Errico Malatesta
Ciência e reforma social
As grandes descobertas científicas do século XIX e a crítica vitoriosa que a ciência opôs às mentiras e erros das religiões fizeram com que os espíritos progressivos se tornassem admiradores entusiásticos, se não cultores inteligentes e pacientes da Ciência, e exagerando, atribuíssem à Ciência o poder de tudo compreender e tudo resolver: da Ciência fizeram uma nova Religião.
E os reformadores sociais de todas as espécies, isto é, todos os que com um fim qualquer e por qualquer meio pretendiam modificar a atual organização social, julgaram-se na obrigação de basear na Ciência as suas aspirações; ao passo que do outro lado os conservadores, quando viram que a fé religiosa vacilava e já não bastava para manter o povo sujeito, procuraram também justificar com a ciência o regime vigente.
Foi uma verdadeira embriaguez (não dissipada ainda), que fez perder o conceito claro da natureza, métodos e alcance da Ciência, em inteiro prejuízo da verdade científica e da ação social.
Ninguém ou quase ninguém se salvou; e se nós, os anarquistas, escapamos do ridículo de nos chamarmos anarquistas científicos, foi talvez apenas porque o qualificativo de científico fora já tomado e tornado antipático pelo socialismo marxista.
Com efeito, muitos dos nossos camaradas, e entre os mais beneméritos e ilustres, sustentaram precisamente que a Anarquia é uma dedução das verdades estabelecidas pela Ciência, não é até outra coisa senão a aplicação da concepção mecânica do universo aos factos humanos.
Quando afinal, a mostrar a falácia deste seu cientificismo, a mostrar que na realidade o seu anarquismo deriva dos seus sentimentos e não das suas convicções científicas, há a circunstância de eles continuarem sendo anarquistas da mesma forma ainda quando as ciências progridem e mudam; e, a despeito do objetivismo que professam, na prática não admitem os factos nem aceitam as teorias que pareçam contradizer as suas aspirações anarquistas.
E se não tivessem tido ocasião de fazer estudos científicos, ou não existissem as ciências, mantendo-se os conhecimentos humanos no estado em que se encontravam há séculos, provavelmente seriam anarquistas da mesma forma, porque, homens sensíveis e bons, sofreriam com a dor humana e desejariam dar-lhe remédio, e, homens altivos e justos, revoltar-se-iam contra a opressão e quereriam a liberdade completa para si próprios e para todos.
Demais, reconhecem a qualidade de anarquistas conscientes à imensa maioria de camaradas que ignoram a ciência; e quando fazem propaganda, fazem tal qual como nós, isto é, procuram despertar nos homens os sentimentos de dignidade pessoal e de amor pelos outros, esforçam-se por excitar a paixão da liberdade e da justiça, falam de bem-estar geral e de fraternidade humana, põem em relevo os males sociais e suscitam a vontade de os destruir, sem esperar que a gente tenha estudado matemática, astronomia e química.
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Estudar as ciências é coisa ótima, e mais adiante diremos para que servem.
Mas pretender que o anarquismo (e o mesmo se diga quanto ao socialismo ou a qualquer outra aspiração humana) é uma dedução científica, pretender especialmente que é uma consequência duma daquelas vastas hipóteses cosmogônicas em que se compraz a filosofia, é uma coisa falsa por si mesma, e além disso nociva pelas consequências que pode ter sobre o desenvolvimento intelectual dos indivíduos e sobre a sua capacidade de combatentes.
A ideia dum Deus pessoal, criador de todas as coisas, que é a mais antiga, a mais ingênua e a mais grosseiramente absurda daquelas hipóteses, causou um dano imenso porque habituou a gente a crer sem compreender e, sufocando o espírito de exame, formou escravos intelectuais bem preparados para suportar a escravidão política e econômica.
Mas não fazem porventura o mesmo as hipóteses científicas, quando apresentadas como verdades inconclusas e como motivo de ação a quem ignora a ciência nem está habilitado a julgar?
Não basta uma ou outra vaga noção de verdades científicas, mais ou menos certas, e o conhecimento de algumas palavras arrevesadas para fazer um sábio, ou pelo menos um homem que saiba o que diz e possa escolher entre as coisas que lhe dizem.
Para o grosso público, Moisés e Haeckel são figuras igualmente míticas, e acreditar no monismo de um e não na gênese do outro, só porque é moda no nosso ambiente, não faz uma pessoa menos ignorante, menos supersticiosa, menos religiosa. E falar aos profanos de átomos, iões e eletrões (que são afinal hipóteses para explicar e relacionar certas categorias de factos, hipóteses cômodas, hipóteses úteis para a investigação científica, mas hipóteses, simples concepções mentais, e de nenhum modo descobertas positivas), falar, dizia eu, a quem as ignora, de coisas arcanas e incompreensíveis sem conveniente preparação, é o mesmo que lhes falar de Deus e de Anjos; isto é, ensinar palavras e fazer acreditar que são coisas, habituar a mente a contentar-se com afirmações que não se compreendem e não se podem provar nem definir.
Mudar-se-ia de religião, mas ter-se-ia sempre uma religião, no sentido de submissão cega a uma verdade revelada, que não se pode verificar, nem compreender.
E se fosse certo ser a anarquia uma verdade científica, não seriam então verdadeiros anarquistas senão os pouquíssimos homens de ciência que se dizem tais, e os demais seríamos todos rebanho inconsciente, seguindo cegamente alguns sacerdotes iniciados nas razões da fé!
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Nem há diferença nas deduções morais e nas aplicações sociais que se podem tirar das várias teorias cosmogônicas.
Os padres puseram na boca de Deus o que lhes convinha, servindo-se dele como meio para justificar e consolidar o domínio dos vencedores; mas não faltaram no curso da história rebeldes que em nome de Deus pregaram a justiça e a igualdade. Diz-se que tudo sucede por vontade de Deus e portanto não há remédio senão aceitar cada um com resignação a sua sorte; mas também se pode dizer que a revolta é santa, visto que, se acontece, é porque Deus assim o quer. E pode-se dizer que, se Deus é pai comum, nós somos todos irmãos e por isso devemos ser iguais. Em suma, há para todos os paladares; e é sabido que Mazzini inventou um Deus de bondade e de amor, de progresso, que era inteiramente diverso do Deus feroz de Pio IX.
Bakunin dizia que, se Deus existe, o homem não tem liberdade nem dignidade. Outro pode dizer – e muitos com efeito o têm dito – que se tudo é matéria, se tudo está submetido a leis naturais, a verdade é uma ilusão, a liberdade uma quimera e o homem não passa dum autômato.
De modo que, se as convicções, as aspirações morais se basearem nos móveis alicerces das hipóteses filosóficas, hão de ser sempre incertas e mutáveis. E assim como o católico, que assenta a sua conduta na crença em Deus, fica sem critério moral assim que lhe é abalada a sua fé religiosa, assim também o anarquista, que realmente o fosse por convicção científica, teria de consultar continuamente os últimos boletins das Academias de Ciências para saber se pode continuar a ser anarquista.
Um camarada proporciona-me um exemplo de como com a filosofia se podem embrulhar as coisas mais simples e evidentes. Na sua opinião, «o princípio de propriedade funda-se na falsa crença da criação do nada». Eu verdadeiramente não percebo que diabo quer ele dizer; mas acho que, se antes de fazer a revolução e de expropriar os detentores da riqueza social, temos que nos entender – nada mais, nada menos – acerca da questão dos origens do mundo, podem os capitalistas dormir sossegados. Ora não é muito mais simples, muito mais compreensível, dizer que ela existe e deve servir para todos, e incitar os trabalhadores a tomarem-na e a trabalharem-na por conta própria, sem se deixarem explorar mais pelos que, com a fraude ou a violência, se fizeram donos dela?
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Se das nuvens da filosofia descemos ao terreno mais sólido das ciências positivas e das e das chamadas ciências sociais, vemos igualmente que podem servir para defender os mais diversos regimes políticos, as mais contraditórias aspirações sociais. No imenso amálgama dos factos mais ou menos verificados, escolhe cada um os que convêm à sua tese, e cada um formula teorias, que afinal são na realidade programas, desejos, propósitos, e que o autor quando qualifica de verdades científicas, iludindo a si próprio e aos outros. Na interpretação dos factos da história natural, na antropologia, na filosofia da história, na economia política e em toda a sociologia, a cada voltar de página se nos deparam afirmações tendenciosas, que dizem é, quando teriam que dizer deveria ser, ou antes, eu desejaria que fosse. E o resultado é sofrer com isso a investigação científica objetiva e imparcial; e a luta social, do campo ardente das paixões e interesses, que lhe é próprio, passa a abastardar-se no meio das tretas dos acadêmicos e dos sapientes.
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A ciência recolhe os factos, classifica-os e, quando acha que esses factos são necessários e necessariamente se reproduzem sempre que se verificam as mesmas circunstâncias, formula leis naturais, que não são justamente outra coisa senão a afirmação de que, em dadas condições, se têm certos e determinados fenômenos. Mas não diz ao homem o que ele deve desejar, se deve amar ou odiar, se deve ser bom ou mau, justo ou injusto. Bondade, justiça, direito são conceitos que a ciência ignora completamente.
A ciência tende a delimitar o campo entre a fatalidade e a livre vontade. Quanto mais ela progride, mais poderoso se torna o homem, pois aprende a conhecer as condições necessárias que tem de satisfazer para realizar a sua vontade. Mas esta vontade, realizada ou não, continua sendo uma força extra-científica, com origens próprias e tendências próprias.
A toxicologia ensina-nos a ação fisiológica dos venenos, mas não nos diz se devemos servir-nos das noções adquiridas para envenenar ou para curar a gente. A mecânica descobre as leis do equilíbrio e da resistência dos materiais, ensina-nos a fazer as pontes, os barcos a vapor, os aeroplanos, mas não nos diz se é melhor construir a ponte onde faz arranjo à cupidez dum proprietário ou onde serve os interesses de todos, não nos diz se os barcos e aeroplanos devem ser utilizados na condução de soldados e no lançamento de bombas sobre as populações, ou na difusão da civilização do bem-estar e da fraternidade pelo mundo. A ciência é arma que tanto se pode aplicar ao bem como ao mal; mas ignora por completo a ideia de bem e de mal.
Em conclusão, nós não somos anarquistas porque a ciência nos ordena que o sejamos; mas somo-lo, entre outras razões, por desejarmos que todos possam gozar as vantagens e satisfações que a ciência proporciona.