Tekoşîna Anarşîst, Federação Anarquista Uruguaia (FAU)
Entrevista com Tekoşîna Anarşîst
Coletivo Anarquista Combatendo em Rojava
2) Quais são as principais diferenças entre TA e o PKK e seus grupos armados?
4) Como analisam a conjuntura atual do conflito na Síria e quais perspectivas vocês preveem?
Intro
O coletivo Facção Fictícia traduziu para o português a entrevista que camaradas da federação Anarquista uruguaia (fAu) fizeram em julho com camaradas do coletivo Tekoşîna Anarşîst (Luta Anarquista em português ou TA) atuando em Rojava, norte da Síria desde 2019. Composto por internacionalistas de diferentes partes do mundo, TA busca aprender com a revolução dos povos Curdos e outros em Rojava, mas também fazer parte e apoiar o processo revolucionário em várias frente, incluindo a luta armada.
A revolução é Rojava é um dos maiores experimentos de luta anticapitalista do nosso século - se não for o mais emblemático. Após praticamente derrotar o Estado Islâmico ao mesmo tempo em que promovem uma revolução social ecológica, multiétnica e feminista, o povo curdo no norte da Síria foi abandonado por aliados ocidentais, como os EUA, e sofre uma ofensiva do estado Turco, parceiro antigo dos jihadistas do Estado Islâmico.
Para saber mais do trabalho de interancionalistas em Rojava, visite os sites:
internationalistcommune.com | riseup4rojava.org
Boa leitura,
Bijî Rojava!
1) Daqui da América Latina, seguimos com atenção e interesse especial o que acontecem em Rojava e na Síria. Em primeiro lugar, podem no explicar a configuração do batalhão de companheiros libertários e seus vínculos com a resistência curda?
Desde o início da revolução de Rojava, especialmente a partir de 2015, após a resistência de Kobane, os brigadistas internacionais têm ajudado a fazer frente diante de Daesh (ISIS) e defender a revolução. Nos primeiros anos a maioria de brigadistas internacionais chegaram em coordenação com o YPG e o YPJ, as milícias de autodefensa curdas. Dado o caractere antiestatista do projeto político de Rojava, anarquistas de distintos continentes nos somam à luta e a defesa da revolução, aos poucos chegando de forma dispersa e desorganizada. Em 2015, os internacionalistas do YPG e YPJ organizam o IFB (International Freedom Batallion), integrando brigadistas de organizações revolucionárias turcas junto a outros militantes internacionais. Dentro do IFB, conforma-se a uma primeira brigada anarquista do IRPGF (Forças Guerrilheiras Revolucionárias Internacionais), que opera durante aproximadamente um ano, durante as operações de Tabqa e Raqqa.
Têkoşîna Anarşîst (Luta Anarquista em português ou TA) nasce no final de 2017 depois da libertação de Raqqa. Buscamos não apenas participar da lucha contra o Daesh, também aprender com movimento de libertação do Curdistão e construir ponntes com movimentos libertadores de todo o mundo. Como anarquistas, vemos a importância de pegar em armas contra o despotismo teocrático do Estado Islâmico, mas também contra a opressão fascista do Estado Turco, o Estado Sirio, as diversas potências imperialistas e os inúmeros grupos fundamentalistas islâmicos que lutam na Siria. A realidade da guerra é muito complexa e as vezes nos afunda em um mar de contradições sobre o nosso papel aqui. Os conflitos inter-étnicos e inter-religiosos são convertidos em uma guerra de poder regional e geopolítico, em que influencia imperialistas e coloniais marcam o ritmo do Oriente Médio mediado por sangue e petróleo. Mas a resistência curda é um exemplo de organização revolucionária e o projeto social e político de Rojava é inspirador. Depois de alguns anos de alguns anos trabalhando aqui vimos os lados bons e também os lados ruins da revolução, e nosso compromisso com ela se baseia em um marco de internacionalismo e solidariedade crítica.
A implementação do confederalismo democrático, uma sociedade sem Estado baseada na libertação das mulheres, na ecologia e na democracia direta, é um exemplo para nós que acreditam em um mundo livre do capitalismo e do patriarcado. Foi isso que nos levou à Rojava. Mas e agora? Um grande número de internacionalistas que vêm à Rojava, participam na defesa da revolução por alguns meses e depois retornam às suas vidas anteriores. É isso que queremos? É esta a nossa ideia de solidariedade internacionalista? Não, nós queremos algo mais. Para entender melhor o que estamos procurando, estudamos a história do internacionalismo, mas em vez de olhar para a estrutura centralizada da Terceira Internacional, preferimos nos inspirar na luta anticolonial da Conferência Tricontinental. Revolucionários como Almícar Cabral da Guiné-Bissau, Ben Barka do Marrocos ou Che Guevara da Argentina se uniram para, nas palavras de Franz Fanon, “resistir ao lado dos miseráveis da terra para criar um mundo de seres humanos”. Suas perspectivas sobre a solidariedade internacional eram muito claras: “Não se trata de desejar sucesso ao agredido, mas de administrar seu próprio destino; acompanhá-lo à morte ou à vitória”. Depois eles falaram em criar 2, 3, muitos Vietnãs, agora falamos em criar 2, 3, muitos Rojavas, muitos Barbachas, muitos Chiapas.
Tekoşîna Anarşîst não é simplesmente um grupo anarquista na Síria ou no Curdistão, nossa existência está condicionada pela luta e pelo processo revolucionário de Rojava. A opressão sofrida pelo povo curdo é outro exemplo da dinâmica colonial sofrida pelos povos indígenas, povos com culturas e raízes ancestrais que são ameaçados pela hegemonia capitalista. Como internacionalistas, também é nosso dever estudar e compreender as formas como as potências imperialistas exercem opressão sobre os países do Sul global. Lutamos contra a opressão em nossas casas e agora continuamos a luta aqui. Viemos a Rojava em resposta ao apelo de solidariedade internacional e, portanto, nossa prioridade é compreender as necessidades do povo e a dinâmica do movimento revolucionário local. No passado tínhamos trabalhado em coordenação com a IFB (International Freedom Batalion), mas hoje somos uma organização autônoma integrada nas Forças Democráticas Sírias SDF, juntamente com curdos, árabes, assírios e outros internacionais que lutam por uma Síria democrática e ecológica, livre da opressão patriarcal.
2) Quais são as principais diferenças entre TA e o PKK e seus grupos armados?
O PKK é um partido revolucionário criado em resposta à opressão sofrida pelo povo curdo. Tekoşina Anarşist é um coletivo criado para apoiar e aprender com a revolução da Rojava. Esta realidade implica um grande número de diferenças em relação ao tamanho da organização, objetivos, dinâmica interna, projeção futura, táticas, estratégias.
O PKK foi fundado há mais de 40 anos como um movimento de libertação nacional com uma visão internacionalista, moldando-se como um movimento anti-colonial no Oriente Médio. Sua luta pela libertação nacional permitiu a este partido, que nasceu com uma orientação marxista-leninista-maoísta, avaliar suas conquistas e erros e reconfigurar seus objetivos e seu paradigma político. O novo paradigma proposto por Abdullah Öcalan é alimentado por perspectivas libertárias, posicionando-se contra o modelo de Estado-nação, contra o patriarcado e contra o ecocídio produzido pelo capitalismo e o sistema tecno-industrial. Diante disso, o novo paradigma aposta em modelos de democracia direta, tendo as comunas e cooperativas como base social. Ela prioriza a libertação da mulher como base para a transformação social através da organização autônoma da mulher. Está comprometida com uma perspectiva ecológica e uma reconexão com a natureza, reconstruindo um modelo de vida de acordo com os outros seres vivos deste planeta.
Suas opiniões sobre a violência também são diferentes daquelas de suas origens maoístas, onde a violência revolucionária foi concebida como um objetivo em si mesma. A mudança de paradigma, motivada em grande parte pelo movimento curdo de mulheres, reorientou a análise em torno do conceito de autodefesa. A dinâmica patriarcal e colonial dos Estados, que baseiam sua existência na dominação através da guerra, genocídio e escravidão, sempre encontrou resistência por parte daqueles que eles procuravam subjugar. As sociedades que viveram uma vida livre não podem aceitar o domínio de sistemas centralizados e é por isso que cada sociedade, cada ser vivo, precisa assegurar seus sistemas de autodefesa.
Como anarquistas, como revolucionárias, concordamos com esta visão, com este horizonte político e social. Ecologismo, feminismo, comunalismo ou confederalismo não são desconhecidos do anarquismo, muito pelo contrário. Nem a luta armada, e em Rojava tivemos que nos defender com todos os meios à nossa disposição contra o fascismo teocrático do Estado islâmico e a invasão do Estado fascista turco. Em tempos de guerra, lutamos lado a lado com o YPG, o YPJ, com guerrilheiras e guerrilheiros do PKK, com membros de outros partidos revolucionários turcos, com outros internacionalistas de diferentes ideologias, com curdos, com árabes, com assírios. Quando o inimigo dispara, quando as bombas caem, o que está do nosso lado da trincheira é compa, é heval, e as diferenças ideológicas não pesam tanto quanto a paixão de defender a revolução, a paixão de construir uma sociedade livre. Mas certamente existem diferenças ideológicas que, quando não estão chovendo balas e morteiros, levam a debates e reflexões que influenciam nossa maneira de pensar sobre revolução e compreensão do anarquismo. As diferenças que Marx e Bakunin, entre muitas outras, discutiram nos congressos da primeira internacional de trabalhadores ainda hoje são uma fonte de conflito. Mas é precisamente este conflito que nos ajuda a refletir, a aprender, a continuar a crescer.
Em resposta à pergunta em questão, as principais diferenças que encontramos são, por um lado, organizacionais e, por outro, ideológicas. No nível organizacional, priorizamos a descentralização e a distribuição de tarefas, responsabilidades e liderança, evitando deliberadamente a criação de um comitê central ou de uma instituição autoritária. Sabemos que as estruturas militares são sempre condicionadas por uma organização hierárquica e uma cadeia de comando, e em alguns aspectos tivemos que adaptar nossa estrutura às necessidades militares. Mas ao contrário de outras forças, damos atenção especial à operação de forma inclusiva e horizontal, incentivando responsabilidades rotativas e liderança. O aprendizado coletivo, a confiança e o apoio mútuo, mas sobretudo o desejo de uma vida livre, são a base de nosso trabalho e de nosso projeto político.
No nível ideológico, as diferenças podem ser mais complexas. O mais relevante talvez seja nosso forte apoio às lutas LGBT+, que no movimento de libertação curdo não têm um apoio tão determinado. Há sem dúvida correntes que trabalham na mesma direção e as perspectivas do movimento feminino curdo no âmbito da jineolojî têm um horizonte político onde podemos coincidir. Elas mesmas estão questionando e refletindo sobre o aparente essencialismo deste movimento, abrindo a porta para uma compreensão mais ampla da mulher mais próximo das teorias queer, embora ainda em uma minoria. O pragmatismo deste movimento às vezes também leva a contradições ideológicas, especialmente em aspectos relacionados à propriedade. Em Rojava existem iniciativas comunitárias e perspectivas de propriedade coletiva, mas a realidade capitalista da propriedade privada ainda está presente na sociedade, sem muito esforço para mudar esta realidade. Dentro dos movimentos revolucionários, a propriedade é em grande parte coletiva e a vida comunitária que é fomentada tem uma clara orientação socialista, mas às vezes é difícil que estas ideias cheguem à maioria da população.
Olhando de uma perspectiva mais ampla, se pensarmos não apenas em nossa organização, mas no anarquismo em geral, vemos grandes contradições com a deriva individualista que o movimento anti-autoritário vem sofrendo nas últimas décadas. Têkoşîna Anarşîst está comprometido com uma luta coletiva que escapa à lógica individual e ao pensamento liberal, em sintonia com as tendências do anarquismo social, mas sem deixar de refletir sobre o papel do indivíduo na sociedade. Sabemos muito bem que quando as ordens são impostas de cima para baixo, sem respeitar as decisões coletivas ou sem ouvir as vozes minoritárias, a coerção é gerada no indivíduo. Por outro lado, quando o indivíduo não age de acordo com os objetivos comuns de um movimento, ele deslegitima a organização e a luta coletiva. Outro importante debate entre o anarquismo tradicional e as ideias do confederalismo democrático é a influência do positivismo e do racionalismo. O anarquismo tem visto frequentemente a ciência e a razão, que foram resignadas pelo chamado “esclarecimento”, como a única forma de se alcançar uma sociedade livre. Aqui esta premissa é posta em questão, procurando prestar especial atenção às formas de entender o mundo e a sociedade que escapam do pensamento colonial europeu, com particular atenção à mitologia e ao conhecimento ancestral. Estas perspectivas são importantes quando se trata de aprender com os movimentos indígenas, repensando nosso lugar e nossa relação com a natureza, com a civilização e com a própria vida.
3) Como você analisa o processo de construção do Confederalismo Democrático? Qual é a sua participação nesta construção?
A construção do confederalismo democrático é certamente mais visível em Rojava, mas não pode ser desconectada do resto do Curdistão. Nos últimos anos, as ideias deste paradigma político foram postas em prática em grande escala em Rojava, mas também devemos levar em conta outros territórios, como o campo Mexmur ou a também recente zona autônoma de Sengal, em Basur, nas fronteiras do Iraque. Há também desenvolvimentos políticos em Rohhilat, nas fronteiras do Estado do Irã, mas sobretudo em Bakur, nas fronteiras do Estado turco. É necessário levar em conta as quatro partes nas quais o Curdistão está dividido hoje para entender porque o movimento curdo está orientado para uma solução anti-estatal.
Ao analisar sua construção, é essencial fazer referência ao trabalho ideológico de Abdulah Öcalan e seu “Manifesto para uma Sociedade Democrática”. Ao contrário de outras propostas políticas, o confederalismo democrático não se limita a descrever uma sociedade utópica livre de opressão, mas abre um diálogo de perguntas e respostas sobre como transformar a sociedade atual e como realizar este modelo utópico ao qual aspiramos. Como queremos viver, como queremos nos relacionar, como queremos lutar, são questões importantes na construção de uma sociedade revolucionária. As respostas que Öcalan esboça não são facilmente resumidas em alguns parágrafos, mas é importante compreender alguns dos conceitos que ele nomeia para transmitir suas ideias, para propor a transição da modernidade capitalista para a modernidade democrática. Esta modernidade democrática, como comentamos, se baseia na libertação das mulheres, na ecologia e na democracia sem o Estado.
Esta progressão ideológica mostra semelhanças com outros processos revolucionários como o movimento zapatista, um movimento indígena insurgente nas montanhas do sul do México. Ambos os movimentos nascem com uma estrutura maoísta, mas são reorientados para um socialismo libertário, ambos crescem e encontram refúgio nas montanhas, ambos são herdeiros de um povo com origens ancestrais, ambos têm um forte movimento autônomo de mulheres, ambos são um exemplo para os movimentos anti-capitalistas em todo o mundo. O confederalismo democrático não é uma nova ideologia, é uma forma de entender a sociedade e a civilização que nos inspira a nos construirmos como movimentos revolucionários, a nos comprometermos com nossas ideias e a avançarmos com passos determinados em direção a uma sociedade mais justa.
Ao colocar estas ideias em prática na Rojava, o processo tem sido muito influenciado pela guerra na Síria. Por sua vez, foi a guerra que tornou possível a revolução, permitindo a transformação social radical necessária para lançar as bases deste modelo político. Em 2012, a YPG/YPJ, então milícias mal armadas, expulsou os soldados e burocratas do estado sírio com apenas algumas balas disparadas. Em seguida, lutaram amargamente contra grupos islâmicos como a al-Nusra e depois o Estado Islâmico. Após a libertação de Kobane do cerco ao Daesh em 2015, o YPG/YPJ se expande e lidera a coalizão militar das Forças Democráticas Sírias (SDF) e, quando Raqqqa é liberada em 2017, a SDF é praticamente uma força militar regular, treinada e equipada em nível semi-profissional.
Estes desenvolvimentos militares são acompanhados por um processo de transformação social baseado nas ideias do Confederalismo Democrático, com a criação de comunas, cooperativas, centros de mulheres, comitês de justiça, academias, programas escolares em curdos, centros culturais, etc. Instituições sociais como o TEV-DEM (Tevgera Democratic – Movimento Democrático) juntamente com o trabalho político do PYD (Partiya Yekineyen Democratic – Partido da Unidade Democrática) e outros partidos políticos e movimentos sociais são coordenados para a criação da Administração Autônoma, organizada inicialmente em 3 cantões (Afrin, Kobane, Cizire). Assim, vemos a vontade de administrar o território com base na organização local, baseada em um modelo municipalista, sem buscar a centralização de um modelo estatal.
Nenhuma revolução é um processo fácil e apesar das críticas que possamos ter sobre a retidão ou a injustiça de certas decisões, não há dúvida de que o processo pelo qual a Rojava está passando nos 8 anos da revolução é admirável. Mais uma vez, é difícil resumir tudo o que está acontecendo em alguns parágrafos, mas vale a pena notar o incrível desenvolvimento da situação que as mulheres estão vivenciando e o papel que as YPJs estão desempenhando neste processo. As mulheres na Síria, como todas as mulheres do mundo, sofrem com a violência e a opressão dos sistemas patriarcais, mas a partir de 2014 são especialmente ameaçadas pelo fascismo teocrático do Estado islâmico. Daesh é sem dúvida um exemplo paradigmático do patriarcado mais brutal e sangrento, com milhares de mulheres capturadas e vendidas em escravidão sexual. Nas palavras da lutadora do YPJ Amara de Kobane, “Nossas visões filosóficas nos fizeram conscientes do fato de que só podemos viver resistindo”, dando uma visão do porquê de muitas mulheres escolherem pegar em armas para se libertarem de tal ameaça, porque escolhem a autodefesa e a ação direta contra o que ameaça suas vidas. Após as vitórias militares sobre Daesh, ninguém pode questionar a enorme coragem e sacrifício que as mulheres trouxeram para a revolução. O movimento curdo diz que nenhuma sociedade pode ser livre se as mulheres não forem livres e em Rojava este slogan se torna o coração do processo revolucionário.
Nosso envolvimento em todo este processo é relativamente modesto, pois temos apenas três anos de experiência em Rojava. No início o mais importante era compreender a realidade local, a língua e a cultura curda, o projeto político e o funcionamento das organizações e estruturas. Isto também trouxe algumas contradições ideológicas, juntamente com muitos aprendizados metodológicos. Apesar de nossas semelhanças ideológicas e das referências de Öcalan a diferentes pensadores anarquistas, tais como Bakunin, Kropotkin ou Foucault, o anarquismo continua sendo um grande desconhecido para o movimento curdo. No terceiro volume do “Manifesto para uma Civilização Democrática”, Öcalan reflete sobre a importância do anarquismo como um aliado chave no desenvolvimento da modernidade democrática, compartilhando suas críticas e perspectivas para os movimentos anarquistas. No campo ideológico, nosso trabalho se concentrou em refletir sobre essas ideias e contradições, traduzindo-as e tornando-as mais acessíveis a um amplo público. Também passamos tempo debatendo e compartilhando nossas ideias, pois somos um grupo internacional de anarquistas de vários países, muitas vezes com perspectivas e origens diferentes. Este trabalho nos deu uma melhor compreensão dos movimentos libertários em diferentes partes do mundo e de como situá-los no contexto do processo revolucionário pelo qual estamos passando.
No campo prático, nosso trabalho tem se concentrado na defesa da revolução. Depois de participar de diferentes campanhas militares contra o Estado islâmico, temos trabalhado para nos treinar como médicos de combate, uma vez que o atendimento à saúde nos primeiros minutos pode ser crucial para a sobrevivência. Tekoşîna Anarşîst trabalhou como uma equipe médica de combate na campanha de Baghouz, o último bastião do Estado Islâmico e, desde então tem sido nossa principal tarefa sempre que tem havido uma frente ativa na Rojava. Operar como uma equipe médica de combate também significa ser capaz de treinar novos membros nestas disciplinas, por isso nos esforçamos muito para compilar o que aprendemos a compartilhar com novos camaradas que estão vindo para se juntar à revolução.
4) Como analisam a conjuntura atual do conflito na Síria e quais perspectivas vocês preveem?
Hoje, em julho de 2020, a guerra na Síria continua. Recentemente celebramos o oitavo aniversário da revolução de Rojava, lembrando o dia 19 de julho de 2012, quando foi declarada a autonomia da cidade de Kobane. O Estado Islâmico (ISIS) foi derrotado na batalha de Baguz no final de 2019, mas ainda existem células e grupos operativos que seguem realizando atentados. Muitos de seus antigos membros também se juntou aos grupos islâmicos apoiados pela Turquia, que desde o início de 2018 ocupam o cantão de Afrin. Há menos de um ano da última ocupação militar da Turquia e de seus mercenários islâmicos em Rojava, quando atacaram as cidades e povos localizados entre as cidades de Serekaniye e Gire Spî (Tel Abyad em árabe) ao longo da fronteira.
A população que fugiu destes conflitos bélicos se encontra em campos de refugiados, como os campos de Sheba, para onde a população de Afrin teve de fugir, e o acampamento Waşokani, onde a população de Serekaniye buscou refúgio das bombas turcas. Também há o campo de al-Hol, que é difícil de administrar, onde estão dezenas de milhares de mulheres e crianças que viviam sob o califado islâmico. En al-Hol se encontra a população civil que fugiu do califado, mas também mulheres que mantém suas ideias fundamentalistas islâmicas, frequentemente organizando motins e declarações de apoio ao ISIS, atacando as forças de segurança do campo assim como a outras mulheres, apunhalando, atirando ácido ou incendiando outras barracas. As cadeias especiais para os combatentes do Daesh também aumentam as dificuldades enfrentadas pela Administração Autônoma em estabilizar a região, esperando que um tribunal internacional julgue seus crimes e encontre soluções. Mas a comunidade internacional não parece muito interessada em apoiar esse tipo de processo judicial, e poucos países repatriaram combatentes internacionais que deixaram seus países para se juntar às fileiras do Estado Islâmico (ISIS). Também nessas prisões muitas vezes ocorrem tumultos e tentativas de fuga.
Os campos de refugiados também são focos de emergências sanitárias, com surtos de salmonela ou outras doenças, como leishmaniose nos campos de Sheba. Até agora, Rojava não teve nenhum surto de COVID-19, mas a Autoadministração está trabalhando nos preparativos para evitar riscos futuros. Nosso trabalho sobre questões de saúde também nos permitiu aprender e apoiar nesses campos e entender melhor a situação, além de colaborar no desenvolvimento de treinamento e preparação de medidas preventivas no caso da pandemia começar a se espalhar por aqui. O hospital Serekaniye, agora sob ocupação turca e seus mercenários islâmicos, era o único equipado para fazer testes de PCR, e sabemos que a Turquia está enviando um grande número de pessoas infectadas com COVID-19 para lá. Também em Afrin a epidemia está se espalhando, dada a conexão direta do exército turco com os grupos islâmicos que ocupam a área, possivelmente numa tentativa do executivo de Erdogan de espalhar o vírus para Rojava. O vírus também se espalhou para partes da Síria que permanecem sob controle estatal da Síria, então não sabemos até quando Rojava estará livre dos efeitos da pandemia.
A situação militar também não é fácil. Por um lado, o governo de Erdogan continua ameaçando ocupar a região, com riscos especiais para os campos de Tal Rifat e Sheba, bem como para Manbij e Kobane. Como vimos em outras operações, não se trata de saber se a Turquia atacará novamente ou não, mas de quando isso acontecerá. O Erdogan anunciou recentemente uma nova operação em Basur, no Curdistão, no território iraquiano, que começou com mais de 80 bombardeios realizados pelas forças aéreas do Estado turco. Entre os alvos estavam o campo Mexmur, um hospital em Sengal, posições de guerrilha e aldeias civis nas montanhas que cercam a Turquia e o Irã, onde o PKK tem suas bases. No final de junho um drone bombardeou uma vila nos arredores de Kobane, onde ocorria uma reunião de Kongreya Star (o movimento de mulheres em Rojava), matando quatro mulheres, incluindo a responsável pela área de Kobane. Todos esses ataques são realizados enquanto a Turquia mantém sua frente em Idlib, apoiando o HTS (coalizão islâmica liderada pelo ramo sírio da Al Qaeda), suas operações militares na Líbia, sua política internacional agressiva no Mediterrâneo contra a Grécia e brutal repressão interna contra a população curda nas próprias fronteiras da Turquia
A guinada autoritária do Estado turco nas últimas décadas é acompanhada por um expurgo nas lideranças militares, especialmente após a chamada tentativa de golpe de 2016, além de um investimento pesado em gastos militares. Recentemente Erdogan adquiriu um segundo carregamento dos sistemas antiaéreos s-400 da Rússia, além de fechar um acordo para comprar mísseis Patriot dos Estados Unidos. Vemos como ele está se armando até os dentes, procurando manter sua posição na OTAN enquanto se dirige para um eixo da Eurásia com a Rússia, tentando reorganizar o conselho geopolítico do Oriente Médio, evocando o passado do império otomano. Esses sonhos expansionistas, a narrativa usual do fascismo, sempre precisam de um inimigo interno para culpar. Em 1915, o mundo testemunhou o genocídio armênio no qual o Estado turco foi fundado, onde não apenas os armênios e outras minorias cristãs foram massacrados e forçadas a deixarem suas casas, mas também deram um exemplo que mais tarde seria referenciado na perpetuação do holocausto ("Afinal, você está falando hoje sobre a aniquilação dos armênios?”, Disse Hitler antes de invadir a Polônia). Agora é a população curda que sofre com essas políticas genocidas e Rojava está, sem dúvida, na mira deles.
A situação econômica em Rojava também está em um momento muito complexo, com enormes dificuldades pela frente. A libra síria caiu para níveis mínimos e nos últimos meses perdeu mais de 300% de seu valor no mercado doméstico. A isso, devem ser acrescentadas as novas sanções contra a Síria impostas pelo governo Trump, um movimento econômico de guerra que, apesar de ser dirigido contra o governo de al-Assad, tem um impacto profundo em toda a Síria. Trump prometeu que a autoadministração de Rojava estaria isenta dessas sanções, mas por enquanto essa promessa não se concretizou e elas devem ser adicionadas ao embargo que Rojava sofreu desde o início da revolução. Em termos de recursos, em Rojava há uma abundância de dois recursos principais, trigo e petróleo, mas esses também agora estão enfrentando dificuldades. A crise do COVID-19 causou uma queda no preço do petróleo, o que tem um enorme impacto sobre a receita da auto-administração. Além disso, as sanções que acabamos de mencionar contra o governo de Assad dificultam a venda do petróleo bruto, necessário para as refinarias em áreas sob controle estatal sírio para processá-lo. A colheita do trigo, um importante recurso coletado nesses meses, também está enfrentando dificuldades. Por um lado, a autoadministração decidiu avançar a colheita para evitar o que aconteceu no ano passado, onde grupos insurgentes causaram numerosos incêndios nos campos de trigo. O avanço da colheita reduziu os incêndios e garantiu que o trigo não fosse perdido, mas, ao mesmo tempo, foi colhido ainda verde e o preço pelo qual pode ser vendido é mais baixo. A isto deve ser adicionado o roubo de trigo que foi armazenado nos silos da área ocupada pela Turquia, como os importantes silos de Gîre Spî.
Um último aspecto que queremos mencionar também está relacionado com os efeitos globais da pandemia, que é o fechamento das fronteiras que limitou a movimentação de internacionalistas. Durante os últimos 4 meses nenhum internacionalista pode entrar ou sair de Rojava, isso limita o número de pessoas novas que querem viajar para Rojava, mas não tem como entrar.
Com toda essa situação, se torna difícil saber o que vai acontecer. A situação é altamente instável, existem tantas variáveis e tantos interesses em jogo que as coisas mudam rapidamente de um dia para o outro. Sem dúvida, a maior ameaça é uma nova invasão do Estado turco, provavelmente em Kobane, pois foi sua resistência ao que capturou a atenção internacional. O poder simbólico desta cidade é muito importante e é por isso que o Estado turco quer ocupá-la, porque sabe que será muito difícil manter a fé na revolução sem a cidade que conseguiu quebrar o avanço do ISIS. É provável que o exército turco e seus aliados islâmicos decidam atacar Ain Issa e Manbij primeiro, já que são cidades próximas e essenciais quando se trata de fornecer apoio logístico no caso de Kobane ser sitiado novamente. Diante de tal ataque, Erdogán sabe que precisa de uma autorização das potências internacionais e regionais. A guerra de influências entre a Rússia e os EUA no Oriente Médio pode desempenhar um papel relevante e, à medida que o equilíbrio de poder e os objetivos de ambas as potências imperialistas mudam, os efeitos serão sentidos, não apenas na Síria, mas em todo o Oriente Médio e no mundo inteiro. Nos últimos meses vemos uma retirada constante da presença de tropas americanas na Síria, embora nunca seja definitiva, pois entre suas prioridades ainda está a de impedir que outras potências ganhem influência, principalmente a Rússia e o Irã. Esses movimentos são seguidos por uma corrida não apenas do governo Bashar al-Assad, mas principalmente da Rússia, que busca preencher as lacunas de poder que essa retirada pode causar, reforçando sua hegemonia em solo sírio e garantindo seu acesso ao Mar Mediterrâneo.
As outras potência regionais também podem influenciar no futuro da Síria, como o Estado de Israel, que segue mantendo sua ocupação das montanhas de Golã, como ataques contínuos e bombardeados contra diferentes objetivos em solo sírio. A presença do Irã na Síria tampouco é segredo, de fato a maioria dos ataques de Israel são contra alvos do Hezbolah ou outras forças próximas ao regime teocrático do Irã. O governo sionista de Netanyahu aproveita a inimizade do Irã com os Estados Unidos para atacar impunemente e enfraquecer assim as potências que rodeiam o Estado de Israel. O Estado Egípcio também começa a mostrar agitação, com ameaças de intervir no conflito na Líbia para deter a expansão da influência turca. Até agora o Egito está fora do tabuleiro sírio, mas o governo de al-Sisi vê o desenvolvimento de Erdogán como uma ameaça, por conta de seu discurso neo-otomanista e sua forte relação com a Irmandade Muçulmana, principal oposição ao governo de al-Sisi.
Outro cenário possível em um futuro próximo é um ataque total por parte do Estado turco a Qandil, no Curdistão iraquiano, onde estão localizadas as bases do PKK. Erdogan passou anos cercando as montanhas onde o movimento insurgente curdo tem o seu coração, e espera contar com o apoio da OTAN e de sua mídia e rede tecnológica para realizar esta operação. Mas para cercar as montanhas, Erdogan precisa da colaboração não apenas do Estado iraquiano, mas também das forças do Estado do Irã, já que Qandil está nas fronteiras que separam os dois países. Seria também uma operação muito cara e, dada a volátil situação econômica da Turquia e suas múltiplas frentes abertas, não está claro se Erdogan será capaz de lançar uma campanha em larga escala. Sem dúvida, esse ataque condicionaria Rojava enormemente, já que as influências ideológicas de Abdullah Öcalan no desenvolvimento do confederalismo democrático são fundamentais, e a revolução não pode ficar à toa diante de um ataque de tal magnitude contra o povo curdo.
Como podemos ver, Rojava é um pequeno ator em um quadro de poderes cheio de rancores e conflitos. Sua breve história sempre foi ameaçada pelo contexto de guerra e conflito que a cerca e sua mera existência desafia os planos e as agendas dos poderes que intervêm na Síria. Apesar de breves alianças táticas, é claro que nenhum Estado tem interesse em permitir que esse projeto revolucionário prospere e se expanda. Agora que o Estado Islâmico foi derrotado, outras forças e potências continuam a atacar esse projeto revolucionário, principalmente através do Estado turco e de seus aliados. Rojava existe graças ao compromisso e esforço coletivo de milhares de militantes e devemos sempre ter em mente que, sem o sacrifício deles, nada que vivemos aqui hoje seria possível. Os ataques sofridos causaram perdas muito importantes e processos muito dolorosos, tendo que ir em frente e reconstruir as ruínas que a guerra deixou. Como militantes, essas experiências nos forçaram a apreciar a necessidade de autodefesa em níveis muito profundos e a apreciar a vida e os momentos de felicidade com mais gratidão do que jamais experimentamos antes.
Até agora, Rojava continua sendo um modelo inspirador para movimentos revolucionários ao redor do mundo, um espaço para debate e prática política demonstrando que outro mundo é possível. Rojava não é uma sociedade anarquista, mas é uma sociedade em que anarquistas de todo o mundo podem aprender e colocar nossas ideias em prática. Não podemos permitir que esse farol de esperança se apague e, embora continuem atacando, continuaremos a construir, defender e desenvolver o mundo em que sonhamos viver. Os ataques que virão continuarão causando dor e destruição, mas não tememos as ruínas, pois carregamos um novo mundo em nossos corações.
Tekoşina Anarşist
Julho 2020
Rojava