aberto, tácito ou presumido. Constitucionalismo e democracia são as formas modernas desse suposto consentimento; o consentimento sendo inoculado e doutrinado pelo que é chamado de “educação”, em casa, na igreja e em todas as outras fases da vida.
Esse consentimento é a crença na autoridade, na necessidade dela. Em sua base está a doutrina de que o humano é mau, vicioso e incompetente demais para saber o que é bom para ele. Sobre isso se constrói todo governo e opressão. Deus e o Estado existem e são sustentados por esse dogma.
No entanto, o Estado nada mais é do que um nome. É uma abstração. Como outras concepções semelhantes — nação, raça, humanidade — não tem realidade orgânica. Chamar o Estado de organismo mostra uma tendência doentia de fazer das palavras um fetiche.
O Estado é um termo para a máquina legislativa e administrativa pela qual certos negócios do povo são realizados, e mal. Não há nada sagrado, santo ou misterioso nisso. O Estado não tem mais consciência ou missão moral do que uma empresa comercial para operar uma mina de carvão ou uma ferrovia.
O Estado não tem mais existência do que deuses e demônios. São igualmente reflexo e criação do homem, pois o homem, o indivíduo, é a única realidade. O Estado é apenas a sombra do homem, a sombra de sua opacidade, de sua ignorância e medo.
A vida começa e termina com o homem, o indivíduo. Sem ele não há raça, nem humanidade, nem Estado. Não, nem mesmo a “sociedade” é possível sem o homem. É o indivíduo que vive, respira e sofre. Seu desenvolvimento, seu avanço, foi uma luta contínua contra os fetiches de sua própria criação e particularmente contra o “Estado”.
Antigamente, a autoridade religiosa moldava a vida política à imagem da Igreja. A autoridade do Estado, os “direitos” dos governantes vinham do alto; o poder, como a fé, era divino. Os filósofos escreveram grossos volumes para provar a santidade do Estado; alguns até o revestiram com infalibilidade e com atributos divinos. Alguns se convenceram da noção insana de que o Estado é “sobre-humano”, a realidade suprema, “o absoluto”.
O questionamento foi condenado como blasfêmia. A servidão era a maior virtude. Por tais preceitos e treinamento certas coisas passaram a ser consideradas como evidentes, como sagradas em sua verdade, mas por causa da repetição constante e persistente.
Todo progresso tem sido essencialmente um desmascaramento da “divindade” e do “mistério”, da suposta “verdade” sagrada e eterna; tem sido uma eliminação gradual do abstrato e a substituição em seu lugar do real, do concreto. Em suma, dos fatos contra a fantasia, do conhecimento contra a ignorância, da luz contra as trevas.
Essa lenta e árdua libertação do indivíduo não foi conseguida com a ajuda do Estado. Pelo contrário, foi por um conflito contínuo, por uma luta de vida ou morte com o Estado, que até mesmo o menor vestígio de independência e liberdade foi conquistado. Custou à humanidade muito tempo e sangue para garantir o pouco que ganhou até agora de reis, czares e governos.
A grande figura heróica desse longo Gólgota foi o Homem. Sempre foi o indivíduo, muitas vezes sozinho e por conta própria, outras vezes em união e cooperação com outros de sua espécie, que lutou e sangrou na longa batalha contra a supressão e a opressão, contra os poderes que o escravizam e degradam.
Mais do que isso e ainda mais significativo: foi o homem, o indivíduo, cuja alma primeiro se rebelou contra a injustiça e a degradação; foi o indivíduo quem primeiro concebeu a ideia de resistência às condições sob as quais ele se afundou. Em suma, é sempre o indivíduo que é o pai do pensamento libertador, bem como da ação.
Isso se refere não apenas às lutas políticas, mas a toda a gama de vida e esforço humano, em todas as idades e climas. Sempre foi o indivíduo, o homem de mente forte e vontade de liberdade, que preparou o caminho para cada avanço humano, para cada passo em direção a um mundo mais livre e melhor; na ciência, filosofia e arte, bem como na indústria, cuja genialidade alcançou as alturas, concebendo o “impossível”, visualizando sua realização e imbuindo outros com seu entusiasmo para trabalhar e lutar por isso. Socialmente falando, era sempre o profeta, o vidente, o idealista, que sonhava com um mundo mais ao seu desejo e que servia de farol no caminho para uma realização maior.
O Estado, todo governo, qualquer que seja sua forma, caráter ou cor – seja absoluto ou constitucional, monarquia ou república, fascista, nazista ou bolchevique – é por sua própria natureza conservador, estático, intolerante à mudança e oposto a ela. Quaisquer que sejam as mudanças que sofram são sempre o resultado da pressão exercida sobre ela, pressão forte o suficiente para obrigar os poderes dominantes a se submeterem pacificamente ou não, geralmente “de outra forma” – isto é, pela revolução. Além disso, o conservadorismo inerente ao governo, de qualquer tipo de autoridade, inevitavelmente se torna reacionário. Por duas razões: primeiro, porque é da natureza do governo não apenas manter o poder que tem, mas também fortalecê-lo, ampliá-lo e perpetuá-lo, nacional e internacionalmente. Quanto mais forte a autoridade cresce, quanto maior o Estado e seu poder, menos ele pode tolerar uma autoridade ou poder político semelhante ao seu lado. A psicologia do governo exige que sua influência e prestígio cresçam constantemente, em casa e no exterior, e explora todas as oportunidades para aumentá-lo. Essa tendência é motivada pelos interesses financeiros e comerciais por trás do governo, representado e servido por ele. A razão de ser fundamental de todo governo para o qual, aliás, os historiadores de antigamente fechavam os olhos deliberadamente, tornou-se óbvia demais agora, mesmo para os professores ignorarem.
O outro fator que impele os governos a se tornarem ainda mais conservadores e reacionários é a desconfiança inerente ao indivíduo e o medo da individualidade. Nosso esquema político e social não pode tolerar o indivíduo e sua constante busca pela inovação. Em “autodefesa” o Estado, portanto, suprime, persegue, pune e até priva o indivíduo da vida. É auxiliado nisso por todas as instituições que defendem a preservação da ordem existente. Recorre a toda forma de violência e força, e seus esforços são apoiados pela “indignação moral” da maioria contra o herege, o dissidente social e o rebelde político – a maioria durante séculos treinada no culto do Estado, treinada em disciplina e obediência. e subjugado pelo temor da autoridade no lar, na escola, na igreja e na imprensa.
O mais forte baluarte da autoridade é a uniformidade; a menor divergência é o maior crime. A mecanização total da vida moderna aumentou a uniformidade mil vezes. Está presente em todos os lugares, nos hábitos, gostos, vestimentas, pensamentos e ideias. Sua estupidez mais concentrada é a “opinião pública”. Poucos têm a coragem de se destacar contra isso. Aquele que se recusa a se submeter é ao mesmo tempo rotulado de “queer”, “diferente” e criticado como um elemento perturbador na estagnação confortável da vida moderna.
Talvez ainda mais do que a autoridade constituída, é a uniformidade social e a mesmice que mais assedia o indivíduo. Sua própria “unicidade”, “separação” e “diferenciação” fazem dele um estranho, não apenas em sua terra natal, mas até mesmo em sua própria casa. Muitas vezes mais do que os nascidos no exterior que geralmente se enquadram no estabelecido.
No verdadeiro sentido, a terra natal, com seu passado de tradição, primeiras impressões, reminiscências e outras coisas queridas, não é suficiente para que os seres humanos sensíveis se sintam em casa. Uma certa atmosfera de “pertencimento”, a consciência de estar “unido” com as pessoas e o ambiente, é mais essencial para o sentimento de estar em casa. Isso vale em relação à família, ao círculo local menor, bem como à fase maior da vida e das atividades comumente chamadas de país. O indivíduo cuja visão abrange o mundo inteiro muitas vezes não se sente em nenhum lugar tão cerceado e sem contato com o seu entorno do que em sua terra natal.
No período pré-guerra, o indivíduo podia pelo menos escapar do tédio nacional e familiar. O mundo inteiro estava aberto aos seus anseios e suas buscas. Agora o mundo tornou-se uma prisão, e a vida, um confinamento solitário contínuo. Isso é especialmente verdade desde o advento da ditadura, de direita e esquerda.
Friedrich Nietzsche chamou o Estado de monstro frio. Como ele teria chamado a fera hedionda em trajes de ditadura moderna? Não que o governo alguma vez tenha permitido muito espaço para o indivíduo; mas os defensores da nova ideologia do Estado não concedem nem isso. “O indivíduo não é nada”, eles declaram, “é a coletividade que conta”. Nada menos que a entrega completa do indivíduo satisfará o apetite insaciável da nova divindade.
Curiosamente, os mais barulhentos defensores desse novo evangelho podem ser encontrados entre a intelligentsia britânica e americana. Agora mesmo eles estão apaixonados pela “ditadura do proletariado”. Apenas em teoria, com certeza. Na prática, eles ainda preferem as poucas liberdades em seus respectivos países. Eles vão à Rússia para uma breve visita ou como vendedores da “revolução”, mas se sentem mais seguros e confortáveis em casa.
Talvez não seja apenas a falta de coragem que mantém esses bons britânicos e americanos em suas terras nativas e não no próximo milênio. Subconscientemente, pode estar à espreita o sentimento de que a individualidade continua sendo o fato mais fundamental de toda associação humana, reprimida e perseguida, mas nunca derrotada e, a longo prazo, a vencedora.
O “gênio do homem”, que é apenas outro nome para personalidade e individualidade, abre caminho através de todas as cavernas do dogma, através das grossas paredes da tradição e do costume, desafiando todos os tabus, desprezando a autoridade, enfrentando a injúria e o cadafalso, em última análise, para ser abençoado como profeta e mártir pelas gerações sucessivas. Se não fosse o “gênio do homem”, essa qualidade inerente e persistente da individualidade, ainda estaríamos vagando pelas florestas primitivas.
Peter Kropotkin mostrou que resultados maravilhosos essa força única da individualidade do homem alcançou quando fortalecida pela cooperação com outras individualidades. A teoria darwiniana unilateral e inteiramente inadequada da luta pela existência recebeu sua conclusão biológica e sociológica do grande cientista e pensador anarquista. Em seu profundo trabalho, Apoio Mútuo, Kropotkin mostra que no reino animal, assim como na sociedade humana, a cooperação – em oposição a lutas viscerais – tem funcionado para a sobrevivência e evolução das espécies. Ele demonstrou que apenas a ajuda mútua e a cooperação voluntária – não o Estado onipotente e devastador – podem criar a base para uma vida individual e associativa livre.
Atualmente, o indivíduo é o peão dos fanáticos da ditadura e dos fanáticos igualmente obcecados do “individualismo rude”. A desculpa do primeiro é a reivindicação de um novo objetivo. O último nem sequer finge nada de novo. Na verdade, o “individualismo rude” não aprendeu nada e não esqueceu nada. Sob sua orientação, a luta brutal pela existência física ainda é mantida. Por mais estranho que pareça, e por mais absurdo que seja, a luta pela sobrevivência física continua alegremente, embora a necessidade dela tenha desaparecido completamente. De fato, a luta continua aparentemente porque não há necessidade disso. A chamada superprodução não prova isso? A crise econômica mundial não é uma demonstração eloquente de que a luta pela existência está sendo mantida pela cegueira do “individualismo rude” sob o risco de sua própria destruição?
Uma das características insanas dessa luta é a completa negação da relação do produtor com as coisas que produz. O trabalhador médio não tem nenhum ponto de contato interno com a indústria em que está empregado e é estranho ao processo de produção do qual é uma parte mecânica. Como qualquer outra engrenagem da máquina, ele é substituível a qualquer momento por outros seres humanos despersonalizados semelhantes.
O proletário intelectual, embora tolamente se considere um agente livre, não é muito melhor. Ele também tem tão pouca escolha ou autodireção, em seu métier particular, quanto seu irmão que trabalha com as mãos. As considerações materiais e o desejo de maior prestígio social costumam ser os fatores decisivos na vocação do intelectual. Soma-se a isso a tendência de seguir os passos da tradição familiar, e se tornar médicos, advogados, professores, engenheiros, etc. O descolado exige menos esforço e personalidade. Em consequência, quase todo mundo está deslocado em nosso atual esquema de coisas. As massas se arrastam, em parte porque seus sentidos foram entorpecidos pela rotina mortal do trabalho e porque precisam sobreviver. Isso se aplica com força ainda maior ao tecido político de hoje. Não há lugar em sua textura para a livre escolha de pensamento e atividade independentes. Há um lugar apenas para fantoches votantes e pagantes de impostos.
Os interesses do Estado e os do indivíduo diferem fundamentalmente e são antagônicos. O Estado e as instituições políticas e econômicas que ele sustenta só podem existir moldando o indivíduo de acordo com seu propósito particular; treinando-o para respeitar “a lei e a ordem”; ensinando-lhe obediência, submissão e fé inquestionável na sabedoria e justiça do governo; acima de tudo, serviço leal e auto-sacrifício completo quando o Estado o comanda, como na guerra. O Estado coloca a si mesmo e seus interesses acima até mesmo das reivindicações da religião e de Deus. Pune os escrúpulos religiosos ou conscientes contra a individualidade, porque não há individualidade sem liberdade, e a liberdade é a maior ameaça à autoridade.
A luta do indivíduo contra essas tremendas probabilidades é a mais difícil - muitas vezes perigosa para a vida e para os membros - porque não é a verdade ou a falsidade que serve como critério da oposição que ele encontra. Não é a validade ou utilidade de seu pensamento ou atividade que desperta contra ele as forças do Estado e da “opinião pública”. A perseguição ao inovador e protestador sempre foi inspirada pelo medo da autoridade constituída de ter sua infalibilidade questionada e seu poder minado.
A verdadeira libertação do homem, individual e coletiva, está em sua emancipação da autoridade e da crença nela. Toda a evolução humana tem sido uma luta nessa direção e por esse objetivo. Não é a invenção e a mecânica que constituem o desenvolvimento. A capacidade de viajar a uma velocidade de 100 milhas por hora não é evidência de ser civilizado. A verdadeira civilização deve ser medida pelo indivíduo, a unidade de toda a vida social; por sua individualidade e na medida em que é livre para que seu ser cresça e se expanda sem entraves de autoridade invasiva e coercitiva.
Socialmente falando, o critério de civilização e cultura é o grau de liberdade e oportunidade econômica que o indivíduo desfruta; de unidade social e internacional e cooperação irrestrita por leis feitas pelo homem e outros obstáculos artificiais; pela ausência de castas privilegiadas e pela realidade da liberdade e da dignidade humana; em suma, pela verdadeira emancipação do indivíduo.
O absolutismo político foi abolido porque os homens perceberam com o passar do tempo que o poder absoluto é mau e destrutivo. Mas a mesma coisa vale para todo poder, seja o poder do privilégio, do dinheiro, do padre, do político ou da chamada democracia. Em seu efeito sobre a individualidade, pouco importa qual seja o caráter particular da coerção – seja ela tão negra quanto o fascismo, tão amarela quanto o nazismo ou tão pretensamente vermelha quanto o bolchevismo. É o poder que corrompe e degrada tanto o senhor como o escravo e não faz diferença se o poder é exercido por um autocrata, pelo parlamento ou pelos sovietes. Mais pernicioso que o poder de um ditador é o de uma classe; o mais terrível: a tirania da maioria.
O longo processo da história ensinou ao homem que a divisão e o conflito significam a morte, e que a unidade e a cooperação promovem sua causa, multiplicam sua força e promovem seu bem-estar. O espírito do governo sempre trabalhou contra a aplicação social desta lição vital, exceto quando serviu ao Estado e ajudou seus próprios interesses particulares. É este espírito anti-progressista e anti-social do Estado e das castas privilegiadas que o sustentam que tem sido responsável pela amarga luta entre homem e homem. O indivíduo e grupos cada vez maiores de indivíduos estão começando a ver abaixo da superfície da ordem estabelecida das coisas. Não estão mais tão cegos como no passado pelo brilho falso da ideia do Estado e das “bênçãos” do “individualismo rude”. O homem está alcançando o escopo mais amplo das relações humanas que somente a liberdade pode dar. Pois a verdadeira liberdade não é um mero pedaço de papel chamado “constituição”, “direito legal” ou “lei”. Não é uma abstração derivada da não-realidade conhecida como “o Estado”. Não é o negativo de estar livre de algo, porque com essa liberdade você pode morrer de fome. A verdadeira liberdade é positiva: é liberdade para alguma coisa; é a liberdade de ser, de fazer; em suma, a liberdade de oportunidade real e ativa.
Esse tipo de liberdade não é um dom: é um direito natural do homem, de todo ser humano. Não pode ser dado: não pode ser conferido por nenhuma lei ou governo. A necessidade disso, o anseio por isso, é inerente ao indivíduo. A desobediência a toda forma de coerção é sua expressão instintiva. A rebelião e a revolução são a tentativa mais ou menos consciente de alcançá-la. Essas manifestações, individuais e sociais, são fundamentalmente expressões dos valores do homem. Para que esses valores possam ser nutridos, a comunidade deve perceber que seu maior e mais duradouro patrimônio é a unidade: o indivíduo.
Na religião, como na política, as pessoas falam de abstrações e acreditam estar lidando com realidades. Mas quando se trata do real e do concreto, a maioria das pessoas parece perder o contato vital com ele. Pode muito bem ser porque a realidade por si só é muito trivial, muito fria para entusiasmar a alma humana. Esta só pode despertar entusiasmo por coisas fora do comum, fora do ordinário. Em outras palavras, o Ideal é a centelha que incendeia a imaginação e os corações dos homens. Algum ideal é necessário para despertar o homem da inércia e da monotonia de sua existência e transformar o escravo abjeto em uma figura heróica.
Bem aqui, é claro, vem o opositor marxista que superou o próprio Marx. Para ele, o homem é um mero fantoche nas mãos daquele Todo-Poderoso metafísico chamado determinismo econômico ou, mais vulgarmente, luta de classes. A vontade do homem, individual e coletiva, sua vida psíquica e orientação mental não contam quase nada para nosso marxista e não afetam sua concepção da história humana.
Nenhum estudante inteligente negará a importância do fator econômico no crescimento e desenvolvimento social da humanidade. Mas somente o dogmatismo estreito e intencional pode persistir em permanecer cego ao importante papel desempenhado por uma ideia tal como concebida pela imaginação e pelas aspirações do indivíduo.
Era vão e inútil tentar equilibrar um fator contra outro na experiência humana. Nenhum fator único no complexo do comportamento individual ou social pode ser designado como fator de qualidade decisivo. Sabemos muito pouco, e talvez nunca saibamos o suficiente da psicologia humana para pesar e medir os valores relativos deste ou daquele fator na determinação da conduta do homem. Formar tais dogmas em sua conotação social é nada menos que fanatismo; no entanto, talvez tenha seus usos, pois a própria tentativa de fazê-lo provou a persistência da vontade humana e refuta os marxistas.
Felizmente, mesmo alguns marxistas estão começando a ver que nem tudo está bem com o credo marxista. Afinal, Marx era apenas humano, demasiado humano, portanto, de modo algum infalível. A aplicação prática do determinismo econômico na Rússia está ajudando a clarear as mentes dos marxistas mais inteligentes. Isso pode ser visto na transvaloração dos valores marxistas acontecendo nas fileiras socialistas e até comunistas em alguns países europeus. Eles estão lentamente percebendo que sua teoria negligenciou o elemento humano, den Menschen, como disse um jornal socialista. Por mais importante que seja o fator econômico, não é suficiente. O rejuvenescimento da humanidade precisa da inspiração e da força energizante de um ideal.
Tal ideal eu vejo no anarquismo. Com certeza, não nas deturpações populares do Anarquismo espalhadas pelos adoradores do Estado e da autoridade. Refiro-me à filosofia de uma nova ordem social baseada nas energias liberadas do indivíduo e na livre associação de indivíduos liberados.
De todas as teorias sociais, somente o anarquismo proclama firmemente que a sociedade existe para o homem, não o homem para a sociedade. O único propósito legítimo da sociedade é servir às necessidades e promover a aspiração do indivíduo. Só assim pode justificar a sua existência e ser uma ajuda ao progresso e à cultura.
Os partidos políticos e os homens que lutam selvagemente pelo poder vão me desprezar como irremediavelmente fora de sintonia com o nosso tempo. Eu alegremente admito a acusação. Encontro conforto na garantia de que sua histeria carece de qualidade duradoura. Seu canto é passageiro.
O anseio do homem pela libertação de toda autoridade e poder nunca será acalmado por sua canção estridente. A busca do homem pela liberdade de todos os grilhões é eterna. Deve e vai continuar.