Felipe Corrêa, Rafael Viana da Silva
Anarquismo, teoria e história
Os estudos do anarquismo e o contexto atual
A problemática dos estudos do anarquismo
Senso comum e abordagens ideológicas
Estudos referenciais do anarquismo
Crítica às abordagens teórico-metodológicas prévias
Elementos teórico-metodológicos fundamentais
6.) A extensão e o impacto do anarquismo são amplos: de 1868 ao presente nos cinco continentes.
Os estudos do anarquismo e o contexto atual
Ainda que seja um fenômeno que existe, permanente e globalmente, há praticamente 15 décadas, e que esteja relacionado à parte significativa das mudanças sociais do mundo contemporâneo, o anarquismo é pouco estudado e, mesmo, pouco conhecido, dentro e fora da academia.
A motivação do primeiro estudo acadêmico sobre o anarquismo, realizado por Paul Eltzbacher (2004, p. 3), em 1900, foi a vontade de compreensão científica desse objeto, partindo da constatação sobre a “completa falta de idéias claras sobre o anarquismo”, “não somente entre as massas, mas entre acadêmicos e homens de Estado”. Realizando um levantamento bibliográfico de sua época, de maneira a analisar as definições vigentes desse objeto, o pesquisador constatou, nas distintas fontes encontradas, que:
Ora a lei suprema do anarquismo é descrita como uma lei histórica da evolução, ora é a felicidade do indivíduo, ora é a justiça. Ora dizem que o anarquismo culmina na negação de todo programa, que ele possui somente um objetivo negativo; ora, por outro lado, que seu aspecto negativo e destruidor é equilibrado por um aspecto afirmativo e criativo; ora, em conclusão, que o que é original no anarquismo relaciona-se exclusivamente às suas afirmações sobre a sociedade ideal, que sua essência verdadeira e real está em seus esforços positivos. Ora se diz que o anarquismo rejeita o direito, ora que ele rejeita a sociedade, ora que ele rejeita somente o Estado. Ora se declara que, na sociedade futura do anarquismo, não há vínculos contratuais ligando as pessoas; ora, por outro lado, que o anarquismo busca ter todas as questões públicas solucionadas por contratos entre comunas e sociedades federativamente constituídas. Ora se diz que, em geral, o anarquismo rejeita a propriedade, ou pelo menos a propriedade privada; ora se realiza uma distinção entre o anarquismo comunista e individualista, ou mesmo entre o anarquismo comunista, coletivista e individualista. Ora se declara que o anarquismo concebe a sua realização por meio do crime, especialmente por meio de uma revolução violenta e com o auxílio da propaganda pelo fato; ora, por outro lado, que o anarquismo rejeita as táticas violentas e a propaganda pelo fato, ou que esses não são, necessariamente, elementos constitutivos do anarquismo. (Eltzbacher, 2004, pp. 3-4)
Por meio das constatações de Eltzbacher, nota-se que havia, naquele momento, um problema, caracterizado pela dificuldade de compreensão do anarquismo e que envolvia sua definição, suas negações, proposições, estratégias e correntes. Mesmo que tenham se passado mais de cem anos de sua realização, e que sejam levados em conta os inúmeros esforços levados a cabo desde sua publicação para solucionar o problema por ele colocado, pode-se dizer que continuam havendo, ainda hoje, debates e discordâncias nas soluções e respostas dadas a esse problema fundamental.
Desde a publicação do estudo de Eltzbacher houve, basicamente, dois tipos de estudos que lidaram com o problema por ele colocado. Por um lado, uma produção militante, dos próprios anarquistas que, com função mais política do que científica, refletiu sobre os pontos em questão; alguns autores, como no caso de Piotr Kropotkin, buscaram conciliar as posições políticas e científicas, não sem grandes dificuldades. Por outro lado, uma produção acadêmica, que, bastante escassa, debruçou-se sobre algumas dessas questões. A escassez dos estudos levados a cabo nas universidades pode ser compreendida como resultado de um complicado contexto, do qual se podem destacar alguns aspectos.
Primeiramente, uma correlação de forças desfavorável entre o status-quo e as idéias contestadoras em geral. Pode-se dizer que, pelo fato de a produção de conhecimento – e, por isso, a educação e, particularmente, a universidade – constituir um dos pilares dos sistemas de dominação, é natural que investigações que, de certa maneira, coloquem em xeque pressupostos básicos destes sistemas, apresentem ou fortaleçam alternativas a ele, tendam a ser desfavorecidas. Em segundo lugar, uma correlação de forças desfavorável dentro do próprio campo contestador, que inclui a esquerda e o socialismo. Em termos históricos – principalmente após a ascensão do marxismo-leninismo, o estabelecimento da URSS e a bipolarização do mundo –, o fato de o anarquismo ter constituído uma corrente minoritária fez com que, com freqüência, se identificasse completamente esquerda e socialismo com o marxismo, num processo em que as experiências soviética, chinesa e cubana contribuíram significativamente. Em diversos países, os comunistas ocuparam muitos espaços militantes dos quais os anarquistas outrora se nutriam; as disputas de memória, nesse sentido, minimizavam ou negavam o tronco socialista do anarquismo.
Nesse contexto, o anarquismo foi, muitas vezes, apagado da história; em outros casos, ao ser tratado por seus adversários e/ou inimigos, foi completamente deturpado e/ou ridicularizado. Soma-se a isso o fato de, em diversos países, os marxistas terem, deliberadamente, decidido disputar espaço na academia, o que lhes proporcionou, em várias circunstâncias, condições para o estudo e a difusão de suas idéias, processo bastante beneficiado pelo apoio, inclusive financeiro, do antigo mundo “socialista”.
Os anarquistas, em geral, não vêm priorizando a universidade como um espaço de disputa e têm se dedicado, com freqüência, às produções próprias, com foco político-ideológico e militante, executadas e distribuídas, geralmente, em meio a imensas dificuldades. Ainda assim, há uma minoria que, ingressando na academia, tem encontrado alguns simpatizantes e conseguido recolocar o anarquismo em cena.
Para além dessas questões, mais políticas do que técnicas, há outra dificuldade, que é o acesso às fontes. No Brasil, o acesso às fontes primárias traduzidas ao português é restrito, como no caso das obras dos clássicos e autores anarquistas; fontes secundárias de qualidade, de estudos sobre o tema, também são escassas. É praticamente impossível realizar, hoje, uma pesquisa abrangente sobre o anarquismo, sem o estudo de obras em outros idiomas, as quais, também não são abundantes e nem sempre simples de serem encontradas.
Esse panorama explica, em grande medida, o motivo de o anarquismo ser pouco estudado – e, portanto, pouco compreendido – nas universidades. Conforme afirma Lucien van der Walt (s/d, p. 6), “mais do que qualquer outra ideologia moderna, o anarquismo tem sido mal-compreendido, inclusive pelos acadêmicos”. Segundo sustenta, “o anarquismo ‘não tem sido bem tratado na academia’; marginalizado no currículo universitário, suas visões continuam a não ser ‘completamente respeitáveis, em termosacadêmicos’”. Constatamos, sem dificuldades, que essas constatações do autor são verídicas.
Entretanto, há exceções; algumas produções – realizadas por anarquistas, pesquisadores simpáticos ao anarquismo e, em menor grau, acadêmicos comprometidos com o rigor metodológico –, lidando com todas as dificuldades em questão, conseguiram atingir excelente qualidade e proporcionar avanços significativos. Desenvolveram-se investigações sobre o anarquismo na História, nas Ciências Sociais, na Pedagogia, na Geografia, na Filosofia entre outras áreas do conhecimento.[1]
Muitas dessas pesquisas, buscando solucionar a problemática das fontes, têm se apoiado nas produções próprias dos anarquistas (jornais, panfletos, brochuras, livros, estudos etc.), as quais não são muito fáceis de encontrar, visto que estão dispersas e, diversas vezes, restritas ao universo dos próprios militantes; entretanto, iniciativas como o Arquivo Edgar Leuenroth, da UNICAMP; a Biblioteca Social Fábio Luz, do Rio de Janeiro; o Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ); e, mais recentemente, a Biblioteca Terra Livre, de São Paulo, oferecem possibilidades. Outras investigações têm se apoiado nas fontes de adversários dos anarquistas, como no material produzido por correntes distintas da esquerda e/ou do socialismo, e lidam com a problemática política anteriormente mencionada. Há, também, aquelas que têm se apoiado em material produzido por seus inimigos, como no caso de arquivos do Estado, incluindo os da polícia política.
Entre os anos 1960 e 1980 houve, globalmente, uma retomada do interesse nos estudos sobre o anarquismo, motivada, em grande medida, pela Nova Esquerda, potencializada pelo Maio de 1968 e pelo fim das ditaduras civis-militares em muitos países. Desenvolveram-se, nesse período, algumas das produções que constituem, até o presente, estudos referências do anarquismo. Num balanço histórico panorâmico, que leva em conta estudos realizados desde o século XIX até o presente, podemos dizer que, em meio a avanços significativos, proporcionados pelas várias pesquisas em questão, há, também, problemas significativos; permanecem, principalmente pela influência desses estudos de referência, elementos metodológicos, teóricos e históricos que complicam e limitam a continuidade das investigações.
O processo de globalização, fortalecido nos fins dos anos 1990 com o desenvolvimento e a generalização da internet, a reorganização e o aumento da visibilidade dos anarquistas no último período vêm contribuindo com uma mudança de contexto que oferece possibilidades imensas para as investigações em geral, e do anarquismo em particular. Duas delas merecem ser comentadas.
Primeiramente, as possibilidades abertas pela internet, que envolvem a melhoria no acesso e no compartilhamento das fontes e na comunicação entre os pesquisadores; hoje, sem grandes dificuldades, podem-se acessar materiais on-line, comprar livros atuais e antigos, mesmo os raros, contatar pessoas de dentro e de fora do país e trocar informações com outros pesquisadores. Isso, ao mesmo tempo, e em alguma medida, tem contribuído para a melhoria na qualidade dos estudos. Em segundo lugar, em termos globais, o crescimento das traduções e das publicações de obras anarquistas e de estudos sobre o tema, realizados, dentro e fora da internet, por novos projetos e editoras; especialmente no Brasil, houve, a partir dos anos 1980, um aumento significativo das traduções de obras clássicas e históricas do anarquismo, em especial as realizadas pela editora Novos Tempos / Imaginário.
Os estudos atuais do anarquismo inserem-se nesse complexo contexto, representado, por um lado, por todas as dificuldades relacionadas à pesquisa do anarquismo – tanto no que diz respeito às questões políticas, quanto os problemas que envolvem método, teoria e história, em especial na academia; por outro, por esse momento particularmente favorável às investigações.
O principal desafio colocado àqueles que hoje se debruçam sobre o estudo do anarquismo é solucionar os problemas precedentes e usufruir deste contexto, de maneira a avançar nas pesquisas, colocando-as em outro patamar. O contexto, apesar de ser favorável e oferecer possibilidades sem precedentes, não soluciona, por si só, todas essas questões; é necessário encontrar os entraves que têm impedido os avanços nas investigações e, debruçando-se sobre eles, avançar para compreensões e explicações mais adequadas do anarquismo.
Trabalhos que vêm buscando cumprir este desafio têm sido empreendidos por alguns pesquisadores, dentro e fora do Brasil, dentre os quais se destacam o dos africanos Michael Schmidt e Lucien van der Walt. Entre outras produções, eles vêm trabalhando, há mais de uma década, na série Counter-Power, que inclui dois livros: Black Flame: the revolutionary class politics of anarchism and syndicalism (Schmidt; van der Walt, 2009), de base teórica, e Global Fire: 150 fighting years of international anarchism and syndicalism (Schmidt; van der Walt, no prelo), de base histórica.[2]
A problemática dos estudos do anarquismo
As concepções vigentes de anarquismo têm estado profundamente permeadas de senso comum, abordagens completamente ideológicas[3] e problemas teórico-metodológicos. Isso tem contribuído significativamente para que o anarquismo não seja compreendido adequadamente.
Senso comum e abordagens ideológicas
Primeiramente, trataremos das abordagens que se pautam no senso comum. Os termos “anarquia” e seus derivados vêm sendo conceituados em termos de desordem, confusão, desorganização e caos. O Dicionário Online de Português[4], por exemplo, em sua conceituação de “anarquia”, inclui “desordem, confusão: uma instituição onde reina a anarquia; a anarquia dos espíritos”. O Dicionário Informal[5] coloca como sinônimos de “anarquia”: “bagunça, confusão, desordem, fuzarca, presepada, atrapalhação, babel, balbúrdia, caos, desarranjo, desorganização” e como antônimos “autoridade, ordem, organizado”. Mesmo autores que, em tese, defendem o anarquismo, como no caso de Hakim Bey (2003, p. 85), afirmam que “anarquISMO em última análise implica anarquia – e anarquia é caos”.
Na realidade, do ponto de vista histórico, esse senso comum vem sendo forjado há séculos, em grande medida como uma caricatura e um contra-imaginário produzido pelos adversários do anarquismo. No que tange ao campo político, as origens etimológicas do termo “anarquia” remetem-se, conforme sustenta Kropotkin (1987, p. 19), à sua raiz grega “an – e arke”, significando “contrário à autoridade”. George Woodcock (1998, p. 11) confirma essas raízes gregas do termo: “archon, que significa governante, e o prefixo an, que indica sem. Portanto, anarquia significa estar ou viver sem governo”.
Em alguma medida, essa noção foi adotada por pensadores clássicos da teoria política, que contribuíram com essa significação terminológica. Thomas Hobbes (2008, p. 159), em Leviatã, de 1651, afirma que anarquia “significa ausência de governo”; John Locke (2005, p. 560), em Segundo Tratado sobre o Governo, provavelmente de 1689, defende que a anarquia “muito se assemelha à ausência total de governo”; Jean-Jaques Rousseau (2010, pp. 56; 71), em Do Contrato Social, de 1762, coloca que “o Estado, dissolvido, cai assim no despotismo ou na anarquia” e que “quando o Estado se dissolve, o abuso do governo, qualquer que seja, toma o nome de anarquia”.
Essa utilização terminológica se fortalece no contexto da Revolução Francesa, conforme notam Alexandre Samis (2002, p. 47) e James Joll (1970, p. 48), o qual afirma que “anarquista” era “o termo adotado por Robespierre para atacar os da esquerda, de que se servira para os seus próprios fins, mas de quem resolvera se libertar”. Sans-cullotes franceses afirmavam serem seus amigos “aqueles a quem os aristocratas chamam anarquistas, facciosos, maratistas”.
Em suma, são bastante antigas as noções de que “anarquia” constitui ausência de governo e dissolução do Estado e, a partir da Revolução Francesa, de que “anarquistas” são aqueles que possuem um papel desagregador e nocivo para a sociedade, visto que, questionando o status-quo, o Estado, o governo, colocam em xeque a própria sociedade. A concepção de que Estado é sinônimo de sociedade, hegemônica durante significativo período, contribuiu amplamente para que a contraposição a ele significasse a destruição da sociedade e o próprio caos.
Entretanto, termo “anarquia” foi reivindicado positivamente, tanto em contextos isolados – como foi o caso do venezuelano Antonio Muñoz Tébar (apud Gonzáles, 2009) que, em 1811, defendeu, como forma para a república, a anarquia, dizendo ser ela a liberdade: “Senhores, que a anarquia, com a tocha das fúrias em mãos, nos guie ao congresso, para que sua fumaça embriague os facciosos da ordem e os siga pelas ruas e praças gritando: Liberdade!” –, quanto em casos mais conhecidos e relacionados aos movimentos populares – como foi o caso de Pierre-Joseph Proudhon (1988, p. 233-237) que, em 1840, afirmou ser anarquista, entendendo por isso uma oposição aberta ao governo dos homens pelos homens e a “ausência de senhor, de soberano”. No Brasil, ainda antes de 1890, em uma das matérias publicadas em Província de São Paulo, Euclides da Cunha, à época simpático a Proudhon, escreve: “Nós (os republicanos), podíamos perfeitamente levantar esta palavra (a anarquia), que se nos atira como um armamento inquebrável; podíamos revestir-nos do título de anarquistas”. (Cf. Lopes, 2004, p. 27)
Ainda assim, o sentido comum atribuído aos termos “anarquia” e seus derivados continuou a existir e grandes anarquistas da primeira onda[6], como foram os casos de Mikhail Bakunin e James Guillaume, conforme apontam Marianne Enckell (1991, p. 199) e René Berthier (2010, p. 127), tiveram reticências em relação à utilização dos termos, justamente por razão do senso comum que existia em torno deles. Foi somente a partir da cisão da Primeira Internacional, em 1872, e da fundação, naquele mesmo ano, da Internacional Antiautoritária, uma associação popular e operária que reuniu a maior parte dos anarquistas europeus, que o termo “anarquia” e seus derivados passaram a ser utilizados mais constantemente pelos próprios anarquistas. Ainda assim, apesar dos esforços contrários dos anarquistas, o senso comum vem subsidiando, até o presente, a compreensão de grande parte da sociedade.
Em segundo lugar, enfocaremos as abordagens completamente ideológicas, em geral relacionadas aos adversários políticos do anarquismo. Especialmente o marxismo tem contribuído, tanto em termos político-ideológicos, quanto dentro das universidades, para que o anarquismo seja considerado uma doutrina pequeno burguesa, liberal, idealista, individualista, espontaneísta, contrária à organização e ligada essencialmente aos camponeses e artesãos do “mundo atrasado” em declínio.
A relação entre o anarquismo, o idealismo e o individualismo já se encontra nas obras de Karl Marx e Friedrich Engels. Marx (1976, p. 23) critica os proudhonianos franceses da Primeira Internacional, falando no “individualismo antiautoritário desses senhores”, que defenderiam a economia burguesa vulgar, “à maneira do idealismo proudhoniano”. Engels (1976, p. 162) afirma ser Max Stirner “o profeta do anarquismo moderno”. Lênin (1976, pp. 173-174), na esteira de Marx e Engels, mas ideologizando ainda mais, enfatiza que “o anarquismo é o individualismo burguês invertido. O individualismo como base de toda a concepção de mundo do anarquismo”. Dentre os aspectos constitutivos do anarquismo ele lista: a “defesa da pequena propriedade”, a negação das decisões por maioria, a “incompreensão do desenvolvimento da sociedade – papel da grande produção – na transformação do capitalismo em socialismo”, a “incompreensão da luta de classes do proletariado”, a “negação absurda da política na sociedade burguesa”, a “incompreensão do papel da organização e da educação dos operários”. Enfim, o anarquismo, em sua história, não teria produzido, para Lênin, “nenhuma doutrina, nenhum ensinamento revolucionário, nenhuma teoria”. Kolpinsky, ao reafirmar as posições leninistas em sua reflexão sobre o anarquismo, coloca:
Esta doutrina, alheia ao proletariado por seu conteúdo de classe, substitui o pensamento revolucionário pela fraseologia dogmática; a autêntica organização proletária pelo sectarismo; a tática bem pensada, baseada em uma análise serena dos fatores objetivos, pelo aventureirismo, nascido de concepções voluntaristas; a análise científica das leis do desenvolvimento social por sonhos utópicos sobre a liberdade absoluta do indivíduo. (Kolpinsky, 1976, p. 333)
Eric Hobsbawm (1985, pp. 96; 91) argumenta que o anarquismo fundamenta-se em “versões extremadas do liberalismo individualista”, “não tem qualquer contribuição significativa a fazer à teoria socialista” e apóia-se no atrativo “emocional e não intelectual”. Em termos históricos, Hobsbawm (1985, pp. 90-92) continua: o anarquismo pertence “ao período pré-industrial e, em todo caso, à era anterior à Primeira Guerra Mundial e à Revolução de Outubro, exceto na Espanha”; “como movimento revolucionário” foi “ideado quase para o fracasso” constituindo “um capítulo definitivamente encerrado no desenvolvimento dos movimentos revolucionários e operários modernos”.
Tais abordagens não possuem qualquer fundamento histórico ou teórico e fundamentam-se, na maioria dos casos, em um “senso comum douto”[7], uma transcrição do discurso do senso comum para o campo científico, mas, ainda assim, senso comum. Elas têm servido somente para a disputa política; por meio da desqualificação dos adversários tem-se visado fortalecer o próprio campo. Fatores como o financiamento que as produções marxistas receberam do antigo “mundo socialista” e a inserção acadêmica de pensadores vinculados ao marxismo têm contribuído com a difusão dessas visões.
Estudos referenciais do anarquismo
Em terceiro lugar, sairemos do senso comum e das produções ideológicas. Avaliaremos sete estudos referenciais do anarquismo[8] que, juntamente com alguns outros, vêm sendo realizados por autores em alguma medida simpáticos ao anarquismo, e que avançam significativamente – em termos históricos e teóricos e, portanto, científicos – em relação às abordagens previamente mencionadas. Dentre esses estudos, que sem dúvidas possuem inúmeros méritos, em especial se considerarmos o contexto em que foram produzidos, e que têm subsidiado investigações posteriores, dois deles se destacam: O Anarquismo: da doutrina à ação, de Daniel Guérin (1968) e o Anarchist FAQ, de Iain McKay (2008). Ainda assim, todos esses estudos, incluindo esses dois mais destacados, não estão isentos de problemas teórico-metodológicos, que subsidiam uma série de conclusões equivocadas.
Consideramos imprescindível realizar uma crítica das limitações desses estudos, ainda que seja uma crítica generosa, que reconhece sua importância, em seu tempo e lugar e as dificuldades contextuais de sua produção; não se trata, por isso, de desqualificá-los, mas de identificar problemas precedentes de maneira a avançar nas pesquisas, colocando-as, conforme falamos, num patamar distinto.
Há nesses estudos pelo menos sete problemas, que serão discutidos a seguir: 1.) Conjunto restrito de autores e episódios tomados em conta nas investigações, assim como generalizações a partir de um restrita base de dados. 2.) Foco quase exclusivo na Europa Ocidental / eixo do Atlântico Norte. 3.) Foco nos grandes homens, com a utilização da história vista de cima. 4.) Abordagens ahistóricas, que vinculam o anarquismo à utilização terminológica e/ou à autoidentificação dos anarquistas. 5.) Abordagens teóricas sem base histórica e vice-versa. 6.) Desconsideração dos vetores sociais do anarquismo, em especial o sindicalismo de intenção revolucionária. 7.) Definições inadequadas de anarquismo que não permitem compreendê-lo adequadamente e nem diferenciá-lo de outras ideologias.
O conjunto restrito de autores e episódios e o foco em grande medida eurocêntrico aparecem em praticamente todo o conjunto desses estudos.
Eltzbacher (2004) trata do anarquismo a partir de uma abordagem teórica que se fundamenta na obra de “sete sábios”: William Godwin, Proudhon, Stirner, Bakunin, Kropotkin, Benjamin Tucker e Liev Tolstoi. Na maioria, esses autores são europeus; Eltzbacher não aborda episódios e movimentos em que o anarquismo esteve envolvido. Max Nettlau (2008; no prelo), ainda que tome um conjunto mais amplo de autores, em relação ao escopo geográfico aborda fundamentalmente a Europa ocidental e a Rússia, discutindo brevemente os Estados Unidos e dedicando ao leste Europeu, América Latina, Ásia e Oceania menos de 10% de seus dois volumes.
Woodcock (2002) dedica praticamente todo seu volume teórico à análise da produção de seis teóricos, todos europeus: Godwin, Stirner, Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Tolstoi. No volume que analisa a prática do anarquismo, o autor dedica em torno de 60% de seu conteúdo às análises de França, Espanha, Itália e Rússia; dedica somente algumas páginas à América Latina e aos Estados Unidos. Joll (1970), na parte teórica de sua obra, dedica-se ao estudo de idéias, lutas por liberdade e surgimento do socialismo, com o foco na Europa; dedica-se, também, ao estudo aprofundado da obra de Proudhon e Bakunin. A parte prática – tanto os debates estratégicos que envolvem a propaganda pelo fato, quanto o sindicalismo, além das experiências revolucionárias – tem foco principalmente na Europa. Guérin (1968) fundamenta sua elaboração teórica, basicamente, em três autores: Proudhon, Bakunin e Stirner; a partir da prática de fenômenos revolucionários na Europa Ocidental e na Rússia, trabalha com uma bibliografia basicamente européia, sem também dedicar espaço a outros continentes.
Peter Marshall (2010) elabora quase que toda sua reflexão teórica de mais de 200 páginas com a análise de dez autores – Godwin, Stirner, Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Élisée Reclus, Errico Malatesta, Tolstoi, Emma Goldman e Mahatma Gandhi –, na grande maioria, europeus. Em seu volume de mais de 800 páginas dedica menos de 10% aos estudos da Ásia e da América Latina; África e Oceania não são abordadas. McKay (2008) trabalha com um conjunto bem mais amplo de autores do que a maioria dos estudos de referência. Ainda assim, destacam-se significativamente os clássicos europeus e os autores norte-americanos.
Além disso, a maioria desses estudos utiliza um modelo de história das idéias políticas, que prioriza a análise e o comentário das grandes obras, dos “grandes homens”. O anarquismo – em especial nos casos de Eltzbacher (2004), Woodcock (2002), Joll (1970), Guérin (1968) e Marshall (2010) – é conceituado a partir de um conjunto restrito de seus “grandes representantes”.
Outro problema desses estudos – em especial os de Marshall, Nettlau e Woodcock – é que o anarquismo não é situado historicamente; para esses autores, o anarquismo sempre teria existido e constituiria, assim, um fenômeno ahistórico, sem relação com o contexto. Marshall (2010, pp. 3-4) considera que o “primeiro anarquista foi a primeira pessoa que sentiu a opressão de outra e rebelou-se contra ela” e que o anarquismo é uma “tendência reconhecível na história humana”, cuja origem deve ser buscada “milhares de anos atrás”. Nettlau (2008, no prelo) inicia sua história do anarquismo um capítulo que vai desde Zenão (333-264 a.C.) até a Revolução Francesa. Woodcock (2002, vol. I, p. 40) também remete o anarquismo aos tempos remotos, identificando elementos anarquistas nas obras de filósofos como “Lao Tsé e Zenão, Étienne de la Boetie, Fénelon e Diderot”, na Abadia de Thélème e em Rabelais, “com seu lema libertário: ‘Faça o que quiser!’”, e também em movimentos religiosos como “anabatistas, hussitas, os doukhobors e os essenes”, além do próprio Jesus Cristo.
Os estudos referenciais também se utilizam de um recurso de partir da análise etimológica do termo “anarquia” e seus derivados para chegar a um conceito de anarquismo, como são os casos de Woodcock (2002, vol. I, p. 8) e Marshall (2010, p. 3). Woodcock (1998, p. 11), conforme mencionado, explica as origens gregas da palavra anarquismo e afirma: “anarquia significa estar ou viver sem governo”. Ainda que Guérin (1968, p. 19-20) e McKay (2008, p. 19-21) façam referência às análises etimológicas, não as tomam como fundamento para suas definições do anarquismo.
Woodcock e McKay apóiam-se na autoidentificação como um critério fundamental para definir quem são os anarquistas e, assim, o que é o anarquismo. Woodcock (2002, vol. I, p. 17) sustenta que o anarquismo “existe na Europa desde 1840 ininterruptamente”, um marco que certamente se refere à utilização positiva que Proudhon (1988, p. 233-237) fez do termo “anarquia”, em O que é a Propriedade? Ainda que não se apóie nesse critério de maneira absoluta, McKay (2008) toma em conta, em diversos momentos, individualistas como Susan Brown, Tucker, o periódico Anarchy: a journal of desire armed, primitivistas como John Zerzan e o periódico Green Anarchy que, para além do fato de se considerarem anarquistas, não possuem muito em comum com os princípios históricos do anarquismo.
Podemos notar que a problemática da relação interdependente entre teoria e história, já notada e discutida por Eltzbacher (2004), continua a complicar estudos do anarquismo. Sua obra tem como foco o pensamento dos autores considerados anarquistas e não os movimentos históricos com os quais estiveram envolvidos. Outras obras, distintamente – como Nettlau (2008, no prelo), Woodcock (2002), Joll (1970) e Marshall (2010) –, buscam abordar o anarquismo conectando teoria e história. O problema dessas obras, parece-nos, está ligado à maneira de estabelecer essa relação. Teorizações são freqüentemente realizadas sem respaldo histórico e as seleções de autores e episódios históricos, também, com freqüência, não obedecem aos critérios teóricos estabelecidos pelos próprios autores.
Outro ponto crítico que tem sido relativamente comum é a realização de estudos do anarquismo que tomam em conta exclusivamente militantes, periódicos ou grupos/organizações que se reivindicavam explicitamente anarquistas, deixando de lado as lutas sociais com as quais os anarquistas estiveram envolvidos e foram, muitas vezes, a força hegemônica, como no caso do sindicalismo revolucionário e do anarco-sindicalismo. Dos estudos referenciais que abordam as lutas sociais, podemos dizer que a maioria deles, conforme apontamos, prioriza os personagens de destaque em relação aos processos de mobilização e os movimentos populares neles envolvidos.
No caso específico do sindicalismo de intenção revolucionária, a posição de Joll (1970, pp. 244), que coloca Georges Sorel como um de seus grandes teóricos, é um dos fatores que tem permitido o afastamento desse sindicalismo de suas origens anarquistas: “a admiração de Sorel pelo proletariado, pela ação direta e pela violência revolucionária, que o aproximaram dos anarquistas militantes e o levaram a ser olhado como o teórico do anarco-sindicalismo”. Há outros autores que vão ainda mais longe, como Edilene Toledo (2004, p. 12) que, juntamente a outros historiadores, vem defendendo que o sindicalismo revolucionário deve ser considerado como uma ideologia distinta e concorrente do anarquismo. O sindicalismo revolucionário constituiria, para ela, uma ideologia própria, “um movimento que, em várias partes do mundo, se transformara em uma corrente política autônoma em relação ao anarquismo e o socialismo”.
Finalmente, esses estudos referenciais apresentam definições de anarquismo que não conseguem identificar seus traços fundamentais e nem diferenciá-lo de outras ideologias. Isso ocorre especialmente com as definições que conceituam o anarquismo como sinônimo de luta contra a dominação (ou contra a autoridade), em geral, ou como antiestatismo, em particular; isso subsidia, para alguns autores, a afirmação do anarquismo como uma doutrina que é a antítese do marxismo.
Nettlau (2008, p. 27) afirma que “uma história da idéia anarquista é inseparável da história de todas as evoluções progressivas e das aspirações à liberdade”. Woodcock (2002, vol. I, p. 7) enfatiza que “todos os anarquistas contestam a autoridade e muitos lutam contra ela”. Marshall (2010, p. 3), embora considere ser “enganoso dar uma definição clara de anarquismo”, afirma: “todos os anarquistas rejeitam a legitimidade do governo exterior e do Estado e condenam a autoridade política, a hierarquia e a dominação impostas”. Tais posições relacionam-se à afirmação de Sébastien Faure (1998, p. 58): “quem nega a autoridade e luta contra ela é um anarquista”. De acordo com a discussão conceitual dos estudos de referência do anarquismo realizada em Corrêa (2012a, pp. 29-36), pode-se afirmar que as definições de anarquismo de Nettlau, Woodcock e Marshall, assim como a de Faure, caminham no sentido de definir o anarquismo como sinônimo de luta contra a dominação.[9]
Eltzbacher (2004, p. 292) conceitua o anarquismo como sinônimo de antiestatismo: “os ensinamentos anarquistas têm em comum apenas uma coisa: eles negam o Estado no futuro”, concepção também utilizada por autores como Kedward (1971) e Jacker (1968). Para Horowitz (1982, p. 23), o classismo, a crítica da propriedade privada e da centralização do poder pertencem exclusivamente ao socialismo marxista e, assim, são estranhos ao anarquismo. Também no campo das definições amplas, ainda que num outro sentido, Joll (1970) define o anarquismo como uma busca da transformação social e da crença na racionalidade humana e na possibilidade do aperfeiçoamento humano.
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Há inúmeras conclusões equivocadas que derivam desses problemas, dentre as quais apontamos seis, que sustentam que o anarquismo: 1.) É sinônimo de luta contra a dominação, antiestatismo e/ou antítese do marxismo; 2.) Constitui uma ideologia incoerente; 3.) Não teve um impacto popular significativo; 4.) Praticamente terminou depois da derrota na Revolução Espanhola, em 1939, episódio que, inclusive, constitui uma exceção na história anarquista, por ter sido um dos poucos casos em que converteu-se em um significativo movimento de massas; 5.) Mobilizou bases classistas restritas, restringindo-se aos camponeses e artesãos em declínio, não conseguindo adaptar-se ao capitalismo industrial; 6.) Fundamenta-se em bases idealistas, espontaneístas, individualistas e juvenis.
As definições de anarquismo mencionadas anteriormente – elaboradas por Nettlau, Woodcock, Marshall, Faure, Eltzbacher, Kedward, Jacker e Horowitz – que conceituam o anarquismo como sinônimo de luta contra a dominação, antiestatismo e/ou antítese do marxismo, apresentam problemas teórico-metodológicos e, de fato, não definem adequadamente o anarquismo. As definições do anarquismo como luta contra a dominação não permitem situá-lo historicamente, e nem distingui-lo de outras lutas antiautoritárias que foram levadas a cabo durante a história. Conceituar o anarquismo como sinônimo de antiestatismo tem permitido extrapolações que beiram o absurdo, quando, por exemplo, Marshall (2010, p. 559-565) fala em uma corrente “anarco-capitalista” e inclui entre os anarquistas Margareth Thatcher, Buda, Marques de Sade, Che Guevara e outros.
Eltzbacher (2004, p. 270) concluiu que os sete sábios do anarquismo, em geral, “nada têm em comum”; Joll (1970, p. 29) afirma que “foi o conflito entre estes dois tipos de temperamento, o religioso e o racionalista, o apocalíptico e o humanista, que tornou a doutrina anarquista tão contraditória”; Kedward (1971, p. 6) afirma que “nunca surgiu um programa coerente do anarquismo”. Essa incoerência apontada pelos autores motivo de celebração por outros autores. Tal é o caso de Marshall (2010, p. 3) e de McKay (2008, p. 18), que consideram que o antidogmatismo do anarquismo permite abarcar todas essas concepções e, de algum modo, conciliá-las. Guérin (1968, p. 12), também nesse sentido, afirma: “malgrado a variedade e a riqueza do pensamento anarquista, malgrado as suas contradições [...] estamos perante um conjunto de concepções muito homogêneas”. Essas posições consideram que não há grandes contradições entre Stirner e Bakunin, ou entre Tucker e Kropotkin; em alguns casos, elas têm subsidiado posições como as de Caio T. Costa (1990, p. 7; 12), que falam na existência de “anarquismos”, definidos por distintas e inconciliáveis maneiras de se conceber o próprio anarquismo. Ou, segundo uma versão mais extremada e igualmente problemática: “há tantos anarquismos quanto anarquistas”, já que, segundo uma análise baseada na “ereção do texto em objeto fechado e auto-suficiente” (Bourdieu, 2004, p. 19), a singularidade/distinção de seus teóricos seria tão grande, que justificaria a adoção do conceito no plural.
Kedward (1971, p. 120) enfatiza que o “ideal da anarquia nunca foi popular, que ele encontrou a oposição de todas as classes e de todas as idades”. Horowitz (1982, p. 9) aponta o “desaparecimento virtual do anarquismo como um movimento social ‘organizado’”; ele considera que o anarquismo não somente teria desaparecido nos anos 1930 ou 1960 como um movimento social organizado, da maneira como sustentam outros autores. Para ele, o anarquismo nunca teria ultrapassado um ideal utópico, sem impacto popular relevante.
Woodcock (2002, vol. II, p. 295), ainda que tenha revisado sua afirmação posteriormente, coloca que a perda da Revolução Espanhola “foi a última e a maior derrota do movimento anarquista histórico. Nesse dia, virtualmente deixou de existir como uma causa viva. Restaram tão-somente anarquistas e a idéia anarquista.” Guérin (1968, p. 155) enfatiza, de maneira semelhante, que “a derrota da Revolução Espanhola privou o anarquismo do seu único bastião no mundo”.
Joll (1970, p. 325), fundido os argumentos do fim do anarquismo em 1939 e de sua incoerência, afirma: “quando olhamos para os repetidos fracassos do anarquismo em ação, fracassos que culminaram na tragédia da guerra civil espanhola”, enfatiza, poder-se-ia afirmar que “as contradições e as inconsistências da teoria anarquista, a dificuldade, se não a impossibilidade de pô-la em prática, parecem ilustradas pelas experiências dos passados cento e cinqüenta anos”.
Além disso, de acordo com Joll (1970, p. 327-328), o anarquismo sustenta-se em uma “visão romântica, saudosista, de uma sociedade do passado” composta por “artesãos e camponeses”, a qual lhe caracterizaria como algo antigo, do passado, e pouco adaptado para a sociedade industrial; trata-se de um argumento similar ao de Hobsbawm discutido anteriormente. Essa inadequação do anarquismo à sociedade moderna justificaria, segundo Woodcock (2002, vol. II, p. 293; 290), sua falta de influência: “as pessoas comuns das classes média e operária [...] rejeitaram a visão anarquista por que esta [...] carecia de concretismo e precisão tranqüilizadores que elas desejavam”. Essa inadequação ao presente também se demonstraria pela vontade dos anarquistas de voltar ao passado e pelo desenvolvimento do anarquismo, de maneira mais evidente, nas sociedades atrasadas: “os países e as regiões onde o anarquismo fez-se mais forte foram aqueles em que a indústria era menos desenvolvida e em que o pobre era mais pobre”.
Esse flerte com certo “primitivismo” seria, assim, uma característica inata do anarquismo e um dos fatores que o teria impedido de se desenvolver de maneira mais ampla, fundamentalmente entre o operariado urbano e industrial; a rejeição do anarquismo às lutas por reformas, conforme afirmam Woodcock (2002, vol. II, p. 293) e Joll (1970, p. 30; 327), sua política do “tudo ou nada”, teria reforçado esse distanciamento entre os anarquistas e os trabalhadores modernos.
Inadequado para a sociedade de seu tempo, o anarquismo possui, de acordo com Woodcock (2002, vol. I, p. 15; 23; 28), bases idealistas que “em muitos países teve muito pouco a ver com a realidade”. Além disso, ele afirma que o anarquismo sempre teve uma “visão naturalista da sociedade”, venerando “tudo que fosse natural, espontâneo e individual”, o que permite, conforme colocado por Joll (1970, p. 32-33) e Horowitz (1982, p. 16), relacioná-lo às idéias de Rousseau e sua concepção de natureza humana.
O individualismo, também de acordo com estudos referenciais, seria também uma característica básica do anarquismo. Sobre isso, Woodcock (2002, vol. I, p. 36) enfatiza que “a preocupação extremada com a soberania da escolha individual domina [...] as idéias anarquistas” e que, ao passo que a “democracia prega a soberania do povo”, o “anarquismo [defende] a soberania da pessoa”. “Rebeldes diletantes altamente individualistas” (Woodcock, 2002, vol. II, p. 292), os anarquistas, segundo Costa (1990, p. 11), “se é que se pode encontrar algo de comum entre eles, têm sempre em mira apenas o indivíduo, sem delegações, produtor, naturalmente em sociedade”.
Finalmente, Joll (1970, p. 330) afirma que “o ardente e irreprimível otimismo das doutrinas anarquistas terá sempre uma aceitação entre a juventude em revolta contra as concepções morais e sociais dos mais velhos”.
Reafirmamos que essas conclusões estão, a nosso ver, bastante equivocadas e a razão desses equívocos funda-se, pensamos, na problemática teórico-metodológica anteriormente discutida. Tentaremos, em seguida, apontar alguns caminhos para soluções desses problemas e buscar respostas para contrapor essas conclusões.
Anarquismo, teoria e história
Realizar uma discussão adequada do anarquismo implica realizar uma crítica às abordagens teórico-metodológicas prévias, presentes em grande medida nos estudos referenciais, e apresentar os elementos teórico-metodológicos sobre os quais compreendemos ser imprescindível que as novas investigações se apóiem, de maneira a solucionar os problemas discutidos. Nos dedicaremos, a seguir, a essa tarefa. Partido desses elementos, elaboraremos na seqüência um conjunto de sete teses sobre o anarquismo, que tem por objetivo apresentar as principais conclusões que temos extraído das investigações realizadas por meio desse novo aparato teórico-metodológico, que consideramos ser mais adequado que os antigos.
Crítica às abordagens teórico-metodológicas prévias
Conforme vêm demonstrando novas pesquisas sobre o anarquismo – como os estudos de Michael Schmidt e Lucien van der Walt (Schmidt e van der Walt, 2009, no prelo; van der Walt e Hirsch, 2010a, Schmidt, 2012a) e nossas próprias produções (Corrêa, 2012a, 2013; Silva, 2013) –, o anarquismo é um fenômeno global, com presença permanente nos cinco continentes do mundo, há praticamente 15 décadas, ainda que entre fluxos e refluxos.
Por isso, não consideramos ser possível discutir o anarquismo de maneira adequada sem tomar em conta autores desses diversos contextos e episódios fundamentais em que o anarquismo esteve presente. Alguns desses episódios vêm tendo destaque em produções precedentes, como o caso Haymarket, que envolveu as mobilizações do Primeiro de Maio e a morte dos Mártires de Chicago entre 1886-1887; a Confédération Générale du Travail (CGT) francesa, fundada em 1895, cuja Carta de Amiens, de 1906, teve significativa influência no desenvolvimento do sindicalismo revolucionário; a Revolta de Kronstadt, no contexto da Revolução Russa, em 1921; a Revolução Espanhola de 1936-1939 e as revoltas francesas do Maio de 68.
Entretanto, outros episódios, fundamentais a nosso ver, e alguns dos quais maiores e mais significativos que esses, são, em geral, pouco abordados ou mesmo completamente ignorados: a Primeira Internacional (1864-1877), os levantes cantonalistas ocorridos na Espanha em 1873, a Revolta da Macedônia de 1903, a Revolução Mexicana iniciada em 1910; a Revolução Russa e Ucraniana iniciadas em 1917, a Revolução na Manchúria (1929-1931), a Revolução Cubana, entre 1952 e 1959 entre outros.
Consideramos imprescindível para as investigações contemporâneas do anarquismo tomar em conta não somente suas manifestações nos países da Europa ocidental e da América do Norte, mas também nos países do Leste Europeu, em especial na Rússia, na Ucrânia e na Bulgária; da América Latina, em especial em Cuba, no México, na Argentina, no Uruguai, no Brasil e no Chile; da Ásia, em especial na China, no Japão e na Coréia; da África, em especial na África do Sul, no Egito e na Argélia; da Oceania, em especial na Austrália e na Nova Zelândia.
Esse constitui um dos principais motivos de consideramos insuficientes as conclusões precipitadas levadas a cabo pelos estudos referenciais, visto que conceituam o anarquismo a partir de uma base restrita de autores e episódios, generalizando sobre um número muito restrito de autores e ignorando grande parte, senão a maior, das manifestações históricas do anarquismo.
Entendemos, também, ser necessário criticar as abordagens que se apóiam na “história vista de cima”; muito mais do que uma história de vida de alguns grandes homens, o anarquismo constituiu uma vasta experiência histórica, que envolveu milhões de pessoas. Consideramos, nesse sentido, que os maiores autores anarquistas, dentre os quais se encontram Bakunin e Kropotkin, não foram gênios isolados, que inventaram uma ideologia descolados da realidade, comunicando-a posteriormente aos trabalhadores do mundo todo. Há, inegavelmente, nesse movimento, uma relação dialética: mesmo que esses grandes homens tenham influenciado os movimentos populares de seu tempo, eles também são produtos desses movimentos, foram influenciados por eles, e grande parte daquilo que elaboraram teoricamente teve por base as práticas desses movimentos. Por isso, consideramos que esse modelo de história – que teve seus limites demonstrados por diversos historiadores, com destaque para a influência de E. P. Thompson e, de modo mais ampliado, da História Social do Trabalho – não pode continuar subsidiando as investigações sobre o anarquismo. Como o estudo de qualquer categoria política (tal como o anarquismo) remete necessariamente ao ambiente em que ela opera, é necessário superar a “história do pensamento político abstrato desenvolvido sem relação com o contexto”. (Clark, 2006, p. 687)
Consideramos, também, que as abordagens ahistóricas são insuficientes para o estudo de um fenômeno como o anarquismo. Não consideramos adequado relacionar o anarquismo com o surgimento de um “espírito antiautoritário”, mais ou menos ligado à natureza humana, e que teria se manifestado desde o início dos tempos. Concordamos com Schmidt e van der Walt (2009, p. 34) que o verbete sobre o anarquismo da Encyclopaedia Britannica, produzido por Kropotkin (1987), foi provavelmente o primeiro estudo a elaborar essa “meta-história” do anarquismo, e, mais do que produzir um estudo historiográfico, criou um “mito legitimador”. Seu objetivo, assim como o entendemos, era demonstrar aos adversários do anarquismo que aquilo que pregavam os anarquistas não contrariava a natureza humana; e, para isso, ele sem dúvidas contribuiu, ao demonstrar que as manifestações autoritárias acompanham o desenrolar de toda a história humana. Entretanto, acreditamos que esse texto não pode ser considerado uma história adequada do anarquismo, visto que não analisa o fenômeno em seu contexto, não consegue explicar por que ele surge ou não em alguns contextos e não em outros, por que se destaca mais ou menos em um contexto ou em outro. Portanto, parece-nos bastante problemática a continuidade dessa abordagem ahistórica, que continua a ser utilizada.[10]
Vincular a conceituação do anarquismo às análises etimológicas, à utilização dos termos “anarquia” e seus derivados e à autoidentificação dos anarquistas também não nos parece adequado, principalmente se esses critérios forem tomados em conta isoladamente como único fundamento para definir quem são os anarquistas e o que é o anarquismo.
Podemos questionar a equiparação pura e simples de um termo com um fenômeno histórico, o que já nos parece bem problemático; um fenômeno histórico não pode ser reduzido ao termo utilizado para referir-se a ele. Além disso, uma análise etimológica do termo “anarquia” e de seus derivados só pode apontar para uma negação – do governo, do Estado, da autoridade –, ou seja, para elementos “destrutivos”, de crítica social; o anarquismo, entretanto, sempre possuiu elementos construtivos, objetivos e estratégias para atingi-los. Conforme colocamos, a utilização histórica do termo anarquismo surge em meio ao senso comum. Mesmo que Proudhon tenha sido o primeiro pensador conhecido a reivindicar sua utilização positiva, o fato de grandes anarquistas clássicos, como Bakunin e Guillaume, terem utilizado os termos “anarquismo” e “anarquista/s” com reservas e, em diversos casos, se recusado a utilizá-los[11], parece contribuir com a nossa posição. A autoidentificação também não nos parece um critério adequado para tanto. Há uma tradição histórica anarquista, que apresenta continuidades e permanências, e consideramos que a autoidentificação deve ser analisada dentro dos parâmetros estabelecidos por essa tradição. Se uma organização ou teórico afirma ser anarquista, mas os aspectos fundamentais de seu pensamento e sua ação encontram-se no campo do marxismo, ela deve ser considerada anarquista? Parece-nos evidente que não.
Para nós, teoria e história são interdependentes; assim, uma pesquisa de anarquismo só pode ser adequadamente realizada se houver um conceito de anarquismo que possua respaldo em um conjunto de fenômenos históricos e, ao mesmo tempo, se houver uma experiência histórica que tenha respaldo em uma conceituação teórica adequada. No caso de Eltzbacher (2004, p. 292), que estava plenamente ciente dessa questão, pesquisadores considerados por ele comprometidos cientificamente com as investigações do anarquismo indicaram-lhe os “sete sábios” que foram por eles avaliados e comparados. Sua conclusão foi a seguinte: “os ensinamentos anarquistas têm em comum apenas uma coisa: eles negam o Estado no futuro”. Certamente, conscientes ou não disso, as fontes de Eltzbacher, esses “pesquisadores comprometidos cientificamente com as investigações do anarquismo”, possuíam de antemão um conceito de anarquismo que o colocava como sinônimo de antiestatismo. Assim, quando Eltzbacher os comparou, chegou inevitavelmente a essa conclusão.
Ainda assim, as conclusões do estudo de Eltzbacher poderiam ter sido melhor avaliadas pelos pensadores posteriores; se aqueles autores só em comum a oposição ao Estado no futuro, e se isso não é suficiente para definir o anarquismo, pois, por exemplo, não permite diferenciá-lo do marxismo, necessariamente há algo de errado. Se o anarquismo é mais que oposição do Estado no futuro, então há “sábios” em seu estudo que não são anarquistas. Entretanto, isso parece não ter sido devidamente observado, pois os “sete sábios” continuaram presentes em grande parte dos estudos referenciais.
Os recentes estudos anteriormente apresentados também nos permitem afirmar que o sindicalismo de intenção revolucionária foi o maior “vetor social” histórico do anarquismo[12]; durante o século XX, por exemplo, a principal tarefa à qual se dedicaram os anarquistas foi a construção de sindicatos revolucionários e a participação nesses sindicatos. Portanto, ignorar as manifestações do anarquismo nos movimentos populares, em especial no seio do sindicalismo de intenção revolucionária, implica amputar do anarquismo sua principal manifestação histórica.
Finalmente, definir o anarquismo como uma crítica da dominação e/ou do Estado é insuficiente; se o anarquismo é uma oposição ao Estado no futuro, por que todo o marxismo clássico não é considerado parte do anarquismo? Marx (1850) sustentou um conceito de comunismo que, por razão do fim da contradição entre as classes, existiria sem o Estado: “A abolição do Estado só tem sentido entre os comunistas, como uma conseqüência necessária da abolição das classes, com a qual desaparece automaticamente a necessidade de um poder organizado de uma classe para manter as outras sob seu jugo”. E não somente Marx, visto que também Engels, Lênin, Trotsky e Mao Tsé-Tung e outros defenderam posições semelhantes. Se há uma necessidade de se diferenciar anarquismo de marxismo – e consideramos essa uma diferenciação fundamental – a oposição simples à dominação e ao Estado no futuro não pode subsidiar, sozinha, uma definição de anarquismo.
Elementos teórico-metodológicos fundamentais
Uma definição adequada do anarquismo, conforme a concebemos, deve ser elaborada sobre um conjunto de categorias e conceitos precisos, conter os aspectos comuns aos autores e episódios anarquistas e, ao mesmo tempo, permitir diferenciar o anarquismo de outras correntes político-ideológicas, como, por exemplo, o marxismo. Conforme enfatizado por Alexandre Skirda (2002, p. 183-184), um estudo do anarquismo exige uma precisão, em termos de categorias e conceitos, de maneira a evitar “confusões e equívocos”, os quais podem “levar a tragédias reais” nas pesquisas. “Em suma, necessitamos saber sobre o que estamos falando.”
Consideramos, também, que as abordagens históricas são imprescindíveis nos estudos do anarquismo. Schmidt e van der Walt (2009, p. 18) afirmam que “somente uma análise histórica e social pode realmente explicar o surgimento e o desaparecimento do anarquismo” e, por isso, acreditam ser imprescindível buscar “uma compreensão historicizada e cuidadosa em termos históricos do anarquismo”. Esse método histórico, segundo o compreendemos, precisa identificar continuidades e permanências do anarquismo, no espaço e no tempo, levando em conta uma noção de longo prazo, que aqui é buscada, por razão da evidente amplitude de sua história. Um estudo geral do anarquismo precisa levar em conta o contexto, mas não deve ter como foco as particularidades de cada época ou localidade ou buscar as exceções – isso, consideramos, é uma das funções dos estudos historiográficos dedicados a autores e episódios particulares, os quais, devemos ressaltar, são também fundamentais; deve, também, buscar encontrar as grandes linhas teóricas, práticas e históricas, de pensamento e ação, que vêm fundamentando a trajetória do anarquismo. Por esse motivo, as abordagens ahistóricas devem ser descartadas.
Ao mesmo tempo, acreditamos que as periodizações precedentes – que, conforme colocado, em geral terminam em 1939, aos fins da Revolução Espanhola e, em alguns casos, passam pelo Maio de 68 francês – precisam ser estendidas até o presente, por razão da relevância de autores e episódios posteriores a 1939. Além disso, compreendemos ser fundamental tomar em conta não somente essas praticamente 15 décadas de desenvolvimento do anarquismo, que se estendem, pelo menos, da Primeira Internacional ao presente. De acordo com argumentos já colocados, compreendemos também ser fundamental estender o escopo geográfico para os cinco continentes, levando a cabo uma abordagem, de fato, global; tarefa que não pode ser esgotada individualmente e deve figurar como um horizonte dos pesquisadores.
Entretanto, não afirmamos somente a necessidade de um método histórico, mas que esse método fundamente-se nos pressupostos da história social, da “história vista de baixo” (Thompson, 1997, 2009) e da “nova história do trabalho” (van der Linden, 2003). Esse modelo de história
enfatiza a história social das classes populares e a necessidade de se examinar os movimentos populares de baixo para cima [e] oferece um corretivo necessário a essas perspectivas [da “velha história do trabalho”, que enfatiza as organizações formais e as lideranças], dirigindo sua atenção às formas culturais e organizações informais. (Schmidt; van der Walt, 2009, p. 275)
Essa abordagem implica inserir os clássicos anarquistas em seus contextos, compreender sua relação com os movimentos populares de sua época e reconhecer a relação dialética anteriormente mencionada entre eles e as lutas sociais de seu tempo, protagonizadas por milhares de militantes anônimos.
Não é possível limitar-se à leitura de uma tradicional histórias das idéias políticas, elaboradas somente sobre as obras anarquistas, como, por exemplo, faz Woodcock. Essas obras podem apresentar sínteses muito convenientes e, por vezes, facilitadoras de determinado trabalho de pesquisa; no entanto, não se sustentam em qualquer problemática global. (Rosanvallon, 1995) Insistimos na incorporação dos clássicos/teóricos anarquistas nas análises históricas. Tal procedimento, a nosso ver, aprofunda a compreensão de seu léxico político-militante e, articulado aos elementos mencionados anteriormente, constitui um poderoso recurso da pesquisa sobre o anarquismo. (Cerruti, 2004)
Consideramos que os estudo do anarquismo devem fundamentar-se nas relações de totalidade e interdependência, que unem teoria, prática e história; pensamento e ação. Concebemos a totalidade e a interdependência entre teoria, prática e história como um círculo, que permite elaborar e testar hipóteses, reforçando e aprimorando os argumentos de estudos determinados. Totalidade e interdependência também devem ser levadas em conta nas análises entre forma e conteúdo, buscando solucionar as problemáticas apontadas nos estudos referenciais, alguns dos quais, apegando-se apenas à forma, definem e discutem o anarquismo a partir das análises etimológicas, da utilização dos termos “anarquia” e seus derivados e da autoidentificação dos anarquistas. Ainda que esses elementos de forma possam ser levados em conta, eles devem ser analisados em perspectiva e na relação com o conteúdo. Forma e conteúdo devem, portanto, ser tratadas conjuntamente.
Tomando em conta as amplas relações entre o anarquismo e seus vetores sociais, em especial o sindicalismo de intenção revolucionária, consideramos ser imprescindível não desvincular o anarquismo das lutas sociais com as quais esteve envolvido. Recordemos que as maiores expressões históricas do anarquismo estão ligadas a esses vetores. Entretanto, compreendemos que buscar essa relação entre anarquismo e lutas sociais não é tarefa simples, visto que os movimentos populares que tiveram participação e/ou hegemonia anarquista incluíram milhares de militantes que nunca se identificaram com o anarquismo. Por isso, acreditamos ser fundamental compreender o papel e a influência do anarquismo nesses movimentos, identificando a força dos anarquistas dentro deles e, em que medida suas estratégias pautaram os rumos dos movimentos; se o anarquismo constituiu uma força majoritária e hegemônica dentro deles ou não. O anarquismo só pode ser devidamente compreendido por meio de suas complexas relações com esses vetores sociais; ele é tão indissociável dos anarquistas quanto das lutas sociais.
também, que o anarquismo envolve um conjunto de críticas e proposições, aspectos negativos (destrutivos) e positivos (construtivos), que também não podem ser dissociados. As noções de totalidade e interdependência subsidiam também a abordagem das críticas anarquistas e de suas proposições. Ao mesmo tempo que os anarquistas realizam uma crítica do sistema de dominação, eles também elaboram a defesa de um sistema de autogestão e das estratégias capazes de promover a transformação social de um sistema para outro. As noções em questão subsidiam a exposição daquilo que os anarquistas pretendem destruir, daquilo que pretendem construir e como deverão realizar isso.
Enfim, a ideologia anarquista constitui uma tradição político-doutrinária que envolve teoria, prática e história, pensamento e ação nas três esferas: econômica, política/jurídica/militar e cultural/ideológica. Por isso, também consideramos fundamental, a partir das noções de totalidade e interdependência, que os estudos do anarquismo se debrucem sobre os projetos que foram levados a cabo nessas três esferas, ou, pelo menos, que considerem essa evidente relação.
Sete teses sobre o anarquismo
Conforme colocado, contestaremos, por meio de sete teses sobre o anarquismo, as conclusões dos estudos referenciais, subsidiando-as nos procedimentos teórico-metodológicos acima estabelecidos e em um conjunto de estudos da historiografia recente: Schmidt e van der Walt, 2009, no prelo; van der Walt e Hirsch, 2010a, Schmidt, 2012a; Corrêa, 2012a, 2013; Silva, 2013. As afirmações aqui elaboradas possuem respaldo histórico nesses estudos, que constituem parte do que chamamos acima de “novas pesquisas sobre o anarquismo”. Remetemos os leitores que porventura tenham interesse em um aprofundamento temático às nossas próprias fontes.
1.) Anarquismo não é sinônimo de individualismo, antiestatismo ou antítese do marxismo; constitui um tipo de socialismo caracterizado por um conjunto preciso de princípios político-ideológicos, que inclui a oposição ao Estado, mas que não se resume a ela.
Tomando por base a produção de Corrêa (2012a), que define o anarquismo a partir de mais de 50 autores, dos cinco continentes, de 1868 ao presente, podemos dizer que o anarquismo é uma ideologia socialista e revolucionária que se fundamenta em princípios determinados, cujas bases se definem a partir de uma crítica da dominação e de uma defesa da autogestão; em termos estruturais, o anarquismo defende uma transformação social fundamentada em estratégias, que devem permitir a substituição de um sistema de dominação por um sistema de autogestão.
O anarquismo caracteriza-se por um conjunto de dez princípios. 1.) Ética e valores. A defesa de uma concepção ética, capaz de subsidiar críticas e proposições racionais, pautada nos seguintes valores: liberdade individual e coletiva; igualdade em termos econômicos, políticos e sociais; solidariedade e apoio mútuo; estímulo permanente à felicidade, à motivação e à vontade. 2.) Crítica da dominação. A crítica das dominações da classe – constituídas por exploração, coação física e dominações político-burocrática e cultural-ideológica – e de outros tipos de dominação (gênero, raça, imperialismo, etc.). 3.) Transformação social do sistema e do modelo de poder. O reconhecimento de que as estruturas sistêmicas fundamentadas em distintas dominações constituem sistemas de dominação e a identificação, por meio de uma crítica racional, fundamentada nos valores éticos especificados, de que esse sistema tem de ser transformado em um sistema de autogestão. Para isso, torna-se fundamental a transformação do modelo de poder vigente, de um poder dominador, em um poder autogestionário. Nas sociedades contemporâneas, essa crítica da dominação implica uma oposição clara ao capitalismo, ao Estado e às outras instituições criadas e sustentadas para a manutenção da dominação. 4.) Classes e luta de classes. A identificação de que, nos diversos sistemas de dominação, com suas respectivas estruturas de classes, as dominações de classe permitem conceber a divisão fundamental da sociedade em duas grandes categorias globais e universais, constituídas por classes com interesses inconciliáveis: as classes dominantes e as classes dominadas. O conflito social entre essas classes caracteriza a luta de classes. [...] Outras dominações devem ser combatidas concomitantemente às dominações de classe, sendo que o fim das últimas não significa, obrigatoriamente, o fim das primeiras. 5.) Classismo e força social. A compreensão de que essa transformação social de base classista implica uma prática política, constituída a partir da intervenção na correlação de forças que constitui as bases das relações de poder vigentes. Busca-se, nesse sentido, transformar a capacidade de realização dos agentes sociais que são membros das classes dominadas em força social, aplicando-a na luta de classes e buscando aumentá-la permanentemente. [...] 6.) Internacionalismo. A defesa de um classismo que não se restrinja às fronteiras nacionais e que, por isso, fundamente-se no internacionalismo, o qual implica, no caso das práticas junto a agentes dominados por relações imperialistas, a rejeição do nacionalismo e, nas lutas pela transformação social, a necessidade de ampliação da mobilização das classes dominadas para além das fronteiras nacionais. [...] 7.) Estratégia. A concepção racional, para esse projeto de transformação social, de estratégias adequadas, que implicam leituras da realidade e o estabelecimento de caminhos para as lutas. [...] 8.) Elementos estratégicos. Ainda que os anarquistas defendam estratégias distintas, alguns elementos estratégicos são considerados princípios: o estímulo à criação de sujeitos revolucionários, mobilizados entre os agentes que constituem parte das classes sociais concretas de cada época e localidade, as quais dão corpo às classes dominadas, a partir de processos que envolvem a consciência de classe e do estímulo à vontade de transformação; o estímulo permanente ao aumento de força social das classes dominadas, de maneira a permitir um processo revolucionário de transformação social; a coerência entre objetivos, estratégias e táticas e, por isso, a coerência entre fins e meios e a construção, nas práticas de hoje, da sociedade que se quer amanhã; a utilização de meios autogestionários de luta que não impliquem a dominação, seja entre os próprios anarquistas ou na relação dos anarquistas com outros agentes; a defesa da independência e da autonomia de classe, que implica a recusa às relações de dominação estabelecidas com partidos políticos, Estado ou outras instituições ou agentes, garantindo o protagonismo popular das classes dominadas, o qual deve ser promovido por meio da construção da luta pela base, de baixo para cima, envolvendo a ação direta. 9.) Revolução social e violência. A busca de uma revolução social, que transforme o sistema e o modelo de poder vigentes, sendo que a violência, como expressão de um nível mais acirrado de confronto, é aceita, na maioria dos casos, por ser considerada inevitável. Essa revolução implica lutas combativas e mudanças de fundo nas três esferas estruturadas da sociedade e não se encontra dentro dos marcos do sistema de dominação presente – está além do capitalismo, do Estado, das instituições dominadoras. 10.) Defesa da autogestão. A defesa da autogestão que fundamenta a prática política e a estratégia anarquistas constitui as bases para a sociedade futura que se deseja construir e envolve socialização da propriedade em termos econômicos, o autogoverno democrático em termos políticos e uma cultura autogestionária. […] (Cf. Corrêa, 2012a, pp. 143-147)
2.) O anarquismo baseia-se em análises racionais, métodos e teorias que não são idealistas (explicações metafísicas/teológicas). Não afirma, em geral, a prioridade das idéias em relação aos fatos; apresenta distintas posições teóricas a este respeito.
O fato de termos definido o anarquismo como uma ideologia, uma doutrina política, significa que não o resumimos a uma teoria. Compreendemos que um aspecto histórico e constitutivo do anarquismo é sua certeza ideológica e sua dúvida teórica permanente. A ideologia, essencialmente pensamento e ação, apresenta distintos elementos de ordem não-científica, como aspirações, valores, sentimentos, motivações, que impulsionam práticas políticas, principalmente em função dos objetivos finalistas que se propõe atingir. A teoria, distintamente, relaciona-se com método de análise e busca elaborar instrumentos conceituais para conhecer a realidade em profundidade, tendo de fazer isso com a maior precisão possível, e buscando aproximar-se ao máximo da ciência. A teoria tem por objetivo conhecer uma realidade determinada e a ideologia tem por objetivo motivar uma prática política para a intervenção nesta realidade. (Malatesta, 2007, pp. 41-43; FAU, 2009a; Rocha, 2009, p. 102)
O anarquismo constitui uma ideologia que vem se fundamentando, historicamente, em distintos métodos de análise e teorias para a interpretação da realidade. Os métodos de análise e as teorias elaboradas no sentido de compreender a realidade social possuem relação com a ideologia anarquista, mas não são parte constitutiva dela. Desde seu surgimento, os anarquistas vêm se utilizando distintas matrizes teórico-epistemológicas, diversos métodos e teorias para conhecer a realidade, sem que isso implique um abandono de seus pressupostos ideológicos. As posições dos anarquistas variam significativamente e vêm sendo fundamentadas em métodos indutivo-dedutivos, dialéticos, estruturalistas; em abordagens mais ou menos “materialistas”, mais ou menos “voluntaristas”, que levam em conta a maior ou menor capacidade de determinação entre as esferas sociais, umas em relação às outras.
Se tomarmos em conta o caso da determinação entre as esferas sociais (econômica, política/jurídica/militar e cultural/ideológica), encontraremos posições distintas entre os anarquistas, o que não faz deles, por esse motivo, mais ou menos anarquistas. Bakunin (2000, p. 14) afirma o predomínio da esfera econômica em relação às outras: “toda a história intelectual e moral política e social da humanidade é um reflexo de sua história econômica”; ainda assim, Bakunin (2001, pp. 39-40) relativiza, evitando cair em um determinismo mecanicista, reconhecendo que a política e a cultura, uma vez dadas, possuem capacidade de influenciar a economia. Kropotkin (2005, p. 173), além de afirmar-se materialista, assim como Bakunin, enfatiza que a lei foi “feita para garantir os frutos da pilhagem, do açambarcamento e da exploração”, tendo seguido “as mesmas fases do capital: irmão e irmã gêmeos, caminharam de mãos dadas, nutrindo-se ambos dos sofrimentos e das misérias da sociedade”. Ambas as posições, de Bakunin e Kropotkin, podem ser colocadas dentro do campo do materialismo, se ele for definido conforme a afirmação de Bakunin (2000, p. 14), de que “os fatos têm primazia sobre as idéias”. Além deles, outros anarquistas reivindicaram o materialismo, como foram os casos de Ba Jin (2008), Georges Fontenis (2006) e da organização Resistencia Libertaria (Diz; Trujillo, 2007).
Há outros anarquistas, que reconhecem, também a partir de uma análise racional, a relevância de elementos subjetivos e idéias, presentes da esfera cultural/ideológica, assim como sua capacidade de determinação dos fatos, das esferas política/jurídica/militar e econômica. Quando Malatesta (1989, p. 141) afirma que “a emancipação moral, a emancipação política e a emancipação econômica são indissociáveis”, ou mesmo quando Rocker (1956, p. 23) enfatiza que os “acontecimentos sociais realizam-se por obra de uma série de diversas causas, que na sua maioria se entrelaçam”, defendem certa interdependência entre as esferas na determinação do social, a qual também é sustentada na “teoria da interdependência das esferas” elaborada pela Federação Anarquista Uruguaia e pela Federação Anarquista Gaúcha. (FAU; FAG, 2007).
Há ainda posições que enfatizam uma prioridade da esfera cultural/ideológica na determinação das outras. Nesse sentido, Rocker (1956, p. 56) chegou a sustentar que “toda a política emana em última instância da concepção religiosa dos homens” e que “todo o econômico é de natureza cultural”. Reclus (2002, p. 25) afirmou que “a grande evolução intelectual, que emancipa os espíritos, tem por conseqüência lógica a emancipação, na realidade, dos indivíduos em todas as suas relações com outros indivíduos”.
Esses elementos nos permitem afirmar que há diferenças entre os modelos teóricos, que dizem respeito à relação entre as esferas, adotados pelos anarquistas ao longo do tempo. Há alguns que conferem centralidade à economia; outros, pautando-se também mais nos fatos que nas idéias, consideram que são a economia e a política, inter-relacionadas, que determinam o real. Há também aqueles que consideram que as três esferas são interdependentes; outros, ainda, que conferem centralidade à esfera cultural/ideológica. No entanto, essas diferentes posições teórico-metodológicas não são, conforme argumentamos, mais ou menos anarquistas, umas em relação às outras, mas evidenciam uma busca antidogmática de ferramentas teóricas e metodológicas adequadas para a compreensão da realidade. Por isso, é natural que possuam uma relação com a época em que são produzidas, que se modifiquem e que usufruam das conquistas científicas que tentam explicar a realidade social.
Podemos, sem dúvidas, afirmar que algumas dessas posições são mais materialistas que outras, se tomarmos em conta a definição de Bakunin. Entretanto, todas essas abordagens, independente de seus fundamentos teóricos, superaram o paradigma idealista do século XIX, que estabelecia como fundamento das análises a filosofia de base metafísica e teológica. Os anarquistas nunca buscaram explicar a realidade sem a utilização da racionalidade, de métodos e de teorias; não podem, assim, ser considerados idealistas, no sentido de utilizarem fundamentos metafísicos e teológicos para as análises sociais.
Cumpre, entretanto, esclarecermos que essa afirmação de que os elementos teóricos não constituem fundamentos da ideologia anarquista não implica dizermos que eles não tenham tido relevância e que não tenham sido discutidos durante toda a trajetória histórica do anarquismo. Não significa, também, fazer tabula rasa dos métodos e das teorias sociais e afirmar que todas as ferramentas teóricas para a compreensão da realidade sejam similarmente eficazes. Reconhecemos, sem dúvidas, que alguns métodos e determinadas teorias sociais são mais adequados que outros.
3.) Os debates fundamentais do anarquismo se dão em torno dos seguintes temas: organização, lutas de curto prazo e violência. Os anarquistas não negam completamente a organização e as lutas de curto prazo, que são defendidas pela maioria deles.
As posições dos anarquistas, considerando um período histórico amplo e suas continuidades e permanências no longo prazo, não constituem um todo homogêneo, e envolvem debates e divergências. Tomando por base três eixos que permitem conceituar e discutir o anarquismo, podemos dizer que em relação à crítica da dominação não há divergências muito significativas entre os anarquistas; sobre a defesa da autogestão há debates relevantes e em relação à estratégia fundamental estão, a nosso ver, os debates mais significativos, sobre os quais propomos estabelecer as correntes anarquistas.
Segundo as posições de Corrêa (2012a), afirmamos que os principais debates em torno da defesa da autogestão são: mercado autogestionário X planificação democrática; coletivismo X comunismo; política no local de moradia X política no local de trabalho; cultura secundária X prioridade na cultura. Entretanto, três motivos nos permitem dizer que esses debates são secundários em relação àqueles que apresentaremos a seguir: alguns deles são completamente marginais na literatura (como o caso do mercado X planificação); outros estão restritos a um contexto (em especial coletivismo X comunismo, relacionado à Europa nos fins do século XIX); há também posições intermediárias, que foram hegemônicas na maioria do tempo (no caso da política pelo local de moradia ou trabalho e do debate cultural).
Sustentamos que os debates mais relevantes relacionam-se à estratégia fundamental do anarquismo e são, principalmente, três: defesa da organização X contra a organização, defesa das reformas X contra as reformas, violência decorrente X violência gatilho, os quais serão em seguida discutidos. Há um quarto debate relevante, sobre o modelo da organização anarquista, que, mesmo sendo importante, não discutiremos, pois, ainda que divida posições entre os modelos de organização programática e flexível, não constitui as bases para o estabelecimento das correntes anarquistas.
Em relação ao primeiro debate, identificamos três posições fundamentais: antiorganizacionismo, sindicalismo/comunitarismo, dualismo organizacional.
Dentre os antiorganizacionistas encontra-se Luigi Galleani (2011, p. 2), que é contrário às organizações formais e diz que uma organização política programática, ainda que anarquista, “é uma superposição gradual de corpos por meio dos quais uma hierarquia real e verdadeira se impõe entre os vários níveis desses grupos”, ou seja, “a disciplina, as violações, as contradições que são tratadas com punições correspondentes, que podem ser tanto a censura quanto a expulsão.” Ele defende as associações informais que atuem por meio da educação, da propaganda e da ação violenta.
O sindicalismo/comunitarismo exclusivo vincula-se à idéia de que o movimento popular possui as condições de abarcar posições libertárias, de maneira a cumprir todas as funções estratégicas necessárias a um processo revolucionário. Murray Bookchin (1992) é contrário ao sindicalismo e defende as organizações de massas no nível exclusivamente comunitário, envolvendo “trabalhadores, camponeses, profissionais e técnicos”, e superando os interesses corporativos e setoriais, vinculados necessariamente aos sindicatos. Distintamente dessa posição, bastante marginal no anarquismo, está o sindicalismo de intenção revolucionária, que abarca tanto o sindicalismo revolucionário quanto o anarco-sindicalismo.
Para nós, o que distingue essas duas estratégias é o fato de o segundo possuir um vínculo programático explícito com o anarquismo, ou seja, uma ideologia oficial, como ocorreu com a Federación Obrera Regional Argentina (FORA), a partir de 1905 e com a Confederación Nacional del Trabajo (CNT) espanhola, a partir de 1919, ambas as quais são, a nosso ver, anarco-sindicalistas. Outros exemplos, como por exemplo a Confédération Générale du Travail (CGT) francesa, ou mesmo a Confederação Operária Brasileira (COB) brasileira, por não possuírem esse vínculo político-doutrinário com o anarquismo, defendendo a “neutralidade política” dos sindicatos, são sindicalistas revolucionárias. Embora consideremos tanto o anarco-sindicalismo como o sindicalismo revolucionário estratégias anarquistas, elas devem ser diferenciadas, visando uma melhor compreensão dos debates.
Muitos foram os anarquistas que defenderam a organização exclusiva de massas pelo nível sindical, dentre os quais Pierre Monatte (1998, pp. 206-207), que, no contexto do Congresso Anarquista de Amsterdã, em 1907, sustentou que o sindicalismo revolucionário “se basta a si próprio”. Ele acreditava que o movimento popular iniciado pela CGT, na França, em 1895, havia possibilitado uma reaproximação entre os anarquistas e as massas e por isso recomendava: “que todos os anarquistas ingressem no sindicalismo”. Essa posição de Monatte, essencialmente sindicalista revolucionária, foi preponderante no anarquismo do século XX, senão em teoria, pelo menos na prática.
Dentre os dualistas organizacionais encontra-se Amédée Dunois (2010), que sustentou, neste mesmo congresso, para além do trabalho sindical, de massas, a necessidade de uma organização anarquista: “Seria suficiente à organização anarquista agrupar, em torno de um programa de ação prática e concreta, todos os companheiros que aceitem nossos princípios e que queiram trabalhar conosco, de acordo com nossos métodos”. Assim, deveriam haver dois níveis de organização: um social, de massas, e outro político-ideológico, anarquista; no nível social, dos sindicatos, os anarquistas organizam-se como trabalhadores; no nível político, organizam-se como anarquistas. A função da organização anarquista seria promover um programa dentro das organizações de massas.
Em relação ao segundo debate, sobre a contribuição ou não das reformas para um projeto revolucionário, há duas posições, uma possibilista e outra impossibilista. Dentre os possibilistas encontra-se Ba Jin (2008), que sustenta que “a sociedade ideal” não surgirá de uma hora para outra, “como um milagre: isso será feito gradualmente”; ele enfatiza: “devemos caminhar para nosso ideal passo a passo”. Isso implica, para ele, que anarquistas, como trabalhadores, se unam ao movimento sindical para “pensar nas preocupações de nossos companheiros e levantar novas bandeiras, como a redução nas horas de trabalho, proteções para a vida dos trabalhadores e educação”. Essas reformas, se conquistadas por meio da luta de classes articuladas por trabalhadores organizados, poderiam contribuir com a aproximação de um processo revolucionário. Dentre os impossibilistas encontra-se Alessandro Cerchiai (apud Romani, 2002, p. 175), que só defende as greves na medida em que elas tenham por objetivo imediato a revolução social: “não seremos livres se, ao invés de gastar nosso esforço em abolir o governo e a propriedade privada, nos dedicarmos simplesmente a mendigar reformas”. Para ele, as reformas simplesmente ajustariam o sistema capitalista e não colocariam em xeque seus principais fundamentos.
Em relação ao terceiro debate, sobre a questão da violência, ainda que os anarquistas, em geral, afirmem que num processo revolucionário ela será necessária, evidenciam-se também duas posições. Ravachol (1981, p. 36) dizia que para que a revolução se realizasse, só faltaria “um empurrão”, que poderia ser dado por militantes encarregados de “exterminar todos os que, pela situação social ou pelos seus atos, são nocivos à anarquia”. Para ele, a violência funciona como uma ferramenta para criar movimentos revolucionários, um gatilho, uma forma propaganda que, por meio da vingança, inspira membros das classes dominadas a ingressarem em um processo mais radicalizado de luta. A Federación Anarquista Uruguaya (FAU) (2009b, p. 46; 56) sustenta, distintamente, que “é impossível conceber uma insurreição sem participação das massas”, as quais devem se envolver nesse processo essencialmente violento por “uma série de ações de massas de distintos níveis”. Segundo ela, uma das condições para o sucesso de uma insurreição é “o apoio das massas ou de setores de massas suficientemente importante para gravitar no ato insurrecional”. Para isso, é fundamental, antes de uma ação deste tipo, “um trabalho político prévio”, desenvolvido pela organização anarquista em meio às massas. Assim, a violência deve ser utilizada a partir de movimentos populares previamente estabelecidos, de maneira a aumentar sua força no processo de luta de classes; a violência é, nesse caso, uma ferramenta para favorecer lutas de massas já existentes e não um gatilho para criá-las ou a melhor maneira de realizar propaganda para atrair pessoas para a luta.
Para nós, a defesa da organização, das reformas como caminho para a revolução e da violência decorrente de movimentos previamente utilizados constituem os fundamentos do anarquismo de massas; as posições contrárias à organização, às lutas por reformas e a defesa da violência como gatilho constituem os fundamentos do anarquismo insurrecionalista. Essas são, conforme afirmam Schmidt e van der Walt (2009), a duas grandes correntes históricas anarquistas. E, conforme demonstrado por esses autores, as posições vinculadas ao anarquismo de massas são bem majoritárias em relação às posições relacionadas ao anarquismo insurrecionalista.
4.) O anarquismo não é incoerente, sendo que seus princípios demonstram a existência de uma coerência. As divergências estão nos debates estratégicos, que dão origem às diferentes correntes anarquistas.
As teses discutidas anteriormente fundamentam essa posição. Afirmamos que a ideologia anarquista é coerente, pois possui um conjunto de princípios – apontado na primeira tese – que demonstra coerência em seu núcleo político-doutrinário central. Conforme colocamos na segunda tese, as diferentes posições teórico-metodológicas, por razão da distinção apontada entre ideologia e teoria, não podem subsidiar a afirmação de que o anarquismo é incoerente, visto que ele não constitui uma ferramenta teórico-científica para compreensão da realidade, mas uma ferramenta política que visa motivar uma prática de intervenção nessa realidade.
A terceira tese aponta exatamente onde estão as principais divergências entre os anarquistas. Conforme colocamos, são os debates em torno da organização, das reformas e da violência que se mostram, por sua continuidade e permanência, os mais relevantes. São essas diferenças que, a nosso ver, devem fundamentar o estabelecimento das correntes anarquistas. Por isso, discordamos de abordagens precedentes que tendem a conceituar as correntes anarquistas como anarco-comunismo, anarco-individualismo, anarco-sindicalismo, coletivismo, mutualismo etc.
5.) O anarquismo não é negação da política, do poder. Os anarquistas defendem uma determinada concepção de política e de poder; entretanto, para essa reflexão, é necessária uma padronização conceitual.
Para nós, o anarquismo fundamenta-se em uma determinada noção de poder e política. Consideramos, de acordo com Corrêa (2012a, p. 80), o poder como uma “relação social concreta e dinâmica entre diferentes forças assimétricas, na qual há preponderância de uma(s) força(s) em relação à outra(s)”. O poder, assim concebido, “encontra-se em todos os níveis e todas as esferas da sociedade e fornece as bases para o estabelecimento de regulações, controles, conteúdos, normas, sistemas, que possuem relação direta com as tomadas de decisão.”
Assim, os fundamentos do poder estão na correlação de diversas forças sociais, a qual define nossa concepção de política: a participação jogo dinâmico de forças.
O anarquismo emerge de uma relação entre determinadas práticas das classes oprimidas e formulações de distintos teóricos e tem como objetivo transformar a capacidade de realização (uma força em potencial) das classes dominadas em força social e, por meio do conflito social caracterizado pela luta de classes, substituir o poder dominador que surge como vetor resultante das relações sociais por um poder autogestionário, consolidado nas três esferas estruturadas da sociedade.
Essa afirmação baseia-se na distinção desenvolvida por Corrêa (2012a, p. 98) entre poder autogestionário e poder dominador. Cada um deles fundamenta-se em um conjunto distinto de elementos: o primeiro, em “autogestão, participação ampla nas decisões, agentes não alienados, relações não hierárquicas, sem relações de dominação, sem estrutura de classes e exploração”; o segundo, em: “dominação, hierarquia, alienação, monopólio das decisões por uma minoria, estrutura de classes e exploração”.
Para o desenvolvimento desse projeto de poder, o anarquismo considera atores principais os agentes sociais que são membros das classes sociais concretas, presentes em cada tempo e lugar, as quais constituem as classes dominadas de maneira mais ampla. O anarquismo busca, em meio a elas e como parte delas, aumentar permanentemente sua força social, por meio de processos de luta que impliquem: participação crescente, visando à autogestão, estímulo da consciência de classe, construção das lutas de baixo para cima, com independência em relação aos agentes e estruturas dos inimigos de classe – sustenta, assim, meios condizentes com os fins que pretende atingir. A consolidação desse projeto de poder se dá por meio de uma construção permanente, que encontra em um processo revolucionário, em que a violência é inevitável, um marco de passagem de um sistema de dominação para um sistema de autogestão.
Afirmações históricas dos anarquistas contra o poder e a política são, em geral, realizadas, quando se equipara poder com dominação ou quando se reduz o termo poder ao aparelho de Estado. Com as definições aqui utilizadas, podemos afirmar que o anarquismo defende uma concepção de poder e de política, pois a “política dos anarquistas não se esgota na luta contra as instituições existentes. [...] Ela também inclui a luta pela construção de outro tipo de sociedade.” (Zarcone, 2005)
6.) A extensão e o impacto do anarquismo são amplos: de 1868 ao presente nos cinco continentes.
Schmidt, representando essas informações históricas graficamente e expondo a presença geográfica do anarquismo no mundo, de seu surgimento ao presente, elaborou o seguinte mapa.
Observando as áreas coloridas, que indicam presença anarquista, verificamos que o anarquismo esteve/está presente em todas as Américas, em praticamente toda a Europa, na maioria dos países da Ásia, em grande parte da Oceania e em parte significativa da África. Suas continuidades e permanências, no espaço e no tempo, levando em conta uma noção de longo prazo, indicam que se trata de um fenômeno global, com amplo impacto e extensão.
As cores do gráfico demonstram as localidades em que ocorreram revoluções com participação anarquista determinante, onde prevaleceram as estratégias anarquistas e sindicalistas de intenção revolucionária, onde elas foram minoritárias e as localidades em que redes relevantes foram formadas, ainda que sem a presença de sindicatos.
Em preto, estão os países em que os anarquistas tiveram protagonismo em processos revolucionários: México, Espanha, Ucrânia, Manchúria (Coréia). Em vermelho escuro, estão os países em que o anarquismo e o sindicalismo de intenção revolucionária foram hegemônicos, dentre os quais se destacam: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, França, Paraguai, Peru, Portugal e Uruguai. Em vermelho claro, estão os países em que houve presença significativa do anarquismo e do sindicalismo de intenção revolucionária, ainda que não tenham sido hegemônicos, dentre os quais se encontram: África do Sul, Alemanha, Argélia, Austrália, Bulgária, Canadá, China, Egito, Equador, Estados Unidos, Grécia, Inglaterra, Itália, Japão, Namíbia, Nigéria, Nova Zelândia, Rússia, Suécia, Venezuela, Zâmbia e Zimbábue. Em amarelo, encontram-se os países em que se estabeleceram redes importantes, dentro os quais se encontram: Bielo-Rússia, Camboja, Cazaquistão, Cingapura, Estônia, Finlândia, Guiana Francesa, Guiana, Índia, Islândia, Letônia, Líbia, Lituânia, Marrocos, Moçambique, Nicarágua, Quênia, Romênia, Tailândia, Tunísia, Uganda, Vietnã, além de vários países do Oriente Médio.
A análise de Schmidt também permite avaliar o impacto histórico do anarquismo, nas “cinco ondas” estabelecidas por ele: 1868-1894, 1895-1923, 1924-1949, 1950-1989, 1990 ao presente. Elaborando outro gráfico, o autor apresenta, entre outras coisas, o impacto do anarquismo em cada uma das ondas.
Essa representação, ainda que aproximada, dá uma idéia interessante sobre o impacto das ondas do anarquismo. Verificamos que o “período glorioso” encontra-se nas segunda e terceira onda; ainda assim, notamos que tanto a primeira, quanto a quarta e a quinta onda não são desprezíveis, afirmação que possui respaldo histórico. Isso permite afirmar que o anarquismo possui uma existência contínua, ainda que entre fluxos e refluxos, caracterizados por suas próprias ondas, de 1868 ao presente.
Consideramos, assim, equivocadas as teses que afirmam: que o anarquismo praticamente deixou de existir em 1939, com a derrota da Revolução Espanhola; que foi somente na Espanha que o anarquismo adquiriu uma expressão de massas significativa, constituindo a “excepcionalidade espanhola”. Analisando as grandes lutas em que o anarquismo esteve historicamente inserido, podemos dizer que a Espanha, entre 1936 e 1939, certamente, constitui um de seus pontos altos. Entretanto, depois de 1939, muitos outros episódios relevantes, que contaram com participação determinante dos anarquistas, foram levados a cabo: o processo na Bulgária, em torno da Federação dos Anarco-Comunistas da Bulgária (FAKB), que permaneceu muito forte até meados dos anos 1940; a participação determinante, por meio dos sindicatos revolucionários, no processo revolucionário cubano; a participação nas lutas de libertação nacional na Argélia, que culminaram em 1962; o processo organizativo encabeçado pela FAU, nos anos 1960 e 1970 no Uruguai; além de participações relevantes nas lutas do Maio de 68, na Revolução Iraniana, nos movimentos de libertação nacional africanos, na Revolução de 1960 e na Comuna de Gwangju na Coréia, na greve de 1951 da Nova Zelândia, nas revoltas gregas dos anos 1970 até o presente, na Comuna de Oaxaca de 2006 entre outros episódios.
Todos esses casos também contrapõem a tese da excepcionalidade, que podem ser complementados com casos anteriores à Revolução Espanhola, dentre os quais se destacam, na primeira onda, a Federación Regional Española (FRE) e as Revoltas Cantonalistas, a Central Labor Union (CLU) norte-americana e as lutas em torno do Primeiro de Maio, os sindicatos revolucionários cubanos – Junta Central de Artesanos (JCA), Círculo de Trabajadores de La Habana (CTH), Sociedad General de Trabajadores (SGT) – e as lutas anticoloniais; na segunda onda, as lutas protagonizadas pela FORA Argentina, e as participações massivas dos anarquistas nos processos revolucionários na Macedônia, no México, na Rússia e na Ucrânia; na terceira onda, a força anarquista na Bulgária e a participação determinante na Revolução da Manchúria.
Tais exemplos são suficientes para contrapor as teses do fim do anarquismo em 1939 e da excepcionalidade espanhola; em todos esses casos, anteriores e posteriores à Revolução Espanhola, assim como em outros, o anarquismo converteu-se em significativas expressões de massas, de envergadura considerável e, a depender dos critérios utilizados, comparáveis ao caso espanhol. Outro mapa elaborado por Schmidt, no qual representa graficamente os principais intentos revolucionários do anarquismo, sustenta esses argumentos.
Pode-se dizer que em todos os casos apontados, o anarquismo converteu-se em amplas expressões populares de massas. Dos 23 episódios avaliados, quatro deles, quase 20%, que incluem participação anarquista significativa, foram levados a cabo depois da Revolução Espanhola: Revolução Cubana (1959), Independência da Argélia (1962), sindicalismo e guerrilhas no Uruguai (anos 1960-1970) e Revolução Iraniana (1978-1979).
7.) O anarquismo mobilizou classes dominadas como um todo, em especial proletariado urbano (operariado).
Uma análise mais pormenorizada do impacto classista do anarquismo foi também abordada no estudo de Schmidt (2012b) e demonstra que, ainda que tenha impactado diretamente os camponeses e trabalhadores rurais, o anarquismo e o sindicalismo de intenção revolucionária foram, na maioria dos casos, levados a cabo pelos trabalhadores urbanos. Representando as principais fortalezas do anarquismo nos campos e nas cidades, o autor elaborou o seguinte mapa.
Em um breve comparativo entre as 27 localidades analisadas, em que os anarquistas mobilizaram trabalhadores industriais e camponeses, em 19 delas, as bases do anarquismo estão nas cidades, entre os trabalhadores da indústria, correspondendo a 70% dos casos em questão; em oito delas, as bases do anarquismo estão nos campos, principalmente entre camponeses, correspondendo a 30% dos casos.
Esses dados permitem realizar duas afirmações. Por um lado, confirma-se, por meio dos dados históricos, a concepção anarquista de sujeito revolucionário, demonstrando a mobilização de trabalhadores e camponeses, das cidades e dos campos, assim como sua noção de classes dominadas. Angel Cappelletti (2006, p. 14), sustentando este argumento, afirma: “onde o anarquismo floresceu e conseguiu influência decisiva sobre o curso dos acontecimentos, suas bases foram majoritariamente compostas por operários e camponeses”. Por outro, coloca em xeque afirmações, repetidas incansavelmente pelos adversários do anarquismo, que este seria uma ideologia do “mundo atrasado”, que só teria se desenvolvido em países não-industrializados, mobilizando principalmente “classes em declínio”, como o campesinato e os pequenos artesãos. Cappelletti continua:
No passado, os marxistas, sem exceção, empenharam-se em apresentar o anarquismo como uma ideologia dos pequenos proprietários rurais e da pequena burguesia (artesãos etc.), ou mesmo como uma ideologia do lúmpem-proletariado. (Cappelletti, 2006, p. 13)
Os exemplos históricos são abundantes para afirmar que, mesmo investindo na mobilização do campesinato, de artesãos, do lúmpem etc. – por sua concepção de classes dominadas, que não se resume ao proletariado urbano-industrial, e por não sustentar uma concepção teleológica e evolucionista da história, que considera camponeses e artesãos atores antigos em filmes novos, os quais só teriam condições de “girar para trás a roda da história” –, na maior parte dos casos, o anarquismo desenvolveu-se nas cidades entre o proletariado urbano e industrial. Cappelletti (2006, p. 15) corrobora este argumento ao enfatizar: “ainda que surja, desenvolva-se e alcance sua maior força dentro da classe operária, [o anarquismo] é uma ideologia de todas as classes oprimidas e exploradas”. Ou seja, o anarquismo, mesmo sustentando uma concepção das classes e da luta de classes fundamentada na dominação, e considerando como potenciais sujeitos revolucionários as classes dominadas de maneira ampla, teve, em termos históricos, suas bases forjadas, principalmente, entre os trabalhadores industriais das cidades, o operariado.
Apontamentos conclusivos
Os apontamentos analíticos e históricos aqui realizados obviamente não esgotam o debate, mas apresentam a problemática e os horizontes que podem ser abertos nas pesquisas sobre o anarquismo. Decerto muitos pesquisadores já estão debruçados sobre alguns dos problemas e soluções apresentados em nossa exposição e novas pesquisas se seguirão, ampliando os caminhos das análises. Esperamos, modestamente, contribuir com o estudo e o debate sobre o anarquismo, entendendo que as pesquisas sobre esse tema podem avançar para além das fronteiras estabelecidas.
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Notas
[1] Para uma compilação ampla das produções realizada no Brasil, ver a seção “Teses” do site da Biblioteca Terra Livre <http://bibliotecaterralivre.noblogs.org/biblioteca-virtual/teses/>.
[2] Ambos os livros, produzidos concomitantemente e apoiando-se na noção de interdependência entre teoria e história, foram elaborados a partir de um conjunto muito amplo de autores e episódios – em termos históricos, vai de 1868 ao presente; em termos geográficos, abarca os cinco continentes. Black Flame, de aproximadamente 700 laudas, já foi publicado, e Global Fire, de aproximadamente mil laudas, está em processo de finalização; seu manuscrito original nos foi disponibilizado pelos autores. A introdução de Black Flame está inserida neste livro, com o título de “Apresentando Chama Negra”.
[3] Quando nos referimos às abordagens ideológicas, não sustentamos que há uma pesquisa livre dos valores do pesquisador. Consideramos que os “fatos do passado obtidos pela pesquisa empírica somente se articulam para formar o constructo significativo de uma história, isto é, o conhecimento histórico só é possível se e quando se atribui aos fatos um significado para a orientação na vida prática no tempo presente; sem o recurso a normas e valores, isso é totalmente impossível.” A grande questão não é “libertar o conhecimento histórico do espectro da subjetividade”, mas ter precauções com a prática histórica que incorpora “naturalidades prévias” e concepções sobre o anarquismo que nada mais fazem do que reproduzir o senso comum sobre essa ideologia. (Rüsen, 2001, pp. 113; 132)
[4] <http://www.dicio.com.br/>.
[5] <http://www.dicionarioinformal.com.br/>.
[6] Para fins esquemáticos, Schmidt (2012b, pp. 40-45) propõe uma periodização do anarquismo intitulada de “teoria das cinco ondas” [five waves theory], que não pretende ser uma “lei de ferro” do progresso e da reação, mas um guia histórico aberto a adaptações. Esse guia fornece uma visão mais ampla do anarquismo do que, em geral, se tem sustentado. “A primeira onda, de 1868-1894, pouco conhecida, e a segunda onda, de 1895-1923, bem mais estudada, que cobre as revoluções no México, na Rússia e na Ucrânia. [...] A terceira onda, de 1924-1949, igualmente famosa, que abarca as revoluções na Manchúria e na Espanha, e que, juntamente com a segunda onda, constitui o ‘período glorioso’ do anarquismo. [...] A quarta onda, de 1950-1989, cujo ápice se deu na Revolução Cubana em 1952-1959 e, novamente, com a Nova Esquerda de 1968. [...] A quinta onda, atual, gerada em 1989 pela queda do Muro de Berlim e pelo surgimento de mobilizações ‘horizontalistas’ contrapondo-se ao antigo e velho ‘comunismo’ marxista (na realidade, um capitalismo de Estado autoritário), às ditaduras de direita e ao neoliberalismo, por meio de novos movimentos das classes populares globalizadas”.
[7] Segundo Pierre Bourdieu (1998, p. 44), “estes instrumentos fazem que ele corra um perigo permanente de erro, pois se arrisca a substituir a doxa ingênua do senso comum pela doxa do senso comum douto, que atribui o nome de ciência a uma simples transcrição do discurso de senso comum”.
[8] Eltzbacher, 2004; Nettlau, 2008, no prelo; Woodcock, 2002; Joll, 1970; Guérin, 1968; Marshall, 2010; McKay, 2008.
[9] Nettlau (2008; no prelo; 2011) define o anarquismo a consciência e a aspiração de uma existência de liberdade e bem estar para todos. Woodcock (2002) o caracteriza como uma crítica da sociedade presente, fundamentada na autoridade, e, mais especificamente, no Estado, uma proposta de sociedade futura e uma estratégia de transformação social que poderia ou não ser violenta. Marshall (2010) o define como uma filosofia antidogmática, que se fundamenta na crítica da dominação – envolvendo a autoridade, a hierarquia, o Estado, o governo – e na defesa na defesa de uma sociedade libertária e igualitária, que implica descentralização, auto-regulação e a federação de associações voluntárias.
[10] Tais são os casos, por exemplo, de Rocker, 1978 e Marshall, 2010; este último livro, escrito nos anos 1990, fundamenta-se abertamente na abordagem estabelecida por Kropotkin.
[11] Conforme afirma Berthier (2010, p. 127), no contexto da Primeira Internacional, os anarquistas preferiam utilizar outros termos: “não se falava de ‘anarquismo’ à época. Bakunin dizia-se socialista revolucionário ou coletivista”. Naquela época, conforme coloca Enckell (1991, p. 199), esses termos eram ainda pouco utilizados: “Bakunin, quatro anos antes [de 1872], saiu do Congresso da Paz dizendo aos amedrontados burgueses: Sou anarquista, retomando a afirmação provocativa de Proudhon. Em seu relato do Congresso da Basiléia da AIT, em 1869, James Guillaume fala de coletivismo anarquista, mas ele nunca utilizará a palavra anarquista isoladamente, por razão de sua aparência negativa.”
[12] Sobre este conceito, desenvolvido a partir de uma análise do anarquismo no Brasil, cf. Samis, 2004.