Título: Introduzindo Trans-Anarquia
Subtítulo: Uma Coluna de Ação e Análise Trans Revolucionárias
Data: 28.02.2019
Notas: Tradução realizada por Cello Latini Pfeil

Por Que a Cultura Trans é Atraída para a Revolução

Como mulher trans, meu ritual diário mais precioso (obviamente depois de me empanturrar de todos os tipos de soja com fitoestrogênio ao meu alcance) é entrar no Reddit e mergulhar na página mais grandiosa e adorável que existe na Terra: r/traaaaaaannnnnnnnnnnns.

Nesse popular subreddit de memes trans e coisas do gênero, você encontra uma considerável quantidade de publicações que adotam a estética e os sentimentos políticos de esquerda. Isso inclui referências a cat-girls [1] trans derrubando o Estado, imagens anarquistas da moda, histórias em quadrinhos que brincam com agitprop [2] marxiano e assim por diante.

Obviamente, a internet não é o único veículo para a radicalização de jovens trans, mas, em meu ponto de vista, a arena virtual se destaca como a plataforma mais potente e acessível pela qual a subversão pode ser disseminada. E qualquer pessoa com experiência íntima na comunidade trans virtual sabe que isso não é algo restrito ao Reddit - é algo comum a uma grande quantidade de plataformas de mídia social. Mas por que isso ocorre?

Embora qualquer pessoa possa se sentir atraída por filosofias radicais, tais como o anarco-comunismo, há, sem dúvida, vários possíveis motivos pelos quais muitas pessoas trans e gênero-expansivo [3], em particular, se aliam a movimentos proletários de livre associação.

O Legado do Anarquismo Queer

Na verdade, faz muito sentido que o anarquismo esteja ganhando força nos círculos trans contemporâneos, tendo em vista a longa história de empoderamento queer incorporada às lutas anarquistas.

O melhor exemplo disso, se me perguntarem, está nos escritos do dinâmico escritos irlandês Oscar Wilde. Além de ser um lendário dramaturgo e poeta, bem como uma vítima de detenção por homofobia, Wilde era famoso por empregar os princípios do anarquismo coletivista.

Em seu famoso ensaio inspirado em Kropotkin, The Soul of Man Under Socialism (1891), ele escreveu com eloquência, vigor e sagacidade sobre o peso esmagador do capital; a sociedade que Wilde desejava fomentar estaria enraizada no socialismo antiautoritário, que "nos aliviaria daquela necessidade sórdida de viver para os outros que, na atual condição das coisas, pressiona tão duramente quase todo mundo".

O amor de um artista queer pelo anarquismo parece incrivelmente sensato; a liberação do sexo, da identidade e da expressão há muito tempo parece estar alinhada com a liberação socioeconômica geral.

O que também é importante observar é que esse conceito tem se manifestado com frequência em ações diretas. O movimento Queer Liberation foi desencadeado pela revolta de Stonewall em 1969, que envolveu os frequentadores do bar gay Stonewall Inn, em Nova York (muitos dos quais eram mulheres trans de cor, como Sylvia Rivera e Marsha Johnson), que responderam a uma operação policial no local com resistência violenta espontânea. Uma onda internacional de manifestação radical queer surgiu a partir desse evento - e, embora muitas correntes tenham se extinguido com o passar dos anos, como foi o caso de muitos movimentos contraculturais dos anos 60 e 70, vários grupos militantes contemporâneos se inspiram nesse legado de radicalismo queer.

Embora tenham se extinguido, há alguns anos existia uma rede de grupos anarquistas queer americanos insurrecionais conhecida como Bash Back!. Essa rede foi descrita por Fray Baroque como "não apenas um grupo ou uma organização, mas uma tendência militante por parte de indivíduos queer", que consistia em "brigas de bar, fuga de linchamentos, glamdalização, ataque a casas de assassinos heterossexuais, caos total, supostos saques, discussões teóricas, dicas de autodefesa, reuniões sociais, espancamentos, aquisição de grandes quantidades de spray de pimenta e tentativas de liberação sexual".

Portanto, agora que cada vez mais pessoas que não se conformam com a cisnormatividade estão se associando com orgulho e abertamente, existe um nítido precedente para que adotemos esses valores radicais.

Obstáculos Modernos para a Existência Trans

Nos Estados Unidos, de 2013 a 2018, pelo menos 128 pessoas trans foram vítimas de violência transfóbica fatal, predominantemente mulheres trans não brancas; o assassinato de pessoas trans é um desastre urgente, sendo a aplicação da lei muitas vezes incapaz de identificar adequadamente as vítimas. E não se trata apenas de um problema causado por homens violentos - o abuso contra as pessoas trans pode ser muito facilitado por aqueles que estão em posições de poder.

Jair Bolsonaro, o recém-eleito presidente do Brasil (país onde há mais assassinatos de pessoas trans do que em qualquer outra nação), falou abertamente sobre seu ódio aos cidadãos LGBTQ, dizendo uma vez que se um pai percebe que seu filho está se comportando "um pouco gay", ele deveria "pegar um chicote e ... mudar seu comportamento". Além disso, Donald Trump (que elogiou a ascensão política de Bolsonaro) supervisionou a tentativa de banimento de pessoas trans das forças armadas, ataques aos direitos de estudantes e presidiários trans, um apagamento da identidade trans em um memorando da HHS e a privação de direitos de profissionais do sexo trans por meio das diretivas SESTA-FOSTA; embora haja uma infinidade de fatores envolvidos na crescente prevalência da violência transfóbica, parece ser evidente que a opressão e a falta de cuidado do Estado desempenham um papel substancial.

Então, como isso se relaciona com a afeição trans pelo anarquismo? Bem, nossa comunidade está em perigo e precisamos nos defender.

As estruturas de poder da classe dominante pressionam os oprimidos para que sejam civilizados com aqueles que gostariam de ver pessoas trans eliminadas da sociedade. O anarquismo, como uma ideologia de emancipação, rejeita essa besteira e incentiva os oprimidos a se organizarem agressivamente contra seus opressores. Olhe ao redor - os fascistas e seus apoiadores estão praticando o terror e tomando o poder político, e as pessoas trans são um de seus principais alvos. Não podemos nos dar ao luxo de não adotar um ângulo revolucionário.

A Natureza Adversa do Capital e da Hierarquia

As coisas que o anarquismo pretende destruir são, sem dúvida, especialmente prejudiciais às pessoas trans.

A rigidez é inerente às hierarquias perniciosas do capital e do Estado que protege o Capital; as minuciosas normas e os valores produzidos por uma atmosfera centralizada e privatizada tendem a excluir aqueles que não se enquadram nos papéis atribuídos ao sexo que lhes foi designado ou que rejeitam o binário de gênero. Muitos perceberam que nosso valor é determinado principalmente por nossa capacidade de alimentar máquinas; as pessoas são descartadas sempre que deixam de atender aos interesses da burguesia.

E essa perspectiva se estende a todos os aspectos da vida, incluindo o gênero. Se você não se enquadra nos limites estreitos da cismasculinidade e da cisfeminilidade, então você é inferior e não serve à máquina dos "valores familiares", ou como quer que queiram chamá-la.

Os anarquistas audaciosos não apenas deixam de alimentar as máquinas do capital e do Estado, eles trabalham ativamente para destruí-las. E as pessoas trans audaciosas não só deixam de servir às máquinas da cisnormatividade, como também trabalham ativamente para destruí-las. Essas lutas são essencialmente compartilhadas.

A Estética da Revolução

É bem simples: a disrupção do Estado, e a construção de uma nova e corajosa humanidade, são meio sexy. Por mais que os poderosos tentem se apropriar do estilo do anarquismo, a substância da Revolução de boa-fé não pode ser replicada de forma superficial. Resumindo, anarquia é punk rock… e pessoas trans podem definitivamente defender isso.

[1] Nota do tradutor: catgirl, ou nekomimi, é uma palavra que designa personagens femininas em estilo animal, com características de gato em corpo humano. São encontradas especialmente em animes e mangás. Não encontrei palavras equivalentes sobre essa categoria em português, então mantive o original.

[2] Nota do tradutor: agitprop se refere a “agitação” e “propaganda”.

[3] Nota do tradutor: a autora usa o termo “gender-expansive”, que em tradução literal não é comum no contexto brasileiro. Mantive a tradução literal, mas creio que significaria, em português, algo como “gênero-desviante” ou “gênero-dissidente”, ou qualquer dessas expressões que designam uma subversão de gênero.