Título: Uma carta profética a Luigi Fabbri
Subtítulo: Errico Malatesta sobre a Ditadura do Proletaridado
Fonte: Páginas 391–392 de No Gods, No Masters editado por Daniel Guérin. Disponível em theanarchistlibrary.org
Notas: Notas de rodapé adicionadas por Daniel Guérin.

Londres, 30 de julho, 1919

Querido Fabbri[1],

(…) Parece-me que estamos em perfeito acordo sobre os assuntos que atualmente te preocupam, para relembrar, a “ditadura do proletariado”.

Pelo meu raciocínio, neste assunto, a opinião dos anarquistas não pode ser questionada e, de facto, bem antes da revolução Bolchevique, nunca foi inquirida por ninguém. Anarquia significa ausência de governo e, deste modo, e com um ênfase especial, ausência de ditadura, isto é, de um governo absoluto, descontrolado e sem restrições constitucionais. Mas assim que a revolução bolchevique surgiu, parece que os nossos amigos confundiram o que constitui uma revolução contra um governo já existente com o que foi implicado por um novo governo, que acabara de ter dominado a revolução de modo a lhe aplicar travões e dirigi-la na direção dos propósitos políticos do partido. E assim os nossos amigos não fazem nada senão declararem-se de todo Bolcheviques.

Agora, os bolcheviques são meramente marxistas que permaneceram honestos e conscientes, ao contrário dos seus professores e modelos, os Guesde, Plekhanov, Hyndman, Scheidemann, Noske, etc.[2], cujo destino conheces. Respeitamos a sua sinceridade, admiramos a sua energia, mas, como nunca concordamos com eles em termos de questões teóricas, não nos poderemos alinhar com eles assim que eles fizerem a transição da teoria para a prática.

Mas talvez a verdade seja simplesmente esta: os nossos amigos “pró-bolcheviques” entendem a expressão “ditadura do proletariado” como significando simplesmente a ação revolucionária dos trabalhadores ao tomarem posse das terras e instrumentos de trabalho, e tentando construir uma sociedade e organizar um modo de vida no qual não haveria lugar para uma classe que explora e oprime os produtores.

Assim entendida, a “ditadura do proletariado” seria o poder efetivo dos trabalhadores tentando derrubar a sociedade capitalista, e tornando-se em anarquia assim que a resistência dos reacionários parasse e quando mais ninguém procurasse persuadir pela violência as massas a obedecer e a trabalhar para ele. Em todo o caso, a discrepância entre nós seria nada mais que uma questão de semântica. A ditadura do proletariado significaria a ditadura de todos, isto é, não seria mais uma ditadura, tal como um governo de todos já não é um governo no sentido autoritário, histórico e prático da palavra.

Mas os verdadeiros apoiantes da “ditadura do proletariado” não seguem esta linha de raciocínio, como o claramente se prova pelo que fazem na Rússia. É certo que o proletariado se encontra envolvido em tudo isto, do mesmo modo que as pessoas desempenham um papel nos regimes democráticos, ou seja, para esconder a realidade das coisas. Na realidade, o que temos é a ditadura de um partido, ou antes, a ditadura dos líderes de um partido: uma ditadura genuína, com os seus decretos, as suas sanções penais, os seus homens de confiança e, acima de tudo, as suas forças armadas que estão de momento implantadas para defender a revolução contra os seus inimigos externos, mas que amanhã serão utilizadas para impôr a vontade dos ditadores aos trabalhadores, para aplicar um travão na revolução, para consolidar novos interesses no processo de emergência e proteger uma nova classe privilegiada contra as massas.

O general Bonaparte foi outro que ajudou a defender a Revolução Francesa contra a reação europeia, mas ao fazê-lo, retirou-lhe a vida. Lenin, Trotsky e seus camaradas são indubitavelmente revolucionários sinceros (…) e não se tornarão traidores – mas estão a preparar as estruturas governamentais que aqueles que lhes sucederem utilizarão para explorar a Revolução e fazê-lo até à sua morte. Eles serão as primeiras vítimas dos seus métodos e temo que a revolução caia juntamente com eles.

A História repete-se: mutatis mutandis, foi a ditadura de Robespierre que levou Robespierre à guilhotina e preparou o caminho para Napoleão.

Estes são os meus pensamentos gerais sobre os assuntos da Rússia. Quanto às detalhadas notícias que têm chegado, ainda é tudo muito disperso e contraditório para ter o mérito de arriscar dar uma opinião. É possível, também, que muitas das coisas que nos afetam sejam produtos de tal situação e, nas circunstâncias particulares da Rússia, não havia outra opção senão fazer o que eles fizeram. O melhor será esperar, especialmente porque qualquer coisa que digamos não terá qualquer influência sobre o decurso dos eventos na Rússia e poderá ser mal interpretado em Itália e ter eco nas calúnias da reação dos partidários.

[1] Luigi Fabbri (1877–1938), militante e escritor anarquista italiano, autor de A Ditadura e a Revolução

[2] Jules Guesde (1845–1922), líder social-democrata, depois de ter sido um anarquista e um pioneiro do marxismo em França. Georgi Plekhanov (1856–1918), um populista russo, tornado marxista no exílio, introdutor do marxismo na Rússia: mentor e colaborador de Lenin antes de se separar dele de modo a condenar a tomada de poder bolchevique em 1917. Henry Hyndman (1842–1921), fundador do laborismo após ter sido um pioneiro do marxismo em Inglaterra. Philip Schedidemann (1864–1935), social democrata alemão, chancellor em 1919. Gustav Noske (1868–1946), social-democrata de direita, governador do Kid em 1918, juntou-se ao contra-revolucionário Conselho dos comissários do povo no início de 1919, sendo posteriormente ministro do Exército, organizando a repressão dos movimentos revolucionários do pós-guerra.