Felipe Corrêa
Questões organizativas do Anarquismo
Anarquismo: espontaneísmo e antiorganizacionismo?
Três posições anarquistas sobre a organização
Anarquismo e dualismo organizacional: os escritos de M. Bakunin
Anarquismo e dualismo organizacional: a experiência da Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária
Introdução
O presente artigo tem por objetivo discutir, desde uma perspectiva teórico-histórica, algumas questões organizativas relativas ao anarquismo. Ele contesta a afirmação repetida constantemente, de que esta seria uma ideologia/doutrina essencialmente espontaneísta e contrária à organização. Retomando o debate sobre a organização entre os anarquistas, o artigo afirma haver três posições fundamentais sobre o assunto: aqueles que são contrários à organização e/ou defendem articulações informais em pequenos grupos (antiorganizacionismo), aqueles que defendem somente a organização no nível de massas (sindicalismo/comunitarismo) e aqueles que sustentam a necessidade de articulação em dois níveis, político-ideológico e de massas (dualismo organizacional). Aprofundam-se as posições da terceira corrente, trazendo elementos teóricos de M. Bakunin e, em seguida, apresentando um caso histórico em que os anarquistas sustentaram, em teoria e prática, essa posição: a atuação da Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária (FAKB) entre os anos 1920 e 1940.
Anarquismo: espontaneísmo e antiorganizacionismo?
No epílogo que realiza à compilação de textos de Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir I. Lênin sobre o anarquismo (Marx, Engels, Lênin, 1976) – uma obra financiada por Moscou no contexto soviético para promover as ideias do marxismo-leninismo – Kolpinsky (1976, pp. 332-333) afirma que o anarquismo é uma doutrina “pequeno-burguesa”, “alheia ao proletariado”, baseada no “aventureirismo”, nas “concepções voluntaristas” e nos “sonhos utópicos sobre a liberdade absoluta do indivíduo”. Além disso, enfatiza:
São próprios de todas as correntes anarquistas os sonhos utópicos de criação de uma sociedade sem Estado e sem classes exploradoras, por meio de uma rebelião espontânea das massas populares e da abolição imediata do poder do Estado e de todas suas instituições, e não por meio da luta política da classe operária, da revolução socialista e do estabelecimento da ditadura do proletariado (KOLPINSKY, 1976, p. 332) (grifos adicionados; tradução nossa).
Afirmações desse tipo foram feitas durante toda a história do anarquismo, tanto por seus adversários, quanto por seus inimigos. Entretanto, diversos estudos recentes de base teórica e/ou histórica[1] vêm demonstrando que tais afirmações não possuem respaldo na realidade dos fatos.
Conforme sustentado mais detalhadamente em outro estudo (Corrêa, 2012), o espontaneísmo[2] e a posição contrária à organização não constituem princípios político-ideológicos do anarquismo e, por isso, não são comuns a todas as suas correntes. A questão organizativa caracteriza um dos debates mais relevantes entre os anarquistas e está na base da constituição das próprias correntes do anarquismo.[3] Uma análise ampla do anarquismo, em termos históricos e geográficos, como a realizada por Michael Schmidt e Lucien van der Walt (2009), permite afirmar que há um setor, minoritário, contrário à organização e outro, majoritário, que a defende; os anarquistas possuem distintas concepções de organização no nível de massas, incluindo articulação comunitária e sindical[4], e diferentes posições acerca da organização específica anarquista.
Três posições anarquistas sobre a organização
De acordo com Schmidt e van der Walt (2009, p. 239), no debate anarquista sobre a questão organizativa, evidenciam-se três posições fundamentais: 1.) o antiorganizacionismo, que se coloca, em geral, contra a organização, tanto no nível social, de massas, quanto no nível político-ideológico, especificamente anarquista; esses anarquistas defendem o espontaneísmo ou, no máximo, a articulação em redes informais e/ou pequenos grupos de militantes; 2.) o sindicalismo/comunitarismo, compreendendo que a organização dos anarquistas deve se dar somente no nível social, de massas, e que as organizações políticas anarquistas seriam redundantes, em alguns casos até perigosas, já que os movimentos populares, dotados de uma capacidade revolucionária, podem levar a cabo todas a proposições anarquistas; 3.) o dualismo organizacional, que sustenta ser necessário articular-se, ao mesmo tempo, em movimentos de massas e organizações políticas, com vistas a promover as posições anarquistas de maneira mais coerente e eficaz em movimentos mais amplos.
O antiorganizacionismo possui suas bases em proposições como as de Luigi Galleani, militante anarquista italiano que acredita que uma organização política – ou, como chamava seu conterrâneo Errico Malatesta, um “partido anarquista” – conduz necessariamente a uma hierarquia de tipo governamental que viola a liberdade individual:
O partido, qualquer partido, possui seu programa, que é sua própria constituição, possui em sua assembleia de seções ou grupos delegados seu parlamento; em seu corpo diretivo ou nas seções executivas possui seu próprio governo. Portanto, é uma superposição gradual de corpos por meio dos quais uma hierarquia real e verdadeira se impõe entre os vários níveis desses grupos que estão ligados: a disciplina, as violações, as contradições que são tratadas com punições correspondentes, que podem ser tanto a censura quanto a expulsão (GALLEANI, 2011, p. 2) (tradução nossa).
Galleani sustenta que os anarquistas devem se associar em redes pouco orgânicas, quase informais, pois a organização, principalmente programática, conduz à dominação. Tal posição foi assumida tanto em relação aos agrupamentos anarquistas, quanto em relação aos movimentos populares de maneira geral. Para Galleani (2011, p. 3-6; tradução nossa), “o movimento anarquista e o movimento operário percorrem caminhos paralelos e a constituição geométrica de linhas paralelas é feita de maneira que elas nunca possam se encontrar ou coincidir”. Anarquismo o movimento popular constituem, para ele, campos distintos; as organizações operárias são vítimas de um “conservadorismo cego e parcial” responsável por “estabelecer um obstáculo, muitas vezes um perigo” aos objetivos anarquistas. Os anarquistas, conforme sustenta, devem atuar por meio da educação, da propaganda e da ação direta violenta, sem se envolver com os movimentos de massas organizados.[5]
O sindicalismo/comunitarismo vincula-se à ideia de que o movimento popular possui todas as condições de abarcar posições libertárias e revolucionárias, de maneira a cumprir todas as funções necessárias a um processo de transformação; as organizações políticas anarquistas são desnecessárias ou uma questão secundária. Se as defesas da organização exclusivamente em nível comunitário são escassas (como nas proposições do norte-americano Murray Bookchin), o mesmo não ocorre com o sindicalismo de intenção revolucionária.[6]
Essa posição é defendida por muitos sindicalistas revolucionários, como foi o caso do francês Pierre Monatte (1998, p. 206-207) que, no Congresso Anarquista de Amsterdã, em 1907, sustenta que o sindicalismo revolucionário “se basta a si próprio”. Monatte acredita que o movimento popular iniciado pela Confédération Generale du Travail (CGT), na França, em 1895, havia possibilitado uma reaproximação entre os anarquistas e as massas e por isso recomenda: “que todos os anarquistas ingressem no sindicalismo”. Por mais que o contexto histórico possua relevância no afastamento que ocorreu na França, após a Comuna de Paris, entre o anarquismo e os movimentos de massas, essa posição de Monatte preponderou no anarquismo do século XX em todo o mundo, se não em teoria, pelo menos na prática.
Nesse mesmo congresso, que pode ser considerado o primeiro momento histórico de debate amplo sobre as questões organizativas do anarquismo, outros anarquistas se posicionaram. Malatesta (1998, p. 208) concordava com a participação anarquista nos movimentos populares, mas reforçava: “dentro dos sindicatos, é preciso que permaneçamos anarquistas, com toda a força e amplitude implícitas nessa definição”; ou seja, o anarquismo não poderia dissolver-se no movimento sindical, não poderia ser tragado por ele, deixando de existir como uma ideologia/doutrina com posições e instâncias próprias. Posição semelhante, porém com uma base mais enfaticamente classista, foi defendida por Amédée Dunois, que sustentava, para além do trabalho sindical, a necessidade de uma organização anarquista:
Os anarquistas sindicalistas [...] estão abandonados a si mesmos e, fora do sindicato, não possuem qualquer ligação real entre eles ou aos seus outros companheiros. Eles não possuem qualquer apoio e não recebem ajuda. Por isso, pretendemos criar essa ligação, proporcionar esse apoio constante; e eu estou pessoalmente convencido de que a união de nossas atividades só pode trazer benefícios, tanto em termos de energia, quanto de inteligência. E quanto mais fortes formos – e só seremos fortes nos organizando – mais forte será o fluxo de ideias que poderemos sustentar no movimento operário, que irá, aos poucos, ser impregnado do espírito anarquista. [...] Seria suficiente à organização anarquista agrupar, em torno de um programa de ação prática e concreta, todos os companheiros que aceitem nossos princípios e que queiram trabalhar conosco, de acordo com nossos métodos (DUNOIS, 2010, s/p).
As posições de Malatesta e Dunois referem-se ao dualismo organizacional, que se apoia na ideia de que os anarquistas devem se organizar, paralelamente, em dois níveis: um social, de massas, e outro político-ideológico, anarquista.
Malatesta (2000a, pp. 56-55-60) define o “partido anarquista” como “o conjunto daqueles que querem contribuir para realizar a anarquia, e que, por consequência, precisam fixar um objetivo a alcançar e um caminho a percorrer”. “Permanecer isolado, agindo ou querendo agir cada um por sua conta, sem se entender com os outros, sem preparar-se, sem enfeixar as fracas forças dos isolados”, significa, para os anarquistas, “condenar-se à fraqueza, desperdiçar sua energia em pequenos atos ineficazes, perder rapidamente a fé no objetivo e cair na completa inação”. A maneira de superar o isolamento e a falta de coordenação é investindo na formação de uma organização política anarquista: “se não quiser permanecer inativo e impotente, [o militante anarquista] deverá procurar outros indivíduos que pensem como ele, e tornar-se iniciador de uma nova organização.”
Mas, para Malatesta (2000b), a organização específica anarquista não é suficiente: “favorecer as organizações populares de todos os tipos é a consequência lógica de nossas ideias fundamentais e, assim, deveria fazer parte integrante de nosso programa.” Aponta, nesse sentido, a necessidade de um trabalho de base intenso em meio às organizações populares de massas:
É preciso, portanto, em tempos normais, realizar o trabalho amplo e paciente de preparação e organização popular e não cair na ilusão da revolução em curto prazo, factível somente pela iniciativa de poucos, sem participação suficiente das massas. A essa preparação, contanto que ela possa ser realizada em um ambiente adverso, há, entre outras coisas, a propaganda, a agitação e a organização das massas, que nunca devem ser descuidadas (MALATESTA, 2008, p. 31) (tradução nossa).
Os anarquistas organizacionistas (sindicalistas, comunitaristas, dualistas organizacionais) têm contribuído, teórica e praticamente, com o debate sobre as questões organizativas do anarquismo. O dualismo organizacional[7] possui contribuições que serão, em seguida, abordadas teórica e praticamente, por meio dos escritos de Mikhail Bakunin e da experiência da Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária.
Anarquismo e dualismo organizacional: os escritos de M. Bakunin
O dualismo organizacional vincula-se às próprias raízes do anarquismo, sendo formulado na obra de Bakunin, que se refere, com frequência, às práticas da Aliança da Democracia Socialista (ADS) no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT)[8].
Para Bakunin (2000a; tradução nossa), a ADS tem um duplo objetivo; por um lado, estimular o crescimento e o fortalecimento da AIT [9]; por outro, aglutinar em torno de princípios, um programa e uma estratégia comum, aqueles que possuem afinidades político-ideológicas com o anarquismo. Em suma, criar/fortalecer uma organização política e um movimento de massas:
Eles [os militantes da ADS] formarão a alma inspiradora e vivificante desse imenso corpo a que chamamos Associação Internacional dos Trabalhadores [...]; em seguida, se ocuparão das questões que são impossíveis de serem tratadas publicamente – eles formarão a ponte necessária entre a propaganda das teorias socialistas e a prática revolucionária. (Bakunin, 2000b) (tradução nossa).
Bakunin (2000c, 2000b, 2000a; tradução nossa) sustenta que a ADS não precisa de uma quantidade muito grande de militantes: “o número desses indivíduos não deve, pois, ser imenso”; ela constitui uma organização política, pública e secreta, de minoria ativa, com responsabilidade coletiva entre os integrantes, que reúne “os membros mais seguros, os mais devotados, os mais inteligentes e os mais enérgicos, em uma palavra, os mais íntimos”, nucleados em diversos países, com condições de influenciar determinantemente as massas.
Essa organização tem por base comum um regulamento interno e um programa estratégico, os quais estabelecem, respectivamente, seu funcionamento orgânico, suas bases político-ideológicas e programático-estratégicas, forjando um eixo comum para a atuação anarquista. Pode tornar-se membro da organização, segundo Bakunin (2000d, 2000c; tradução nossa), somente “aquele que tiver francamente aceitado todo o programa com todas suas consequências teóricas e práticas e que, junto à inteligência, à energia, à honestidade e à discrição, tenham ainda a paixão revolucionária”. Internamente, não há hierarquia entre os membros, e as decisões são tomadas de baixo para cima, em geral por maioria (variando do consenso à maioria simples, a depender da relevância da questão), e com todos os membros acatando as decisões tomadas coletivamente. Isso significa aplicar o federalismo – defendido como forma de organização social, que deve descentralizar o poder e criar “uma organização revolucionária de baixo para cima e da circunferência ao centro” – nas instâncias internas da organização anarquista.
Incentivar o crescimento e o fortalecimento da AIT em diferentes países, e influenciá-la no sentido de seu programa constitui também, conforme colocado, um dos objetivos da ADS. Este amplo movimento de massas, internacional e internacionalista, segundo Bakunin (2008, p. 67), deve ser o protagonista da revolução social, já que “nenhuma revolução pode triunfar senão exclusivamente pela força do povo”. Tal processo revolucionário – que não pode se resumir às mudanças essencialmente políticas, mas atingir os mais profundos fundamentos sociais, incluindo a economia – altera as bases do sistema capitalista/estatista e estabelece o socialismo libertário[10].
A Associação Internacional dos Trabalhadores, fiel a seu princípio, jamais apoiará uma agitação política que não tenha por objetivo imediato e direto a completa emancipação econômica do trabalhador, isto é, a abolição da burguesia como classe economicamente separada da massa da população, nem qualquer revolução que desde o primeiro dia, desde a primeira hora, não inscreva em sua bandeira liquidação social. [...] Ela dará à agitação operária em todos os países um caráter essencialmente econômico, colocando como objetivo a diminuição da jornada de trabalho e o aumento dos salários; como meios, a associação das massas operárias e a formação das caixas de resistência. [...] Ela ampliar-se-á, enfim, e organizar-se-á fortemente atravessando as fronteiras de todos os países, a fim de que, quando a revolução, conduzida pela força das coisas, tiver eclodido, haja uma força real, sabendo o que deve fazer e, por isso mesmo, capaz de apoderar-se dela e dar-lhe uma direção verdadeiramente salutar para o povo; uma organização internacional séria das associações operárias de todos os países, capaz de substituir esse mundo político dos Estados e da burguesia que parte (BAKUNIN, 2008, pp. 67-69).
O movimento de massas mobiliza trabalhadores a partir de suas necessidades econômicas e organiza as lutas sindicais de curto prazo, por meio de um ferramental organizativo próprio e instituições criadas pelos trabalhadores, abarcando local de trabalho e moradia; o acúmulo permanente de força social real dos trabalhadores e a radicalização das lutas permite o avanço à revolução social.
Criar uma associação popular com base em necessidades econômicas implica, “eliminar inicialmente do programa desta associação todas as questões políticas e religiosas”, pois o mais relevante é “buscar uma base comum, uma série de simples princípios sobre os quais todos os operários, quaisquer que sejam, por sinal, suas aberrações políticas e religiosas, [...] estão e devem estar de acordo”. Ao passo que a questão econômica une os trabalhadores, questões político-ideológicas e religiosas os separam; estas, mesmo não constituindo princípios da AIT, devem ser debatidas ao longo do processo de lutas[11] (BAKUNIN, 2008, pp. 42-43).
Trata-se de estimular a unidade dos trabalhadores sobre bases classistas, por meio da associação em torno de interesses comuns de um conjunto de sujeitos oprimidos – trabalhadores do campo e da cidade, campesinato e marginalizados em geral –, para a luta de classes direta contra as classes dominantes, pois “o antagonismo que existe entre o mundo operário e o mundo burguês” não permite “nenhuma reconciliação”. Na luta de classes os trabalhadores conhecem “seus verdadeiros inimigos, que são as classes privilegiadas, incluindo o clero, a burguesia, a nobreza e o Estado”, compreendem as razões que os unem aos outros oprimidos, adquirem consciência de classe, percebem os interesses compartilhados, conhecem questões político-filosóficas; isso constitui um verdadeiro processo pedagógico (BAKUNIN, 2008, pp. 56; 54).
O movimento de massas deve, ainda, constituir as bases organizacionais e institucionais da sociedade futura e manter uma coerência com seus objetivos revolucionários e socialistas. Bakunin (2000e; tradução nossa) enfatiza que uma “sociedade igualitária e livre” não emanará “de uma organização autoritária”; portanto, a “a Internacional, embrião da futura sociedade humana, deve ser, desde já, a imagem fiel de nossos princípios de liberdade e de federação, e rejeitar em seu seio todo princípio tendendo à autoridade, à ditadura”. Ele sustenta uma coerência entre meios e fins; a AIT deve organizar-se de maneira libertária e federalista – é necessário, diz Bakunin, “aproximar o máximo possível essa organização de nosso ideal” –, estimulando a criação de um arcabouço organizativo e institucional que possa substituir o capitalismo e o Estado: “a sociedade futura não deve ser outra coisa senão a universalização da organização que a Internacional tiver criado”.
A ADS não exerce relação de dominação e/ou hierarquia sobre a AIT, mas a complementa; o inverso também é verdadeiro. Juntas, essas duas instâncias organizativas se complementam e potencializam o projeto revolucionário dos trabalhadores, sem a submissão de qualquer uma das partes [12]
A Aliança é o complemento necessário da Internacional... — Mas a Internacional e a Aliança, tendendo para o mesmo objetivo final, perseguem ao mesmo tempo objetivos diferentes. Uma tem por missão reunir as massas operárias, os milhões de trabalhadores, com suas diferenças de profissões e países, através das fronteiras de todos os Estados, em um só corpo imenso e compacto; a outra, a Aliança, tem por missão dar às massas uma direção realmente revolucionária. Os programas de uma e de outra, sem serem de modo algum opostos, são diferentes pelo próprio grau do seu desenvolvimento respectivo. O da Internacional, se tomado a sério, contém em germe, mas somente em germe, todo o programa da Aliança. O programa da Aliança é a explicação última do [programa] da Internacional (BAKUNIN, 2000a; tradução nossa).
A união dessas duas organizações – uma política, de minorias (quadros); outra social, de maiorias (massas) – e sua articulação horizontal e permanente potencializam a força dos trabalhadores e aumentam as chances do processo de transformação anarquista. Dentro do movimento de massas, a organização política dá mais eficácia aos anarquistas nas disputas de posições. Ela contrapõe, organizadamente e em favor de seu programa, forças que agem em sentido distinto e que buscam: elevar à condição de princípio uma das diferentes posições político-ideológicas e/ou religiosas, minimizar seu caráter eminentemente classista, fortalecer as posições reformistas (que veem as reformas como um fim) e a perda de combatividade do movimento, estabelecer hierarquias internas e/ou relações de dominação, direcionar a força dos trabalhadores para as eleições e/ou para estratégias de mudança que envolvam a tomada do Estado, atrelar o movimento a partidos, Estados ou outros organismos que retiram, nesse processo, o protagonismo das classes oprimidas e de suas instituições[13].
Anarquismo e dualismo organizacional: a experiência da Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária
Neste momento, apresentam-se as linhas gerais do dualismo organizacional anarquista, desenvolvido pela experiência da Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária (FAKB), entre os anos 1920 e 1940.
No leste europeu, os anarquistas tiveram uma atuação determinante, em 1903, na Revolta da Macedônia, envolvendo dois episódios: o primeiro, com a Revolta de Ilinden e proclamação da Comuna de Krouchevo; o segundo, com a Insurreição de Préobrojenié e proclamação da Comuna de Strandzha, ambas libertárias. A Comuna de Strandzha foi responsável pela tomada do território e pelo estabelecimento de experiências de autogestão durante um mês, constituindo a primeira tentativa local de edificar uma nova sociedade sobre os princípios do comunismo libertário. Com o esmagamento da revolta e das experiências por ela constituídas, fundaram-se, na Bulgária, periódicos relevantes como Sociedade Livre, Acracia, Probuda, Rabotnicheska Misl, diversos grupos anarquistas e, em 1914, um grupo de Ruse lançou as bases de um movimento anarco-sindicalista. Depois de problemas ocasionados pela Primeira Guerra, o anarquismo búlgaro ressurgiu renovado com a fundação da Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária (FAKB), em 1919, em um congresso com 150 delegados.
No quente ano de 1919, no auge da revolta global dos trabalhadores contra o capitalismo, os anarco-sindicalistas búlgaros (os primeiros grupos haviam se estabelecido em 1910) e o núcleo da antiga Federação Anarquista Macedônica e Búlgara (um núcleo que tinha sido fundado em 1909) chamaram o movimento para reorganizar-se. A Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária (FAKB) foi fundada em um congresso aberto pelo guerrilheiro anarquista Mikhail Gerdzhikov (1877-1947), um dos fundadores do Comitê Revolucionário Clandestino Macedônico (MTRK) em 1898 e comandante de seu Corpo de Primeira Linha na Revolta Macedônica de 1903 (SCHMIDT, 2009, p. 7).
De acordo com Schmidt (2009, p. 9), na Bulgária, a FAKB protagonizou experiências relevantes envolvendo sindicalismo urbano e rural, cooperativas, guerrilha e mobilização de juventude; “a FAKB constituía-se em seções: sindical, guerrilheira, profissional e de juventude, o que a diferenciava em toda a sociedade búlgara”. Ela ajudou a fundar e fortaleceu organizações como “a Federação Búlgara de Estudantes Anarquistas (BONSF); uma federação de anarquistas artistas, escritores, intelectuais, médicos e engenheiros; e a Federação da Juventude Anarquista (FAM), que tinha extensões nas cidades, nos vilarejos e em todas as grandes escolas”.
Seu 5º congresso, em 1923, contou com 104 delegados e 350 observadores de 89 organizações, dando conta da ampla influência anarquista, possivelmente majoritária, entre os trabalhadores de Yambol, Kyustendil, Rodomir, vilarejo de Nova Zagora (em Khaskovo), Kilifarevo e Delebets, além da crescente influência em Sófia, Plovdiv, Ruse e outros centros. O crescimento da FAKB atraiu repressões severas da direita fascista que, entre 1923 e 1931, matou mais de 30 mil operários. Conforme ainda coloca Schmidt (2009, p. 16), nesse contexto, muitos militantes da FAKB foram assassinados; ainda assim, outros, que não haviam sido exilados, “formaram destacamentos de combate conhecidos como ‘cheti’ e envolveram-se em um importante esforço para coordenar um levante com o BKP [Partido Comunista Búlgaro] em 1923”, e também se envolveram em combates guerrilheiros, em 1925, juntamente com o BKP e a BZS [União Agrária Búlgara].
Entre 1926 e 1927, a FAKB adotou a “Plataforma” do grupo de exilados russos Dielo Truda[14], que sustenta a necessidade de uma organização anarquista programática, fundamentada na unidade ideológica, na unidade tática (método coletivo de ação), na responsabilidade coletiva e no federalismo, que teve impacto relevante sobre a elaboração de seu programa de 1945, a “Plataforma da FAKB”, a qual será abordada adiante.
Em 1930, na Bulgária, aponta Schmidt (2009, p. 23-25), destaca-se a influência anarquista na formação da Confederação Vlassovden, organização sindical rural, que se articulou em torno de múltiplas demandas: “redução da taxação direta ou indireta, dissolução dos cartéis agrários, assistência médica gratuita para os camponeses, seguro e aposentadoria para os trabalhadores agrícolas e a autonomia da comunidade”. Espalhando-se rapidamente, o chamado “sindicalismo vlassovden” chegou, no ano seguinte, a estar representado em 130 seções da confederação, possibilitando um “grande avanço das organizações e publicações anarquistas, de modo que o movimento anarquista, naquele momento, pode ser colocado como a terceira maior força na esquerda, depois da BZS e do BKP”. Durante a Revolução Espanhola (1936-1939), 30 anarquistas búlgaros lutaram como voluntários nas milícias anarquistas.
Entre 1941 e 1944, uma guerrilha anarquista combateu o nazi-fascismo, aliando-se à Frente Patriótica na organização da insurreição de setembro de 1944 contra a ocupação nazista. Entretanto, com o Exército Vermelho substituindo os alemães como força de ocupação, estabeleceu-se uma aliança entre a direita e a esquerda – chamada de “aliança vermelha-laranja-marrom” (Schmidt, 2009, p. 33) – que reprimiu brutalmente os anarquistas. Os trabalhadores foram obrigados a entrar em um sindicato único, ligado ao Estado, em uma política claramente inspirada em Mussolini, e, em 1945, num congresso da FAKB, em Sófia, a milícia comunista prendeu os 90 delegados presentes, o que não impediu que o periódico da FAKB, Rabotnicheska Misl, chegasse, naquele ano, à tiragem de 60 mil exemplares por número. No fim dos anos 1940, de acordo com Schmidt (2009, p. 36), “centenas de anarquistas tinham sido executadas e cerca de 1000 militantes da FAKB foram mandados para os campos de concentração onde a tortura, os maus-tratos e a fome dos veteranos antifascistas (porém não-comunistas) [...] eram praticamente rotina”. Foi praticamente o fim da experiência da FAKB, iniciada em 1919.
Em um balanço dessa experiência organizativa, pode-se dizer que ela permite concluir que vários tipos de organização da classe trabalhadora são indispensáveis e entrelaçadas, sem subordinação de uma à outra: organizações ideológicas anarco-comunistas, sindicatos operários, sindicatos de agricultores, cooperativas e organizações culturais e de interesses específicos, por exemplo, de jovens e de mulheres (SCHMIDT, 2009, p. 42).
A prática da FAKB durante essas mais de duas décadas, assim como o aporte teórico que foi sendo produzido neste período, juntamente com a relação estabelecida com a “Plataforma” do Dielo Truda, refletiu-se, em 1945, num documento programático: a “Plataforma da Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária”. De acordo com esse documento, a FAKB previa, apoiando-se no dualismo organizacional, uma organização política anarquista e um movimento de massas da cidade e do campo, formado por sindicatos e cooperativas.
A organização política anarquista reúne os anarquistas, por meio de princípios político-ideológicos anarco-comunistas, articulando-os regionalmente, com as seguintes tarefas fundamentais:
O desenvolvimento, a realização e a difusão das ideias anarco-comunistas; O estudo de todas as questões atuais e vitais da vida cotidiana das massas trabalhadoras e os problemas da reconstrução social; A luta multifacetada pela defesa de seu ideal social e pela causa do povo trabalhador; A participação na criação de grupos de trabalhadores, no nível da produção, profissão, troca e consumo, cultura e educação, e todas as outras organizações que podem ser úteis na preparação da reconstrução social; A participação armada em toda insurreição revolucionária; A preparação e a organização destas insurreições; A utilização de todos os meios corretos que possam conduzir à revolução social (FAKB, 2009, pp. 61-62).
Os anarquistas também participam dos movimentos de massas, em especial os sindicatos e as cooperativas. Os sindicatos de trabalhadores devem articular a força dos trabalhadores – a partir de uma articulação por local de trabalho ou categoria, baseando-se no federalismo, na ação direta e na autonomia/independência de classe – e suas tarefas fundamentais são:
A defesa dos interesses imediatos da classe trabalhadora; A luta pela melhoria das condições de trabalho dos trabalhadores; O estudo dos problemas da produção; O controle da produção e a preparação ideológica, técnica e organizacional para a reconstrução social radical, na qual estas organizações terão a obrigação de assegurar a produção industrial (FAKB, 2009, pp. 63-64).
As cooperativas agrícolas articulam o campesinato sem-terra e os pequenos proprietários que não exploram o trabalho de outros, com as seguintes tarefas:
Defender os interesses dos camponeses sem-terra, com pouca ou pequenas parcelas de terra; Organizar os grupos de produção agrícola para estudar os problemas da produção agrícola; Preparar-se para a futura reconstrução social, na qual estas organizações serão as pioneiras na reorganização da produção agrícola, visando assegurar a subsistência de toda a população (FAKB, 2009, pp. 64-65).
A experiência da FAKB, que se reflete neste documento programático, apresenta elementos históricos relevantes para a compreensão do dualismo organizacional anarquista.
Apontamentos conclusivos
A relevância da discussão sobre as questões organizativas do anarquismo é dupla. Por um lado, ainda é necessário abordar o anarquismo seriamente, contrapondo argumentos sustentados por seus adversários e inimigos, na intenção de proporcionar um conhecimento mais adequado dessa ideologia/doutrina política e de seus principais debates. Por outro, o aprofundamento da discussão sobre o dualismo organizacional pode contribuir com o debate contemporâneo acerca da organização das classes oprimidas[15], trazendo elementos para a reflexão daqueles que se interessam por movimentos de resistência e luta contra a dominação em geral, e o capitalismo e o Estado em particular.
Referências Bibliográficas
BAKUNIN, Mikhail. Carta a Morago de 21 de maio de 1872. In: CD-ROM Bakounine: Ouvres Completes. IIHS de Amsterdã, 2000a.
______. Carta a Cerretti de 13-27 de março de 1872. In: CD-ROM Bakounine: Ouvres Completes. IIHS de Amsterdã, 2000b.
______. Status Secrets de l’Alliance: programme et objet de l’organization révolutionnaire des frères internationaux. In: CD-ROM Bakounine: Ouvres Completes. IIHS de Amsterdã, 2000c.
______. Status Secrets de l’Alliance: organization de l’Alliance des frères internationaux. In: CD-ROM Bakounine: Ouvres Completes. IIHS de Amsterdã, 2000d.
______. Aux compagnons de la Fédération des sections internationales du Jura. In: CDROM Bakounine: Ouvres Completes. IIHS de Amsterdã, 2000e.
______. A Política da Internacional. São Paulo: Imaginário/Faísca, 2008.
CORRÊA, Felipe. Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário: uma resenha crítica do livro de Edilene Toledo a partir das visões de Michael Schmidt, Lucien van der Walt e Alexandre Samis. In: Ideologia e Estratégia: anarquismo, movimentos sociais e poder popular. São Paulo: Faísca, 2011.
______. Rediscutindo o Anarquismo: uma abordagem teórica. São Paulo: USP (Mudança Social e Participação Política), 2012.
______. Surgimento e Breve Perspectiva Histórica do Anarquismo (1868-2012). São Paulo: Biblioteca Virtual Faísca, 2013.
DUNOIS, Amédée. Anarquismo e Organização. In: Anarkismo.net, 2010. Disponível em: http://www.anarkismo.net/article/16943.
ERRANDONEA, Alfredo. Sociologia de la Dominación. Montevideu/Buenos Aires: Nordan/Tupac, 1989.
FAKB (Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária). Plataforma da Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária. In: SCHMIDT, Michael. Anarquismo Búlgaro em Armas. São Paulo: Faísca, 2009.
GALLEANI, Luigi. The Principal of Organization to the Light of Anarchism. Anarchist Library, 2011. Disponível em: http://theanarchistlibrary.org/library/luigi-galleani-theprincipal-of-organization-to-the-light-of-anarchism.
KOLPINSKY, N. Y. Epílogo. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LÊNIN, Vladimir. Acerca del Anarquismo y el Anarcosindicalismo. Moscou: Progresso, 1976.
MALATESTA, Errico. Sindicalismo: a crítica de um anarquista. In: Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: LP&M, 1998.
______. A Organização II. In: Escritos Revolucionários. São Paulo: Imaginário, 2000a.
______. A Organização das Massas Operárias contra o Governo e os Patrões. In: Escritos Revolucionários. São Paulo: Imaginário, 2000b.
______. Ideologia Anarquista. Montevidéu: Recortes, 2008.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LÊNIN, Vladimir. Acerca del Anarquismo y el Anarcosindicalismo. Moscou: Progresso, 1976.
MONATTE, Pierre. Em Defesa do Sindicalismo. In: Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: LP&M, 1998.
NETTLAU, Max. Errico Malatesta: la vida de un anarquista. Rosário: Pensamiento y Voluntad, 2012.
SCHMIDT, Michael. Anarquismo Búlgaro em Armas: a linha de massas anarco-comunista. Vol. I. São Paulo: Faísca, 2009.
______. Brève Histoire de L’Anarchisme. Quebec: Lux, 2012.
SCHMIDT, Michael; VAN DER WALT, Lucien. Black Flame: the revolutionary class politics of anarchism and syndicalism. Oakland: AK Press, 2009.
______. Global Fire: 150 fighting years of international anarchism and syndicalism. Oakland: AK Press, no prelo.
SILVA, Rafael V. Os Revolucionários Ineficazes de Hobsbawm: reflexões críticas de sua abordagem do anarquismo. In: ITHA, 2013. Disponível em: http://ithanarquista.wordpress.com/2013/02/20/rafael-v-da-silva-os-revolucionariosineficazes-de-hobsbawm/
[1] Dentre os estudos produzidos nos últimos anos, que tomam por base cortes históricos e geográficos amplos – trabalham com uma periodização de longo prazo, autores e episódios de diversos países e continentes –, podem-se citar: Corrêa, 2012; Corrêa, 2013; Schmidt e van der Walt, 2009; Schmidt, 2012; Schmidt e van der Walt, no prelo; Silva, 2013.
[2] Trata-se da noção de que as massas se mobilizam por si mesmas, sem necessidade de organização, articulação ou preparação prévias, podendo, assim, chegar a prover processos de transformação de grande envergadura. Diferencia-se, portanto, da noção de “espontaneidade”, componente inevitável de qualquer mobilização popular transformadora.
[3] De acordo com Corrêa, (2012, pp. 168-186), são três os debates centrais entre os anarquistas, tomando como base sua continuidade e permanência, e que constituem os fundamentos da definição de suas correntes (anarquismo de massas e anarquismo insurrecionalista): posições favoráveis e contrárias à organização; posições favoráveis e contrárias aos ganhos de curto prazo (reformas); posições distintas em relação ao contexto de utilização e a função da violência. Além disso há um quarto debate relevante, transversal às correntes anarquistas, sobre o modelo da organização específica anarquista.
[4] Conforme apontam Schmidt e van der Walt (2009), em seus 150 anos de história, movimentos populares por local de trabalho e moradia constituíram vetores sociais do anarquismo; constituídos sobre bases classistas, combativas, independentes, autogestionárias e revolucionárias, esses movimentos fortaleceram a intervenção social anarquista.
[5] As posições antiorganizacionistas possuem, historicamente, eco significativo entre os anarquistas, mas, conforme demonstram Schmidt e van der Walt (2009), foram sempre minoritárias em relação às outras duas, organizacionistas; com frequência, as primeiras incorporaram argumentos individualistas externos ao anarquismo, de autores como Max Stirner e Friedrich Nietzsche.
[6] O sindicalismo de intenção revolucionária foi, durante o século XX, conforme colocam Schmidt e van der Walt (2009), a posição estratégica hegemônica do anarquismo em nível global, desdobrando-se, principalmente, no sindicalismo revolucionário e no anarco-sindicalismo.
[7] Ainda que, conforme Schmidt e van der Walt (2009), seja historicamente minoritário em relação ao sindicalismo de intenção revolucionária.
[8] Neste momento, elaboram-se as linhas gerais da teoria do dualismo organizacional anarquista de Bakunin. A teoria da organização política anarquista foi desenvolvida por Bakunin, em escritos e cartas, a partir de 1868, quando foi formada a ADS; escritos sobre o tema elaborados antes disso não são ainda plenamente anarquistas e, por isso, não são aqui utilizados.
[9] Sua maior realização histórica concreta foi a criação da AIT em países onde ela ainda não existia e a criação de novas seções da Internacional onde ela já estava em funcionamento; tais foram os casos da Espanha, da Itália, de Portugal e da Suíça, além de casos na América Latina, estimulados por correspondências. (Corrêa, 2013)
[10] De acordo com Corrêa (2012), entre os anarquistas, em geral, os fundamentos sociais dessa transformação revolucionária envolvem a substituição da dominação em nível sistêmico, com destaque para a dominação de classe, por um sistema de autogestão generalizada nas três esferas (econômica, política e cultural) e uma sociedade sem classes. Os anarquistas propõem substituir, por meio de um processo revolucionário: a exploração econômica capitalista pela socialização da propriedade, a dominação política do Estado pelo autogoverno democrático, a dominação ideológica e cultural da religião, da educação e, mais recentemente, da mídia, por uma cultura autogestionária. Trata-se, assim, de uma crítica à dominação em geral, com ênfase na dominação de classe, e uma proposição de autogestão generalizada.
[11] De acordo com Corrêa (2011), essa posição não implica em uma defesa do “apoliticismo”, mas numa concepção de que os movimentos de massas não devem subordinar-se ou vincular-se a uma posição político-doutrinária determinada; um sindicato revolucionário “anarquista”, por exemplo, como na concepção anarco-sindicalista, tenderia, assim, a afastar trabalhadores com outras concepções. Trata-se de considerar que os movimentos devem abarcar as diferentes posições político-doutrinárias e que uma posição política não pode subordinar os movimentos populares. A posição de Bakunin, assim como a dos sindicalistas revolucionários, anarquistas ou não, sustenta que os movimentos populares devem articular-se em torno de bandeiras concretas que unam os trabalhadores sem um vínculo programático com qualquer doutrina política ou religiosa. Segundo sustentam, os debates entre as diferentes posições políticas deveriam se dar dentro dos movimentos, mesmo que sem apontar para a criação, por exemplo, de sindicatos comunistas, católicos etc.; dentro de um sindicato deveriam estar todos os trabalhadores dispostos a lutar, independente de suas posições políticas ou crenças religiosas.
[12] A proposta de organização política de Bakunin implica um modelo, tomando por base a discussão clássica dos “modelos de partido”, em um “partido de quadros” que não concorre às eleições e tem os movimentos populares como campo de atuação; por razão de priorizar a qualidade e não a quantidade de membros e pelo fato de possuir critérios rigorosos de seleção e de ingresso diferencia-se dos “partidos de massa”, que priorizam a quantidade e cujos critérios de participação são bem amplos; filia-se, em geral, quem quer. Esse modelo de organização política difere do modelo leninista de partido em dois aspectos fundamentais. O primeiro, em relação à organização interna; ao passo que o partido bakuniniano é federalista, com as decisões sendo compartilhadas coletivamente, de baixo para cima, de maneira autogestionária, o partido leninista defende o centralismo democrático, que as bases são consultadas mas as decisões são tomadas pela direção, de cima para baixo, sendo a base obrigada a acatá-las. O segundo, na relação com os movimentos de massas; se o partido bakuniniano defende uma atuação complementar entre partido e movimentos, sem qualquer tipo de hierarquia ou dominação exercida pelo partido; o partido leninista caracteriza-se por colocar-se acima do povo e, assim, defender a hierarquia entre partido e movimento e, dessa forma, exercer uma relação de dominação. Ao passo que o primeiro defende que o agente da transformação revolucionária é o movimento de massas, o segundo defende que é o partido.
[13] Assim, podem-se apontar duas diferenças fundamentais entre a teoria organizativa de Bakunin e aquela que será desenvolvida por Lênin, anos a frente. A organização política bakuniniana possui democracia interna e as decisões são tomadas de baixo para cima, e não por meio do “centralismo democrático”, que prevê a consulta às bases e a tomada de decisões de cima para baixo, da cúpula hierárquica para as bases. Além disso, a organização política bakuniniana funciona de maneira complementar aos movimentos de massa e não possui qualquer relação de hierarquia e/ou dominação em relação a eles; sua função é fortalecer o protagonismo desses movimentos, já que as massas devem ser as responsáveis pela transformação social revolucionária. Não se considera, como no leninismo, que os movimentos populares possuem somente capacidade para as lutas de curto prazo, com o partido devendo dotar-lhes de capacidade de longo prazo e, ele próprio, protagonizar a transformação.
[14] Dielo Truda. “Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários”, 1926. Disponível em: http://www.nestormakhno.info/portuguese/platform2/org_plat.htm.
[15] O conceito de classes oprimidas, aqui, fundamenta-se em Errandonea (1989). Trata-se de conceituar as classes sociais a partir da categoria dominação, que abarca a exploração. Assim concebidas, as classes sociais estariam para além da esfera econômica e das relações de trabalho; a luta de classes caracterizar-se-ia por dois amplos conjuntos de classes dominadas e dominantes, oprimidas e opressoras. As classes oprimidas são compostas por trabalhadores assalariados da cidade e do campo, camponeses, precarizados, marginalizados e pobres de maneira geral; as classes dominantes incluem, além da burguesia (proprietários dos meios de produção), ricos, gestores das grandes empresas, gestores do Estado como governantes, militares de alto escalão e juízes, além de parte significativa dos proprietários dos grandes meios de informação (mídia), dos líderes religiosos e daqueles que monopolizam estrategicamente o conhecimento.