Título: Construir o Socialismo Libertário
Fonte: Adquirido em 14/09/2019 de https://pt.protopia.at/wiki/Construir_o_Socialismo_Libert%C3%A1rio
Notas: Este artigo é um trecho do livro Outra Política, Outra Economia: federalismo e autogestão, que está sendo escrito pelo autor.

“A autogestão supõe a abolição da propriedade privada ou de Estado dos instrumentos de produção e sua transferência aos trabalhadores que têm a ‘posse’ desses instrumentos, que eles transmitem quando deixam a empresa aos que lhes sucedem.”

Maurice Joyeux

Aspectos Construtivos do Socialismo Libertário

Uma reflexão atual sobre autogestão e federalismo deve, certamente, levar em conta o fardo carregado pelos anarquistas há anos, que são acusados de criticar e acusar, mas de pouco propor e construir. A afirmação tem certa base, visto que parte dos anarquistas dedicou-se mais em fundamentar sua crítica sobre o princípio da autoridade e da exploração, do que desenvolver os aspectos construtivos libertários.

O próprio termo anarquia, do grego an(a) “sem” e arkh(os) “governo/autoridade”, trabalha com um conceito de negação - neste caso do princípio do governo e da autoridade - e não de construção.

Ainda em meio à Revolução Francesa, no século XVIII, o termo anarquismo já era utilizado, mesmo que sem uma definição clara, tanto para se referir a uma concepção que visava promover a revolução, quanto a uma outra, que estaria disposta somente a perturbá-la [1]. Desde então, a utilização dos termos “anarquia” e “anarquista” foi constante, como se pode ler nos periódicos que datam dos séculos XVIII e XIX. A utilização geralmente era feita por pessoas defensoras da “ordem”, ou pela imprensa conservadora, com o objetivo de desclassificar adversários políticos, geralmente aqueles que defendiam certo “excesso de liberdade”, para se referir ao estado de guerra civil, ou a uma tentativa de mudança da ordem social. Ou seja, já se estava criando no imaginário popular, uma ligação entre o conceito de anarquia, ou anarquismo, e a subversão, o elemento desestabilizador da ordem e o caos. Um conceito de crítica, de rejeição de algo estabelecido.

O conceito só foi utilizado de maneira positiva por Proudhon, ainda no século XIX, como descreve Alexandre Samis, ao dizer que:

“A anarquia, palavra recorrente nos discursos que tinham como objetivo desclassificar os oponentes, geralmente partidários da liberdade, era então vista de forma bem diversa da conceituação que lhe deu Pierre-Joseph Proudhon no seu tratado apresentado à Academia de Ciências de Besançon, O que é a Propriedade?, em 1840 [2] ”.

Mesmo reivindicando-se anarquista, Proudhon sustentou praticamente sozinho este adjetivo, até a formação do conceito daquilo que se chamaria anarquismo, alguns anos depois. Os seguidores de Proudhon, dentre eles Bakunin, somente passariam a chamarem-se anarquistas, anos depois. No entanto, devemos atribuir a Proudhon a primeira tentativa de transformar o conceito de anarquismo de um conceito de simples negação, com conotação pejorativa, em um conceito construtivo, “que seria o distintivo de toda uma geração de revolucionários” [3]. É assim que devemos concordar novamente com Alexandre Samis quando afirma que:

“Proudhon tomou para si a difícil tarefa de habilitar um termo com significado negativo e com postura estoica resistiu durante muito tempo solitário com suas convicções. Ele afirma em O que é a Propriedade?: ‘a propriedade e a autoridade estão ameaçadas de ruir desde o princípio do mundo: assim como o homem busca a justiça na igualdade, a sociedade aspira à ordem na anarquia’. Proudhon transforma assim a anarquia em veículo para se atingir o thelos qualitativo da sociedade; é a pedra-de-toque que levará o homem à ordem em oposição ao caos, que, segundo ele, é a autoridade. O imperativo moral anunciado por Proudhon é uma mudança radical no conceito de ‘anarquia’ e confere aos anarquistas um papel privilegiado nas mudanças sociais. [4]” (Grifos meus)

Apesar desse intento de Proudhon em trazer o anarquismo para uma esfera construtiva, e tantos outros que foram feitos anos depois, o fato é que o anarquismo acabou conservando, até hoje, em seu bojo, grande parte deste aspecto crítico, de destruição, em detrimento dos aspectos positivos, de construção. Foi assim que o pensamento libertário acabou fundamentando importantes críticas (como a crítica ao capitalismo, à autoridade, e principalmente ao Estado), mas muitas vezes resumiu-se a elas. Nos dias de hoje, o anarquismo não é mais considerado, em todos os casos, com um sentido pejorativo e busca ter um sentido positivo. Apesar da chamada “diversidade” que existe dentro do anarquismo acabar por torná-lo um certo “balaio de gatos”, há uma linha comum entre todas as suas tendências; ela é formada pelas críticas, que acabam por sustentar ainda aquele conceito de anarquismo como “elemento desestabilizador da ordem”.

Foi a continuidade desta tradição, juntamente com a pluralidade das ideias libertárias, somadas à facilidade de as pessoas adotarem slogans, que fizeram com que frases como “a paixão de destruir é também uma paixão construtiva”, de Bakunin, acabassem não sendo entendidas na sua totalidade e, sendo repetidas insistentemente, terminaram construindo uma realidade, não necessariamente semelhante àquela expressada por seu autor. Concluiu-se a partir desta frase, por exemplo, que para edificar a nova sociedade, bastaria destruir a atual, o que é um completo absurdo. Na concepção anarquista, a destruição seria representada pela revolução social, que derrubaria a estrutura da velha sociedade e abriria as portas para a construção da nova. E assim foi na história das revoluções com participações libertárias significativas, como na Rússia em 1917 e na Espanha em 1936.

Nas concepções de Bakunin sobre a revolução social, podemos ver claramente, e na maioria das vezes, um conceito de destruição, quando enfatiza, por exemplo, que:

“Esta paixão negativa está longe de ser suficiente para elevar a causa revolucionária ao nível desejado; mas, sem ela, esta causa é inconcebível, e mesmo impossível, pois não há revolução sem destruição profunda e apaixonada, destruição salvadora e fecunda, justo porque dela e, só por ela, criam-se e nascem os novos mundos. [5]

Apesar disso, são evidentes também os conceitos construtivos, que eram trazidos por Bakunin, ao tratar da revolução quando, por exemplo, afirmava que:

“Ninguém pode querer destruir sem ter pelo menos uma remota imaginação, real ou falsa, da ordem de coisas que deveria, em sua opinião, substituir ao que existe atualmente; e quanto mais viva está esta dita imaginação, mais poderosa torna-se sua força destrutiva; e quanto mais se aproxima da verdade, ou seja, está mais em harmonia com o desenvolvimento necessário do mundo social atual, mais saudáveis e úteis se fazem os efeitos de sua ação destrutiva. Com efeito, a ação destrutiva está sempre determinada, não só na essência e no grau de intensidade, mas também nos métodos, nas vias e meios que emprega, pelo ideal positivo, que constitui sua inspiração primeira, sua alma [6]

Como o próprio Bakunin demonstra [7] após a revolução, há um período intermediário - que não devemos confundir com a “ditadura do proletariado” - que geralmente é de guerra civil, em que a contra-revolução ataca, tentando retomar o poder. Há uma grande ofensiva da reação, o que torna ainda mais difícil a construção da nova sociedade, pois, se por um lado tem-se que ocupar desta construção, ao mesmo tempo, deve-se preocupar com a questão da “defesa da revolução [8] ”. O caso da Espanha da guerra civil de 1936-39, em que fábricas de alimentos tiveram de ser ajustadas para a produção de armas é um exemplo claro que a construção da Espanha Libertária não era simplesmente a revolução. Não era simplesmente uma nova construção após o sucesso da revolução de julho. Era obviamente manter os ganhos conquistados, ao mesmo tempo abrir campo para a reconstrução da sociedade e, passada a ameaça da contra-revolução, edificar a sociedade libertária, colocando em prática a autogestão e o federalismo, com todas as dificuldades que isso implica: mudança de cultura, de consciência, de funcionamento da indústria, das empresas, das comunidades, etc.

Quando Bakunin desenvolveu este assunto da destruição e da construção, sua inspiração estava em Proudhon, e tanto em um quanto em outro, há também certas ambiguidades com relação ao tema. Vejamos um exemplo de Proudhon. Em 1849, ele escrevia: “[...] sou socialista [...] não apenas porque protesto contra o regime atual da sociedade, mas por que afirmo um novo regime [...] [9] ”. Nesta frase, Proudhon coloca claramente a questão construtiva do socialismo, insistindo que ser socialista não significa simplesmente negar o capitalismo, mas afirmar uma nova sociedade, ou seja, conceber e lutar por uma sociedade desejável; socialista neste caso. No entanto, Proudhon também tem trechos relativamente ambíguos que podem possibilitar dupla interpretação. É o caso, neste mesmo artigo de 1849, quando continua: “Sou socialista, isto é, simultaneamente reformador e inovador, demolidor e arquiteto; pois, na sociedade, esses termos, conquanto opostos, são sinônimos.” Desse trecho podemos ter duas interpretações. Uma primeira que nos parece equivocada, que “demolidor” e “arquiteto” são sinônimos, ou seja, a mesma coisa. Está claro que destruir não é a mesma coisa que construir. Uma segunda interpretação, que nos parece mais coerente, é que destruir não significa construir, mas que destruir implica em construir. Ou seja, de nada adianta afirmarmos a destruição de algo, se não sabemos com alguma clareza o que queremos colocar no lugar.

Esta segunda interpretação justifica uma noção construtiva que é importante, inclusive para a persuasão de outras pessoas sobre os ideais pelos quais lutamos e também para que possamos pensar estrategicamente nas alianças, nos acordos e nas reivindicações que faremos.

Os anarquistas, por diversas vezes, foram vítimas, pois se aliaram a outros, na expectativa de fazer a revolução, para depois, ver o que seria feito. O resultado foi obvio: na “obra da destruição”, todos que eram contra os regimes vigentes, aliaram-se para a destruir aqueles regimes, ou seja, para a revolução. Os problemas vieram no momento de se construir algo depois da revolução, pois neste momento, os anarquistas, aliados na obra da destruição, terminaram por tornarem-se inimigos, na obra da construção. Muitos anarquistas foram mortos, simplesmente eliminados por isso [10].

Foi justamente pela conclusão da necessidade de se trabalhar os aspectos construtivos, que o anarquismo pautou-se, em grande medida, no desenvolvimento dos conceitos de federalismo e autogestão. Toda esta discussão caracterizou-se pela busca da resposta a duas perguntas:

a. Como funcionará a sociedade autogestionária e federalista, defendida pelos anarquistas, depois da revolução social?

b. Como aplicar os princípios do federalismo e da autogestão hoje, pelo menos parcialmente, e fazer com que eles constituam-se como ferramentas na luta contra a exploração e a opressão, levando-nos na direção dos objetivos de longo prazo?

Foi sempre na busca dessas respostas que os libertários tentaram desenvolver conceitos para o funcionamento da sociedade futura e para as lutas cotidianas.

Em primeiro lugar, o funcionamento da sociedade futura, como um projeto de longo prazo, um esboço das linhas gerais do funcionamento das instâncias econômicas, políticas e sociais, que, no momento apropriado, sustentariam a “nova sociedade”. Vale ressaltar que muito mais relevante do que criar projetos acabados de sociedade - como foi o caso dos falanstérios de Fourier - é importante a discussão e a determinação das “linhas mestras” que permitirão uma adaptação segundo o tempo e o momento.

Em segundo lugar, a aplicação dos princípios imediatamente, pois de nada adiantaria ter um processo de funcionamento de sociedade que ficasse “guardado na gaveta”, para nunca ser aplicado, como aconteceu com o projeto de “comunismo” presente em Marx. Isso implica exatamente a discussão de fins e meios. Para os anarquistas, os fins estão nos meios, ou seja, se queremos uma sociedade em que funcionem plenamente os princípios da autogestão e do federalismo, não há outra forma para se chegar a ela, que não seja por lutas federadas e autogeridas. Ou seja, os fins são os próprios meios. Eis um projeto de luta bastante diferente da concepção desenvolvida pela escola marxista, que afirmava que os fins justificam os meios e, embasados nesta máxima, justificavam um Estado autoritário como meio de luta (a concepção de socialismo como estágio intermediário de Marx) para se atingir um fim comunista, sem Estado; algum dia quem sabe. As previsões anarquistas se confirmaram: das lutas com caráter autoritário, somente originam-se projetos de sociedade autoritários. Ou seja, o meio autoritário - o Estado “socialista” - não desaparece nunca e o meio torna-se o fim; exatamente como aconteceu com o projeto da União Soviética, dentre outros que tentaram chegar ao comunismo seguindo a escola marxista-leninista. Há muitos exemplos.

É exatamente por este motivo que, se defendemos os princípios do federalismo e da autogestão para nortearem o funcionamento de uma sociedade futura, é imprescindível que eles comecem a ser aplicados imediatamente, e nos ajudem na aproximação da revolução social, ou mesmo para as lutas que têm objetivos de curto prazo, mas que não deixam de ser revolucionárias [11].

A Necessidade de Aplicação dos Princípios da Autogestão e do Federalismo Hoje

Estes aspectos construtivos do anarquismo não devem ser pensados somente a partir de uma perspectiva do “pós-revolução”. Muitos escritos sobre o tema, refletem sobre autogestão e federalismo, somente como um sistema que deverá entrar na ordem do dia quando se fizer a revolução, ou seja, na implantação do socialismo ou do comunismo libertário. O melhor projeto a que tive acesso, neste sentido, foi o chamado “PARECON”, um acrônimo do inglês utilizado para o termo Participatory Economics, ou Economia Participativa, desenvolvido por Michael Albert e outros autores [12].

O PARECON parte de uma premissa libertária de construção de uma sociedade futura e que tem como principais pilares equidade, solidariedade, diversidade, autogestão e equilíbrio ecológico. As discussões em torno desse projeto são bastante grandes e há contribuições significativas à questão sobre o funcionamento de uma sociedade futura. O PARECON defende uma estrutura de conselhos democráticos de trabalhadores e consumidores que permitiriam uma forma diferenciada de tomada de decisões em vários níveis, sustentada pela autogestão. Há um outro eixo central na proposta do PARECON que é a criação de complexos balanceados de tarefas, o que permitiria acabar com separação entre trabalho manual e intelectual. No bojo da discussão do PARECON, há ainda todo um debate em torno de economia, propriedade privada, remuneração, distribuição, produção, consumo, eficiência, produtividade, criatividade, inovações, dentre outros assuntos.

A ideia do PARECON foi construída mesclando parte dos conceitos anarquistas, parte de conceitos de outras correntes socialistas de cunho libertário - como é o caso dos comunistas conselhistas - e desenvolveu características próprias, aprofundando as tradições clássicas. Tratando da relação entre a proposta do PARECON e o anarquismo, Michael Albert afirmou em uma entrevista:

“Acredito que o próprio PARECON seja um projeto econômico anarquista porque ele realiza funções econômicas desejáveis, de maneira a incorporar rapidamente a influência e o envolvimento de cada pessoa. O PARECON não possui hierarquias fixas e estrutura de classes. Ele gera não apenas participação e justeza de resultados sociais e materiais, mas também de autogestão real, o que é, claramente, um objetivo prioritário do anarquismo. Devo pensar, em outros termos, que os anarquistas não devem achar o PARECON simplesmente adequado, mas vê-lo como um companheiro muito próximo de suas aspirações [13].”

Antes deste projeto, foram vários os autores que tentaram traçar as linhas mestras para uma organização da sociedade futura, de maneira antiautoritária. Dentre estes exemplos, podemos ressaltar o livro A Conquista do Pão de Piotr Kropotkin, o Organismo Econômico da Revolução de Diego Abad de Santillán, O Comunismo Libertário de Isaac Puente, Idées sur l’organisation sociale [ideias sobre a Organização Social] de James Guillaume, Os Sindicatos Operários e a Revolução Social [14] de Pierre Besnard, Sobre o Conteúdo do Socialismo II de Cornelius Castoriadis, Conselhos Operários de Anton Pannekoek, dentre outros.

Devemos reconhecer que há grande importância na discussão e na definição de nosso projeto socialista libertário, descrevendo, em linhas gerais, a sociedade em que gostaríamos de viver. É este projeto que nos permitirá imaginar onde queremos chegar e avaliar as ações que tomamos hoje, verificando se elas estão caminhando rumo aos nossos objetivos de longo prazo ou não. Pode parecer óbvio dizer, mas é fundamental para um militante ou um grupo de militantes saber onde se pretende chegar com seu trabalho. É responder a questão: onde queremos chegar?

No entanto, tão importante quanto a discussão sobre as perspectivas possíveis de longo prazo, é a discussão de como esses objetivos estratégicos, nosso projeto político de longo prazo - em que a autogestão e o federalismo certamente têm lugar preponderante - devem nortear as práticas de luta cotidiana, ou seja, como podemos aplicar imediatamente esses princípios nas lutas do dia a dia, na militância pelos ganhos de curto prazo, nas mobilizações cotidianas ou em nossa atuação que se coloca mais no âmbito tático do que estratégico. É responder duas questões. O que fazer hoje para começar a caminhar rumo a onde queremos chegar no futuro? Como atuar para pelo menos avançar na direção correta?

Buscar respostas para essas duas questões é importante, pois faz com que as ideias libertárias saiam do plano ideal, de um conceito teórico, para tornar-se uma realidade concreta. A crítica feita aos anarquistas que acabaram “nas torres de marfim” aconteceu exatamente por um distanciamento que a teoria libertária acabou tendo da prática e, por isso, terminou criando um hiato monstruoso entre aquilo que se pregava e aquilo que se realizava. Isso foi fundamental para uma radicalização bastante ruim ocorrida com membros da tradição libertária, quando o anarquismo distanciou-se de seu viés mais importante, que é a realidade social, e passou a propagar uma teoria cada vez mais “radical”, terminando por transformar-se em sectarismo absoluto, ações individualistas, entre outras práticas contraproducentes. São muito comuns os exemplos de grupos que simplesmente não conseguem ter trabalho social, por achar que todos os ambientes em que esta atuação social seria possível: sindicatos, escolas, movimentos sociais, etc.,são completamente “contaminados” por partidos políticos e pelas ideologias autoritárias. Há uma confusão entre o que se trata no plano político e o que se trata no plano social [15] foge-se da realidade, por ela ser muito diferente do plano teórico e ideal. Dessa forma, cresce a “violência verbal” presente nos discursos, que não existe minimamente na prática. Ou seja, há uma idealização do plano futuro que não tem qualquer ação de curto prazo que possa apontar para os objetivos desejados. Constrói-se uma teoria que é vazia e que não dá conta da realidade.

É justamente a aplicação dos princípios libertários na realidade cotidiana que norteia a teoria, assim como a teoria inspira a prática do dia a dia. Como bem coloca a Federação Anarquista Uruguaia (FAU) em Importância da Teoria, quando ressalta:

“Por isso, a partir dessa comprovação básica é que surge como fundamental e prioritário a atuação, a prática política. Somente a partir dela, em sua existência concreta, nas condições comprovadas de seu desenvolvimento, pode chegar a elaborar-se um pensamento teórico útil. Que não seja uma gratuita acumulação de postulações abstratas com mais ou menos coerência e lógica interna, mas sem coerência com o desenvolvimento de processos reais. Para teorizar com eficácia é imprescindível atuar [16].” (grifos meus)

Um exemplo mais visível disso é o seguinte: os grupos mais sectários, menos dispostos a trabalhar com pessoas diferentes (não anarquistas), que tudo acusam de ser reformista, etc. são exatamente os grupos que menor trabalho social possuem. Os grupos mais dogmáticos, e que mais slogans proferem sem qualquer sentido prático, são exatamente esses grupos sem contato com a realidade social. Sem mobilização social, como é possível pretender caminhar rumo a uma sociedade em que impere a liberdade e a igualdade? Foi assim que acabaram sendo constituídos os “destruir o capitalismo e o Estado”, “ser revolucionário”, dentre outros slogans que, apesar de terem um conteúdo por trás, vêm sendo repetidos como um dogma, sem qualquer reflexão que aponte para uma ação cotidiana que pavimente o caminho rumo a estes objetivos. É uma questão simples. Observemos as letras abaixo:

A B C D E

Se desejamos sair de “A” e chegar em “E”, pelo caminho mais curto, devemos passar necessariamente por “B”, “C” e “D”. Considerando que a sociedade de hoje, em que estamos vivendo, seja a letra “A” e que a sociedade em que o comunismo libertário esteja plenamente estabelecido seja a letra “E”, necessariamente teríamos que realizar ações que fizessem com que passássemos por “B”, “C” e “D”, respectivamente. O exemplo dos radicais sem contato com a realidade citado acima, poderia ser caracterizado como pessoas que vivem em “A”, e que pregam o “E”, mas nada realizam em termos de “B”, “C” e “D”. Muitas vezes, nem acham que devem fazer alguma coisa nesses termos. Como pretendem caminhar sem querer mover as pernas?

É justamente na aplicação hoje, dos princípios da autogestão e do federalismo, que farão com que as práticas militantes dos socialistas libertários caminhem de “A” a “E”. A organização e a atuação do dia a dia criam condições para que se estabeleçam ganhos de curto prazo, e para que se acumule uma grande força social libertária [17] - o que poderia ser considerado “B”. Com grande força social e significativo apoio popular, poder-se-ia pensar na realização de uma revolução social, com a luta pelo término do capitalismo e do Estado - o que poderia ser considerado “C”. O período de defesa da revolução, de guerra civil e de reorganização (ou o que alguns chamam de socialismo libertário, como período intermediário) poderia ser considerado “D”. O estabelecimento da sociedade comunista libertária, com a implantação efetiva da autogestão e do federalismo, que poderia ser considerado o “E”.

É exatamente a luta pela constituição do passo “B” - ou seja, acumulação de força social significativa por parte dos defensores do federalismo e da autogestão, que poderá preparar terreno para o “C”, ou seja, para a revolução social. Se não, qual será o caminho para a revolução social? É por meio desse raciocínio que chegamos à conclusão da necessidade da aplicação imediata dos princípios do federalismo e da autogestão.

Primeiramente, como um meio libertário de se atingir os fins desejados. Em segundo lugar, como uma forma de aumentar a luta por nossos objetivos, e acumular força social. É somente assim que se pode caminhar rumo ao comunismo libertário - “E”. Simplesmente professar: vamos acabar com tudo! Vamos construir o comunismo libertário - ou seja, “E” - sem trabalhar, de fato, para a consolidação de “B” é cair no discurso vazio, numa prática de discursos frágeis que não se sustentam na prática.

[1] Samis, Alexandre. “As Matizes do Sentido: anarquismo, anarquia e a formação do vocabulário político no século XIX.” In: Revista Verve 2. São Paulo: Nu-Sol, 2002 p. 48.

[2] Ibidem. p. 52.

[3] Ibidem. p. 61.

[4] Ibidem. p. 54-55. A citação de Proudhon no artigo de Samis foi retirada de Proudhon, Pierre-Joseph. Que és la Propiedad? Barcelona, Tusquets, 1975, p. 283.

[5] Bakunin, Mikhail Estatismo e Anarquia, São Paulo, Imaginário, 2003 p. 52.

[6] Bakunin, Mikhail. “Protesta de la Alianza”, citado em Mintz, Frank Bakunin: críctica y acción, Buenos Aires, Colección Utopia Libertária, 2006 p.33.

[7] Ver especialmente o “diálogo” de Bakunin com Maximov no livro de Mintz citado acima.

[8] Ver a discussão feita por Nestor Makhno sobre isso, especialmente em seu artigo “Sobre a Defesa da Revolução”, além do documento que originou a discussão, escrito por seu grupo Dielo Trouda “Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários”. Apesar de termos certos pontos de discordância, em relação ao que defende Makhno, grande parte de seus argumentos é correta, devendo ser considerada com atenção.

[9] Proudhon, P.-J. “Le socialisme jugé par M. Proudhon” em La Voix du Peouple, 1849, apud Leval, Gaston. “Concepções Construtivas do Socialismo Libertário”. In: Autogestão e Anarquismo, São Paulo: Imaginário, 2002 p. 19.

[10] Para um exemplo prático disso basta observarmos a história da Revolução Russa de 1917. Os anarquistas acabaram aliados às outras tendências de esquerda para a destruição do czarismo. Nas batalhas contra o Exército Branco, por exemplo, Nestor Makhno e os revolucionários ucranianos foram solicitados algumas vezes pelo Exército Vermelho, e sua ajuda foi fundamental para afastar a ameaça da contra-revolução. Os bolcheviques, assim que viram a ameaça da restauração do czarismo passar, colocaram os makhnovistas em uma emboscada, dizimando todo o exército que tanto lhe ajudara. O exemplo é exatamente esse: na obra da “destruição”, estavam todos “juntos”. Na obra de construção, para os bolcheviques, os anarquistas poderiam constituir-se como um obstáculo aos seus objetivos centralistas e autoritários. Para mais informações sobre a Revolução Russa, a partir de uma perspectiva libertária, ver: Tragtenberg, Maurício, A Revolução Russa, Faísca São Paulo 2007; Skirda, Alexandre et alli. Nestor Makhno e a Revolução Social na Ucrânia, São Paulo: Imaginário, 2001; Volin. A Revolução Desconhecida: nascimento, crescimento e triunfo da Revolução Russa (1825-1917), São Paulo: Global, 1980. Há muito material em outros idiomas escritos por Alexandre Skirda, Paul Avrich, Nestor Makhno, Piotr Arshinov, Volin, Victor Serge, Ida Mett, dentre outros.

[11] Trabalhei esse conceito um pouco mais detalhadamente em um artigo, transformado posteriormente em livreto, chamado de Reforma e Revolução, publicado pela Faísca Publicações Libertárias em 2006.

[12] Michael Albert publicou, há algum tempo, um livro com o nome de PARECON: Life After Capitalism (2003), no qual sintetiza suas ideias sobre o PARECON que foram sendo desenvolvidas, principalmente, em três livros anteriores chamados Looking Forward (1996), Thinking Forward (1997) e Moving Forward (2001). Há muito material sobre o assunto em outros idiomas, principalmente em inglês, no site www.parecon.org. Apesar de seus trabalhos sobre o possível funcionamento de uma sociedade libertária futura serem muito bons, há muitos equívocos de sua parte ao discutir os meios, tais como as formas de organização, luta, alianças, etc.

[13] Albert, Michael, entrevistado por Andrej Grubacic. Regarding PARECON.

[14] Ver a obra toda, no original em francês. Nos anos 1980 a editora Novos Tempos publicou no Brasil parte da obra em português.

[15] Outros trechos do livro aprofundarão bastante esta questão.

[16] Federación Anarquista Uruguaya (FAU). Importância da Teoria.

[17] Conceito que também terá grande desenvolvimento no livro.