Errico Malatesta

A Organização

1897

      I

      II

      III

I

Há anos que entre os anarquistas se discute muito esta questão. E, como acontece muitas vezes, quando entra a paixão numa discussão e a busca da verdade dá lugar à teimosia em ter razão, ou quando as discussões teóricas não passam de uma tentativa de justificar uma conduta prática inspirada por outros motivos, produziu-se uma grande confusão de ideias e de palavras.

Recordemos de passagem, só para desse ponto desembaraçar o terreno, as simples questões de palavras, que por vezes atingiram os mais altos cimos do ridículo, como por exemplo: «nós não queremos a organização, mas a harmonização»; «somos contrários à associação, mas admitimos o entendimento»; «não queremos secretário e tesoureiro, porque são coisas autoritárias, mas encarregamos um companheiro de manter a correspondência e outro de guardar o dinheiro» — e passemos à discussão séria.

Entre os que reivindicam, com adjetivos vários ou sem adjetivos, o nome de anarquistas, duas frações existem: os partidários e os adversários da organização.

Se não podemos chegar a pôr-nos de acordo, procuremos ao menos compreender-nos.

E antes de tudo distingamos, pois a questão é tripla: a organização em geral como princípio e condição de vida social, hoje e na sociedade futura; a organização do partido anarquista; e a organização das forças populares e especialmente a das massas operárias para a resistência contra o governo e contra o capitalismo.

A necessidade da organização na vida social, e quase direi a soninímia entre organização e sociedade, é coisa tão evidente que custa a crer como se tenha podido negá-la.

Para se dar conta disso é preciso recordar qual é a função específica, característica do movimento anarquista, e como os homens e os partidos estão sujeitos a deixar-se absorver pela questão que mais diretamente lhes diz respeito, esquecendo-se de todas as questões conexas, a olhar mais à forma do que à substância, enfim, a ver as coisas só de um lado e perder assim a justa noção da realidade.

O movimento anarquista começou como reação contra o espírito de autoridade, dominante na sociedade civil, assim como em todos os partidos e todas as organizações operárias, e foi engrossando pouco a pouco com todas as revoltas levantadas contra as tendências autoritárias e centralizadoras.

Era natural então que muitos anarquistas fossem como que hipnotizados por esta luta contra a autoridade e que, julgando, por influência da educação autoritária recebida, que a autoridade é a alma da organização social, para combater aquela negassem e combatessem esta.

E realmente a hipnotização chegou ao ponto de fazer sustentar coisas verdadeiramente incríveis.

Combateu-se todo o tipo de cooperação e de entendimento, considerando que a associação era a antítese da anarquia; sustentou-se que sem acordos, sem obrigações recíprocas, fazendo cada um o que lhe passa pela cabeça sem sequer se informar do que faz o outro, tudo se haveria de harmonizar espontaneamente; que anarquia significa que cada homem deve bastar a si próprio e fazer por si tudo o que necessita sem troca e sem trabalho associado; que as ferrovias podiam funcionar perfeitamente sem organização, e até que isto já acontecia na Inglaterra (!); que o correio não era necessário e que quem de Paris quisesse escrever uma carta para S. Petersburgo… podia levá-la em pessoa (!!), etc. etc.

Mas isso são tolices, dir-se-á, e não vale a pena dar-lhes relevo.

Sim, mas essas tolices foram ditas, impressas, propagadas; foram acolhidas por grande parte do público como a expressão genuína das ideais anarquistas, e servem sempre como armas de combate aos adversários, burgueses ou não burgueses, que querem ter sobre nós uma vitória fácil. E depois essas tolices não deixam de ter o seu valor, na medida em que são a consequência lógica de certas premissas e podem servir de contraprova experimental da verdade ou não de tais premissas.

Alguns indivíduos, de mente limitada mas providos de forte espírito lógico, quando aceitam premissas logo tiram delas todas as consequências até à última, e, se assim quer a lógica, chegam imperturbáveis aos maiores absurdos, à negação dos factos mais evidentes. Há porém outros, mais cultos e de espírito mais largo, que encontram sempre maneira de chegar a conclusões mais ou menos razoáveis, ainda que ao custo de maltratar a lógica; e para estes os erros teóricos têm pouca ou nenhuma influência sobre a conduta prática. Mas em suma, enquanto não se renuncia a certos erros fundamentais, é-se sempre ameaçado pelos silogizadores a todo o transe, e volta-se sempre ao início.

E o erro fundamental dos anarquistas adversários da organização é crerem que não é possível organização sem autoridade — e, admitida tal hipótese, preferirem antes renunciar a qualquer organização do que aceitar a mínima autoridade.

Ora, que a organização, vale dizer a associação para um fim determinado e com as formas e os meios necessários para o conseguir, é coisa necessária à vida social parece-nos evidente. O homem isolado não pode viver nem sequer a vida do bruto: ele é impotente, salvo nas regiões tropicais e quando a população é excessivamente rara, para obter o alimento; e é-o sempre, sem exceções, para se elevar a uma vida um pouco superior à dos animais. Tendo então que se unir aos outros homens, aliás, achando-se com eles unido em consequência da evolução antecedente da espécie, ele deve ou sofrer a vontade dos outros (ser escravo), ou a impor a sua vontade aos outros (ser autoridade), ou viver com os outros em fraterno acordo com vista ao maior bem de todos (ser um associado). Ninguém se pode eximir desta necessidade: e os mais excessivos anti-organizadores não só sofrem a organização geral da sociedade em que vivem, mas também nos atos voluntários da sua vida, também nas suas revoltas contra a organização, unem-se, dividem entre si a tarefa, organizam-se com aqueles com quem estão de acordo e utilizam os meios que a sociedade põe à sua disposição… sempre, é claro, que se trate de coisas desejadas e feitas a valer e não de vagas aspirações platônicas, de sonhos sonhados.

Anarquia significa sociedade organizada sem autoridade, entendendo-se por autoridade a faculdade de impor a própria vontade e não o facto inevitável e benéfico de que quem melhor entende e sabe fazer uma coisa consegue mais facilmente fazer aceitar a sua opinião, e serve de guia, nessa determinada coisa, aos menos competentes do que ele.

Para nós a autoridade não só não é necessária à organização social, mas, longe de lhe ser útil, vive sobre ela como parasita, estorva-lhe a evolução, e dirige as suas vantagens em proveito especial duma dada classe que explora e oprime as outras. Enquanto numa coletividade há harmonia de interesses, enquanto ninguém tem vontade ou modo de explorar os outros, não há sinais de autoridade; quando vem a luta intestina e a coletividade se divide em vencedores e vencidos, então surge a autoridade, a qual naturalmente é devolvida aos mais fortes e serve para confirmar, perpetuar e aumentar a sua vitória.

Assim pensamos, e por isso somos anarquistas; porque se pensássemos que não pode existir organização sem autoridade, seríamos autoritários, pois preferiríamos ainda assim a autoridade, que bloqueia e atormenta a vida, à desorganização que a torna impossível.

De resto, o que seríamos importa pouco. Se fosse verdade que o maquinista, o condutor e os chefes de serviço têm de ser forçosamente autoridades, em vez de companheiros que fazem para todos um determinado trabalho, o público preferiria sempre sofrer a sua autoridade do que viajar a pé. Se o portador de correio não pudesse deixar de ser uma autoridade, todo o homem de mente sã suportaria a autoridade do portador de correio, ao invés de levar pessoalmente as suas cartas.

E então… a anarquia seria o sonho de alguns, mas jamais se poderia realizar.

II

Admitida como possível a existência duma coletividade organizada sem autoridade, isto é, sem coação — e para os anarquistas é necessário admiti-lo porque de outro modo a anarquia não teria sentido — passemos a falar da organização do partido anarquista.

Também neste caso a organização nos parece útil e necessária. Se partido significa o conjunto de indivíduos que têm um objetivo comum e se esforçam para o alcançar, é natural que eles se entendam, unam as suas forças, dividam entre si o trabalho e tomem todas as medidas estimadas necessárias para alcançar esse objetivo. Ficarem isolados, agindo ou querendo agir cada um por sua conta sem se entender com outros, sem se prepararem, sem unirem num poderoso feixe as débeis forças individuais, significa condenarem-se à impotência, desperdiçar a sua energia em pequenos atos sem eficácia e bem depressa perder a fé na meta e cair na completa inação.

Mas também aqui a coisa parece-nos de tal modo evidente que, em vez de insistirmos na demonstração direta, procuraremos responder aos argumentos dos adversários da organização.

E antes de tudo apresenta-se-nos a objeção, digamos assim, prévia. “Mas de que partido nos falais?”, dizem eles, “nós não somos um partido, nós não temos programa”. E por esta forma paradoxal eles pretendem dizer que as ideias progridem e mudam continuamente e que eles não querem aceitar um programa fixo, que pode ser bom hoje, mas será certamente superado amanhã.

Isso seria perfeitamente justo, se se tratasse de estudiosos que procuram a verdade sem cuidar das aplicações práticas. Um matemático, um químico, um psicólogo, um sociólogo podem dizer não terem programa ou só terem aquele de investigar a verdade: o que eles querem é conhecer, e não fazer alguma coisa. Mas anarquia e socialismo não são ciências: são propósitos, projetos que anarquistas e socialistas querem pôr em prática e que por isso precisam de ser formulados em programas determinados. A ciência e a arte das construções progridem todos os dias; mas um engenheiro que quer construir, ou mesmo demolir alguma coisa, tem de fazer o seu plano, reunir os seus meios de ação e proceder como se a ciência e a arte tivessem parado no ponto em que ele as encontra quando dá início aos seus trabalhos. Pode muito bem acontecer que ele possa utilizar novos conhecimentos adquiridos no decurso do trabalho sem renunciar à parte essencial do seu plano; e pode suceder também que as novas descobertas e os novos meios criados pela indústria sejam tais que ele se veja na necessidade de abandonar tudo e recomeçar do zero. Mas recomeçando, precisará de fazer um novo plano baseado naquilo que se conhece e se possui até ao momento, e não poderá conceber e pôr-se a executar uma construção amorfa, com materiais não compostos, pelo motivo de amanhã a ciência poder sugerir formas melhores e a indústria fornecer materiais mais bem compostos.

Nós entendemos por partido anarquista o conjunto daqueles que querem contribuir para realizar a anarquia, e que por isso necessitam de fixar um objetivo a atingir e uma via a percorrer; e deixamos de bom grado às suas elucubrações transcendentais os amadores da verdade absoluta e do progresso contínuo, que nunca expondo as suas ideias à prova dos facto acabam por não fazer nada e descobrir ainda menos.

A outra objeção é que a organização cria chefes, autoridades. Se isso é verdade, isto é, se é verdade que os anarquistas são incapazes de se reunir e chegar a acordo entre si sem se submeterem a uma autoridade, isso quer dizer que eles são ainda muito pouco anarquistas e que, antes de pensar em estabelecer a anarquia no mundo, devem pensar em tornar-se eles próprios capazes de viver anarquicamente. Mas o remédio não estaria na não organização, e sim na madura consciência de cada membro.

Certamente, se numa organização se deixa a cargo de poucos todo o trabalho e todas as responsabilidades, se se suporta o que fazem esses poucos sem se pôr mãos à obra e procurar fazer melhor, esses poucos acabarão, ainda que não o queiram, por substituir a sua vontade à da coletividade. Se numa organização os membros todos não cuidam de pensar, de querer perceber, de que lhes expliquem o que não percebem, de exercer sempre sobre tudo e sobre todos as suas faculdades críticas, e deixam a poucos a tarefa de pensar por todos, esses poucos serão os chefes, as cabeças pensantes e dirigentes.

Mas, repetimos, o remédio não está na não organização. Pelo contrário, nas pequenas como na grande sociedade, à parte a força bruta, que não pode entrar no nosso caso, a origem e a justificação da autoridade está na desorganização social. Quando uma coletividade tem uma necessidade e os seus membros não sabem organizar-se espontaneamente por si próprios para a satisfazer, surge alguém, uma autoridade, que provê a essa necessidade servindo-se das forças de todos e dirigindo-as como quer. Se as vias públicas são pouco seguras e o povo não sabe providenciar, surge uma polícia que, por qualquer serviço que presta, se faz aguentar e pagar, e impõe-se e tiraniza; se é preciso um produto e a coletividade não sabe entender-se com os produtores de longe para o fazer enviar em troca dos produtos do país, aparece o mercador que aproveita a necessidade que têm uns de vender e os outros de comprar, e impõe os preços que quer aos produtores e aos consumidores.

Vê-de o que sempre sucedeu entre nós: quanto menos estivemos organizados, mais nos encontramos à discrição de algum indivíduo. E é natural que assim fosse.

Sentimos a necessidade de estar em relações com os companheiros das outras localidades, de receber e dar notícias, mas não pode cada um individualmente corresponder-se com todos os companheiros. Se estamos organizados, encarregamos companheiros de manter a correspondência por nossa conta, mudamo-los se eles não nos satisfazem, e podemos estar ao corrente de tudo sem depender das boas graças de alguém para ter uma notícia; se ao invés estamos desorganizados, haverá um ou outro que terá os meios e a vontade de manter correspondência e centralizará nas suas mãos todas as relações, comunicará ou não comunicará as notícias segundo bem entender e a quem bem entender, e, se tiver atividade e inteligência suficientes, conseguirá à nossa revelia dar ao movimento a direção que quiser sem que a nós, à massa do partido, reste algum meio de controlo, e sem que ninguém tenha o direito de reclamar, pois aquele indivíduo age por conta sua, sem mandato de ninguém e sem dever prestar contas a ninguém da sua atividade.

Sentimos a necessidade de ter um jornal. Se estamos organizados, poderemos reunir meios para o fundar e dar-lhe vida, encarregar alguns companheiros da redação, e controlar a sua orientação. Os redatores do jornal dar-lhe-ão certamente, de modo mais ou menos acentuado, o cunho da sua personalidade, mas serão sempre pessoas que tenhamos escolhido e que podemos mudar se não nos contentarem. Se ao invés estamos desorganizados, alguém que tiver suficiente espírito de empreendimento fará o jornal por conta sua: encontrará entre nós os correspondentes, os distribuidores, os assinantes, e far-nos-á concorrer para os seus fins sem que os saibamos ou queiramos; e nós, como muitas vezes aconteceu, aceitaremos e apoiaremos esse jornal ainda que não nos agrade, ainda que o achemos nocivo à causa, porque seremos impotentes para fazer outro que melhor represente as nossas ideias.

De modo que a organização, longe de criar a autoridade, é o único remédio contra ela e o único meio para que cada um de nós se habitue a tomar parte ativa e consciente no trabalho coletivo, e deixe de ser instrumento passivo na mão dos chefes.

Porque se não se fizer nada de nada e todos ficarem na completa inação, então certamente não haverá nem chefes nem subordinados, nem comandantes nem comandados, mas então acabarão a propaganda, o partido, e até as discussões sobre a organização… e isto, esperamos, não é o ideal de ninguém.

Mas uma organização, diz-se, supõe a obrigação de coordenar a ação própria com a dos outros, logo viola a liberdade, bloqueia a iniciativa. A nós parece que o que verdadeiramente tira a liberdade e impossibilita a iniciativa é o isolamento que reduz à impotência. A liberdade não é o direito abstrato, mas a possibilidade de fazer uma coisa: isto é verdade entre nós, como é verdade na sociedade em geral. É na cooperação dos outros homens que o homem acha os meios para exercer a sua atividade, o seu poder de iniciativa.

Certamente, organização significa coordenação de forças para um fim comum e obrigação para os organizados de não fazerem coisa contrária ao objetivo. Mas quando se trata de organizações voluntárias, quando aqueles que estão na mesma organização têm verdadeiramente o mesmo objetivo e são partidários dos mesmos meios, a obrigação recíproca que compromete todos torna-se vantajosa para todos; e se alguém renuncia a alguma ideia sua particular em tributo à união, isso quer dizer que acha mais vantajoso renunciar a uma ideia, que ademais não poderia realizar sozinho, do que privar-se da cooperação dos outros nas coisas que julga de maior importância.

Se depois um indivíduo acha que nenhuma das organizações existentes aceita as suas ideias e os seus métodos no que têm de essencial, e que em nenhuma delas poderia exercer a sua individualidade como pretende, então fará bem em ficar de fora; mas então, se não quiser permanecer inativo e impotente, tem de procurar outros indivíduos que pensem como ele e fazer-se iniciador de uma nova organização.

Outra objeção, e é a última de que nos ocuparemos, é que estando organizados estamos mais expostos às perseguições do governo.

A nós parece, ao contrário, que quanto mais estivermos unidos tanto mais eficazmente nos podemos defender. E, com efeito, toda a vez que fomos surpreendidos pelas perseguições enquanto estávamos desorganizados, puseram-nos completamente em debandada e reduziram a nada o nosso trabalho antecedente; ao passo que, quando e onde estávamos organizados, fizeram-nos mais bem do que mal. E dá-se o mesmo até no que diz respeito ao interesse pessoal de cada um: baste o exemplo das últimas perseguições que atingiram os isolados tanto quanto os organizados, e talvez até mais gravemente. Isto, é claro, para aqueles que, isolados ou não, fazem pelo menos a propaganda individual; pois para os que nada fazem e têm bem escondidas as suas convicções, certamente o perigo é pouco, mas é ainda menos a utilidade que dão à causa.

O único resultado, do ponto de vista das perseguições, que se obtém estando desorganizados é autorizar o governo a negar-nos o direito de associação e a tornar possíveis aqueles monstruosos processos por associação para delinquir, que ele não ousaria instaurar contra gente que afirma altamente, publicamente, o direito e o facto de estar associada, ou que, se o governo tal ousasse, resultaria em vergonha para ele e vantagem para a propaganda.

De resto, é natural que a organização tome as formas que as circunstâncias aconselham e impõem. O importante não é tanto a organização formal quanto o espírito de organização. Pode haver casos em que, com o alastrar da reação, seja útil suspender toda a correspondência, cessar toda a reunião: será sempre um dano, mas se a vontade de estar organizados subsistir, se continuar vivo o espírito de associação, se o período anterior de atividade coordenada tiver multiplicado as relações pessoais, produzido sólidas amizades e criado um verdadeiro acordo de ideias e de conduta entre os companheiros, então o trabalho dos indivíduos, mesmo que isolados, concorrerá para o fim comum, e depressa se encontrará maneira de reunir de novo e reparar o dano sofrido.

Somos como um exército em guerra, e podemos, conforme o terreno e as medidas tomadas pelo inimigo, combater em grandes massas ou em ordem dispersa: o essencial é que nos consideremos sempre membros do mesmo exército, que obedeçamos todos às mesmas ideias diretrizes e estejamos sempre prontos a reunir-nos em colunas compactas quando necessário e se possível.

Tudo isto que dissemos é para aqueles companheiros que realmente são adversários do princípio de organização. Àqueles que combatem a organização só poque não quererem entrar ou não são aceites numa determinada organização, e porque não simpatizam com os indivíduos que dela fazem parte, nós dizemos: fazei vós, com os que convosco estão de acordo, outra organização. Nós gostaríamos por certo de caminhar todos de acordo e reunir num feixe poderoso todas as forças do anarquismo; mas não cremos na solidez das organizações feitas à força de concessões e de subentendidos e onde não haja entre os membros acordo e simpatia reais. Melhor desunidos do que mal unidos. Porém gostaríamos que cada um se unisse com os seus amigos e não houvesse forças isoladas, forças perdidas.

III

Resta-nos falar da organização das massas operárias para a resistência contra o governo e os patrões.

Já o repetimos: sem organização, livre ou imposta, não pode haver sociedade; sem organização consciente e voluntária não pode haver nem liberdade, nem garantia de que os interesses dos que vivem em sociedade serão respeitados. E quem não se organiza, quem não procura a cooperação dos outros e não oferece sua em condições de reciprocidade e de solidariedade, coloca-se necessariamente em estado de inferioridade, e é como roda inconsciente do mecanismo social que outros movem a seu modo — e em sua vantagem.

Os trabalhadores são explorados e oprimidos, porque, estando desorganizados para tudo quanto respeita à proteção dos seus interesses, são forçados pela fome ou pela violência brutal a fazer como querem os dominadores, em cujo proveito é organizada a presente sociedade, e fornecem eles próprios a força (soldados e capital) que serve para os manter sujeitos. Nem poderão jamais emancipar-se enquanto não encontrarem na união a força moral, a força econômica e a força física necessárias para erradicar a força organizada dos opressores.

Tem havido anarquistas, e ainda restam alguns, que embora reconhecendo a necessidade da organização na sociedade futura e a necessidade de se organizar hoje para a propaganda e para a ação, são hostis a todas as organizações que não têm como fim direto a anarquia e não seguem métodos anarquistas. E alguns têm-se mantido afastados de todas as associações operárias que se propõem a resistência e o melhoramento de condições na atual ordem de coisas, ou têm-se misturado nelas com o propósito confessado de as desorganizar; enquanto que outros admitiram que se podia fazer parte das associações de resistência existentes, mas consideraram quase uma deserção tentar organizar novas.

Parecia a esses companheiros que todas as forças organizadas para um fim não radicalmente revolucionário fossem forças subtraídas à revolução. A nós parece, ao invés, e a experiência infelizmente já nos deu razão, que esse seu método condenaria o movimento anarquista a uma perpétua esterilidade.

Para fazer a propaganda é preciso estar no meio das pessoas, e é nas associações operárias que o operário encontra os seus companheiros e em especial aqueles que mais estão dispostos a compreender e aceitar as nossas ideias. Mas ainda que se pudesse fazer fora das associações tanta propaganda quanta se quer, esta não poderia ter efeito sensível sobre a massa operária. À parte um pequeno número de indivíduos, mais instruídos e capazes de reflexão abstrata e de entusiasmos teóricos, o operário não pode chegar de golpe à anarquia. Para se tornar anarquista a sério, e não somente de nome, é preciso que ele comece a sentir a solidariedade que o liga aos seus companheiros, que aprenda a cooperar com os outros na defesa dos interesses comuns e que, lutando contra os patrões e contra o governo que os defende, compreenda que patrões e governos são parasitas inúteis e que os trabalhadores poderiam conduzir por si próprios a sociedade. E quando tiver compreendido isto, ele é anarquista, ainda que não leve o nome.

Ademais, favorecer as organizações populares de toda a espécie é consequência lógica das nossas ideias fundamentais, e deveria por isso ser parte integrante do nosso programa.

Um partido autoritário, que tem em mira apossar-se do poder para impor as suas ideias, tem interesse em que o povo permaneça uma massa amorfa, incapaz de agir por si e portanto sempre fácil de dominar. E por isso, logicamente, não deve desejar mais do que aquele tanto de organização e daquele gênero que importa para chegar ao poder: organização eleitoral, se espera lá chegar pelos meios legais; organização militar se conta ao invés com uma ação violenta.

Mas nós anarquistas não queremos emancipar o povo; nós queremos que o povo se emancipe. Não acreditamos no bem feito de cima e imposto pela força; nós queremos que o novo modo de vida social surja das entranhas do povo e corresponda ao grau de desenvolvimento atingido pelos homens e possa progredir à medida que os homens progridam. A nós importa, portanto, que todos os interesses e todas as opiniões encontrem numa organização consciente a possibilidade de se fazer valer e de influir sobre a vida coletiva em proporção com a sua importância.

Nós tomamos a tarefa de lutar contra a presente organização social e de derrubar os obstáculos que se opõem ao advento duma nova sociedade na qual liberdade e bem-estar sejam assegurados a todos. Para alcançar este fim unimo-nos em partido e procuramos tornar-nos o mais numerosos e o mais fortes que seja possível. Mas se de organizado só houvesse o nosso partido; se os trabalhadores ficassem isolados como unidades indiferentes umas às outras e só ligados pelo grilhão comum; se nós próprios, além de estarmos organizados em partido enquanto anarquistas, não estivéssemos organizados com os trabalhadores enquanto trabalhadores, nada poderíamos conseguir, ou, no mais favorável dos casos, só poderíamos impor-nos… e então já não seria o triunfo da anarquia, mas o nosso. Então poderíamos chamar-nos anarquistas, mas na realidade passaríamos de simples governantes, e seríamos impotentes para o bem como o são todos os governantes.

Fala-se muitas vezes de revolução, e com essa palavra pensa-se ter resolvido todas as dificuldades. Mas que coisa deve ser, que coisa pode ser esta revolução que nós invocamos?

Derrubar os poderes constituídos e declarar caducado o direito de propriedade. Está bem: isto pode fazê-lo um partido… e de novo, é preciso que esse partido, além das suas próprias forças, conte com a simpatia das massas e com uma suficiente preparação da opinião pública.

Mas depois? A vida social não admite interrupções. Durante a revolução, ou insurreição como se queira dizer, e logo depois, é preciso comer, vestir, viajar, imprimir, tratar dos doentes, etc., etc., e estas coisas não se fazem por si próprias. Hoje obrigam-nas a fazer o governo e os capitalistas para delas tirarem proveito; expulsos o governo e os capitalistas é preciso que os operários as façam por si em proveito de todos, ou doutro modo sobrevirão, com um nome ou com outro, novos governos e novos capitalistas.

E como poderiam os operários prover às necessidades urgentes se não estivessem já habituados a reunir-se e a tratar juntos dos interesses comuns, e não estivessem de certo modo já prontos para receber a herança da velha sociedade?

No dia a seguir àquele em que numa cidade os negociantes de trigo e os patrões padeiros tiverem perdido os seus direitos de propriedade, e portanto o interesse em abastecer o mercado, é preciso que se encontre nos armazéns o pão necessário para a alimentação pública. Quem pensará nisso se os trabalhadores forneiros não estiverem já associados e prontos para fazer sem os patrões, e se, à espera precisamente da revolução, não tiverem pensado antes em calcular as necessidades da cidade e os meios para as satisfazer?

Não pretendemos com isto dizer que para fazer a revolução é preciso esperar que todos os operários estejam organizados. Isso seria impossível, vistas as condições do proletariado; e felizmente não é necessário. Mas é preciso pelo menos que existam os núcleos em torno dos quais se possam rapidamente reagrupar as massas, logo que estiverem libertas do peso que as oprime. Porque, se é utopia querer fazer a revolução quando estiverem todos prontos e todos de acordo, é uma utopia ainda maior querer fazê-la com nada e com ninguém. Há uma medida em tudo. Entretanto trabalhemos para que cresçam o mais possível as forças conscientes e organizadas do proletariado. O resto virá por si.


Adquirido em 6/12/2020 de ithanarquista.wordpress.com
Publicado originalmente no «L’Agitazione» de Ancona, números 13, 14 e 15 (4, 11 e 18 de junho de 1897), e mais tarde publicado em opúsculo em várias línguas. Tradução encontrada na revista «A Sementeira» de Lisboa (1908-1919), revisada de acordo com o original italiano, e adaptada ao português brasileiro, pelo ITHA.