Título: A CONTRARREVOLUÇÃO bolchevique
Autores: CrimethInc, Segadores
Fonte: https://faccaoficticia.noblogs.org/post/2019/08/04/a-contrarrevolucao-bolchevique/
Notas: * LEITURAS RECOMENDADAS • Emma Goldman, Minha Desiliusão com a Rússia, Editora Biblioteca Terra Livre
• Peter Arshinov, História do Movimento Makhnovista, 1919 a 1921, Editora Faísca
• Gregory Maximoff, The guillotine at work: The Leninist counter- -revolution (1940), Editora Alexander Berkman Fund
• Iza Salles, “Um cadáver ao sol. A história do operário brasileiro que desafiou Moscou e o PCB”, biografia de Antônio Canellas
• Rudolf Rocker, Os Sovietes Traídos Pelos Bolcheviques, Editora Hedra
• Alexander Berkman, O mito Bolchevique (diario 1920–1922)
• Volín, La revolución desconocida
• Ngo Van, Memoria escueta: de Conchinchina a Vietnam
• Erik Benítez Martínez, La traición de la hoz y el martillo
• Augustí Guillamón, El terror estalinista en Barcelona 1938
• Jan Valtín, La noche quedó atrás
• Angel Pestaña, Setenta días en Rusia
• Bloodstained: One Hundred Years of Leninist Counterrevolution, ed. per Amics d’Aron Baron
• James Guillaume, Documents et Souvenirs

Um desastre previsível

A inclinação contrarrevolucionária da União Soviética era previsível. Bakunin previu perfeitamente como uma “ditadura do proletariado” rapidamente se transformaria em mais uma ditadura sobre o proletariado, 50 anos antes dela ocorrer. Nos anos seguintes, muitos outros anticapitalistas chegaram à mesma conclusão. Era uma aposta bastante segura, considerando como os líderes da nova ditadura encontraram inspiração em outra figura contrarrevolucionária: Karl Marx.

Não fazemos essa afirmação de forma leviana, denunciando como “contrarrevolucionária” uma pessoa que, sobre qualquer dúvida, foi importante nas lutas anticapitalistas. Nunca daríamos esse passo por conta de simples discordâncias teóricas. É só depois de uma pesquisa minuciosa das consequências das ações de Marx que chegamos a essa conclusão.

Marx implantou atitudes coloniais supremacistas brancas no coração do movimento anticapitalista e destruiu a autonomia desse movimento tão profundamente que, 150 anos depois, ainda não o restauramos.

Para citar um único exemplo, Marx celebrou a conquista do México pelos Estados Unidos, usando termos abertamente racistas para contrastar os “enérgicos” ianques com os mexicanos “preguiçosos” e “primitivos”. Sua ideia de progresso dialético compartilhava o elemento da supremacia branca com o liberalismo da época. Ele estava convencido de que as nações ocidentais eram as mais avançadas do mundo e que todos os outros povos teriam que se concentrar na Europa e seguir o mesmo caminho para se libertarem. Como tal, era um defensor imperdoável do colonialismo, que ele reconheceu como um exercício de violência capitalista, mas que também acreditava ser vital para o progresso dos povos “primitivos”.

Além de seu racismo, Marx era um cúmplice autoritário das instituições burguesas. Uma das características mais fortes do movimento dos trabalhadores no século XIX foi sua autonomia. Foi um movimento construído pelos próprios trabalhadores e dentro dele as instituições dos inimigos de classe não tinham lugar. Marx arruinou tudo isso com sua insistência obstinada de que, para ganhar, de acordo com sua teoria – uma teoria que a história mostrou estar errada, uma teoria que previu que as revoluções anticapitalistas ocorreriam na Alemanha e no Reino Unido, definitivamente não em Rússia ou Espanha – a classe trabalhadora teria de adotar as formas políticas de seu inimigo. Seria preciso se organizando em partidos políticos e ingressando nas instituições burguesas, nos parlamentos onde monarquistas e capitalistas lutavam pelo controle de um poder baseado unicamente na subordinação dos camponeses e trabalhadores. Esse poder que não poderia sequer existir sem a contínua dominação dessas classes.

Marx estava acostumado a ser cercado por lacaios. Quando percebeu que existiam mentes independentes e opiniões opostas dentro da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que esse não era mais seu fã-clube pessoal, ele conspirou e usou todos os truques sujos que, desde então, se tornaram conhecidos métodos de manipular assembleias a fim de expulsar todos os que se opunham a suas ideias e que se opunham à tática equivocada de criar partidos políticos. Este não foi apenas um conflito entre duas posições, marxista e anarquista, nem foi um duelo entre Marx e Bakunin. Marx excluiu não apenas anarquistas, mas qualquer um que discordasse dele, incluindo feministas como André Léo, participante da Comuna de Paris de 1871.

Como resultado da divisão, a maioria da Internacional rompeu com a facção marxista. Muitas pessoas que estão apenas familiarizadas com contas super simplificadas centradas em Marx supõem que, assim que a sede da Internacional foi transferida para Nova York, a organização foi efetivamente encerrada. De 5 fato, o que aconteceu foi que apenas o pequeno grupo marxista que imediatamente se tornou moribundo. A maioria da Internacional continuou se organizando junto segundo os princípios anarquistas por mais meia década, como o historiador marxista Steklov foi forçado a contar em sua História da Primeira Internacional. Foram necessários cinco anos de contínua repressão estatal para destruir a organização e isso só foi bem-sucedido porque os marxistas e outros elementos estatistas do movimento trabalhista se recusaram a agir em solidariedade com um trabalho de construção genuinamente revolucionário.

A polêmica estratégia de Marx – converter a Internacional em uma ferramenta para entrar nas instituições burguesas através de partidos social-democratas – foi um fracasso constrangedor, exatamente como seus críticos previram. Os novos partidos não perderam tempo em vender a classe trabalhadora a seus novos colegas de profissão: a burguesia. Além disso, os principais herdeiros de Marx, como o Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha, enviaram a classe trabalhadora para o matadouro contrarrevolucionário que foi a Primeira Guerra Mundial.


Lênin: de agente alemão a açougueiro da classe trabalhadora

Desde cedo, Lênin era um líder da facção bolchevique (“maioria”) do Partido dos Trabalhadores Democráticos Sociais da Rússia, que mais tarde se tornaria o Partido Comunista. Ele era um intelectual vindo de família burguesa, que nunca parou de desempenhar o papel de gerente. Não podemos negar que uma pessoa não escolhe onde ela nasceu e pode decidir renunciar ao seu privilégio e lutar ao lado dos oprimidos. Mas Lenin foi o arquiteto de um estado pseudo-revolucionário que seria dirigido por sua classe. Desde o começo, a União Soviética era uma ditadura de intelectuais e burocratas que oprimiam as classes exploradas.

Lênin nunca abandonou seus interesses de classe. Ele pediu aos trabalhadores e camponeses que se levantassem pela mesma razão que durante a Revolução ele se apropriou de discursos anarquistas (em O Estado e a Revolução, que escandalizaram os membros de seu próprio partido, pois esses não entendiam que o texto era simplesmente uma tentativa manipuladora de ganhar o apoio das massas e criar uma aliança com os anarquistas, que constituíram uma força fundamental na insurreição de outubro). Tudo isso foi calculado para motivar as massas a servirem como bucha de canhão para suas ambições.

Lenin era ainda mais autoritário que Marx. Como líder dos Bolcheviques, fez manobras para expulsar os mencheviques, bogdanovistas e outras correntes do partido. Discordava dos primeiros porque eram a favor da liberdade de opinião e Lenin acreditava que todo o Partido deveria aderir aos dogmas e decisões de seus líderes. E discordava dos últimos simplesmente porque eles representavam uma ameaça ao seu controle do Partido. Lenin alegou que Bogdanov não era um marxista ortodoxo, mas nem ele mesmo era: por anos, Lenin se apropriou da ideia dos anarquistas e dos SR (Socialistas Revolucionários) de que uma revolução poderia ser feita na Rússia sem passar por um período constitucional.

Na véspera da Revolução Russa, Lenin estava em contato com a polícia secreta do Império Alemão. Foi somente graças a eles que Lenin pôde retornar à Rússia em meio ao tumulto da Primeira Guerra Mundial. Os alemães também deram ajuda financeira ao seu partido. Em troca, esperavam que Lenin retirasse a Rússia da guerra, liberando a frente oriental dos alemães.

No final, Lenin foi mais fiel aos imperialistas alemães do que aos trabalhadores e camponeses russos. Embora muitos outros Bolcheviques tenham ficado horrorizados com sua proposta de colaboração com a Alemanha, a ditadura que Lenin já havia estabelecido dentro de seu Partido prevaleceu. Sem consultar os povos poloneses e ucranianos, historicamente ocupados pela Rússia czarista, Lenin cedeu esses territórios aos imperialistas alemães, com uma enorme recompensa em dinheiro e matérias-primas que contribuíram para o massacre da classe trabalhadora na frente ocidental.

Ao contrário das versões históricas leninistas ou trotskistas, que atribuem toda a brutalidade da União Soviética a Joseph Stalin, a sangrenta repressão das classes trabalhadoras e camponesas e o esforço para reconstruir o capitalismo começaram no primeiro ano da ditadura, quando Lenin ainda estava no comando.


Linha do Tempo: Uma Revolução Desfigurada

A Revolução de fevereiro de 1917 resultou num governo parlamentar imobilizado pela tentativa pouco realista de reformar o antigo regime enquanto os interesses dominantes eram protegidos. A Revolução de outubro (que começou em 7 de novembro, conforme o calendário moderno), deveria ter posto fim ao poder da burguesia e da aristocracia e permitir a auto-organização da sociedade através dos sovietes, assembleias de operários, camponeses e soldados que tinham surgido espontaneamente na Revolução de 1905 e reapareceram com a Revolução de fevereiro.

No dia 7 de novembro, os Bolcheviques e seus aliados levantaram-se em Petrogrado, dando início à segunda revolução. No dia 8 de novembro, um destacamento de marinheiros anarquistas de Kronstadt, liderada pelo anarquista Zhelezniakov, e em coordenação com os Bolcheviques, tomou o Palácio de Inverno, abolindo o governo provisório.

O mesmo Zhelezniakov foi também escolhido para liderar um destacamento que tomou e aboliu a Assembleia Constituinte em janeiro do ano seguinte. Ele liderou uma pequena frota de barcos e depois um comboio blindado contra o Exército Branco durante a Guerra Civil. Ainda que tenha protestado contra a imposição bolchevique de medidas hierárquicas e a reabilitação dos oficiais czaristas no Exército Vermelho, ele era um estrategista militar muito valioso para ser posto de parte. Os Bolcheviques convidaram-no para voltar a se juntar a eles – ele tinha ido para a Crimeia para lutar contra os brancos numa formação autônoma – e atribuíram-lhe o comando da campanha do comboio blindado para travar o avanço do general branco Denikin. Morreu em combate em 1919. Posteriormente, ficou claro que os Bolcheviques não coordenavam com os anarquistas por solidariedade. Pelo contrário, eles sistematicamente atribuíam aos anarquistas as funções mais perigosas para que estes assumissem as consequências físicas e políticas se as coisas dessem errado.

Em novembro de 1917, os Bolcheviques aproveitaram-se de uma maioria temporária que tiveram no Segundo Congresso Pan-Pusso de Sovietes, graças à desorganização dos outros partidos depois do golpe contra o governo provisório, à hábil propaganda bolchevique e ao seu perfil político e intelectual (eles não representavam nenhuma maioria no seio da classe trabalhadora, mas tiveram a maioria dos delegados escolhidos). No Congresso, eles converteram o Comitê Executivo Central num órgão do governo, em grande medida independente, que supervisionava os sovietes. Previamente, o Comitê tinha sido um órgão desprovido de poder estatal, que devia apenas dar continuidade às tarefas do Congresso dos Sovietes. A manobra dos Bolcheviques transformou-o no poder executivo do novo Estado. E este Comitê, formado por delegados eleitos por delegado, eleitos por delegados (as três camadas de representação eram os sovietes locais, o Congresso dos Sovietes e o Comitê Executivo Central), era controlado – inevitavelmente – não pelo povo, mas pelos burocratas mais maquiavélicos e oportunistas, o que é o mesmo que dizer: os Bolcheviques. Posteriormente, o Partido, sob a ditadura intransigente de Lenin, fez com que o novo Comitê Executivo Central formasse o Conselho do Comissariado do Povo, ou Sovnarkom, que rapidamente se transformou na autoridade suprema do novo Estado, encarregue da reorganização da economia e da administração dos assuntos de Estado. E o seu presidente era – que surpresa – Lênin!

Os Bolcheviques não honraram nenhuma das outras decisões do Segundo Congresso Pan-Russo Sovietes. Eles abandonaram por completo o programa oportunista que tinham usado para obter uma maioria de delegados – o programa agrário, a proposta de procurar uma retirada digna da guerra, a decisão de criar uma Assembleia Constituinte. Agora que tinham criado as camadas burocráticas capazes de legitimar a sua ditadura, já não tinham de lutar pelos interesses dos trabalhadores e dos camponeses. Posteriormente, o Congresso de Sovietes faria pouco mais do que carimbar as decisões do Sovnarkom.

No dia 5 de dezembro de 1917, os Bolcheviques estabeleceram a Cheka (Comissão Extraordinária), a polícia secreta que, desde o início, dirigiu a atividade contra outras correntes revolucionárias. A Cheka era liderada por Dzerjinsky, um aristocrata polaco.

No dia 22 de dezembro de 1917, os Bolcheviques começaram a negociar com a Alemanha e as outras Potências Centrais, apropriando-se da autoridade de falar em nome de toda a sociedade russa, assim como dos povos ocupados pelo Império Russo.

No dia 30 de dezembro de 1917, os Bolcheviques levaram a cabo a sua primeira operação de repressão política. A Cheka deteve um pequeno grupo de SR, aparentes aliados, incluindo um delegado da Assembleia Constituinte, que formava parte da oposição.

Em janeiro de 1918, os Bolcheviques abandonaram a Assembleia Constituinte e orquestraram a sua supressão, direcionada também contra os anarquistas. Enquanto anarquistas se opunham à Assembleia como um órgão burguês que neutralizava o poder dos sovietes, os Bolcheviques tinham exigido a criação da Assembleia depois da Revolução de Fevereiro e apoiado as eleições. Só se viraram contra a Assembleia assim que perceberam que eram incapazes de obter uma maioria.

Em março de 1918, os Bolcheviques assinaram um acordo de paz humilhante com a Alemanha, que foi contra todas as propostas da classe trabalhadora para o término da guerra. Pagaram uma enorme compensação pela guerra e cederam aos alemães o controle de várias nações anteriormente sob domínio czarista (por exemplo, os países bálticos, a Polônia e a Ucrânia). Na Ucrânia, os camponeses organizaram uma guerra de guerrilha e ganharam muitas batalhas contra os imperialistas alemães, pro- 13 vando a viabilidade da proposta dos anarquistas e de outros para que não houvesse “nem guerra, nem paz”, o que significava acabar com a guerra imperialista, mas resistir a qualquer ocupação militar através de táticas de guerrilha revolucionárias. Lenin impôs a sua rejeição a esta opção, provavelmente porque sabia que o seu Partido elitista seria incapaz de controlar uma campanha de guerrilha descentralizada. Ele preferia a derrota e a ocupação da Ucrânia a uma revolução sem controle.

Como consequência disso, os SR, aliados importantes dos Bolcheviques, declararam que estes eram agentes alemães e abandonaram o governo.

Em abril de 1918, a Cheka deu início às suas primeiras execuções extrajudiciais, numa operação contra anarquistas em Petrogrado e em Moscou. No final da operação, tinham executado 800 pessoas sem julgamento. A sua retórica era atacar os “inimigos de classe”, mas as suas ordens secretas eram liquidar todas as organizações anarquistas nas duas cidades principais.

No dia 12 de abril de 1918, os Bolcheviques atacaram 26 centros anarquistas em Moscou, matando dezenas e prendendo 500. Ameaçados pelo dramático crescimento do movimento anarquista em Moscou, Trótski e a imprensa bolchevique levaram a cabo uma campanha mediática em colaboração com a burguesia local, acusando revolucionários veteranos de serem “bandidos” e “criminosos” por terem expropriado propriedades burguesas, ainda que estas fossem para uso da revolução.

Em junho de 1918, Trótski aboliu qualquer tipo de controle operário sobre o Exército Vermelho, destruindo a tradição proletária que permitia aos soldados eleger os seus oficiais e desfrutar de uma verdadeira igualdade. Ele restaurou as antigas hierarquias no exército – trazendo de volta oficiais de origem aristocrata – e complementou-as com uma nova hierarquia ideológica mantida através da sinistra presença da Cheka em todos os níveis, destruindo a capacidade do Exército Vermelho poder funcionar como bastião de ideias revolucionárias e convertendo- -o numa simples ferramenta do Partido.

Tal como antes, os oficiais ganhavam status e altos salários enquanto os soldados rasos eram convertidos em escravos. E qualquer um – oficial ou soldado – que falasse contra o regime, seria morto a tiro.

Simultaneamente, Trótski efetuou um recrutamento massivo de oficiais do antigo exército czarista. Sob domínio bolchevique, o Exército Vermelho transformou-se num exército aristocrata. Como resultado dessa iniciativa, em 1918, 75% dos oficiais eram antigos czaristas, e no final da Guerra Civil, esse número aumentou para 83%. Em vez de fomentar a liderança entre as massas, os Bolcheviques devolveram a autoridade a uma elite.

Por outro lado, todos os líderes proeminentes das formações anarquistas na Guerra Civil – Maria Nikiforova, Néstor Makhno, Fedir Shchus, Olga Taratuta, Anatoli Zhelezniakov, Novoselov, Lubkov – eram escolhidos pelos seus companheiros conforme as suas capacidades e eram operários e camponeses, o que contrastava com os burgueses, os aristocratas e a intelligentsia que predominavam no lado Bolchevique. E estavam entre os mais eficazes no campo de batalha. Enquanto Trótski sofria derrota após derrota, Zhelezniakov e Makhno desempenhavam papéis decisivos na derrota do general Denekin do Exército Branco. Posteriormente, foi Makhno e as suas guerrilhas que tomaram o Istmo de Perekop, o principal baluarte da península da Crimeia, cuja perda significou a derrota de Wrangel. E em vastas zonas da Sibéria, destacamentos guerrilheiros anarquistas, como os de Lubkov e de Novoselov, desempenharam um papel fundamental no combate ao avanço do Exército Branco em 1918 e 1919, ainda que tenha sido o Exército Vermelho a matá-los com um tiro final.

No mesmo mês de junho de 1918, o Partido executou a sua política de “Comunismo de Guerra”. Não havia nada de 15 comunista nisso; pelo contrário, constituía a monopolização pelo Partido de toda a economia. Não eram os operários e os camponeses que controlavam as fábricas e a terra, mas os burocratas, que governavam desde gabinetes distantes. Esta política, à parte da nacionalização de toda a indústria, impôs uma disciplina estrita aos trabalhadores, uma degradação das condições de trabalho e um prolongamento da jornada de trabalho diária; transformou o ato de fazer greve num crime punível por um pelotão de fuzilamento; estabeleceu o controle de Estado sobre o comércio internacional; legalizou a apropriação forçada de todos os bens e propriedades dos camponeses, inaugurando, dessa maneira, uma política agrária ainda mais severa e exploradora do que a servidão feudal czarista. Isto, é claro, levou a milhões de mortes entre os camponeses e provocou constantes revoltas rurais contra o poder bolchevique.

Seria o novo e aristocrático Exército Vermelho que esmagaria essas revoltas, tal como durante a ditadura czarista. Outro fator importante na evolução da ditadura burocrática: no início do mesmo mês, o Partido se declarou no direito de vetar as decisões de qualquer soviete.

Em julho de 1918, os SR que restavam deram início a uma insurreição contra o poder bolchevique. Foram derrotados, ilegalizados e expulsos do governo soviético. Como consequência disso, os Bolcheviques acabaram por ter o monopólio do poder de Estado e proibiram a participação de outros partidos nos sovietes.

A dada altura, em 1918, atuando sob as ordens de Lenin, os Bolcheviques estabeleceram os seus primeiros campos de concentração, que dariam origem ao sistema de Gulags que tirou a vida a milhões de pessoas durante o regime de Stalin.

Em agosto de 1918, Lenin ordenou o uso de “terror em massa” contra a revolta na cidade de Níjni Novgorod e contra 16 uma revolta camponesa na região de Penza. As revoltas foram protestos contra a nova política de “Comunismo de Guerra”. Lenin deu origem a uma longa tradição comunista, acusando qualquer crítico ou dissidente de ser um agente secreto da direita (que hipocrisia, a sua, tendo em consideração que tinha trabalhado como agente de interesses imperialistas e, nesse mesmo verão, tinha pedido desculpas pessoais ao governo alemão após os revolucionários terem assassinado um embaixador alemão). Lenin ordenou execuções em massa dos suspeitos de deslealdade, a execução de prostitutas, que acusava de serem responsáveis pela falta de disciplina no seu exército, e a execução de 100 camponeses aleatoriamente com a intenção de enviar uma mensagem para que “todas as pessoas num raio de muitos quilômetros vejam, compreendam e estremeçam”.

No dia 5 de setembro de 1918, foi atribuída à Cheka a estratégia do “Terror Vermelho”. Afirmaram que esta seria dirigida aos brancos e contrarrevolucionários, mas foi uma resposta imediata a duas tentativas de assassinato (uma bem-sucedida) levadas a cabo por revolucionários de esquerda – Fanni Kaplan e Leonid Kannegisser – contra líderes Bolcheviques para vingar as suas políticas repressivas. O “Terror Vermelho” foi claramente uma política de liquidação apontada a qualquer inimigo ou crítico do poder bolchevique, tal como foi declarado no seu próprio jornal no dia 3 de setembro. “Devemos esmagar a hidra contrarrevolucionária através de um terror em massa […], quem quer que se atreva a espalhar um simples rumor contra o regime soviético será imediatamente detido e enviado para campos de concentração.” Nos primeiros dois meses, mataram entre 10 mil e 15 mil pessoas, muitas delas membros de outras correntes revolucionárias. Por volta de 1922, tinham matado cerca de 1,5 milhão de pessoas, algumas delas Brancoss e czaristas, mas a grande maioria camponesas, operárias, dissidentes e revolucionárias.

Deve ser dito que o Exército Branco foi o primeiro a praticar execuções em massa – contra prisioneiros do Exército Vermelho –, mas os Bolcheviques se aproveitaram da situação para organizar uma repressão sem precedentes contra todas as outras correntes da Revolução.

Em novembro de 1918, ao longo de um grande território no sul da Ucrânia, que compreendia sete milhões de habitantes, principalmente camponeses, alguns destes fundaram a Volnaya Territoriya ou “Território Livre”, uma associação anarquista baseada em comunas, milícias livres e descentralizadas, coletivização da terra sem intermediários, controle direto da indústria pelos trabalhadores, educação universal baseada na pedagogia moderna de Francesc Ferrer i Guàrdia e sovietes livres de controle partidário, mas abertos à participação de qualquer corrente das classes operária e camponesa e federados de uma forma descentralizada.

O movimento estava enraizado nas milícias anarquistas que lutaram contra os ocupantes alemães aos quais Lenin tinha entregado todo o país. As milícias camponesas começaram imediatamente a enfrentar o general Denikin do Exército Branco, mas Lenin e Trótski não permitiram que estas recebessem munições e armas operacionais, sabotando efetivamente a frente e causando muitas mortes. Na retaguarda, os camponeses impediram que os Bolcheviques se apoderassem da revolução.

Ao longo de todo o ano de 1919, a Cheka perseverou e expandiu a estratégia iniciada o ano anterior para executar desertores do Exército Vermelho. Enquanto exército autoritário e involuntário, o Exército Vermelho estava assolado por deserções que alcançavam mais de um milhão delas num ano. Muitos soldados recrutados obrigatoriamente tentaram voltar para casa e muitos outros juntaram-se a “Exércitos Verdes” de camponeses que tentavam defender as suas terras da pilhagem dos Brancos ou dos Comunistas. Na Ucrânia, dezenas de milhares juntaram-se ao Exército Insurgente Makhnovista dos anarquistas.

Nos casos de deserção em massa, a Cheka retomou a tática de manter os membros da família reféns e de executá-los um por um até que os soldados regressassem (executando, depois, exemplarmente vários desertores).

Em fevereiro de 1919, os Bolcheviques anistiaram os SR (Socialistas Revolucionários). O Exército Branco avançava por todas as frentes e os comunistas necessitavam desesperadamente de aliados (no mês de novembro anterior, tinham voltado a legalizar os Mencheviques, após estes terem declarado o seu apoio ao governo). Quando os SR saíram da clandestinidade e estabeleceram sedes em Moscou, a Cheka começou a deter líderes SR sucessivamente, acusando-os de conspiração, o que resultou na fratura e posterior destruição do Partido Socialista Revolucionário.

Entre os dias 12 e 14 de março de 1919, na cidade de Astracã, a Cheka executou entre dois mil e quatro mil trabalhadores em greve e os soldados do Exército Vermelho que se juntaram a eles. Muitos foram atirados ao rio com pedras atadas ao pescoço, enquanto os outros eram mortos por pelotões de fuzilamento. Para dar uma ideia do âmbito predominantemente A “Fila do Pão” 19 hostil aos trabalhadores e contrarrevolucionário das atividades dos Comunistas, durante essa mesma campanha repressiva, eles mataram um número significativamente menor de burgueses, entre 600 e 1000. As principais vítimas dos Bolcheviques pertenciam às classes populares.

No dia 16 de março de 1919, em Petrogrado, a Cheka atacou a fábrica Putilov, onde os trabalhadores, que morriam de fome, tinham começado uma greve exigindo maiores rações, liberdade de imprensa, o fim do Terror Vermelho e a eliminação dos privilégios detidos pelos membros do Partido Comunista. Novecentos foram detidos e 200 executados sem julgamento. A Cheka também reprimiu greves nas cidades de Oriol, Tver, Tula e Ivanovo. Durante a repressão, a Cheka desenvolveu métodos de tortura que superavam os da Inquisição. Introduziam lentamente os prisioneiros em fornos ou em tanques com água fervendo, esfolavam os prisioneiros, enterravam os prisioneiros vivos e punham ratos em tubos de metal contra seus corpos, acendendo uma chama por debaixo do tubo para que os ratos roessem o corpo dos prisioneiros procurando uma saída.

Em junho de 1919, os Bolcheviques deram início à sua primeira tentativa de ilegalização e liquidação dos camponeses anarquistas da Ucrânia que lutavam conjuntamente com Makhno. Já em maio, houve uma tentativa fracassada de assassinar Makhno. Trótski afirmou que preferia que toda a Ucrânia caísse nas mãos do Exército Branco do que deixar que os anarquistas continuassem com a sua atividade. A campanha intensificou-se depois da derrota de Denikin, o líder dos Brancos, no outono (dado que os combatentes anarquistas desempenharam um papel decisivo na sua derrota e, depois disso, os Bolcheviques não necessitavam mais de uma aliança com os anarquistas… até que a incompetência dos Comunistas produziu uma nova ameaça para o Regime Soviético precisamente um ano depois).

Entre os dias 1 e 3 de maio de 1920, uma insurreição camponesa e anarquista eclodiu nas regiões de Altai e Tomsk, com a participação de cerca de 10 mil combatentes. Foi principalmente dirigida contra o Exército Branco, mas a sua defesa de um controle local descentralizado os fez entrar em conflito com os Comunistas, que procuraram esmagar a revolta ilegalizando e destruindo a Federação Anarquista de Altai. A resistência continuou até ao fim de 1921.

Em junho de 1920, trabalhadoras em Tula entraram em greve pelo direito a uma folga nos domingos. Foram enviadas para campos de concentração.

No dia 19 de agosto de 1920, a revolta camponesa de Tambov começou quando um esquadrão de “confisco” do Exército Vermelho agrediu idosos de uma pequena vila para forçar os seus habitantes a entregar mais cereais ao governo. Em outubro, os camponeses tinham já reunido 50 mil combatentes para enfrentarem a autoridade Comunista. Funcionavam com uma força autônoma e auto-organizada, que combatia os Brancos e os Bolcheviques. Havia também vários veteranos revolucionários do que restou dos SR, que ascenderam a posições de liderança durante a revolta.

Em janeiro de 1921, a insurreição tinha-se estendido a Samara, Astracã, Saratov e a partes da Sibéria. Com 70 mil combatentes, defenderam o seu território dos Comunistas, até que as vitórias noutras frentes permitiram o destacamento de 100 mil soldados do Exército Vermelho. Para esmagarem a revolta, os Comunistas usaram armas químicas durante cerca de três meses, matando muitos civis. Enviaram 50 mil camponeses – principalmente mulheres e idosos – para campos de concentração como reféns. A guerra, os campos de concentração e as execuções fizeram com que a região perdesse cerca de 240 mil habitantes, a grande maioria camponeses e não combatentes.

Em novembro de 1920, os Bolcheviques deram início à maior campanha contra o Exército Insurgente Makhnovista na Ucrânia, mobilizando dezenas de milhares de militares, tendo muitas deles desertado para se juntarem aos anarquistas. A campanha começou como um ataque surpresa. No dia seguinte à tomada pelas forças anarquistas do Istmo de Perekop, a passagem fortificada que dava acesso à península da Crimeia onde Wrangel estava baseado e que o Exército Vermelho tinha sido incapaz de tomar, os Bolcheviques começaram a prender e a executar os seus supostos aliados, os anarquistas. A sua traição deu início a dez meses de uma intensa guerra de guerrilha, até os Comunistas terem, por fim, conseguido esmagar os camponeses insurgentes.

No dia 28 de fevereiro de 1921, delegados dos marinheiros revolucionários e trabalhadores da base naval de Kronstadt publicaram uma declaração em solidariedade aos trabalhadores de Petrogrado, recentemente reprimido após terem entrado em greve contra a condição de fome em que se encontravam. Os Bolcheviques responderam com mais repressão, provocando uma revolta em Kronstadt. Os rebeldes de Kronstadt, há muito reconhecidos como o coração da revolução, exigiram sovietes livres, o fim da ditadura Bolchevique e a recuperação dos princípios da 22 Revolução. Trótski, “o açougueiro de Kronstadt”, liderou a expedição militar, que culminou com a supressão total do soviete em 19 de março, um dia antes do aniversário da Comuna de Paris. O Exército Vermelho desempenhou o papel da tropa de Versalhes e executou mais de duas mil pessoas. Enviaram mais alguns milhares para o Gulag, onde a maioria morreu. Depois, a repressão bolchevique simplesmente aumentou. No congresso do Partido, em abril do mesmo ano, tal como Emma Goldman e Alexander Berkman relataram numa carta, Lenin promoveu a liquidação total do movimento anarquista, inclusive dos que participavam no governo soviético e se tinham aliado aos Bolcheviques.

Em março de 1921, os Bolcheviques adotaram a “Nova Política Econômica” (NEP), pondo fim ao “Comunismo de Guerra”. Tal como o próprio Lenin reconheceu, a NEP representava o “Capitalismo de Estado”, um “Mercado e Capitalismo livres, sujeitos ao controle do Estado”. A NEP deu origem a uma nova classe social, os nepmani – os homens da NEP ou nouveaux riches (novos ricos) –, que enriqueceram graças às novas condições e à custa da classe trabalhadora. Nem precisaríamos mencionar que todos eles eram burocratas do Partido Comunista. A NEP esteve também na origem de tratados e relações comerciais com os principais países capitalistas, começando pela Grã-Bretanha (1921), seguida pela Alemanha (1922) e depois pelos EUA e pela França.

O Partido Comunista em nenhum momento estabeleceu o comunismo. O seu primeiro período constituiu um monopólio burocrático baseado na hiperexploração dos trabalhadores e dos camponeses, enquanto o período da NEP constituiu um sistema capitalista com um maior nível de planejamento e de centralização do que qualquer dos sistemas capitalistas ocidentais. Ou seja, os Comunistas desencadearam uma repressão insana contra todas as outras correntes revolucionárias, afogando as lutas operárias e camponesas em sangue, e, no fim, todo esse sacrifício não 23 serviu para mais nada a não ser para estabelecer o Capitalismo. Num país onde os próprios capitalistas tinham sido incapazes de implementar o Capitalismo, os Comunistas conseguiram-no, graças à sua obsessão pela manutenção do poder a qualquer preço.

E contrariamente ao mais recente revisionismo de esquerda, esta brutalidade e exploração não foi por culpa de Stalin, mas começou cedo nas primeiras semanas no poder e sempre sob a direção de Lenin e Trótski. Desde o início, os Bolcheviques agiram como uma vanguarda intelectual independente dos sovietes e das lutas dos operários e dos camponeses. Usavam os sovietes como uma simples ferramenta para conquistar poder e, quando os sovietes deixaram de ser convenientes, suprimiram- -nos, tal como tinham reprimido qualquer expressão das lutas populares. Os Bolcheviques – uma corrente do Partido Operário Social-Democrata Russo, que se transformou no Partido Comunista – eram a principal encarnação da contrarrevolução dentro da Revolução Russa.


Olga Taratuta, co-fundadora da Cruz Negra Anarquista ucraniana, detida e assassinada no governo Stalin; Fiódor Schuss, camarada de Makhno, falecido em junho de 1921 durante a subjugaçom de Ucrânia; Maria Nikiforova outra líder da partida de anarquistas com Makhno, assassinada pelo Exército Branco.


URSS: Uma Força a serviço da Contrarrevolução Global e Cúmplice do Fascismo

Os desdobramentos de outros Estados autodeclarados comunistas demonstra que, apesar de o Partido de Lenin ter sido especialmente sanguinário, algo estava errado com o modelo em si. Longe de terem alcançado o comunismo através do poder de Estado, cada tentativa de impor um modelo comunista autoritário não teve outro resultado senão implementar o Capitalismo num país onde a burguesia não tinha conseguido implementá-lo. A China é, hoje, o maior mercado capitalista no mundo e irá, em 25 breve, liderar a economia capitalista no planeta. Uma evolução que se deve na maioria à industrialização e burocratização levada a cabo sob a liderança de Mao. O Vietnã está seguindo o mesmo caminho a uma escala menor. Quanto a Cuba, nos primeiros anos da revolução (depois da execução dos anarcossindicalistas e dos dissidentes socialistas), Chê e Fidel abandonaram o plano para a criação de um verdadeiro comunismo com o intuito de construírem um tipo de colônia de exportação com uma distribuição de recursos mais igualitária (como a Costa Rica em relação ao governo sueco). Mantiveram o antigo papel da ilha de produtor e exportador de açúcar para o mercado internacional.

Enquanto primeira dessas revoluções capitalistas, a URSS destacou-se pelo mal que fez aos movimentos anticapitalistas de todo o mundo. É verdade que apoiaram muitos movimentos revolucionários, mas dando sempre prioridade aos seus interesses em detrimento dos interesses da própria revolução. É um fato significativo de que a maioria dos movimentos comunistas se distanciaram da URSS no momento em que deixaram de depender da ajuda soviética, como foi o caso da China e, em certos períodos, de Cuba. A intervenção soviética na Guerra Civil da Espanha demonstra até que ponto a “ajuda” soviética foi capaz de destruir uma luta.

Pode dividir-se a política internacional da Internacional Comunista (Comintern) em duas fases. Na primeira, almejavam exportar a revolução, mas somente se a pudessem monopolizar. Entre 1919 e 1926, os agentes do Comintern foram acusados de imporem o controle bolchevique sobre todas as organizações operárias e anticoloniais. Fizeram-no por financiamentos, “entrismo” (implantando agentes carismáticos que ascendiam na hierarquia de uma determinada organização sem revelarem a sua filiação ao Partido Comunista), ataques contra as correntes não-Bolcheviques e outras táticas. Um método preferencial era a organização de conferências internacionais aparentemente neutrais, com falsos delegados (pagavam por vezes a pessoas para atuarem como delegados de organizações ditas grandes que, na verdade, não existiam), um roteiro e uma coreografia para a aprovação de decisões que já tinham sido tomadas.

No caso das organizações que se recusaram a aceitar o domínio comunista, os agentes do Comintern dedicavam-se a neutralizá-las com falso rumores, a provocação de conflitos internos, fazendo com que as autoridades se virassem contra elas através de denúncias, e mesmo assassinatos. Desta forma, destruíram vários movimentos operários.

Na segunda fase, representando o triunfo da linha promovida por Stalin e Bukharin, o Partido Comunista abandonou a pretensão de exportar a revolução e adotou a figura do “socialismo num só país”. Posteriormente, os movimentos anticapitalistas no mundo inteiro serviram apenas para proteger os interesses geopolíticos da União Soviética.

Na verdade, não havia grande diferença entre a duas fases. Ambas resultaram em insurreições e revoluções fracassadas. Na primeira fase, porque a falta de solidariedade comunista e a sua obsessão com o poder obstruíram processos revolucionários noutros países, na segunda, em razão de a URSS ter continuado a encorajar insurreições inviáveis noutros países quando poderiam ter enfraquecido um poder inimigo.

Em relação à primeira fase, temos o exemplo da insurreição de Hamburgo de 1923. Líderes soviéticos, como Trótski, pressionavam o KPD – o Partido Comunista da Alemanha, o mais forte em todo o mundo fora o da URSS – a encenar uma insurreição, mas os líderes alemães achavam que era demasiado cedo. Devido à falta de organização, o plano iniciou em apenas um distrito de Hamburgo. A tentativa falhada deflagrou uma forte repressão e piorou as relações entre os comunistas e os socialistas na Alemanha.

Há também o exemplo da revolução fracassada na Indonésia. Em 1925, o Comintern ordenou que o Partido Comunista da Indonésia se aliasse a forças anticoloniais, mas não anticapitalistas (impuseram a mesma estratégia na China e noutros lugares). Em 1926, os sindicatos comunistas receberam ordens para desencadearem uma revolução, mas o plano estava verde e a coordenação com outros setores da frente unida falhou. A repressão ceifou muitas vidas.

Em relação à segunda fase, temos o exemplo do motim no navio de guerra holandês Die Zeven Provinciën, provocado por uma célula comunista, enquanto o navio navegava perto das colônias indonésias. A intenção era desestabilizar o poder colonial. Há também o exemplo parecido do motim e da revolução fracassada no Chile em 1931.

Um agente alemão do Comintern descreveu como os seus chefes ordenaram que organizasse uma greve dos estivadores e dos marinheiros nas principais cidades portuárias alemãs, como Bremen e Hamburgo. Assim que todos os trabalhadores portuários entraram em greve, o Comintern instruiu agentes de confiança para que furassem e sabotassem a greve. Muitos trabalhadores solidários perderam os seus trabalhos, mas o Comintern conseguiu que os seus agentes obtivessem posições importantes em muitos barcos e portos, aumentando a eficiência da sua rede de contrabando (que usavam para abastecer a URSS, transportar agentes e contrabandear materiais para diversos países espalhados por todo o mundo). Manobras dessas aumentaram o cinismo da classe trabalhadora alemã, fizeram com que o Partido Comunista perdesse apoio e deram mais legitimidade ao argumento nazi de que todos os “vermelhos” eram agentes de Moscou.

O Partido Comunista da Alemanha ajudou o Partido Nazista de formas bem mais diretas. Entre 1928 e 1935 – a época crítica na ascensão do movimento nazista, quando de um pequeno partido cresceu ao ponto de se tornar num partido capaz de ascender ao poder –, o Comintern, seguindo diretrizes de Stalin, declarou que a social-democracia era igual ao fascismo, mas que os comunistas tinham de ignorar o fascismo para se empenharem no combate contra outras correntes de esquerda. O KPD seguiu esta diretiva com entusiasmo. Em muitas ocasiões, os militantes comunistas juntaram-se e a soldados nazistas para esmagar manifestações socialistas.

É verdade que os Socialistas usaram o poder estatal onde quer que estivessem no governo para reprimir os Comunistas, assim como os SR na Revolução Russa também efetuaram manobras para tentarem obter o poder, e assim como os esquerdistas por todo o mundo tentaram obter domínio sobre os outros. O Estado é essencialmente uma ferramenta de domínio e repressão. Mas, por um lado, a colaboração com os nazistas representou um extremo nas práticas repreensíveis, ultrapassando os truques sujos usados pelos Socialistas. E, por outro lado, as correntes que não procuravam obter o poder estatal – anarquistas e outras – rejeitavam essas táticas.

Na Prússia, o maior estado da Alemanha, os Comunistas colaboraram abertamente com os Nazistas, em 1931, na tentativa de revogação do governo socialista. Diziam que os Nazistas eram “camaradas da classe trabalhadora”. Em 1933, o ano em que os Nazistas chegaram ao poder, os Comunistas os deixaram ganhar. Se se tivessem aliado a outras forças de esquerda, os Nazistas não teriam obtido uma maioria. Mas estavam obcecados com a destruição da esquerda para a poderem monopolizá-la, acreditando que poderiam chegar ao poder depois de um governo nazista. Ernst Thälmann, líder do KPD, expressou-o da seguinte forma: “Depois de Hitler chegará a nossa vez.”

Contrariamente ao slogan que denunciava o “social-fascismo”, não eram os Socialistas que tinham muito em comum com os Nazistas, mas os próprios Comunistas. A ideologia racial dos Nazistas foi uma importação dos EUA, como é comumente conhecido. Mas não são muitas as pessoas que se lembram de que o modelo de organização da ditadura Nazistas derivou da própria União Soviética.

Para estabelecerem a sua Gestapo – a polícia secreta encarregada da repressão política e da contraespionagem –, os Nazistas estudaram a Cheka e a NKVD (sucessora da Cheka e criada por Stalin). A Polícia Secreta Soviética, que herdou muitas técnicas da Okhrana Czarista, era a mais avançada no mundo depois, talvez, dos serviços de inteligência britânicos. Mas estes usavam técnicas demasiado brandas para as necessidades dos Nazistas. Muitas vezes, os Nazistas prenderam e torturaram agentes soviéticos para aprender como o seu aparelho de contraespionagem funcionava, visando copiar o modelo.

Em 1935, quando o KPD tinha sido quase completamente destruído, sofrendo milhares de detenções e execuções, o Comintern inaugurou a sua seguinte estratégia, sem nunca ter aceitado a responsabilidade pela ascensão ao poder dos Nazistas. A nova estratégia foi a “Frente Popular”. Mas isso foi igualmente desastroso para os movimentos revolucionários.

O melhor exemplo será a intervenção soviética na Guerra Civil de Espanha. A URSS demorou a enviar ajuda ao lado antifascista. Isso deveu-se em parte ao facto de o Partido Comunista na Espanha ser pequeno, ainda menor do que o trotskista POUM. Não dão atenção à ameaça fascista porque tinham poucos interesses na Espanha. Antes de enviarem ajuda, queriam assegurar-se de que poderiam controlar a situação e lucrar com ela de alguma forma. Para ser mais preciso, não prestaram ajuda militar à República; pelo contrário, venderam-na, apropriando-se das reservas de ouro espanholas por completo, as quartas maiores do mundo na época. E, na maioria, sabotaram os esforços de guerra. Para os estalinistas, a Guerra Civil foi uma oportunidade para destruir o que era então o mais forte movimento anarquista no mundo (eles e os imperialistas japoneses tinham já destruído o movimento na Coreia) e também para liquidarem correntes comunistas dissidentes, acima de tudo as trotskistas. Dado que o fascismo tinha já chegado à Alemanha e à Itália, a Espanha era um importante refúgio e um campo de ação para os comunistas que tinham fugido desses países.

Por isso mesmo, a NKVD – a polícia secreta soviética – deu início a uma atividade frenética na Espanha, liquidando milhares de trotskistas, outros dissidentes comunistas e anarquistas. Longe de serem aquilo que as lendas romantizadas descrevem, as Brigadas Internacionais eram na maioria uma máquina que atraia esses dissidentes e os matava naquele que era possivelmente o contexto mais discreto: no campo de batalha. As Brigadas foram também usadas para reprimir coletividades camponesas em Aragão.

Além disso, os comunistas sabotaram diretamente milícias anarquistas e trotskistas com o intuito de reduzir a sua influência e de alimentar as suas campanhas de propaganda a favor da “militarização”: a imposição de hierarquias elitistas e contrarrevolucionárias numa das esferas mais importantes da revolução social. A obstrução e a retenção de armas levada a cabo pelas forças de esquerda foram responsáveis pela paralisação das milícias nas frentes de Huesca de Teruel. Se essas cidades tivessem sido tomadas – um feito plausível se houvessem armas suficientes –, então Saragoça provavelmente teria também sido tomada pelos antifascistas, invertendo provavelmente o curso da guerra. Truques sujos e a falta de solidariedade por parte dos comunistas também influíram na queda de Maiorca, outro momento decisivo da derrota republicana.

Podemos também acrescentar à lista a detenção pelos comunistas de Maroto, um eficiente líder guerrilheiro que operava em Granada e a obstrução comunista das propostas anarquistas que sugeriam o início de uma guerra de guerrilha em larga escala na retaguarda dos fascistas e uma aliança com a resistência anticolonial no Rife (Marrocos), que teria neutralizado a base mais importante de Franco. Os comunistas rejeitaram a primeira proposta porque sabiam que não iriam conseguir controlar uma guerra de guerrilha e que esse tipo de conflito daria aos anarquistas uma vantagem importante, e colocaram entraves à segunda para evitar perturbações com o governo francês, que também tinha interesses no norte de África. Em ambos os casos, os interesses comunistas não eram derrotar o fascismo ou levar a cabo uma revolução, mas manter o poder e sabotar os seus adversários.

Após ganhar a contrarrevolução e instalar um líder que lhes seria fiel, Negrín, em maio de 1937, a URSS deixou de ter grandes interesses em Espanha. Por isso, a partir de junho de 1937, começaram a deixar de dar apoio militar à república. A verdade trágica é a de que Stalin não queria que a República ganhasse a guerra. Por um lado, não queria perturbar as relações com a França e a Grã-Bretanha, que promoveram uma política de “não-intervenção” destinada a favorecer os fascistas. E pelo outro, queria prolongar o conflito para convencer Hitler sobre a necessidade de um pacto de não-agressão.

As negociações para o Pacto Molotov-Ribbentrop começaram em abril de 1939, mesmo no fim da Guerra Civil de Espanha. Era justamente o que Stalin precisava para proteger a URSS de um ataque nazi, e justamente o que Hitler necessitava para poder atacar a França e evitar uma guerra em duas frentes. O Pacto de Não-Agressão Nazista-Soviético foi um pré-requisito importante para a Segunda Guerra Mundial e outro exemplo da colaboração nazi-estalinista.


O ministro alemão dos Negócios Estrangeiros Joachim von Ribbentrop e Stalin apertam as mãos para celebrar o pacto Molotov–Ribbentrop que preconizava a coexistência pacífica entre a URSS e a Alemanha Nazista. Foram os Nazistas, e não a URSS, que quebram o pacto em 1941.


A atual Relevância da Contrarrevolução Comunista

Recuperar esta memória histórica é importante por várias razões. Antes de tudo, para lembrar os mortos, para eles que estejam sempre conosco e para derrubar os tronos que os seus assassinos construíram em cima das suas sepulturas; para deixar de homenagear como heróis aqueles que traíram revoluções e atuaram como carrascos das classes oprimidas.

É importante porque a memória histórica é a nossa biblioteca de lições revolucionárias, a aprendizagem comum que nos aproxima da liberdade. E se armazenamos volumes falsificados nessa biblioteca, histórias de mentiras e de vitórias que nunca aconteceram, repetiremos os mesmos erros sucessivamente. Ao transformar as pessoas e os partidos que sufocaram revolução em heróis, conservamos ideias completamente irrealistas sobre o que a revolução é e sobre como a alcançamos. Se pensamos que o Estado pode ser – ou alguma vez foi – uma ferramenta das pessoas capaz de derrotar o capitalismo, criamos a receita perfeita para nossa derrota: um movimento revolucionário em que é impossível distinguir entre o ingênuo e entusiasta e os oportunistas que tentam subir os degraus do poder.

Há um padrão inquietante na esquerda. Ela vende o futuro da revolução assinando pactos com o demônio. Inúmeras vezes, a esquerda autoritária obstrui os movimentos revolucionários implementando estratégias que previsivelmente fracassarão. A vantagem dessas estratégias é a de que permitem a quem as usa monopolizar a luta. Se tiverem uma vitória parcial, impõem o seu monopólio açambarcando instituições estatais que servem para comprar ou reprimir todos os outros sectores da luta. E se fracassam, tendo criado uma luta espetacular em que são os protagonistas trágicos, podem transformar todos os outros em espetadores que observam um combate midiático entre dois polos hierárquicos.

A libertação deve ser levada a cabo pelos oprimidos. A revolução, por definição, deve ser auto-organizada e, acima de tudo, as classes populares devem manter a autonomia das suas lutas em relação às instituições de poder.

Carregamos conosco todos os revolucionários, revolucionárias, lutadoras e lutadores que sacrificaram tudo nas batalhas que vieram antes de nós. Cuspimos na memória daqueles que tiraram proveito dessas lutas para ascenderem ao poder e daqueles que tentaram impor a sua verdade inquestionável a todos os outros, obstruindo a atividade da própria classe que, hipocritamente, pretendem libertar.

Viva a Revolução de 1917!
Abaixo todos os ditadores, representantes e políticos!


Espectros anarquistas e outros mortos sem descanso e sem paz


Mikhail Bakunin

Embora Bakunin tenha morrido mais de 40 anos antes da Revolução Russa, ele previu exatamente o que viria das propostas autoritárias de Marx para o socialismo. Aqueles que tentam tirar a culpa de Marx, sugerindo que Lenin não aplicou corretamente suas instruções, devem notar que Bakunin viu as tragédias de 1917 chegando a meio século de antecedência.

Examinando a conduta de Marx nas lutas revolucionárias do século XIX, e não apenas os livros que ele escreveu, vemos hoje o que Bakunin viu na sua época. Marx começou sua carreira na década de 1840, tentando formar conspirações revolucionárias, depois expurgando todos que não seguiam sua linha ideológica – especialmente pensadores da classe trabalhadora como Wilhelm Weitling e Pierre-Joseph Proudhon, que eram mais descrentes do que Marx quanto ao papel do estado. Marx ridicularizou Bakunin por tentar fomentar uma sublevação em Lyon em 1870, embora fosse precisamente a ausência de outras bases de apoio revolucionárias na França que condenaram a Comuna de Paris em 1871. Durante a Comuna de Paris, Marx enviou Elisabeth Dmitrieff, uma jovem de vinte anos sem experiência, para assumir o controle da organização das mulheres em Paris, pretendendo tomar o lugar organizadoras como Louise Michel, que esteve ativa por décadas. (Depois da Comuna, Dmitrieff desapareceu da política radical, uma casualidade do esgotamento das políticas autoritárias). Depois da queda da Comuna, Marx aproveitou que os participantes – a maioria dos quais não apoiava sua política – foram massacrados ou se tornaram foragidos, para falar em seu nome, anunciando que a Comuna confirmou todas as suas teorias.

Na Primeira Internacional, Marx aprovou resoluções impopulares em reuniões de portas fechadas enquanto a oposição estava presa ou no exílio, manipulava maiorias nos congressos e finalmente tentou matar a organização inteiramente mudando sua sede para Nova York quando ficou claro que ele não podia controlá-la. Embora a maioria dos historiadores repasse isso, a Internacional sobreviveu por vários anos como uma federação descentralizada baseada em princípios anarquistas, enquanto o grupo dissidente marxista ficou imediatamente moribundo. Depois, de seu lugar seguro de seu estudo em Londres, Marx continuou a zombar de Bakunin e outros que arriscaram suas vidas em insurreições, enfatizando que os trabalhadores deveriam se unir a partidos políticos e se sujeitar à liderança do partido. Marx não era inimigo da opressão do Estado.

Com o século XX logo atrás de nós, Bakunin nos aparece como um profeta ou vidente do século XIX, nos advertindo sobre as carnificinas, traições e dos partidos comunistas contra outros revolucionários e até seus próprios membros, sobre os regimes ditatoriais que alegavam governar em nome do “povo” enquanto matavam e aprisionavam milhões de pessoas, os trabalhos forçados nos gulags e tudo que estava por vir após 1917. Sejam quais forem seus defeitos, Bakunin continua sendo mais uma dos milhares de vozes gritam de seus túmulos, clamando para tomarmos cuidado com qualquer um que proponha o Estado como ferramenta para nos garantir a igualdade ou a liberdade.


Leon Trótski

Leon Trótski não merece uma única lágrima daqueles que amam a liberdade, a igualdade e a decência humana, uma vez que ele mesmo supervisionou pessoalmente o massacre de milhares de anarquistas e outros rebeldes no curso da tomada do poder pelos Bolcheviques. Mas no início de sua carreira, antes de ingressar nos Bolcheviques, ele previu exatamente como o stalinismo surgiria da abordagem de Lenin – como o partido tomaria o poder para si no lugar do proletariado e um impiedoso ditador então tomaria o lugar do partido. O Congresso de Trabalhadores da Indústria da Alimentação de Toda a Rússia confirmou isso em março de 1920, com base na experiência: “A chamada ditadura do proletariado é, na verdade, a ditadura do partido sobre o proletariado e até mesmo indivíduos sobre o proletariado”.

Apesar dessa previsão, Trótski ainda se juntou aos Bolcheviques como consequência de seu aparente sucesso na revolução. Quando um lacaio de Stalin foi picotar Trótski com um furador de gelo, pareceu uma justiça poética. Trótski morreu porque não deu atenção às suas próprias ideias e, acima de tudo, porque rompeu a solidariedade com outros inimigos do capitalismo. Ele morreu porque, como muitos o fizeram depois, colocou o pragmatismo no lugar dos princípios, acreditando que seria mais conveniente avançar rapidamente na direção errada do que avançar lentamente em direção à libertação de fato das classes oprimidas.

Dificilmente podemos nos lembrar dele como uma figura que merece alguma comoção, uma vez que milhões sofreram em suas mãos – mas podemos tomar seu exemplo como uma história cheia de lições para ensinar.

“Na política interna do Partido, esses métodos levam, como veremos, à organização do Partido ‘substituindo’ o Partido, o comitê central substituindo a organização do Partido, o Ditador substituindo o comitê central.”

Leon Trótski – “Nossas tarefas políticas”, 1904


Nestor Makhno

Após sete anos detido nas prisões do Czar, Makhno foi libertado da em meio aos levantes de 1917. Ele acabou se tornando um líder nas forças anarquistas que lutaram contra os nacionalistas ucranianos, alemães e austro-alemães, o reacionário Exército Branco da Rússia, o Exército Vermelho Soviético e vários senhores da guerra da Ucrânia, a fim de abrir um espaço no qual experiências coletivas anarquistas poderiam acontecer. Makhno e seus companheiros – o Exército Negro ou Makhnovtchina – sofreram repetidamente com o peso dos ataques do Exército Branco, enquanto Trótski alternava entre atacá-los com o Exército Vermelho e assinar tratados quando os soviéticos precisavam dos Makhnovistas para manter os Brancos à distância. Em 26 de novembro de 1920, poucos dias depois de Makhno ter ajudado a derrotar definitivamente o Exército Branco, o Exército Vermelho convocou ele e seus companheiros para uma conferência. Makhno não foi e todos os que compareceram foram sumariamente executados.

Socialistas autoritários gastaram rios de tinta tentando desacreditar Makhno e aqueles que lutaram ao seu lado a fim de justificar a traição e assassinatos de sangue frio de seus companheiros por parte dos Bolcheviques. Eles acusam Makhno de autoritarismo na esperança de justificar um Estado ainda mais autoritário. Sugerem que sua luta não contribuiu em nada para a libertação do proletariado, quando na verdade Makhnovistas estava lutando contra aqueles que arruinaram e desacreditaram a noção de revolução, enquanto garantiam que os trabalhadores russos continuassem sento oprimidos por mais um século.

Makhno e seus camaradas certamente não eram perfeitos; Emma Goldman registra que alguns anarquistas russos questionaram as credenciais anarquistas da revolta ucraniana. Mas a história é escrita pelos vencedores: há tão pouca informação sobre as realizações de Makhno precisamente porque os Bolcheviques e outros reacionários procuraram apagá-las dos registros históricos (assim como alguns nacionalistas ucranianos recentemente tentaram apropriar e distorcer suas memória). Felizmente, ainda podemos ler declarações dos rebeldes makhnovistas com suas próprias palavras descrevendo seus valores e objetivos através de relatos históricos de participantes como Peter Arshinov.

“Estas hienas, líderes tanto das esquerdas quanto das direitas, aborrecem-se, muito justamente, com a ideia anarquista. Os burgueses, pelo menos, são francos quanto a isso. Mas os socialistas autoritários de todas as cores, bolcheviques incluídos, entretêm-se a mudar os nomes da dominação burguesa, trocando-os por outros da sua invenção, enquanto deixam a estrutura de dominação intacta na sua essência.”

Nestor Makno – “A Revolução Anarquista”


Rebeldes de Kronstadt

Em fevereiro de 1921, em resposta às repressões soviéticas contra a organização de trabalhadores e a autonomia camponesa, as tripulações de dois navios de batalha russos estacionados na fortaleza naval da ilha de Kronstadt realizaram uma reunião de emergência. Muitos desses eram os mesmos marinheiros que tinham estado na linha de frente da revolução de 1917. Eles elaboraram quinze demandas e Kronstadt levantou-se em revolta contra as autoridades soviéticas.

Os Bolcheviques tentaram caluniar o movimento como se fossem uma organização de “reacionários estrangeiros”. Leia suas abaixo sua lista de demandas e conclua se esse parece o trabalho de capitalistas contrarrevolucionários:

1. Novas eleições imediatas para os Sovietes; os atuais Sovietes já não expressam os desejos dos trabalhadores e dos camponeses. As novas eleições devem ser realizadas por voto secreto e devem ser precedidas de propaganda eleitoral gratuita para todos os trabalhadores e camponeses antes das eleições.

2. Liberdade de expressão e de imprensa para os trabalhadores e camponeses, para anarquistas e para os partidos socialistas de esquerda.

3. O direito de reunião e liberdade para associações sindicais e camponesas.

4. A organização, no máximo até 10 de março de 1921, de uma Conferência de Trabalhadores, Soldados e Marinheiros de Petrogrado, Kronstadt e do distrito de Petrogrado não filiados ao partido.

5. A libertação de todos os presos políticos anarquistas e dos partidos socialistas, e de todos os trabalhadores, camponeses, soldados e marinheiros militantes de organizações operárias e camponesas então presos;

6. A eleição de uma comissão para estudar os dossiês de todos os detidos em prisões e campos de concentração;

7. A abolição de todas as seções políticas dentro das forças armadas. Nenhum partido político deve ter privilégios para a propagação de suas ideias, ou receber subsídios do Estado para este fim. No lugar de seções políticas vários grupos culturais devem ser criados, tomando recursos do Estado;

8. A abolição imediata das barreiras militares criadas entre as cidades e o campo;

9. A isonomia de rações para todos os trabalhadores, exceto para os que executam funções perigosas ou insalubres;

10. A abolição dos destacamentos de combate do Partido em todos os grupos militares. A abolição dos guardas do Partido nas fábricas e empresas. Se guardas fazem-se necessários, eles devem ser nomeados, levando-se em consideração as opiniões dos trabalhadores;

11. A concessão aos camponeses de liberdade de ação sobre seu próprio solo, e do direito de possuir gado, contanto que sejam diretamente responsáveis por aqueles e que não utilizem mão de obra assalariada;

12. Nós pedimos que todas as unidades militares e grupos de cadetes aspirantes se juntem a esta resolução;

13. Nós exigimos que a imprensa dê publicidade adequada a esta resolução;

14. Nós exigimos a instituição de grupos de controle operário móveis;

15. Nós exigimos que a produção artesanal seja autorizada desde que não utilize mão de obra assalariada.

Duas semanas depois, no aniversário de 50 anos da Comuna de Paris de 1871, cerca de 60.000 soldados do Exército Vermelho invadiram Kronstadt, matando e aprisionando milhares. Assim como a república burguesa que chegou ao poder na França em 1870 estabilizou seu reinado matando os rebeldes da Comuna de Paris, os bolcheviques estabilizaram sua tomada reacionária da revolução russa com o banho de sangue em Kronstadt.

Defensores dos Bolcheviques tentam justificar tal feito argumentando que era necessário massacrar os rebeldes de Kronstadt para consolidar o poder para o Estado Soviético; talvez, mas isso não é argumento para nenhum Estado! Se era admirável e cabível que os marinheiros de Kronstadt se levantassem contra o Czar, era igualmente admirável e cabível que se levantassem contra os novos tiranos.

A derrota da insurreição de Kronstadt é, acima de tudo, uma lição de solidariedade: se os rebeldes de Kronstadt tivessem se levantado em abril de 1918, quando os Bolcheviques realizaram seus primeiros ataques contra anarquistas em Moscou, os Bolcheviques talvez não tivessem consolidado o controle sobre o Estado e poderiam ter sido derrotados. O que é feito contra alguns de nós, poderá ser feito contra todos nós no futuro. É por isso que a solidariedade é um valor tão importante para anarquistas – hoje e sempre.


Peter Arshinov

Peter Arshinov participou do levante anarquista na Ucrânia ao lado de Nestor Makhno entre 1919 e 1921, quando escapou por pouco da contrarrevolução bolchevique com vida. Fugindo do oeste para a Alemanha, ele é o autor da História do Movimento Makhnovista (1918–1921). Ele também foi co-autor da “Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários”. Eventualmente, Arshinov renunciou ao anarquismo e retornou à União Soviética para se juntar ao Partido Comunista. Foi detratado por seus ex-camaradas, como o próprio Nestor Makhno , e quando já vivia na URSS foi denunciado como “conspirador anarquista”, deportado e executado no Grande Expurgo de 1937. Se nem mesmo os Bolcheviques originais estavam a salvo do Terror de Stalin, era tolice imaginar um ex-anarquista se salvaria.


Errico Malatesta

Malatesta começou sua carreira como revolucionário na Itália na década de 1870, trabalhando com Bakunin dentro da famosa seção italiana insurrecionária da Primeira Internacional – sem dúvida o primeiro movimento anarquista devidamente registado. Desde o início, ele se opôs aos modelos estatistas de mudança social, tendo visto como o nacionalismo republicano só trouxe um novo regime ao poder na Itália e reforçou as desigualdades sociais existentes. Ele foi para a cadeia várias vezes ao longo de suas para abrir o caminho para a liberdade.

Na década de 1880, quando Andrea Costa, ex-camarada de Malatesta, renunciou ao anarquismo, entrou no Parlamento italiano e foi tentar convencer o movimento de que a política eleitoral era a melhor maneira de buscar mudanças sociais, Malatesta fugiu voltou para a Itália, apesar de enfrentar uma série de acusações legais em sua terra natal, e desafiou Costa para um debate público. Costa tentou fugir dele, mas foi obrigada a se encontrar com Malatesta, depois fugiu da cidade após de ser massacrada na discussão. Tendo vencido a discussão, Malatesta foi diretamente para a cadeia.

Mais tarde, após fugir da Itália escondida em uma caixa de máquinas de costura, sobrevivendo a uma tentativa de assassinato em Nova Jersey, e organizando um jornal clandestino e uma revolta após outra, Malatesta testemunhou a revolução de 1917 e a deserção em massa de anarquistas do Partido Comunista. O modelo de repente parecia mais “eficaz” e “pragmático”. Se não fosse por essas conversões equivocadas, ainda haveria esperança de revoluções emancipatórias no século XX.


Alexander Berkman

Alexander Berkman, um anarquista que cumpriu 14 anos de prisão nos Estados Unidos por um ato de vingança contra o industrialista Henry Clay Frick, viajou muito empolgado para a Rússia depois da revolução Bolchevique de 1917 para descobrir que o novo Estado era tão autoritário sob Lênin como tinha sido sob o Czar. Berkman teve a sorte de escapar vivo e resumiu suas experiências no texto O Mito Bolchevique e também contribui com a coleção Cartas das Prisões Russas, documentando a opressão bolchevique.

“Cinza são os dias que passam. Uma a uma, as brasas da esperança desapareceram. O Terror e o despotismo esmagaram a vida nascida em outubro. Os slogans da Revolução são renegados, seus ideais sufocados no sangue do povo. O fôlego de ontem está condenando milhões à morte; a sombra de hoje paira como um manto negro sobre o país. A ditadura está pisoteando as massas. A Revolução está morta; seu espírito chora no deserto... Eu decidi deixar a Rússia.”

Alexander Berkman – Diário, 1922


Emma Goldman

Emma Goldman compartilhava do entusiasmo que Berkman pelo aparente triunfo inicial da Revolução de Outubro e seu desapontamento com os resultados sombrios. Ela viajou com ele para a Rússia, testemunhou em primeira mão os primeiros anos da revolução e depois compartilhou sua convicção de que o autoritarismo bolchevique era responsável pelos resultados.

“Lênin tinha muito pouca consideração pela Revolução... O Comunismo para ele era uma coisa muito distante. O Estado político centralizado era uma divindade para Lênin, pela qual todo resto deveria ser sacrificado. Alguém disse que Lênin sacrificaria a Revolução para salvar a Rússia. As políticas de Lênin, no entanto, provaram que ele estava disposto a sacrificar tanto a Revolução quanto o país, ou pelo menos parte dele, a fim de realizar seu esquema político com o que restava da Rússia”

Emma Goldman – Posfácio, Minha Desilusão na Rússia


Luigi Camillo Berneri

As tragédias provocadas pela tomada do Estado pelos Bolchevique em 1917 não se limitaram à Rússia. Uma vez que surgiu um Estado supostamente representando a agenda socialista revolucionária, revoluções e revolucionários em todo o mundo foram assassinados a sangue-frio para promover os imperativos que impulsionam todo tipo de Estado. Como seu pacto temporário com Hitler demonstra, “stalinismo” não era uma ideologia coerente, mas uma mistura de todas as coisas que Stalin tinha que fazer para buscar continuamente o poder para si e para a União Soviética.

Como não desejava que qualquer movimento revolucionário triunfasse em outras partes do mundo sem se submeter ao seu Cominter, Stalin garantiu que a forças anarquistas e republicanas na Guerra Civil Espanhola fossem enfraquecidas. A facção stalinista dentro da luta contra o General Franco era pequena, mas porque eles controlavam o acesso a recursos de fora da Espanha e não hesitavam em trair abertamente aqueles que deveriam ser seus camaradas, centralizando o controle da defesa em suas mãos. No final, muitos anarquistas espanhóis foram assassinados por stalinistas e não pelos fascistas que supostamente estavam lutando juntos.

Um conhecido de Malatesta e feroz crítico de Trótski e de Stalin, Luigi Berneri era um conhecido organizador anarquista italiano que viajou para a Espanha para lutar na Guerra Civil Espanhola. A ele foi oferecido um cargo no Conselho da Economia, mas se recusou a participar do governo.

Quando os confrontos entre anarquistas e o Partido Comunista controlado por Stalin irromperam na Espanha republicana, a casa que Berneri compartilhou com vários outros anarquistas foi atacada. Ele e seus camaradas foram rotulados como “contra-revolucionários”, desarmados, privados de seus documentos e proibidos de sair para a rua. Em 5 de maio de 1937, stalinistas assassinaram Berneri com outro anarquista italiano, Francisco Barbieri.


Antonio Bernardo Canellas

As querelas e o autoritarismo bolchevique produziram seus efeitos também no movimento revolucionário do Brasil. Antônio Bernardo Canellas nasceu em Niterói, Rio de Janeiro, e começou a trabalhar como tipógrafo e editor no interior de Alagoas ainda na adolescência. Iniciou sua militância no anarquismo e foi o mais jovem editor de jornais operários de sua época, organizando escolas libertárias para educar trabalhadoras se seus filhos.

Canellas participou da fundação do PCB (Partido Comunista Brasileiro) em março de 1922. Dos nove fundadores do partido, 7 eram militantes anarquistas entusiasmados com as notícias da Revolução na Rússia. Ao que parece, o Partido Comunista Brasileiro foi o único fundado, não por social-democratas, mas por uma maioria de anarquistas e sindicalistas revolucionários.

No final de 1922, Canellas foi primeiro brasileiro a visitar Moscou após a revolução de 1917 para participar como delegado do PCB no IV Congresso da Internacional Comunista. No encontro, o partido buscava o reconhecimento enquanto membro da Internacional Comunista (IC). Canellas chegou meses antes e atuou como correspondente, tanto enviando notícias para o Brasil quanto escrevendo sobre o contexto brasileiro para os russos. Com apenas 24 anos, era o mais jovem dos 394 delegados registrados e foi o único a votar contra a unanimidade forçada do Partido Bolchevique.

Acontece que Antônio Canellas nunca abandonou sua veia anárquica. Estava acostumado ao formato de reuniões e assembleias participativas, onde todas as pessoas poderiam falar e contribuir para a tomada de decisões, seja pelo consenso ou pelo voto. No entanto, percebeu que no Congresso da IV Internacional Comunista as decisões já estavam tomadas e a regra exigia que todos os processos fossem aceitos por unanimidade, se curvando à supremacia de Moscou. No início, tentou participar e foi impedido. Até que pediu a palavra enquanto Trótski discursava para expor sua discordância diante do segundo maior líder bolchevique.

Chegou a dizer que o Trótski faziam “uma lavagem cerebral nos participantes”. Consequentemente, o PCB não foi aprovado como membro da IC e, em 1923, Canellas foi o primeiro a ser punido e expulso do Partido Comunista do Brasil, sendo detratado como “um traidor, indigno e vil”. Ele ainda escreveu um livreto contando sua experiência na Rússia, os motivos da sua expulsão. Como resposta, o PCB escreveu “O Processo de um Traidor”, para explicar porque expulsaram Canellas e tentar apagar sua história e seu legado. No livro, os autores chegam a dizer que era “necessário dissecar esse cadáver”. Tudo isso apenas para atacar um jovem que queria debater de igual para igual com aqueles que se diziam ser seus camaradas.

Antônio Canellas entrou para a clandestinidade e sofreu perseguição durante o governo de Arthur Bernardes – o mesmo presidente que criou a Clevelância, uma colônia penal para anarquistas e socialistas no coração da Amazônia, conhecida como a Sibéria brasileira. Morreu de tuberculose na prisão em 1936 durante a ditadura de Getúlio Vargas.

Em respeito por seus princípios de livre participação, autonomia e decentralização, Antônio Canellas não se curvou diante do autoritarismo dos Bolcheviques, do próprio Trótski e dos seus colegas de partido. Preferiu o preço a pagar por expressar sua indignação contra os que só querem mandar e não construir um caminho para a igualdade. Sua vida ficou na história como um exemplo de rebeldia que não hesita em levantar a voz contra a tirania mesmo nos momentos e meios mais revolucionários.

É necessário dissecar este cadáver. É preciso desnudá-lo, rasgar-lhe o couro mau, desfibrar-lhe as carnes ruins, pôr-lhes as vísceras ao sol, espremer-lhe o fígado esgorgitado de torpeza. Temos o punho rijo e o ferro é de qualidade”
— Partido Comunista do Brasil – O processo de um traidor, livro sobre a expulsão de Canellas

“Vocês querem me matar como homem e como revolucionário, mas eu estou muito jovem para morrer”.
Antônio Canellas – em resposta ao PCB

“Um século antes, Proudhon e Bakunin (dois anarquistas do século XIX) já haviam afirmado que o marxismo nunca libertaria o homem porque sua essência é autoritária”
Iza Salles, autora de “Um cadáver ao sol – A história do operário brasileiro que desafiou Moscou e o PCB”, livro sobre Canellas.


Conclusão

Quando os defensores do Socialismo de Estado acusam anarquistas de sectarismo por não desejarem trabalhar juntos para fins comuns, temos de perguntar: compartilhamos os mesmos objetivos, realmente? O que podemos ter em comum com aqueles que acreditam que guilhotinas, tribunais, juízes, prisões, gulags e os pelotões de fuzilamento são ferramentas para a libertação?

Se a história pode ser um guia, os partidários do Estado não hesitarão em usá-los contra qualquer um que atrapalhe sua busca pelo poder centralizado. Dezenas de milhões de pessoas assassinadas pelo Estado clamam a nós das valas comuns do século XX, insistindo para que suas advertências não sejam em vão.

Olhamos cem anos para trás e recordamos o aniversário do massacre bolchevique contra operários, trabalhadores, camponeses, prostitutas e camaradas anarquistas que, inúmeras vezes, lutaram lado junto ao Exército Vermelho no combate contras as forças do Czar e imperialistas alemães que queriam restaurar a ordem que submetia milhões a desigualdade e a miséria. Hoje, quando muitas pessoas que não viveram o Socialismo de Estado de verdade e propagam uma versão higienizada dos acontecimentos, é essencial entender que os Bolcheviques dispensaram parte de sua repressão mais sangrenta não contra os contrarrevolucionários capitalistas, mas contra trabalhadores, anarquistas e companheiros em greve socialistas. Aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo. Se acharem difícil de acreditar, por favor, vejam nossas citações, consulte a bibliografia no final e investigue por conta própria.


Viva a Revolução de 1917!
Abaixo todos os ditadores, representantes e políticos!