Título: Anarquismo e sindicalismo
Data: Novembro de 1907
Fonte: MALATESTA, Errico. A anarquia e outros escritos. Tradução: Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Intermezzo, 2018. pp. 83-92. [orig.: Freedom, novembro de 1907]

A questão que implica saber que posição devemos tomar em relação ao movimento sindical é certamente uma questão da maior importância para os anarquistas.

Malgrado longas discussões e diversas experiências, ainda não se chegou a um acordo completo sobre essa questão; a razão disso talvez esteja no fato de que essa questão não permite solução completa e permanente, graças às diferentes condições e às circunstâncias cambiantes da luta.

Penso, contudo, que nosso objetivo poderia sugerir-nos um critério de conduta aplicável às diversas contingências.

Desejamos a elevação moral e material de todos os homens; desejamos realizar uma revolução que dará a todo mundo a liberdade e o bem-estar, e estamos convictos de que isso não pode vir de cima, por leis e decretos, mas deve ser conquistado pela vontade consciente e pela ação direta daqueles que o desejam.

Necessitamos, portanto, mais do que todos os outros, da cooperação consciente e voluntária daqueles que, sofrendo mais pela presente organização social, têm o maior interesse na revolução.

Não nos basta – ainda que isso seja certamente útil e necessário – elaborar um ideal tão perfeito quanto possível, e formar grupos para a propaganda e a ação revolucionária.

Devemos converter ao nosso ideal a grande massa dos trabalhadores porque, sem ela, não podemos nem destruir a sociedade existente nem construir uma nova. E, visto que, para a grande massa dos proletários erga-se do estado de submissão no qual vegeta e chegue à concepção anarquista e ao desejo de realizá-la, é preciso uma evolução que não se opera unicamente sob a influência da propaganda; porquanto as lições que derivam dos fatos da vida cotidiana são muito mais eficazes do que todos os discursos doutrinários, devemos absolutamente tomar parte ativa na vida das massas, empregar todos os meios que as circunstâncias permitem-nos, para despertar gradualmente o espírito de revolta, e mostrar à massa, com a ajuda desses fatos, o caminho que conduz à emancipação.

É evidente que um dos melhores meios é o movimento sindical, e cometeríamos um grande erro se o negligenciássemos. Nesse movimento, encontramos grandes quantidades de operários que lutam pela melhoria de sua situação.

Esses operários podem enganar-se no que concerne ao objetivo que eles propõem-se a alcançar, e os meios que adotam para chegar a isso, e, em nossa opinião, eles enganam-se geralmente.

Todavia, esses operários, pelo menos, não se resignam mais à opressão e não a veem mais como justa; eles esperam e lutam. Nesses operários, podemos mais facilmente despertar esse sentimento de solidariedade em relação a seus camaradas explorados, e de ódio contra a exploração que conduzirá necessariamente à luta definitiva pela abolição da dominação do homem sobre o outro.

Podemos conduzir esses operários a reivindicar cada vez mais, e a reivindicar por meios cada vez mais enérgicos, e, desse modo, envolvemo-nos e envolvemos os outros na luta, extraindo benefícios das vitórias, a fim de exaltar a força da união e da ação direta, e beneficiando-se também dos reveses, que nos ensinam a necessidade de empregar meios mais enérgicos e soluções mais radicais.

Além disso, – e isso não é uma pequena vantagem – o movimento sindical pode preparar esses grupos de operários profissionais que, durante a revolução, poderão empreender a organização da produção e da troca, fora e contra todo poder governamental.

Mas com todas essas vantagens, o movimento sindical tem também seus defeitos e seus perigos, os quais devemos levar em conta quando examinamos a questão da posição que devemos tomar como anarquistas.

A experiência constante em todos os países mostra-nos que o movimento sindical, que começa sempre como um movimento de protestação e revolta, e que é animado no início por um grande espírito de progresso e fraternidade humana, tende bem rápido a degenerar. Quanto mais esse movimento torna-se forte, mais se torna egoísta, conservador, ocupado exclusivamente com interesses imediatos e restritos, e desenvolve em seu seio uma burocracia que, como sempre, não tem outro objetivo senão se fortalecer e crescer. É esse estado de coisas que induziu muitos camaradas a retirar-se do movimento sindical e, inclusive, combatê-lo como algo reacionário e nocivo. Mas disso resultou que nossa influência entre esses operários diminuiu, e o campo foi deixado livre àqueles que desejavam explorar o movimento num interesse pessoal ou de partido que nada tinha de comum com a causa da emancipação operária. Logo só eram encontradas organizações com um espírito estreito essencialmente conservador, das quais as trade-unions inglesas são o tipo, ou sindicatos que, sob a influência de políticos muito amiúde “socialistas”, eram simples máquinas eleitorais servindo para içar ao poder certos indivíduos.

Felizmente outros camaradas pensavam que o movimento sindical tinha sempre em si um princípio saudável e que, em vez de abandoná-lo aos políticos, seria melhor empreender a tarefa de trazer de volta essas organizações a seu objetivo primevo e extrair delas todas as vantagens que elas oferecem à causa anarquista. E esses camaradas conseguiram criar, especialmente na França, um novo movimento que, sob o título de “sindicalismo revolucionário”, busca organizar os operários, independentemente de toda influência burguesa e política, a fim de conquistar sua emancipação pela ação direta contra seus patrões.

Isso é evidentemente um grande passo à frente; mas não devemos exagerar sua importância e imaginar, como o fazem certos camaradas, que realizaremos a anarquia naturalmente pelo desenvolvimento progressivo do sindicalismo.

Cada instituição tem uma tendência a ampliar suas funções, perpetuar-se e tornar-se seu próprio objetivo. Não é surpreendente, portanto, que os iniciadores desse movimento, aqueles que nele desempenham o papel mais importante, tenham-se pouco a pouco habituado a ver o sindicalismo como o equivalente do anarquismo, ou, ao menos, como o meio supremo, substituindo todos os outros meios unicamente por ele, para realizar a anarquia. Mas isso torna ainda mais necessário evitar o perigo e bem definir nossa posição.

O sindicalismo, malgrado todas as declarações de seus mais ardentes partidários, contém em si, pela própria natureza de suas funções, todos os elementos de degenerescência que corromperam os movimentos operários no passado. Com efeito, sendo um movimento que propõe defender os interesses presentes dos operários, ele deve necessariamente adaptar-se às condições existentes e levar em consideração interesses que vêm em primeira linha na sociedade tal como ela existe hoje.

Agora, quando os interesses de uma seção de trabalho coincidem com os interesses de toda a classe operária, o sindicalismo é em si uma boa escola de solidariedade; quando os interesses dos operários de um país são idênticos aos interesses dos operários de outros países, o sindicalismo é um bom meio para desenvolver a fraternidade internacional; quando os interesses do momento não estão em contradição com os interesses do futuro, o sindicalismo é em si uma boa preparação para a revolução. Mas infelizmente isso nem sempre é assim.

A harmonia dos interesses, a solidariedade entre todos os homens é um ideal ao qual aspiramos, é o objetivo pelo qual lutamos, mas isso não é a condição atual, nem entre os homens da mesma classe, nem entre os homens de classes diferentes. A regra hoje é o antagonismo e a interdependência dos interesses ao mesmo tempo; a luta de cada um contra todos e de todos contra um. E não pode ser diferente numa sociedade na qual, em consequência do sistema capitalista de produção (isto é, uma produção fundada no monopólio de meios de produção e organização internacionalmente para o proveito de certos indivíduos) há, em geral, mais braços do que trabalho a fazer e mais bocas do que pão para enchê-las.

É impossível isolar-se seja como indivíduo, seja como classe ou como nação, visto que a condição de cada um depende mais ou menos diretamente das condições gerais de toda a humanidade. É impossível viver em um verdadeiro estado de paz porque é necessário defender-se e, inclusive, com frequência, atacar se não se quiser perecer.

O interesse de cada um é assegurar para si um emprego, e, como consequência, encontrar-se-á em antagonismo – isto é, em concorrência – com os sem trabalho do mesmo país e com os emigrantes dos outros países. Cada um deseja conservar ou obter o melhor contra os outros operários da mesma indústria. Cada um tem interesse em vender caro e comprar barato e, por consequência, como produtor, encontra-se em conflito com todos os consumidores e, quando ele é consumidor, encontra-se em conflito com todos os produtores.

União, entendimento, luta solidária contra o explorador, são coisas que não podem hoje ser obtidas senão por operários, animados pela concepção de um ideal superior, que aprenderam a sacrificar seus interesses exclusivos e pessoais aos interesses comuns, os interesses do momento aos interesses do futuro; e esse ideal de uma sociedade de solidariedade, justiça, fraternidade, não pode ser realizado senão pela destruição – desafiando toda legalidade – das instituições existentes.

Oferecer aos operários esse ideal; colocar os interesses largos do futuro antes dos interesses estreitos e imediatos; tornar possível a adaptação às condições presentes; trabalhar sempre para a propaganda e a ação que conduzirão e realizarão a revolução, eis os objetivos aos quais devem tender os anarquistas nos sindicatos e fora dos sindicatos.

O sindicalismo não pode fazer isso, ou só pode fazer muito pouco; ele deve contar com os interesses presentes, e esses interesses nem sempre são, infelizmente, aqueles da revolução. O sindicalismo não deve, ou não deve em demasia, exceder os limites da legalidade, e em dados momentos, deve tratar com os patrões e as autoridades. Ele deve ocupar-se dos interesses de certas seções de operários, não da massa dos sem trabalho e dos interesses da classe operária.

Se o sindicalismo não fizesse isso, ele não teria nenhuma razão particular de existir e perderia sua principal utilidade que é educar e habituar à luta as massas atrasadas.

E visto que os sindicatos devem permanecer abertos a todo mundo, a todos aqueles que desejem obter melhores condições de vida de seus patrões, então as opiniões dos sindicatos sobre a constituição geral da sociedade são de menor importância; eles são levados naturalmente a moderar suas aspirações; primo, para não apavorar os operários atrasados que eles querem atrair, e secundo, porque, à medida que o sindicato aumenta numericamente, as pessoas avançadas, os iniciadores do movimento perdem-se na maioria que se ocupa unicamente dos pequenos interesses do grupo.

Assim, pode-se ver desenvolver-se em todos os sindicatos que alcançaram certa posição influente a tendência a assegurar-se – em acordo mais com do que contra os patrões – uma situação privilegiada; criar dificuldades para a admissão de novos membros, para a admissão dos aprendizes nas fábricas; uma tendência em reunir fundos que eles temem depois comprometer; buscar o favor dos poderes públicos; absorver inteiramente na cooperação e em todas as espécies de mutualidade; tornar-se, ao final, um elemento conservador na sociedade.

Após tudo isso, parece-me claro que o movimento sindical não pode substituir o movimento anarquista, e pode servir como meio de educação e preparação revolucionária apenas se ele é colocado em movimento pela impulsão, pela ação e pela crítica anarquistas. Os anarquistas devem abster-se de identificar-se com o movimento sindicalista; eles não devem tomar por objetivo o que é apenas um dos meios de propaganda e ação. Devem permanecer no sindicato para dar uma impulsão à marcha para a frente e tentar fazer dos sindicatos, tanto quanto possível, instrumentos de combate com vistas à revolução social. Eles devem trabalhar para desenvolver nos sindicatos tudo o que pode aumentar sua influência educativa, sua combatividade, a propaganda das ideias, as greves, os espíritos do proselitismo, a desconfiança e o ódio das autoridades e dos políticos, a prática da solidariedade em relação a indivíduos e grupos em luta com os senhores do dia.

Os anarquistas nos sindicatos devem combater tudo o que tende a torná-los egoístas, pacíficos, conservadores – o orgulho profissional, o espírito de corpo, as fortes cotizações, a acumulação dos capitais investidos, os serviços de seguro, a confiança nas boas funções do governo, as relações amicais com os patrões, a nomeação dos empregados burocratas remunerados e permanentes. Nessas condições, a participação dos anarquistas no movimento sindical pode ter bons resultados, mas apenas nessas condições.

Essa tática pode algumas vezes parecer ou ser verdadeiramente nociva aos interesses imediatos de certos grupos, mas isso não tem qualquer importância, quando se trata da causa anarquista, isto é, do interesse geral e permanente da humanidade. Certamente desejamos, enquanto aguardamos a revolução, arrancar dos governos e dos patrões o máximo de liberdade e bem-estar possível, mas jamais comprometemos o futuro por alguma vantagem momentânea que, de resto, é muito amiúde ilusória ou obtida às expensas de outros operários. Preservemo-nos de nós próprios. O erro de ter abandonado o movimento operário causou muito mal à anarquia, mas, ao menos, deixou-a pura com seu caráter distintivo.

O erro de confundir o movimento anarquista com o sindicalismo será muito grave. Acontecerá conosco o que aconteceu com os social-democratas assim que entraram na luta parlamentar. Eles ganharam em força numérica, mas se tornaram dia após dia menos socialistas. Nós também nos tornaremos a cada dia mais numerosos, mas cessaremos de ser anarquistas.