Título: Poder, Autogestão e Luta de Classes – Uma aproximação do tema
Data: Dezembro de 2004
Fonte: Adquirido em 15/10/2019 de http://anarkismo.net/article/19731?search_text=autogest%E3o
Notas: Artigo retirado de Lucha Libertaria, órgão da FAU, segunda época, número 17 de dezembro de 2004. Tradução: Martin Russo. Revisão/preparação: Felipe Corrêa.

“O poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce e só existe em ato… Que regras de direito as relações de poder lançam mão para produzir discursos de verdade? Em uma sociedade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir discursos de verdade dotados de efeitos tão poderosos? Em qualquer sociedade, existem múltiplas relações de poder que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social. Essas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso.”

Uma concepção e uma prática de autogestão têm sua produção específica, seu próprio discurso. Têm sua própria produção de poder que, nesse caso, é de poder popular.

Interessa-nos verificar a história de produção desse discurso em nosso país. A influência que, nesse sentido, se exerce no campo operário-popular, por meio das ideias e das experiências que chegam com os imigrantes, com a propaganda ou com o conhecimento dos fatos concretos. Verificar de que maneira tudo isso se insere, circula e impregna profundamente, produzindo finalmente uma espécie de sincretismo.

Porém, queremos destacar que, no desdobramento desse tema, levaremos especialmente em conta as características particulares de nossa formação social e suas transformações, sem descuidar daquilo que há em comum com outros países, principalmente com os da região e, obviamente, as condicionantes que são estabelecidas pelas estruturas de poder mundial.

Nosso movimento operário-popular nasce com bases classistas e, fundamentalmente, de ação direta, em guerra contra um sistema que é colocado como inimigo das esperanças de se chegar a uma vida diferente. Além disso, esse movimento também possui práticas crescentes de autogestão. Por décadas, o desenvolvimento das práticas autogestionárias e de discursos ideológico-teóricos que as alimentaram deixaram uma marca histórica na reprodução de certos valores e nas características de nosso movimento operário-popular. Com os avanços de tempo e dos processos da vida e da luta, foram produzidos novos “sincretismos”; porém, eles não desapareceram, de forma alguma, com esse passado que continua atravessando os tempos, circulando em zigue-zague por novos contextos e mantendo determinados graus de reprodução ideológica.

Talvez hoje, por causa do múltiplo uso que se faz do conceito de autogestão, seja necessário uma definição. Pois esse conceito vem sendo utilizado de diferentes maneiras, com conteúdos que produzem resultados muito distintos. Não se pode deixar tal conceito subentendido ou reservar a ele aquilo que lhe atribui o “senso comum”, tão em voga hoje em dia.

VOCÊ DISSE SENSO COMUM?

Existe um conhecimento que não está nos livros, que não vem dos ilustrados e nem dos acadêmicos. Ele tem a ver com as experiências vividas, com as respostas dadas em determinadas circunstâncias, muitas vezes em situações-limite. Certas condições de vida geram “reflexos”, um olhar muito especial. Referimo-nos a essas coisas tais como “ter experiência de vida”, “conhecer a cultura das ruas”. Mas essa forma de ver as coisas não é precisamente um “senso comum”. Parece mais uma outra coisa; um olhar que, do seu jeito, rompe com o confortável “senso comum”. “Em qualquer circunstância, o que é imediato deve dar lugar àquilo construído... O que seria uma função sem oportunidades para funcionar? O que seria da razão sem oportunidades de raciocinar?”, comenta Bachelard.

Diante de um universo cheio de ideias e de noções que nos bombardeiam com seus equívocos e seus valores determinados – um bombardeio que não é ingênuo e que conta com a grande eficácia dos meios da comunicação e da educação para formatar o pensamento – recusar o “senso comum” é o primeiro passo para uma reflexão libertadora. Nesse sentido, “não podemos ter confiança alguma na informação que os dados, rapidamente, pretendem nos oferecer”, acrescenta Bachelard. Tempos atrás, a imobilidade da Terra era um “senso comum” indiscutível. “Somente quando Cristóvão Colombo descobriu América, a Terra, convencida de que era redonda, começou finalmente a girar”, diria o poeta.

Diante desses discursos, cabe a desconfiança. Isso também vale para aqueles discursos cheios de respostas, e que não consideram a deterioração ou a queda dos paradigmas que o sustentam. Parece ser produtivo assumir a ignorância e formular perguntas. Principalmente num momento histórico como esse.

UM COMEÇO PARA UMA DEFINIÇÃO

Parece, então, que abordar o conceito de autogestão em seu sentido global, guardando relações com suas premissas e intencionalidades iniciais, exige um olhar, uma forma de tratamento.

Como definição, na intenção de nos aproximar do tema em questão, podemos dizer que autogestão seria, em termos gerais, o poder efetivo de decisão sobre o conjunto das questões políticas, econômicas, sociais; não realizado de cima para baixo, a partir da cúpula, mas de baixo para cima, a partir da base. Definição que abrange diversos campos: formas de organização política, organização dos processos de produção e serviços, educação, aspectos culturais e ideológicos.

A autogestão, assim concebida, com a amplitude que acreditamos estar nela implicada, é toda uma concepção que precisa de elementos coerentes para um autêntico desenvolvimento. Implica uma transformação radical, não apenas econômica – como, de forma limitada, é tratada muitas vezes –, mas também política e ideológica. A autogestão não disciplina corpos para a submissão, para a obediência e para o mando, mas tende a destruir, a descontinuar a noção atual de política como algo reservado a uma casta, dando um outro conteúdo a esse conceito: a tomada, pelas próprias mãos, dos diversos organismos sociais, em todos os níveis e sem intermediários, dos assuntos que lhe competem, visando construir uma ordem social sobre essas bases. O que também implica socializar a política; não desconstruir seu espaço específico, mas concebê-lo de uma outra maneira.

Uma articulação consequentemente autogestionária não surge do nada; ela necessita de elementos coerentes com aquilo que lhe dá sentido para a sua criação – sua própria estratégia. Essa articulação pode e deve produzir seu discurso político-social de acordo com termos compatíveis: participação real, federalismo, liberdade, solidariedade.

Em consequência, são nocivos para o desenvolvimento da autogestão: o Estado, o autoritarismo, a hierarquia, o mando e a obediência, as instituições feitas para assumir a representação popular sem controle da base. A autogestão produz corpos para a liberdade e não é exatamente um disciplinamento, se a liberdade for pensada não como uma “enteada” da ordem social, mas como sua própria “mãe”.

ALGO SOBRE A GÊNESE DA AUTOGESTÃO

Entendemos que o conceito de autogestão nasce no bojo da corrente socialista que emergia nos anos que vão de 1840 a 1865, formulando-se, nesse sentido, com maior clareza, e constituindo seus aspectos medulares. Confronta-se ao sistema capitalista, à classe burguesa, a seus mitos e suas instituições de reprodução. Vincula-se, como pode acontecer com um conceito que tem uma experiência histórica, às rebeldias, às lutas e aos anseios de emancipação de povos explorados e oprimidos. Não é um conceito neutro, ainda que possa existir um conceito assim; está estreitamente ligado com a classe trabalhadora e seus sonhos de uma autêntica justiça social. Um “sentimento-conhecimento” de independência de classe que busca um antagonismo com o sistema capitalista e sugere que o caminho de sua libertação não se encontra nos meios propostos pelo opressor.

A autogestão, em seu início, surge como descendente do socialismo, mas nem todas as correntes dessa ideologia consideraram-na prioritária, algo que deve ser levado a cabo coerentemente. Isso ocorre por motivos de prioridades estratégicas, pela consideração de que ela deveria ser precedida por ciclos de etapas, ou pelo estabelecimento enfático de que meios e fins não precisam manter relações de coerência. Sobre isso, estudiosos do tema vêm afirmando o contrário: são de primeira ordem as implicações “pedagógicas” de nossa ação política e social. O que fizermos será o que acabaremos sendo. Se aceitarmos pautas de ação nas quais se ausentam os processos de libertação e a participação efetiva das pessoas, só poderemos pensar, magicamente, que estaremos nos aproximando de um objetivo libertador. Essa problemática já não parece necessitar de discussão. Concordarmos que meios e fins constituem dimensões distintas; porém, a necessidade, ainda que complexa, de articulação entre uns e outros, não deixa dúvidas. Supomos que está claro que não afirmamos que os princípios podem ser aplicados, absoluta e completamente, aos processos sociais concretos. Referimo-nos a um modelo, e portanto a uma orientação de trabalho militante.

UM BERÇO SOCIALISTA

Nessa origem socialista da autogestão – de uma sociedade sem Estado, gerida em suas diferentes esferas pelos verdadeiros interessados – há posições fundamentais das correntes socialistas que, com o passar do tempo, iriam se separar. Marx disse naquela época sobre o Estado: “arrepiante corpo parasita”; Proudhon falou um pouco antes: “Nós, produtores associados, ou em vias de associação, não necessitamos do Estado”.

Tanto é assim que os primeiros textos Primeira Internacional incorporaram esse conceito de autogestão, que já vinha se desenvolvendo, particularmente pelos proudhonianos. Vejamos o preâmbulo dos Estatutos de 1864:

“A emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores: os esforços dos trabalhadores pela conquista de sua emancipação não devem tender a constituir novos privilégios, mas estabelecer para todos os mesmos direitos e os mesmos deveres”. Essa posição tem uma relação estreita com as ideias de Proudhon, pois foi proposta por um francês proudhiano, Tolain.

Não se pode deixar de levar em conta que esse conceito, com o passar do tempo, vem sendo utilizado de diferentes maneiras, em diferentes momentos históricos. Muitas vezes, tenta-se articulá-lo com o estatismo e a dominação, ou exclusivamente com a economia. Porém, também é verdade que ele ressurge, repetidamente, com sua antiga roupagem proletária de emancipação. É justamente o resgate desses “trapos” que nos interessa.

APLICANDO A AUTOGESTÃO NA TAREFA DE TODOS OS DIAS

Não há povo que não tenha gerado elementos ideológicos, em diferentes níveis, de distintos tipos, por meio de suas múltiplas experiências sociais. Rebeldias, degradações, impotência, raiva, resignação, anseios de transformação. Em um determinado momento, cada povo tem seu “capital” ideológico, que pode não ser igual àquele que desejamos, mas, como diria Perogrullo, ele é o que é.

Concordamos também que tudo aquilo que existe pode ser organizado. Mas, por que tomar desse amplo conjunto de experiências, emoções e ideias, apenas aquilo que permite a continuação do mesmo? É disso que devemos partir para criar e recriar.

A real emancipação dos oprimidos se dará por meio de um longo processo de consequentes práticas autogestionárias. É um processo não retilíneo, certamente; porém, ele tem suas próprias “leis” e deveria estar presente em cada nível de participação que for sendo conquistado, estimulando as pessoas à participação cotidiana na ação social e desenvolvendo a capacidade combativa e a crença em suas próprias forças, em sua capacidade de realização. Gerando espaços e estímulos para a participação em sindicatos, cooperativas, centros comunitários e estudantis, nas organizações de protesto e nas reivindicações: por trabalho, saúde, teto, terra. Processo que também deveria procurar as conexões necessárias para que toda a vida social não fique fragmentada, atomizada, mas que constitua uma força social reunida em torno da solidariedade e do sentimento de pertencimento a uma mesma classe – a classe que é oprimida por um sistema que se torna a cada dia mais claro e que não oferece perspectivas para os de baixo. Uma longa viagem de esperanças, lutas e sonhos. Mas esse não é um problema insolúvel. “Um problema insolúvel é um problema mal exposto; uma experiência é considerada irrealizável quando se coloca a impossibilidade de exposição. Muito frequentemente, colocar uma limitação implica condenar-se ao fracasso... Traçar claramente uma fronteira significa superá-la.” Sim, a história parece indicar: mal exposto, o problema é o fracasso. O simples fato de apresentá-lo bem já é um avanço. A frequente escolha de caminhos cegos não oferece saída.

Para neutralizar, naquilo que for possível, em cada momento, a ingerência da “cultura” predominante, que consagra o que está posto como algo “natural”, é necessário ter uma prática cotidiana em nível econômico, político, cultural, artístico, educacional, em todas as manifestações da vida social. É de primordial importância, para a auto-educação do povo, a solidariedade, a gestão direta, o funcionamento sem ordens e de tutelas. A auto-educação, com a solidariedade, a cooperação social e a ajuda mutua, abre caminhos que não são fáceis, mas são, entretanto, verdadeiros.

A autogestão foi concebida como parte de um longo trajeto social, atravessando distintas conjunturas e etapas, como uma prática social-política capaz de desestruturar o sistema existente e como portadora e facilitadora dos órgãos de poder popular que lhe serviram de base: sindicatos, federações sindicais, comunidades camponesas, comunas, centros e associações de vizinhos e regiões, centros e federações estudantis, cooperativas de troca de produtos, cooperativas de moradias, centros culturais, instituições de educação popular, etc.

A AUTOGESTÃO EM NOSSA HISTÓRIA OPERÁRIA-POPULAR

Feitas algumas considerações e precisando alguns pontos que consideramos pertinentes, foquemos agora, fundamentalmente, na autogestão implicada na história de nosso movimento operário-popular. Existe uma relação entre aquela origem da autogestão, que possui expressões sociais operárias desde os primeiros tempos. Isso acontece, por exemplo, entre o “mutualismo” autogestionário de Proudhon e o mutualismo operário de nosso país – um mutualismo que se projetará, posteriormente, no tempo.

O nome “mutualismo”, dado por Proudhon à sua concepção autogestionária, também tem origem operária. Além disso, vem de uma sociedade operária clandestina. Em 1841, ele teve contato, na França, com uma organização operária clandestina do ramo têxtil, chamada “Os mutualistas”.

Proudhon, como muitos outros, é filho do seu tempo, da episteme vigente. Nele, pode-se criticar aspectos relevantes, mas não se pode negar sua principal contribuição para uma concepção coerente de autogestão. No que diz respeito à nossa história, Proudhon tem alguma influência no começo de nosso movimento operário, com exceção de sua concepção mutualista, que vai perdurar muito mais. Serão outros teóricos libertários que, depois, aprofundarão esta concepção autogestionária global. Porém, todo esse pensamento autogestionário que terá continuidade, terá muito em comum com as afirmações proudhonianas, como a que se faz na citação seguinte, semelhante ao “Vigiar e Punir” de Foucault:

“Ser governado significa ser vigiado, inspecionado, espionado, dirigido, valorizado, sopesado, censurado... ser anotado, registrado, recenseado, tarifado, timbrado, apontado, coisificado, patenteado, licenciado, autorizado, apostrofado, castigado, impedido, reformado, endireitado, corrigido. Significa, sob o pretexto da autoridade pública e sob o pretexto do interesse geral, ser amestrado, quadriculado, explorado, monopolizado, prensado, mistificado, roubado; depois, perante o menor sinal de resistência ou palavra de protesto, ser preso, mudado, mutilado, vilipendiado, humilhado, espancado... encarcerado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado... Isso é o governo, essa é a justiça, essa sua moral.”

Se poderia acrescentar: essa é a preparação, o disciplinamento dos corpos para a funcionalidade do sistema, de toda estrutura de dominação.

ALGO SOBRE OS SINDICATOS PRECURSORES DAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX

Como dissemos anteriormente, nos meios operários, concretamente do ramo têxtil na França em 1841, já se utilizava a denominação “mutualista”. Nessa mesma época, Proudhon adota essa definição e vai lhe dando um conteúdo socialista. Foi um pouco depois, em 1848, que o bispo alemão Ketteler manifestou seu apoio aos mutualistas e às cooperativas operárias. Algumas correntes da Igreja difundiriam, com outro conteúdo, tal conceito. No Uruguai, ele surge com o cristianismo e o prodhonismo. Mas os conceitos de mutualismo e de autogestão, que se vinculam à formação dos sindicatos e das lutas operárias dos primeiros tempos, são, fundamentalmente, aqueles que provêm da corrente socialista. Já no início da década de 1860 circulavam no Uruguai distintos escritos de Proudhon.

Muitos dos primeiros sindicatos serão chamados de “socorros mútuos”, como a “Associação Cosmopolita de Socorros Mútuos”, ou de “ajuda mútua”. Algumas associações, inclusive, começam como mutualistas e tornam-se, rapidamente, sindicatos. Há também a combinação dessas duas práticas desde o início dos sindicatos.

É no último quarto do século XIX que as organizações sindicais desenvolvem-se mais significativamente e suas definições tornam-se notadamente mais radicais e classistas. Percorrendo caminhos de autogestão, com independência de classe, podemos ver um pouco da nossa história operária em toda a etapa inicial de fundação e desenvolvimento dos sindicatos.